Edição 205 – Caderno 1

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Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo do UniBH

Ano 35 | Nº 205 Belo Horizonte | MG

JUNHO | 2017

Foto: ANA RIBAS

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Dossiê aborda múltiplas facetas da instigante experiência de sonhar páginas 4 a 11

Ensaio fotográfico: estudantes registram protestos em Brasília caderno DO!S

Os Sonhos

E seu inventário de enigmAS


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primeiras palavras

Junho de 2017 Jornal Impressão

BONS SONHOS Mariane Fernandes Quem nunca foi dormir querendo ter um sonho agradável, acordou com sensação de que estava caindo de um lugar alto, ou, até mesmo, chorando por causa de um pesadelo? E Sigmund Freud? Qual sua influência para a construção do dossiê central dessa edição? Você vai ler muito o nome do grande pensador austríaco ao decorrer destas páginas e vai entender sua importância. Na reportagem “O dom de sonhar” especialistas da área da psicologia, neurologia e psiquiatria explicam o que é e como funciona o sonho. Como esse ato afeta o cérebro, como os sonhos são usados para curar temores de pes-

soas que apresentavam algum tipo de sofrimento e como nossa personalidade é entendida e estudada a partir do relato de seus sonhos. A entrevista com o professor Carlos Mendes explica a importância do livro “A interpretação dos sonhos”, de Freud, pai da psicanálise, o primeiro a conceituar o sonho e utilizá-lo em recuperações de traumas de excombatentes de guerra. Além de Freud, outro psicanalista, fundador da psicologia analítica, também resolveu se aventurar por este campo. Em “A mitologia do sonho”, você conhecerá a visão de Carl Jung, inclusive sua divergência com a posição de Freud. E entre sonho e arte, há alguma relação? As artes plásticas foram

bastante influenciadas pelos sonhos, dos surrealistas a outros tantos talentos de movimentos estéticos os mais diversos. Você teria coragem de se submeter a uma hipnose? Três repórteres do IMPRESSÃO participaram de um processo de transe e trazem suas reações a essa experiência inusitada, que muitos temem. Os animais são capazes de sonhar? Você, que tem um cachorro em casa, sabe por que ele fica agitado e se mexendo, enquanto dorme? Em “Epifania animal”, especialistas falam que os animais sonham sim e que até seu tamanho interfere no modo de sonhar. A reportagem revela ainda várias curiosidades sobre o sonho e o

expediente

mundo animal. Por fim, lembramse do famoso caso do ônibus 174, que abalou o país no ano 2000 e virou um premiado documentário? O sequestro é recontado pelo motorista do ônibus e por alguns jornalistas que cobriram aquela tragédia carioca. Bem, depois de dar uma viajada no mundo dos sonhos, ficar em transe, hipnotizado e entrar no mundo animal, que tal dar uma espiadinha em nosso Caderno DO!S? Nele, você encontra um ensaio fotográfico realizado por alunos do curso de jornalismo do UniBH em Brasília, durante as manifestações por “Diretas Já” e “Fora Temer” no mês de maio. Em “Um dia no Império”, o IMPRESSÃO

foi atrás da linha da Família Real brasileira. Em viagem até Petrópolis, nosso repórter encontra Dom Luiz Gastão de Orléans e Bragança, herdeiro imediato do trono brasileiro. Sim! No Brasil há uma Realeza, com sucessores do Trono que Dom Pedro deixou. Vale a pena conferir. A seção “Você já ouviu” apresenta o segundo disco de Cartola, um dos mais renomados compositores brasileiros do samba carioca. Então é isso! Preciso me despedir! Está preparado? Então, feche os olhos e mergulhe nesse fantástico mundo dos sonhos!

VICE-REITORA Profa. Carolina Marra S. Coelho

INSTITUTO DE COMUNICAÇÃO E DESIGN Profa. Cynthia Enoque

COORDENAÇÃO DO CURSO DE JORNALISMO Prof. João Carvalho

LABORATÓRIO DE JORNALISMO EDITORES Prof. Leo Cunha Prof. Maurício Guilherme Silva Jr.

DIAGRAMAÇÃO Ludmila Alves (LEGRA)

PROJETO GRÁFICO Laboratório de Experimentações Gráficas (LEGRA)

ESTAGIÁRIOS Bernardo Franco Mariane Fernandes Stephanie Morgana

Boa leitura! Ou melhor dizendo,, bons sonhos!

ILUSTRAÇÃO William Araújo Ludmila Alves Diuly Guerra

em uma redação qualquer... william araújo

PARCERIAS Laboratório de Jornalismo Online Laboratório de Fotografia Laboratório de Experimentações Gráficas (LEGRA)

IMPRESSÃO/TIRAGEM Sempre Editora 3.000 exemplares

Eleito o melhor Jornal-laboratório do país na Expocom 2009 e o 2º melhor na Expocom 2003 O jornal IMPRESSÃO é um projeto de ensino coordenado pelos professores Maurício Guilherme e Leo Cunha, com os alunos do curso de Jornalismo do UniBH. Mesmo como projeto do curso de Jornalismo, o jornal está aberto a colaborações de alunos e professores de outros cursos do Centro Universitário. Espera-se que os alunos possam exercitar a prática e divulgar suas produções neste espaço. Participe do JORNAL IMPRESSÃO e faça contato com a nossa equipe: Av. Mário Werneck, 1685 BH/MG CEP: 31110-320 Tel.: (31) 3207-2811 contato.tudouni@gmail.com


visão crítica

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Bernardo Franco A morte de Carrie Fisher foi muito sentida pelos cinéfilos, principalmente por fãs da saga Star Wars. A morte da renomada atriz pode significar também o falecimento da general Leia Organa, filha de Anakin Skywalker e Padmé Amidala. Isso porque as filmagens da franquia ainda não terminaram. O episódio VIII, Os Últimos Jedi, já teve as filmagens concluídas e não apresentou problemas para os fãs, apenas o efeito nostálgico por poderem assistir à personagem pela última vez nas telas. Por sua vez, o episódio IX, ainda sem título, caiu em mundos de comentários e especulações. A produção da franquia pretendia ainda contar com a importante General nos filmes. De acordo com a Disney, a ideia era trabalhar com uma participação de forma crescente ao decorrer da nova trilogia. A primeira especulação, após a morte de Fisher, foi manter a

personagem, materializando a atriz por meio de CGI (efeitos de computação gráfica). Isso aconteceu com a celebridade ainda viva em Rogue One, de 2016, spin-off da série, pois o filme precisava mostrar a personagem em versão mais jovem, a mesma Leia de Uma Nova esperança, de 1977. Apesar do preço e da dificuldade, o processo foi finalizado, devido à importância da personagem. Uma questão ética divide os fãs, de modo similar ao que ocorreu com Peter Cushing, falecido em 1994. Apesar da importância da personagem, sua aparição se resumiu a um dos filmes de Star Wars, também “recriado” em Rogue One. Seria correto uma aparição póstuma de Fisher, desta vez, não apenas em um trecho do filme? O que a própria atriz pensaria? Carrie Fisher era fã devota da franquia. A atriz chorou na estreia do trailler do primeiro filme da nova franquia, O Despertar da Força, e

participou de inúmeras edições de Comic-con’s, discutindo e argumentando sobre Star Wars e a personagem Leia Organa. Ela já participou, ainda, de filmagens com referência à princesa Leia, como Pânico 3. Seria falta de ética pôr um ícone, fã de carteirinha, e personalidade incomparável da franquia no capítulo final da saga?! Acho que não. Isso viria a ser grande homenagem a um ícone que, por força do destino, não conseguiu terminar sua participação na trama. Fato é que parte da polêmica já “caiu”. A Disney não irá mais “refazer” Carrie com efeitos de computação gráfica, talvez por conta do alto custo. Porém a família da estrela autorizou o uso de suas imagens para o episódio IX. Devem ser usadas filmagens já realizadas para outros filmes. Portanto, graças à Força, teremos a eterna princesa até o final da saga. Após o ocorrido com Carrie, a recria-

william araújo

O retorno de Carrie Fisher

ção de atores e atrizes em “efeitos especiais” continua em debate. Espero, sinceramente, que a tecnologia não se transfomer em moda no cinema, com uso de atores já falecidos. Há casos e casos. Uma coisa é pensar em recriar uma atriz, fã de

sua personagem, com contrato assinado para nova trilogia de uma franquia que existe desde a década de 1970, só pela importância dele para o enredo. Outra coisa é “ressuscitar” atores para a construção de novas narrativas. Espero não estar

vivo (nem mesmo por efeitos visuais), para ver Marlon Brando ou Paul Newman participarem de uma das infinitas sequências de Velozes e Furiosos, ou, quem sabe, assistir a um remake de um filme de Buster Keaton, mas, desta vez, falado e em cores.

rodapé super-humano Stephanie Morgana Guardar domingos e festas é o terceiro dos dez mandamentos da Igreja Católica. Para os fiéis, de fato, trata-se de “ordem” a ser seguida com determinação. Embora se considere católico praticante, tal mandamento não é cumprido, por ele, com muito afinco. Talvez por isso, seja devoto de São Judas Tadeu, santo patrono das causas desesperadas e perdidas. Todo dia 28 lá está ele, na igreja do Bairro da Graça, com um pedido bem especial. Mas... será possível

“perdoar” aquele que abre mão de guardar domingos e festas pela vida noturna? Ou, ainda, de abdicar do descanso por conveniência? Não sei. Talvez... Confesso que essa é uma decisão a ser tomada por Deus – ou por nós, aqui na Terra. Entretanto, por trás de tudo há, também, a extinção de um pecado capital: a preguiça. Afinal, mesmo que outros tantos troquem a noite pelo dia, fazer isso, ininterruptamente, é algo de se admirar. Quem dera, no auge dos 23 anos, eu esbanjasse saúde e disposição

Difícil decisão a ponto de sair noite à noite – e de domingo a domingo. Pois esse é, justamente, seu “passatempo” preferido. Conforme ele costuma dizer: “Deixe-me ir, é lá que está meu ganha-pão”. E assim segue a vida, sob faróis acesos, em meio à cidade apagada, e com cerca de 200 quilômetros a percorrer noturnamente. Eis, amigo, o SuperMário, meu pai, herói sem capa, que, se preciso for, há de trabalhar noite e dia (noite e dia, noite e dia...) para garantir o sustento de sua grande família.

Luciana Souza Para muitos jovens, cursar uma faculdade parece fácil, mas não o é, na maioria das vezes. Afinal, é preciso determinação para alcançar os objetivos desejados. Clarice, 18 anos, nascida no interior, sempre sonhou em cursar uma faculdade. Para ela, ter curso superior melhoraria, e muito, a condição financeira da família. Por isso, resolveu tentar o vestibular... Mal sabia a ingênua moça como sua vida mudaria, a partir daquele momento. Quando recebeu a notícia da aprovação

no vestibular, a moça sentiu que seus sonhos começavam a se realizar. Saiu, então, de sua terra natal, e veio à capital. Iniciava-se, assim, a difícil jornada: no início, parecia tudo bem, mas o dinheiro já estava ficando pouco. Ela não conseguia nem pagar o aluguel e as passagens de ônibus. Diante das dificuldades, Clarice resolveu procurar emprego. Porém, para isso, teria que estudar no turno da noite, pois não achava trabalho de meio turno. Conseguiu um emprego, mas, com o tempo, vieram outras

dificuldades: já não conseguia ir tão bem na faculdade, e as notas ficaram ruins. Notou que não conseguia conciliar trabalho e estudo. Decidiu pedir demissão e se dedicar, novamente, apenas aos estudos. Mesmo assim, continuava a não ter como pagar o aluguel: ou procurava outro emprego ou teria que trancar a faculdade... Clarice viu que não teria como conseguir um ofício àquela altura do campeonato. Teve, então, que tomar a mais difícil das decisões: trancou a faculdade e voltou à terra natal.


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DOSSIÊ SONHOS

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O dom de sonhar Carolina Manoel Francyne Perácio Mariane Fernandes Sarah de Paula “O sonho encheu a noite, extravasou pro meu dia, encheu minha vida, e é dele que eu vou viver, porque sonho não morre”. O poema “Pote dos Sonhos”, de Adélia Prado, apresenta literariamente o sonho como algo eterno e abstrato. Freud, em seu artigo “Interesse científico da psicanálise”, descreve o sonho, segundo a Medicina, como fenômeno produzido na mente humana durante uma das fases do sono. A psicologia humanista estuda o consciente do ser humano. Portanto as análises feitas referentes ao sonho partiram de informações de pessoas acordadas. Segundo o psicólogo e professor do UniBH, Lucas Albertoni, sonhos são compostos de manifestações do cotidiano do indivíduo, além de um conteúdo misterioso que interfere e conduz tais informações para um mundo mais fantasioso. “Entender sonhos é entender pessoas, entendê-las na forma como explicam os sonhos” descreve Lucas.

Sobrenatural A visão pré-histórica dos sonhos, adotada na Antiguidade, interpretava-os como o mundo dos seres sobrenaturais, os quais revelavam premonições de deuses e demônios e sobre o futuro. Tal atitude está ligada à relação dos filósofos dessa época com a adivinhação, segundo Freud, na obra “Interpretação dos Sonhos”. Somente a partir de Aristóteles o sonho foi identificado como algo psíquico. Ou seja, o sonho deriva de manifestações humanas e não

de divindades. Então os sonhos são definidos como “atividade mental de quem dorme, na medida em que esteja adormecido”. O sonho acontece cerca de 4 a 5 vezes por noite, na última fase de cada ciclo de sono, chamada de sono-REM (rapid eye movement, sigla em inglês para movimento rápido dos olhos), com durações de 5 a 30 minutos. É um momento paradoxal do sono, pois a pessoa se encontra em um sono profundo, mas o cérebro apresenta uma intensa atividade neuronal, como se estivesse acordado. Isso é explicado pelo professor em Harvard, Robert Stickgold quando diz: “Usamos o cérebro quando sonhamos da mesma maneira que usamos quando fazemos as mesmas coisas acordados”.

Os sonhos sempre foram um mistério e algo que a ciência sempre quis entender. O que acontece enquanto as pessoas sonham? O corpo fica inerte, mas o cérebro continua em grande atividade. Por isso, a mente pode divagar em vários ambientes, realidades e situações. O sonho então é o meio que permite ao ser humano falar dele, mas para entendê-lo é preciso estar acordado. Segundo o psicólogo, algumas coisas que sonhamos, na verdade foram agregadas por nós inconscientemente, por isso, não necessariamente sonhamos com ela, não há como comprovar. Ao falar do sonho sensações são produzidas no indivíduo, revelando também características próprias desse ser, ou do que se está vivendo.

Na fase do sono REM, ainda segundo Lucas, existe uma restauração emocional do ser humano, em que há uma intensa atividade cerebral. É o momento no qual a mente produz significações para o que não compreendemos. Então “sonhar é uma forma de se organizar, por mais obscuro que parece esse sonho”. Assim ele produz sensações distintas, como quando se acorda e não lembra do que sonhou, pode ser um mecanismo de autoproteção, porque não era para ser lembrado ou às vezes por não ser importante. Desse modo quando se desperta repentinamente é o corpo enviando uma mensagem, seja para a proteção ou para lembrar o indivíduo de algo, é tido como um sinal de alerta. Os sonhos sempre foram um mistério e algo que a ciência sempre quis entender. O que acontece enquanto as pessoas sonham? O corpo fica inerte, mas o cérebro continua em grande atividade. Por isso, a mente pode divagar em vários ambientes, realidades e situações. É na busca da solução para os mistérios, de se entender não tudo, mas o máximo que for possível, que reside a maravilha da ciência.

O que diz a ciência Na maioria das vezes não há recordações dos sonhos, pois para que isso seja possível é necessário acordar em meio a um sonho, ou logo em seguida de seu termino. Ainda vale ressaltar que durante o sono, a serotonina, neuromodulador responsável pela memória, não está presente. Por isso os sonhos das manhãs são mais lembrados do que o da noite, pois a se-

Fotos: ana ribas

O que são, exatamente, as imagens, os mistérios e as histórias vivenciadas durante o sono

rotonina já voltou a ser produzida naturalmente pelo organismo. Em 1953, os cientistas, Eugene Aserinsky e Nathaniel Kleitman, se interessaram por estudar a atividade cerebral durante o sono por meio de exames que medem a atividade elétrica neuronal, o eletroencefalograma. Nesta investigação, notaram que a atividade cerebral varia bastante durante o sono. O Sistema Límbico, que é um grupo de estruturas que inclui: hipotálamo, tálamo, amígdala, hipocampo e o giro do cíngulo, que é a unidade responsável pelas emoções e com-

portamentos sociais, estava muito ativo durante o sono. E em determinados estágios, o cérebro funcionava de forma semelhante à atividade durante a vigília. Apesar do funcionamento semelhante, não é igual, pois o tálamo, por exemplo, estrutura importante no recolhimento de estímulos internos e externos, prepara o cérebro para o sono, desligando a ponte com o tronco encefálico. Assim, há menor liberação de vários neurotransmissores, como a serotonina e a noradrenalina, e aumento de outros como a acetilcolina, que dá início

ao sono REM. O sonho, provavelmente, apresenta diversas funções. Do ponto de vista cognitivo, imagina-se que ele realize ajustes importantes no aprendizado. No aspecto psicológico, pode ser uma busca do equilíbrio entre o que é vivido e o desejado, e também uma forma de lidar com os traumas. Sob a ótica médica, o sonho exerce função reparadora, já que as partes do cérebro em funcionamento se alternam. Além disso, ainda é um campo com pesquisas muito recentes e uma possibilidade infinita de descobertas.


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o sonho e a psicanálise Os sonhos segundo Freud, o pioneiro em pesquisar tal fenômeno, são como uma satisfação alucinatória de nossos desejos, a influência das experiências vividas durante o dia e acontecimentos da vigília que são revisitados pela nossa memória enquanto dormimos. “Nós deveríamos começar a entender um pouco o sonho na descoberta que Freud fez no final do sec. XIX, quando ele começa a receber pacientes que apresentavam sintomas que a ciência não conseguia entender a causalidade”, explica a psicanalista Bethania Pena Santos. Segundo ela, Freud se deparou com situações que, até então, a ciência não tinha nenhum saber, e, a partir disso, ele se dispôs a conversar e entender pessoas que apresentavam sofrimentos sem respostas.

Ao escutá-las, ele percebe que o fato de falar, traz uma relação muito específica do homem com a própria imagem, com o próprio corpo e um dos materiais que ele descobre, vem diretamente através dos sonhos. “Os pacientes que estavam sob efeito de alguma situação traumática traziam materiais de sonhos”, completa Bethania. O sonho, para a Psicanálise, é uma formação do inconsciente, ou seja, Freud descobre, a partir dos sonhos, que existe uma memória psíquica e que ela pode ser acessada nos momentos em que dormimos.

Por que sonhamos? A psicanalista explica que fenômenos psíquicos sempre tiveram algum apoio no corpo, portanto, se não tem uma função cerebral que não permita

dormir, isso afetará no acesso direto que se tem ao sonho. No campo subjetivo, o sonho tem a função de proteger o sono. “Só sonhamos porque uma parte de nós não dorme enquanto estamos vivos, já que ele é uma formação do inconsciente e funciona como um aparelho de memória”, explica. Existem dois tipos de sonho: os que expressam nitidamente a realização de desejo e os de angústia, que submetem o sonhador a sensações desagradáveis, o conhecido pesadelo. Ambos ocorrem com restos diurnos, presenciados ou vividos pelo sujeito, pedaços de coisas que ele escuta, vê e lê. Porém, o último está ligado a um automatismo de repetição, um modo de funcionamento do inconsciente. Os sonhos, portanto, tentam estabelecer ligação entre algo expe-

rimentado e alguma representação de palavra. Para Bethania, essas representações funcionam como metáfora e metonímia, condensação e

deslocamento.Por isso, às vezes, se sonha com alguma casa onde viveu, mas é outro lugar. “Ou seja, não existe censura psíquica (função que do-

mina a consciência de uma pessoa) que possibilite a deformação de elementos traduzidos nos sonhos”, completa a pesquisadora.

além do olhar

Todas as pessoas sonham em algum momento de sua vida. Mas já se perguntaram se um cego pode sonhar? Como eles podem enxergar algo nos sonhos se nunca tiveram contato com uma linguagem visual antes? A psicanalista Bethania explica. “Nós no final das contas não enxergamos só com os olhos, nós não escutamos só com os ouvidos. Se um cego enxerga nos sonhos o que nunca viu, é porque justamente ao falar e ao representar, as palavras fornecem a eles imagens acústicas de tudo que é dito.” Não há nada que pensamos que não seja apoiado nas palavras. Nós que temos um corpo, só pensamos com palavras, ou seja, o cego que não enxerga, mas que está inserido na linguagem humana, pode perfeitamente ver nos sonhos, o que ele interpreta com as palavras. “Somos aquilo que é narrado, falado de nós muito antes de nascer, e quando a gente nasce, nos apropriamos das palavras. Então nos vemos sendo falados por nos mesmo e isso determina a gente como seres de linguagem”, relata. A linguagem não exerce uma função apenas de comunicação, ela nos constitui.


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DOSSIÊ SONHOS

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Para além do “achódromo” Pesquisador explica principais características de A intepretação dos sonhos, clássico de Sigmund Freud

A interpretação dos sonhos, livro de Sigmund Freud (18561939), publicado em 1899, aborda, de forma inovadora, os processos inconscientes, conscientes e pré-conscientes relacionados aos sonhos. A obra explica o novo modelo do inconsciente e trabalha um método para conseguir acesso a ele, ao usar, por vezes, técnicas de hipnose e associação livre. Para falar sobre a clássica obra de Freud, o jornal IMPRESSÃO conversou com Carlos Mendes Rosa, mestre em Psicologia Clínica e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Na entrevista, o pesquisador comenta as origens da psicanálise e questões ligadas à sexualidade, dentre outros assuntos seminais à compreensão de A interpretação dos sonhos. Além de outras obras de Freud, A interpretação dos sonhos, de 1899, fundou o que, hoje, é a psicanálise? A interpretação dos sonhos é um marco fundamental para a psicanálise, tanto por seu impacto na sociedade da época quanto pelas descobertas sobre o funcionamento do aparelho psíquico do sujeito. Freud, Copérnico e Darwin constituem as três grandes feridas narcísicas da humanidade. Ou seja, os três grandes golpes no narcisismo (aqui, sinônimo de vaidade) da sociedade. Primeiro, acreditava-se que a Terra era o centro do universo. Então, Copérnico pôs a Terra como um pequeno planeta que gira em torno de uma estrela pequena, perdi-

da em uma das infinitas galáxias do universo. Depois, acreditávamos sermos filhos de “Deus Pai”, descendentes diretos do criador. Darwin chega para nos dar uma origem bem mais modesta, como herdeiros de longa linhagem de primatas. Por fim, o homem acreditava ser o único ser pleno de racionalidade. E Freud trata de solapar essa ilusão com a noção de inconsciente, ao afirmar que “o Eu não é senhor em sua própria casa”, o que significa que não controlamos nossos pensamentos, afetos e ações inconscientes. O livro em questão trata estritamente da análise do inconsciente ligada ao sonho? A obra não trata apenas de sonhos, mas de todas as diferentes manifestações do inconsciente em nossa vida de relações, tais como os chistes e os atos falhos. Porém, o sonho é um excelente paradigma para entendermos o funcionamento do inconsciente, seus mecanismos de repressão e de defesa. Freud afirma que “o sonho é a via régia de acesso ao inconsciente”. A psicanálise, portanto, tem seguido o mesmo modelo iniciado por Freud? Freud é o Pai da psicanálise. Assim, todos os que se propõem a serem psicanalistas devem seguir o percurso deixado por Freud. No entanto, a psicanálise é um saber que se atualiza com o tempo, e grandes contribuições foram agregadas ao pensamento freudiano desde o início da obra do Mestre de Viena. Aqui podemos citar, com segurança as contribuições de Jacques Lacan e Donald Winnicott, entre ou-

tros grandes homens e mulheres. O título da obra pressupõe um resultado, uma conclusão. A psicanálise, no entanto, é capaz de interpretar, de fato, um sonho? Quais as ferramentas para tal? O conceito de interpretação na obra freudiana ganha diferentes desenvolvimentos ao longo do tempo. Contudo, desde seu estatuto inicial, a obra mantém uma questão fundamental: o fato de que quem interpreta é sempre o paciente. O analista pode formular pontuações, interpretações e construções sobre o material apresentado pelo paciente, quem sempre confirmará ou validará tais atos analíticos. Não fazemos interpretações automáticas dos sonhos, mas questionamos o paciente acerca do real significado que aquilo pode ter em sua vida. O analista faça dá continuidade às suas cadeias associativas. Os sonhos, segundo Freud, abrem uma janela para o inconsciente, conceito que, hoje, é visto como atemporal? Subconsciente seria o termo mais apropriado? O inconsciente é, e sempre foi, atemporal. Mesmo porque (isso já estava implícito em Freud, mas foi melhor descrito por Lacan), o inconsciente se estrutura como linguagem, e não é passível de ser afetado diretamente pela temporalidade. O termo “subconsciente” não pertence ao campo da psicanálise, pois pressupõe algo abaixo da consciência, realidade em que a psicanálise não acredita. O inconsciente não está abaixo, ou acima, ou atrás da consciência.

Não é um lugar (uma caixa preta) que contém informações secretas, mas uma linguagem que atravessa o sujeito, que o define e o constrange a pensar e fazer coisas à revelia de sua vontade consciente. Freud usou a técnica da hipnose, vinculada ao sonho, e, mais tarde, relacinou-o à associação livre. Qual é, exatamnete, a ligação entre a hipnose e o sonho? Freud tratou de abandonar a técnica da hipnose, logo no início de seu trabalho, por considerá-la ineficaz para lidar com as resistências do inconsciente. Depois, descobre a associação livre, a qual é utilizada até hoje como a regra fundamental de qualquer tratamento que se proponha psicanalítico. Não existe uma relação entre hipnose e sonho, o que existe é uma estreita vinculação dos sonhos com o inconsciente. A interpretação dos sonhos trata, também, do desejo inconsciente e vinculado a muitos traumas e à sexualidade infantil reprimida. O que mudou desde então? De fato, a sexualidade infantil será teorizada por Freud alguns anos mais tarde (1905), em um texto intitulado “Três ensaios para uma teoria da sexualidade”, que causou tanto ou mais espanto que a própria interpretação dos sonhos. Acredito que, hoje, tenhamos maior aceitação em relação aos termos psicanalíticos. Contudo, as pessoas ainda se espantam quando confrontadas com a sexualidade de seus filhos. Isso ocorre, muitas vezes, porque esse confronto mexe com conteúdos mal re-

REPRODUÇÃO

Bernardo Franco Daniel Robson Lucas Soares

FICHA TÉCNICA Título: A interpretação dos sonhos Título original: Die Traumdeutung País de Origem: Áustria Autor: Sigmung Freud Editora: L&PM Ano da primeira edição: 1899 Ano da edição L&PM: 2016 Tradutor: Renato Zwick Páginas: 736

solvidos dos próprios pais ou cuidadores. O que seria “ultrapassado” no livro? Freud é marcado pela leitura de sua época. Dessa maneira, há, no texto, análises das relações sociais a serem recontextualizadas. Talvez, a subjetividade conflituosa presente na obra possa ter se modificado com as mudanças culturais e sociais da contemporaneidade. Freud falava de uma sociedade profundamente marcada pelo signo da repressão, em que os comportamentos sexuais eram tolhidos em nome de uma moral burguesa bastante hipócrita em seus hábitos e regras. Atualmente, as-

sistimos a uma maior liberdade no campo da sexualidade e dos hábitos relacionais, mudança que nos coloca um novo tipo de subjetividade não mais marcada pela repressão, mas pela permissividade, pela ausência de referências sólidas de identificação e pelo excesso de angústia. No entanto, por ser um texto sobre o funcionamento do aparelho psíquico, mantém o vigor e a atualidade. A conotação sexual presente no livro é hoje considerada exagerada? De modo algum. Pelo contrário, o campo da sexualidade sempre será o terreno de base


das construções psicanalíticas. O que as pessoas têm dificuldade de entender é que a sexualidade não se restringe à relação sexual dos adultos, mas liga-se à tudo que diz respeito à obtenção de prazer. Toda

satisfação é, em última análise, sexual. O prazer de uma boa comida, a alegria de fazer uma viagem, as brincadeiras de uma criança, são diferentes expressões do que a psicanálise entende por sexualidade.

Muitos, ou alguns profissionais, não concordam com o autor. Mas é possível ser um psicanalista e abolir completamente os ensinamentos do livro? É possível exercer a psicanálise sem concor-

dar com alguns dos posicionamentos e ideias de Freud. O próprio Freud não via problemas nisso, desde que, como ele mesmo salientou várias vezes, os princípios fundamentais da psicanálise fossem

mantidos. E quando falamos de princípios estamos falando da associação livre como regra fundamental do tratamento, da transferência como coração do dispositivo analítico, do sintoma como formação

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de compromisso inconsciente, do determinismo psíquico preponderante em toda a vida mental do sujeito e da outra cena do inconsciente como lugar de expressão da realidade desse sujeito. Foto: Ana Ribas

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A mitologia do sonho Os arquétipos rompem com a linearidade do espaço-tempo ao ampliar a visão da simples causalidade Fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung (1875-1961) foi um dos maiores estudiosos da vida interior do homem. Embora, por algum tempo, tenha mantido estreita relação com Sigmund Freud (1856-1939), as divergências entre os dois tornaram-se inconciliáveis, e, desde então, Jung começou a trilhar caminho próprio. Jung desenvolveu as teorias da mitologia e dos arquétipos: o mito, nesse sentido, está associado, por meio da construção simbólica, ao papel de intermediação entre a vida consciente e inconsciente. Os arquétipos, por sua vez, são conjuntos de imagens originadas por repetição progressiva de uma mesma experiência durante muitas gerações, e que são armazenadas no inconsciente coletivo – imagens virtuais comuns a todos os seres humanos. Ainda segundo o pensador suíço, os sonhos são pontes importantes para manter o equilíbrio entre a vida onírica e o pensamento consciente. Em outros termos, “resultam das projeções dos conteúdos

do inconsciente para o consciente em forma de imagens e realizações no mundo exterior”. De certo modo, assim como o corpo humano necessita de elementos para manterse em pleno funcionamento, a alma tem nos sonhos uma espécie de válvula de escape. Nesse cenário, temos duas vertentes. A primeira diz respeito, exclusivamente, a Freud e Jung. Mas, também, a diversos povos que, há milênios, trabalham com a hipótese de que o sonho quer dizer alguma coisa.

Atribuição de sentido Para Joseph Campbell (1904-1987), outro estudioso do tema, “os mitos são sonhos públicos; os sonhos são mitos privados”. Nesse cenário, os mitos, de certa maneira, organizam-se a partir de determinada cultura, e a sociedade o adota como referência. Sendo assim, é preciso analisar, de fato, qual a crença particular de cada indivíduo. Por vezes, devemos nos questionar: qual meu papel na vida? Acerca das mitologias, existem vários arquétipos. Podemos, por exemplo, citar o herói

– aquele que combate o mal para salvar um grupo, uma sociedade ou o mundo. Ou pode ser o trickster, cuja característica é ser ardiloso, enganador, traidor. Segundo o psicólogo Bernardo Monteiro, o ato de recebermos um nome diz respeito a uma história idealizada, que ainda não vivemos. De que maneira, porém, essa história deve ser considerada um mito pessoal? Em relação à designação de papéis no contexto familiar, Bernardo associa a prática ao Panteão Grego – conjunto de deuses de uma mitologia. “Inconscientemente, a família contribui com a construção da percepção de papéis particulares. Desse modo, só posso agir de uma maneira. Não obstante, há classificação daquele que representa o mais inteligente, engraçado, extrovertido, o sabotador, racional etc. E nos posicionamos a partir disso, assim como à época do Panteão Grego, com o Deus fecundador, a Deusa da sensualidade ou da Justiça, o Deus do submundo etc.”, comenta o pesquisador. Ainda segundo o psicólogo, a mitologia pessoal é análoga à

mitologia cultural e antropológica. Além disso, aparece na vida humana tanto quando nos organizamos a respeito do que é sagrado, valioso e/ou transcendental, quanto em relação à submissão de papéis de respeito e em proibições – que, de certa maneira, dizem respeito a tabus ligados a questões pessoais e/ou familiares.

Em grande medida, a construção do mito é fruto de ação do próprio indivíduo. “As coisas não têm sentido por si mesmas, mas pelo sujeito que as manifesta, seja pela vestimenta, seja pelo corte de cabelo etc.”, conclui. Portanto, é óbvio que o sonho de um indivíduo que mantém acompanhamento

profissional tem mais possibilidade de ser interpretado, embora os psicólogos considerem que a melhor pessoa para interpretar o sonho seja ela mesma. Por meio de técnicas, porém, o papel do profissional está associado à oferta de elementos que o auxiliem na compreensão do sentido dos sonhos em sua vida. Diuly Guerra

Stephanie Morgana

InterpretaçÕES POPULARES Em algum momento da vida, você já deve ter escutado que sonhar com dente caindo é sinal de morte, e que as imagens de bebês querem dizer que alguém está grávida. Interpretações desse tipo não são raras em nossa cultura. Trata-se, pelo contrário, de hábitos que perduram há séculos e são repassados

de geração a geração. De acordo com o psicólogo Bernardo Monteiro, as crenças populares, inevitavelmente, estão associadas ao senso comum por não apresentar embasamento científico e/ou aplicabilidade clínica. Nesse cenário, o psicólogo revela que a insistência em seguir o caminho pelo senso co-

mum atrapalha o desenvolvimento do próprio paciente. Entretanto, há interpretações de sonhos que de fato intrigam. “Algumas pessoas interpretam o próprio sonho, de modo não profissional, e associam a algo que vai acontecer, como o jogo do bicho, por exemplo. E costuma dar certo”, esclarece.

“Embora existam pessoas que, de fato, fazem algo que não conseguimos explicar, cerca de 99,9% são oportunistas.” Há vários tipos de sonhos, entre os quais, os classificados como premonitórios. O psicólogo defende que, nesses casos, a sensação de nitidez é muito mais

clara do que aquela oferecida pelos demais. Com efeito, a crença popular não está associada a mitos, mas acaba por compor certa mitologia, no sentido de ser usada como referência para explicar o modo como as pessoas sonham, como deveriam se comportar e, principalmente, as probabilidades de morte –

ao modo das cenas em que os dentes caem. Já em relação às cartomantes, videntes etc., Bernardo faz um alerta. “Embora existam pessoas que, de fato, fazem algo que não conseguimos explicar, cerca de 99,9% são oportunistas. E, em caso de terem algum dom, ainda assim, essas pessoas erram”, completa o especialista.


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Estética onírica Os sonhos e suas relações com as artes plásticas O sonho não se restringe, como tema, ao universo da Psicologia. Com o passar dos séculos, o fascínio das experiências oníricas também serviu de inspiração a grandes talentos da arte. Neste ensaio, que tal partir numa espécie de viagem (estética) em busca da presença dos sonhos no fazer de grandes pintores e escultores? Quando se pensa em arte produzida por meio de sonhos, o movimento surrealista logo vem à mente de muitos. Inserido no contexto das vanguardas, o Surrealismo nasceu em Paris na década de 1920, mais ou menos ao mesmo tempo de outros movimentos modernistas. Os artistas ligados ao surrealismo acreditavam que as expressões artísticas deveriam se libertar do conceito que exigia lógica e razão, ao extrapolar a consciência e buscar a imaginação, os sonhos. Dentre os famosos exemplos de surrealistas sonhadores, desta-

que para as obras Sono (1937), de Salvador Dalí (1932); Esta é a cor dos meus sonhos (1925), de Joan Miró; e Memória de uma viagem (1951), de René Magritte – para quem, aliás, seu pró-

prio processo criativo era realizado por meio de “sonhos voluntários”. Para além das inquietações surrealistas, outros tantos artistas foram mobilizados pelo potencial estético

dos sonhos: Visão do sonho (1525), de Albrecht Dürer; O pesadelo (1781), de Heinrich Füssli; O sonho da razão produz monstros, de Francisco de Goya y Lucientes (1799); e

No alto, Sono, de Salvador Dalí; à esquerda, Memória de uma viagem, de René Magritte; à direita, Esta é a cor dos meus sonhos, de Joan Miró

Bandeira (1954), que o artista Jasper Johns criou a partir de um sonho. Uma das badaladas revelações da pintura contemporânea, a artista norte-americana

Dimitra Milan também costumam transformar seus sonhos em trabalhos peculiares. Suas obras compõem o acervo do “Milan Art Institute”, criado por seus pais, Elli e Jonh Milan. Fotos: Reprodução

Bruno Sousa


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IMPRESSÃO EM TRANSE Bernardo Franco Igor Moreira Tainá Silveira Hipnose, sonho lúcido e regressão se entrelaçam. Todos acontecem em um estado de inconsciência com consciência. No sonho lúcido, temos o corpo paralisado, os neurônios motores param de receber estímulos e só o diafragma e os olhos se movem. Enquanto isso, nossa mente permanece ativa criando e vivendo em um mundo paralelo simultaneamente. Na hipnose, que inclui a regressão, não temos controle sobre o corpo e ficamos passíveis a sugestão. Ao mesmo tempo em que estamos em um mundo paralelo, sem consciência, estamos do lado do hipnólogo, ouvindo e interpretando o que ele diz.

Voltando no Tempo?! A Regressão está dividida em duas partes: a regressão comum e a regressão de vidas passadas, que, não é reconhecida pela comunidade científica. Segundo a comunidade não se pode misturar psicologia com religião já que dogmas não podem ser comprovados. A regressão acontece quando o hipnólogo induz o paciente a lembrar de suas memórias e, por meio delas, trabalha vícios, desafetos, e qualquer coisa que traga incômodo a ele. Angela Cota, mestre em psicoterapia e hipnoterapia ericksoniana, escritora e diretora do Instituto Minton H. Erickson de BH, conta que uma de suas pacientes pensava em suicídio. Mas, pelo amor a suas filhas ser maior, procurou apoio na terapia. Ao conversar com a médica, ela contou que era a caçula de 14

irmãos, sua mãe dizia coisas como, “você é um aborto malsucedido”. Por isso, apesar de confiar a criação de suas filhas à sua mãe, ela guardava um rancor em relação a ela. Segundo a doutora, após uma sessão de regressão, a paciente lembrou que sua mãe deixou de se alimentar para que ela pudesse comer um pouco mais, devido às condições da família. A partir da lembrança, ela perdoou todas as mágoas com a mãe e perdeu a vontade de se matar, pois, ainda segundo Cota, “ela tinha medo de se tornar uma péssima mãe como ela pensava que a sua fosse”. Sonhando Acordado Certamente você já teve essa experiência: estava dormindo e de repente se percebe dentro de um sonho. Provavelmente você quis controlar o que estava acontecendo nesse mundo, mas em seguida, perdeu o controle e acabou acordando. Bom, isso é o sonho lúcido.

O “estar hipnotizado” se define em estar em um estado de transe por indução de algo. Em 1975, dois cientistas decidiram comprovar que o sonho lúcido era real. Com uma máquina de polissonografia - equipamento que registra as ondas cerebrais, o nível de oxigênio no sangue, a respiração e os movimentos das pernas e olhos durante o sono - Keith Hearne monitorou o colega Alan Worsley. Os dois combinaram que se Worsley ficasse consciente, ele mexeria oito vezes os olhos da esquerda para direita. Em doze de abril de 1975, às 8h07, o sonhador moveu os olhos dessa maneira, e o cole-

ga verificou pelo equipamento que ele estava dormindo, assim, comprovado cientificamente que o sonho lúcido era real. Dentro da hipnoterapia há uma técnica que dialoga muito com os sonhos lúcidos: o sonho acordado dirigido. Se o paciente tiver pesadelos recorrentes, por exemplo, ele pode alterar seu final. “Eu, por exemplo, tinha um sonho em que eu caía de um precipício. Eu ia caindo bem lentamente e acordava com aquela sensação horrível. Aí, para consertar esse sonho, eu caía em algumas árvores ao longo do cominho e as folhas fofas amorteciam minha queda”, conta Angela. Já me hipnotizaram? Quase todo mundo já esteve hipnotizado, mas pode não saber disso. A hipnose pode acontecer até mesmo ao assistir um filme, por exemplo. O “estar hipnotizado” se define em estar em um estado de transe por indução de algo. A doutora Angela, desmistifica alguns pontos relacionados à hipnose. “Uma pessoa em estado de hipnose jamais realiza algo que não é de seu desejo”. Existem algumas diferenças entre práticas de hipnose. A técnica utilizada pela doutora é a forma ericksoniana, que, advém de Milton Erickson, psicanalista norte americano do início do século passado. Essa técnica pretende que o paciente seja o principal fator de cura de seu problema psicológico. O terapeuta apenas ajuda o paciente a buscar respostas em seu inconsciente. Quebrando o mito de que na hipnose, a consciência de um indivíduo fica sob o comando de outra pessoa.

Foto: Well Mendes

Verdades e mitos a respeito de técnicas que rodeiam o sonho

Ficamos em transe! Para quebrarmos os tabus, fomos convencidos a participar de um processo de hipnose e os resultados foram variados. A terapeuta Angela Cota nos acomodou de maneira confortável, com os pés bastante firmes ao chão. Em seguida, fomos orientados a fechar os olhos enquanto a nossa “guia” nos contava um enredo em que precisávamos ser inseridos. Uma estrada que ora era larga, ora estreita, mas o ponto principal da narrativa foi que entramos em um circo ao final da rua denominado Show da Vida, a partir daí as lem-

branças foram diversas

Bernardo Franco Me senti em paz, porém, inquieto. O que mais queria era abrir os olhos. O ponto mais forte da “viagem” é que eu estava sempre acompanhado de um “eu” mais novo, e era nítido. Senti a experiência de maneira bem consciente, eu poderia abrir os olhos quando quisesse, como fiz, antes da hora. Tainá Silveira Meu corpo no início era pura rigidez, depois de um tempo, me tornei uma maria mole. Na estrada da volta não ouvi mais a voz da terapeuta,

não me lembro dos comandos e muito menos da paisagem. Só a ouvi pedindo que eu despertasse. Espreguicei, abri os olhos, conforme os comandos dela. Paz definiu meu estado. Igor Moreira Fiquei um pouco receoso, achei que não daria certo comigo, mas logo consegui ver a rua onde eu cresci, e meu amigo de infância que faleceu. Então me lembrei da vizinhança e das brincadeiras de infância. Não resisti, me emocionei e veio um alívio. Sei que aquele tempo não volta, fui lá em casa e voltei. ”


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Epifania animal Bárbara Souza Camila Marques Com as patas sobre os olhos, ele treme. Choraminga, empurra o ar, e seus donos acham fofo. Está apenas sonhando, é o que muitos pensam. Mas será que os animais realmente são capazes de sonhar? Pesquisas realizadas pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos apontam que sim: diversas espécies de mamíferos e aves conseguem chegar ao REM (Rapid Eye Movement), estágio do nosso sono em que os sonhos acontecem. Contudo, ainda não é certo se anfíbios e répteis podem chegar nesse nível.

“É possível notar que muitas vezes eles demonstram sonhos agitados” Nessa fase, as espécies agem no sonho como se realmente o tivessem vivido. Animais como gatos, macacos e ratos foram os primeiros estudados, e uma das primeiras conclusões tiradas é que o tamanho do animal interfere no desenvolvimento deles. Isso pode ocorrer devido à sua atividade cerebral, que é alterada em ciclos mais rápidos e repetitivos, proporcionando,

de diferentes formas, as mesmas sensações que nós, humanos, sentimos ao dormir. Porém ainda não se sabe até que ponto eles vão. Ricardo Tamborini, especialista em comportamento canino, explica que a medição da atividade cerebral pode indicar o tipo de sonho dos animais. “É possível notar que muitas vezes eles demonstram sonhos agitados”, afirma. A estudante Daniele Maciel acompanha esses movimentos de perto, já que a pequena Lana está constantemente sonhando pelos cantos da casa. E não é para menos: agitada como é, ela passa o dia inteiro brincando e quando chega a noite, bate o cansaço, e junto dele, vem o REM. Dependendo do ambiente, a integridade física dos animais pode ser comprometida, o que os torna incapazes de dormir tranquilamente. Nesses casos, Ricardo aconselha a confortar o cão até deixá-lo tranquilo, para que, o momento seja saudável e satisfatório. Segundo Daniele, a inquietação da cadela ocorre desde seu nascimento e a busca constante por atenção demonstra essa carência. “Nós acreditamos que seja devido ao fato de Lana não ter convivido

fotos: izabella cardoso

À maneira dos seres humanos, os sonhos de certos bichos revelam-se simulacros da vida real com a mãe, pois, quando a buscamos na clínica, ela tinha dois meses e, durante a noite, fazia gestos como se estivesse mamando”, relata. Ela pode estar certa, pois o ambiente é um dos fatores que mais interferem na qualidade dos sonhos dos pequenos companheiros. E atenção: donos estressados e casa cheia podem deixá-los inquietos. Oferecer lugares com pouca luz, colocar uma música calma em volume baixo, e acariciá-lo levemente com movimentos lentos levará o animal ao relaxamento e, por consequência, aos sonhos.

Energia divertida O adestramento é um procedimento que proporciona atividades, brincadeiras e muita interação. Dessa forma, é muito provável que os animais sonhem após a sessão. “Caso realizado com reforço positivo, o adestramento é bom para o animal, pois ele aprende ao se divertir. Se teve um dia legal, um treino divertido, é possível que sonhe com aquela aula”, afirma a adestradora Priscilla Mitre, franqueada da empresa Cão Cidadão. Entretanto, se você não pode proporcionar esses momentos a seu companheiro, o ideal é levá-lo a passeios di-

ários de, pelo menos, 10 minutos, além de conversar, acariciar e deixá-lo entrar contato com outros animais. É necessário que, ao final do dia, ele tenha gasto as energias conquistadas no sono.

Dos leões aos ornitorrincos, todos têm a capacidade de compreender o que se passa no ambiente que os cerca conseguem entrar no modo REM. Ou seja: animais selvagens também so-

nham. Seja através de experiências boas ou ruins, eles sonham a fim de processar as informações obtidas durante o dia e transformam suas lembranças em memórias, sonhos e aprendizados.

VERSÃo CONTESTADA Para obter confirmação científica, procuramos o professor do curso de Medicina Veterinária e doutor em Ciência Animal pela Universidade Federal do Estado de Minas Gerais (UFMG) Luiz Alberto do Lago. O especialista confirmou que os animais – inclusive aves – atingem o estado REM do sono,

no qual acontece o sonho. Lago ressalta, no entanto, que essa teoria tem sido contestada por estudos que mostraram a ocorrência de sonhos também na fase NREM do sono. Segundo Lago, a ciência ainda não consegue confirmar se os animais de fato sonham. “Trata-se de manifestação consciente, por

meio de relato subjetivo de experiência, algo verbalizado, o que não temos. Os resultados obtidos de eletroencefalograma e outros testes que apresentam resultados coerentes com relatos de sonhos nos humanos não são suficientes para garantir que os animais estão mesmo sonhando”, conclui o especialista.


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TRAMAS CONTEMPORÂNEAS

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Elas e o autismo Victor Mendonça “Gabriela é comunicativa até demais. Ela gosta de conversar desde muito pequena”, diz a decoradora de interiores Beth Martins, com uma gargalhada, ao lembrar que a filha, a estudante de gastronomia Gabriela Martins, sempre foi falante. E realmente! Durante a tarde em que passamos juntos, a jovem de 28 anos percorre, com eloquência e segurança, diversos assuntos. O que há de inusitado em tudo é que a garota foi diagnosticada, na adolescência, com um Transtorno do Espectro Autista (TEA), chamado de Síndrome de Asperger, que costuma ser ligado à dificuldade na socialização, e, pelo senso comum, à timidez. Porém, não é o caso de Gabriela, que adora estar com pessoas e se socializar. “É como descarrego minha energia”, confessa. Timidez, também, é o que não se imagina quando se vê, em atuação, a jornalista Selma Sueli Silva, tão alegre e ponderada em suas opiniões como radialista e youtuber. Selma também é autista. Contudo, como alguém com esse diagnóstico, que afeta a comunicação e a interação social, pode se tornar uma comunicadora de sucesso? Durante o processo de descoberta médica, Selma passou por rigorosa análise de toda sua vida. E descobriu a mulher por trás das estratégias montadas para diminuir o sofrimento. “Percebi que ninguém me conhecia de fato. Olhar para si é muito difícil”, conta. De acordo com a psiquiatra e pediatra Raquel Del Monde, muitas mulheres com autismo de alto funcionamento

fotos: Victor Mendonça

Condição se manifesta de forma diferente nas mulheres apresentam maior facilidade em compreender aspectos-chave da interação social e desenvolvem habilidade de copiar comportamentos socialmente desejáveis, ao observar outras pessoas. Selma sabe que é admirada por muitas pessoas, e que também admira muita gente. Gosta do ser humano e faz questão de deixar isso claro, para não ser mal interpretada, em seu jeito, por seus amigos. Afinal, ela não sabe receber em casa, nem vai a encontros e festas. Em 15 anos de trabalho na Rádio Itatiaia, foi a um encontro de fim de ano e a um aniversário da emissora. “Foi estressante e fiquei esgotada”, analisa a comunicadora, que, hoje, é mais voltada ao ativismo por pessoas autistas e aos projetos com o filho, também autista, como o canal “Mundo Asperger”, veiculado no YouTube. “Não queremos que nenhuma família se sinta sozinha como a gente se sentiu um dia”.

Homens e mulheres Segundo Raquel Del Monde, os critérios para diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista são válidos para homens e mulheres. Porém, em função da maior capacidade das mulheres em camuflar suas dificuldades, o profissional encarregado da avaliação precisa ter conhecimento profundo do quadro clínico, e se mostrar sensível às nuances e sutilezas das formas de apresentação do Transtorno. Tanto homens quanto mulheres autistas desenvolvem estratégias para lidar com as situações sociais a partir da lógica, diferindo de seus pares neurotípicos, os quais desenvolvem, intuitivamente, as habi-

lidades necessárias. No entanto, resultados obtidos em grupos de treinamento de habilidades sociais, envolvendo homens e mulheres no espectro, sugerem que as mulheres aprendem os conceitos com maior rapidez e são mais hábeis em mimetizar expressões faciais, corporais, aspectos da prosódia e da troca social. Ainda para a médica, existem evidências de que o funcionamento do cérebro feminino

difere do masculino sob diversos aspectos. Estudos genéticos apontam variações que podem ser significativas já no desenvolvimento embrionário do sistema nervoso central de meninos e meninas. As mulheres, em geral, tendem a verbalizar mais seus pensamentos e sentimentos, e são bastante atentas às reações das pessoas à sua volta. Alguns fatores culturais também influenciam no desenvolvimento da co-

municação social. Os grupos de meninas oferecem mais oportunidades de brincadeiras simbólicas (com bonecas, por exemplo) e de modelagem (amigas que “corrigem” determinado comportamento ou dão “dicas” de como agir nas diversas situações). “Além disso, a inabilidade social das meninas é muitas vezes interpretada como timidez, passividade ou inocência, traços mais

aceitos como ‘femininos’ na sociedade”, conclui Raquel Del Monde. Assim como Gabriela Martins, cujos interesses se voltam às artes e às Ciências Humanas (“Gosto de coisas que poderiam existir, mas não existem”), meninas no espectro desenvolvem interesse pelo mundo da fantasia (princesas, Barbies, pôneis) ou por animais, temas nada estranhos ao universo das outras meninas. Para alguns exami-


TRAMAS CONTEMPORÂNEAS ocasionar quadros de ansiedade e depressão, que são, na verdade, secundários ao problema real. Muitas mulheres procuram ajuda médica ou psicológica apenas quando apresentam essas questões, lembra a psiquiatra. Selma sempre fez um grande esforço para se adequar a situações que envolviam muita gente, na escola e em encontros de família. Era um esforço imenso relacionar-se com as pessoas. E entender o outro. Nem sempre o que eles diziam fazia sentido para ela, e vice-versa.

Para não se sentir tão exposta, passou a observar quem julgava ser mais feliz e adequado que ela, e “copiava” o jeito de ser que considerava poder protegê-la da exposição. “Percebi que todos lidavam melhor com crianças ‘boazinhas’ e tentei ser o que os adultos esperavam de mim”, conta a jornalista, que, com o tempo, dividiu-se em duas: a Sueli ficava em casa; a Selma ia para a escola. “Os dois mundos não podiam se misturar. Há pouco tempo é que não me sinto mais a Selma e a Sueli. Hoje, sou Selma Sueli Silva”.

Nas telas Temple Grandin – O filme conta a história real de uma mulher autista que demorou a falar e, hoje, é PhD em Zootecnia e professora da Universidade do Colorado. Ela até já foi considerada uma das pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. O filme venceu cinco prêmios Emmy, o Oscar da televisão, nas categorias direcionadas a minisséries e telefilmes. The Bridge – Na série policial, Diane Kruger interpreta Sonya, uma detetive autista. Julgamentos de

esquisita e dificuldades de relacionamento são constantes na vida da personagem. Para ela, certo e errado são conceitos bem claros. A sinceridade faz parte de seu dia a dia. Sonya canaliza a maior parte de sua energia no trabalho, algo comum em pessoas no espectro na vida real.

Jane procura um namorado – Nesta comédia romântica, Jane é uma garota sonhadora, com Síndrome de Asperger. Ela quer namorar, mas tem dificuldades de socialização e comunicação afetiva.

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Selma Suely: “Percebi que todos lidavam melhor com crianças ‘boazinhas’ e tentei ser o que de mim esperavam”

Elas são célebres... Com apoio da irmã, Jane procura o par ideal, para que comece a namorar. A nova temporada de Malhação – Viva à diferença tem, entre as protagonistas, a autista Benê, interpretada por Daphne Bozaski. A personagem foge do estereótipo geralmente atrelado a garotos com Síndrome de Asperger na teledramaturgia. Ela é uma adolescente com desafios comuns a jovens autistas, como pensamento literal e dificuldade de ler sinais corporais e intenções das pessoas.

Courtney Love – A viúva de Kurt Cobain, e ex-vocalista da banda Hole, foi diagnosticada como autista aos nove anos. Courtney, que também é atriz premiada, tem carreira marcada por sucesso profissional, comportamentos polêmicos e relacionamentos complicados. Hoje, aos 52 anos, ela encontrou o equilíbrio no budismo e na yoga, além de ser mais voltada à atuação. Daryl Hannah – A atriz foi diagnosticada com autismo aos três anos. Os médicos sugeriram que ela fosse medicada e internada. A mãe de Daryl, que hoje é uma das estrelas da série “Sense 8”, do Netflix, não acatou a ideia. A filha se tornou atriz de grande sucesso, ao atuar em filmes como Splash – Uma sereia em minha vida e na cinessérie Kill Bill, de Quentin Tarantino. Susan Boyle – Diagnosticada com autismo após os 50 anos, Susan Boyle tornou-se famosa por meio de um popular reality show de calouros britânico. Ela era vista como esquisita, até que sua voz impressionou os jurados e o vídeo com sua participação viralizou na internet. Menos de dez anos depois, ela já é uma cantoras mais bem-sucedidas do Reino Unido.

Peprodução

nadores, esse interesse é interpretado como bom desenvolvimento dos recursos da imaginação e contribui com a exclusão do diagnóstico. O esforço para camuflar as dificuldades e agir “como esperado” pode ser gigantesco. As situações enfrentadas na rotina diária demandam, muitas vezes, um nível de alerta constante, grande empenho para se adequar aos diálogos e interações, além de alto nível de autocontrole, para suprimir comportamentos considerados inadequados. Ao longo do tempo, a tensão contínua pode

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Tramas Contemporanêas

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Tragédia no divã Fotos: Marcelo Carnaval

O sequestro do ônibus 174, em 2000, é revisto segundo a ótica do motorista do veículo e de jornalistas que cobriram o evento Carolina Manoel Silva Izabela Cardoso Praça No dia 12 de junho de 2000, ocorreu, no Rio de Janeiro, o episódio do chamado sequestro do ônibus 174, pertencente à extinta empresa de transporte Amigos Unidos, que fazia o trajeto do Parque Laje ao Jardim Botânico. Na ocasião, um homem, Sandro do Nascimento, de 22 anos, assalta os passageiros e os mantém, por cerca de cinco horas, no interior do veículo. O desfecho é trágico: a professora Geisa Firmo Gonçalves e a próprio sequestrador acabou mortos, cada um à sua maneira. O caso teve ampla cobertura de mídia e ganhou, ao vivo, imensa repercussão nacional. Nesta reportagem, o que se pretende é recontar a história segundo a perspectiva de uma das vítimas, o motorista que dirigia o ônibus no dia do sequestro, José Fernandes, hoje 78 anos, e uma série de jornalistas que cobriram a tragédia. Segundo a jornalista Vanessa Riche, que presenciou o episódio ao vivo, não houve erro por parte da cobertura das TVs. Afinal, havia um sequestro em andamento, e com vários reféns. “É obrigação da imprensa relatar tudo o que ali ocorre. A cobertura tomou enormes proporções. O país parou, e o mundo tomou conhecimento do que acontecia em uma simples esquina do Jardim Botânico”, conta. Na opinião de Vanessa, o erro pelo fim trágico deve-se à polícia, que não isolou a área. “A imprensa relata os fatos com isenção, e a premissa do jornalismo é a apuração. Em uma cobertura como a do sequestro do ônibus 174, o mais complicado foi

Fotografias de Marcelo Carnaval retratam sentimentos de angústia, desespero e tensão durante sequestro de ônibus 174

apurar. Começamos a cobertura sem ter exatidão sobre quantos reféns havia no ônibus, já que o Sandro pedia para que eles se mantivessem abaixados em boa parte do tempo”, conta. Além disso, não havia isolamento da área, o que a jornalista vê como um problema. “A imprensa se aproximou do ônibus, até que o Sandro atirou em nossa direção. Fomos fiéis ao que conseguimos ver e, na medida do possível, apurar”, destaca. No Parque Lage, segundo ela, vários atiradores de elite estavam escondidos e todos sabiam que, ao manter a cobertura, ao vivo, corria-se o risco de transmitir um assassinato. “Por sua vez, o governador Anthony Garotinho deu a ordem para que os atiradores não agissem. De lá para cá, creio que alguns

conceitos tenham sido revistos. A cada dia, amplia-se o espaço para as coberturas ao vivo”, comenta. A maior dificuldade de Vanessa ao cobrir o episódio diz respeito ao momento em que Sandro atira na direção dos jornalistas. “Eu me afastei da equipe, que estava com minha bolsa e as baterias do meu celular. Quando acabou a energia, olhei em volta e pedi um telefone emprestado, no qual falei uns 70 minutos”, lembra. Quando viu refém Janaína escrever algo, de batom, no vidro do ônibus, a jornalista não conseguia ler. “Pedi, então, ao repórter Ari Peixoto, para olhar pelo viewfinder da câmera”. Naquele momento, Sandro do Nascimento pede a uma das reféns que se abaixe, diz que vai atirar... e atira,

além de pedir para que todos gritassem no ônibus “Pensamos, naquela hora: ele matou a menina! De fato, não tínhamos certeza se realmente ele havia matado, mesmo. E não houve nenhum tipo de censura”. Vanessa conta que, com o episódio, aprendeu a redobrar a atenção com as informações que vão ao ar. “Se não temos como apurar, precisamos falar isso no ar. São muitas vidas envolvidas e milhares de pessoas acompanhando tudo. Temos que ter responsabilidade com a informação”. Para ela, a cobertura do ônibus 174 foi um divisor de águas no jornalismo. “Fico feliz de ter tido a oportunidade de participar. Cada dia mais, temos espaço para coberturas como essa”, comenta, ao ressaltar que o mais difícil é

manter-se fiel aos fatos, e apurar corretamente, com isenção.

Erros da mídia Para o fotógrafo Custódio, o único erro da mídia foi ter transmitido tudo ao vivo. Isso, porém, não se revelou, em sua visão, a causa de morte do Sandro e de Geisa. “Desde o início, houve erro da polícia, que não evacuou a área. Além disso, ao final, um soldado tentou atirar em Sandro já rendido, e, depois, mataram-no dentro do camburão”, comenta. Para o fotógrafo, toda a situação era muito complexa. “Nunca é bom fotografar quando existe risco eminente da vida de pessoas. Hoje, por exemplo, há mais cautela em áreas dominadas pelo tráfico e pela milícia”, completa. No ver de outro fotógrafo, Marcelo Carna-

val, também não houve erro da mídia, mas dos policiais, “que deveriam matar o sequestrador nas várias oportunidades que tiveram”. Para ele, a imprensa não ameaçou nem negligenciou: “As fotos foram importantíssimas, pois mostraram que Sandro saiu vivo e chegou morto ao hospital. Esse tipo de situação deve ser avaliado na hora e no local”, analisa. Jornalista e criadora do documentário 174 Por trás das câmeras – como de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) – Manuela Paiva lembrar-se de estar em casa, aos 10 anos, e de assistir ao fatídico episódio da história do jornalismo brasileiro. “Atenta e apreensiva, talvez eu não tivesse a real dimensão do que acontecia ali. Contudo, me dei conta que era aquela a


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profissão que eu seguiria quando mais velha. Além disso, sabia que, ao entrar na faculdade, aquele seria meu tema”. A produção de seu documentário começou com o início do curso de jornalismo. Ela teve muita facilidade para fazer contato com os profissionais que cobriram o acontecimento. Na visão de Manuela, a mídia ajudou no desenrolar do caso 174. Porém, sem a imprensa, tudo seria resolvido de forma diferente. “O caso é uma fonte de pesquisa para que as pessoas entendam o lado dos jornalistas”, resume, para, depois, aconselhar os futuros profissionais da área “Para cobrir casos semelhantes, deve existir clareza e consciência, elementos fundamentais para que exista ética”.

Testemunha do terror Confira entrevista com José Fernandes, motorista que dirigia o ônibus 174. Como o senhor está, após 17 anos do sequestro? Fiquei com trauma no dia do acontecimento, mas tudo voltou ao normal. Minha preocupação era o Sandro me cobraria alguma coisa, caso ficasse livre. Ele não tinha intenção de fazer o que fez, e não sequestrou o ônibus. Quando saí do ponto final, cerca de 150 quilômetros depois, ele deu o sinal. Eu parei e lá estava Sandro, um menor. Todos subiram no ônibus. Sandro, tranquilamente, cantava uma música. Então, um pedestre viu, no ônibus, que ele estava armado e fez um sinal para mim. Eu percebi e pensei :“Ele vai esperar o ônibus encher e, então, anunciará o assalto”. No entanto, segundo informações que tive, não era isso. Ele havia assaltado a faculdade onde estava, e, então,

iria fugir e queria somente ir embora. Porém, o cara que fez sinal para mim viu uma viatura da polícia e avisou os policiais que Sandro estava armado. Quando a polícia seguiu atrás do ônibus, me mandaram encostar e eu parei no acostamento. Foi quando ele perguntou por que eu estava parando. Respondi que alguém havia mandado parar. Então, ele olhou para o lado e viu os policiais ao lado do ônibus, pegou uma senhora, que estava no banco da frente, puxou -a pelos cabelos, para o fundo do ônibus, com a arma no pescoço, e disse que, se os policiais atirassem primeiro, ela morreria. Assim começou a confusão.

O senhor planejou sair do ônibus? Tudo aconteceu em questão de segundos. Pensei: “Vou pular pela janela”. E a polícia apontou a arma para ele. Então, Sandro tirou a arma da mochila.

Sandro foi agressivo com você? Não. Vi que ele puxou a mulher para trás e pulei pela janela, por volta de 15 horas. Quando todos os policiais chegaram ao local, Sandro começou a dizer que queria o motorista. E eu já havia saído.

Dentro do ônibus, Sandro tinha intenção de matar aquelas pessoas? Não. A intenção dele não era de matar ninguém, tanto que, quando se viu encurralado, com tanto policial, deixou algumas pessoas no ônibus e liberou outras.

E o que aconteceu quando saiu? Fui para o outro lado da rua e não pude ir embora do local. Só saí ao final de toda a bagunça. Quando Sandro desceu do ônibus, por volta de 18 horas, eu não soube se quem havia matado a menina era ele ou o policial. Foi quando a levaram ao hospital, mas já estava morta. Ele foi jogado no camburão e o mataram asfixiado, de tanta raiva que estavam dele.

Pediu, até mesmo, que uma delas escrevesse no vidro que, às 18 horas, todos iriam todos morrer. Aquilo era apenas para intimidar. A seu ver, qual seria a melhor forma de resolver a situação? Não sei explicar direito, mas, como ele colocava a cabeça para fora da janela, a todo momento, e chegou a se aproximar dos policiais, a melhor forma era que polícia tivesse dado um

tiro nele. Sandro estava armado com um 38 velho e enferrujado, mas não se pode confiar. Em sua opinião, houve erros da polícia e da mídia? Segundo informações que obtive, da mídia, não. No entanto, dos policiais, sim. Eu vi que muitos curiosos estavam no local, na hora em que ele desceu com a Geisa. Os policiais já estavam bastante irritados e um deles atirou.

Hoje, há mais segurança do que antigamente? Não mudou absolutamente nada. A gente vê o que acontece na televisão e, na minha opinião, não mudou quase nada. O senhor ainda trabalha na mesma linha, como motorista? Não, a empresa já foi à falência. Por isso, trabalho, há algum tempo, como motorista em ônibus escolar.


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Jornal Daqui (Buritis e Região)

As Supernossas Foto: William Araujo

Comércio situado abaixo e ao redor do supermercado Super Nosso, no Buritis, reúne mulheres criativas e batalhadoras

Bernardo Franco Déborah Corsino Diego Gonçalves Jean Brito William Araújo A tradição, de acordo com alguns dicionários, é: um costume passado de geração a geração. Esse hábito acaba por solidificar alguns estabelecimentos, por exemplo. O caso não é diferente no bairro Buritis, que possui seus locais característicos e habituais. Existem comércios com quase a mesma idade do bairro, e outros que, apesar dos poucos anos de existência, já são tradicionais aos olhos dos moradores. Que fique bem claro, nessa reportagem não focamos em todas, nem mesmo grande parte das comercializações presentes na região do Buritis. Procuramos focar em personagens que mostram a “cara” das comerciantes de pequenos nichos. Há vários tipos de comércio no Buritis e, com a verticalização acelerada, algumas grandes

franquias aportaram no bairro. Entretanto, ainda existem muitos negócios de nicho, o que parece ser a fórmula do sucesso das instituições mais antigas. Focaremos repartições diferentes, serão elas: uma floricultura, uma revistaria/papelaria, um estabelecimento de conserto de roupas e uma loja de materiais elétricos. Todos eles com tradição no bairro Buritis. O curioso é que as quatro comerciantes têm ligação direta com o Super Nosso, que abriga três dos comércios citados. Excluindo apenas o Centro Eletrônico que foi fundado ao lado do supermercado. Segundo a última pesquisa da Fecomércio MG, as lojas de bairro são as preferidas do consumidor. O tópico com maior porcentagem, na opinião dos compradores, é o preço das mercadorias, que aparece com 91,3% das citações. De acordo com os comerciantes , isso acontece porque as formas de pagamento

são mais variadas. A economia para os negócios bairristas, no ano de 2016, foi estável e não apresentou complicações para a maioria dos comerciantes. De acordo com as pesquisas da Fecomércio MG, 59,4% dos comerciantes tiveram faturamento estável. A área ocupada pelo bairro Buritis, até o início da década de 1970, era considerada Zona Rural. Somente em 1973, a fazenda começou a ser desmembrada e terrenos menores começaram a ser vendidos. No início dos anos 1980, o local foi prometido em um empreendimento da Convap como o último portal de ocupação familiar da zona sul belo-horizontina, e que seu crescimento não seria verticalizado. Na mesma época, foram implantadas as principais ruas do bairro, fazendo a ligação com a Avenida Raja Gabáglia. Naqueles tempos o bairro era habitado por algumas dezenas de moradores, apenas. A

região ficou, eventualmente, isolada da cidade, e assim permaneceu por vários anos, até que em 1988 o quadro começou a se modificar.

As comerciantes Duas destas instituições possuem pelo menos 20 anos. A loja de conserto de roupas está em atividade desde 2013, mas não deixa de ter uma tradição semelhante à das outras. Solange Salomé é a comerciante proprietária do estabelecimento. Salomé nos conta que o comércio de bairro funciona como uma família, a melhor maneira de ser dar bem com os clientes é um comércio que converse com o cliente abertamente. Dessa forma, sem criar dificuldades, abrir possibilidade para diferentes formas de pagamento. Isso, claro. Sempre com um sorriso no rosto. A lojista ainda conta sobre uma das dificuldades que encontrou ao longo do caminho “ A única dificuldade que tive foi a de encontrar

um lugar para me estabelecer. Fora isso, todos me receberam como se eu fosse parte de uma família”, explica Solange Salomé. As comerciantes que estão no Buritis há mais tempo, encontraram dificuldades proporcionais. Gilda é proprietária da Floricultura Mirelly há cerca de 30 anos. Nos tempos em que o bairro estava no período de verticalização. Ela explica que no começo do Buritis não possuía muita coisa, e os comerciantes tinham que sempre se inovar. Hoje em dia, quando perguntamos para Gilda qual a maior característica da região, ela diz que o bairro tem em sua maioria casais recém-casados, e, essa característica faz com que a floricultura esteja sempre em alta. Zulmira é gerente do Centro Eletrônico desde quando Gilda havia instalado sua floricultura abaixo do Super Nosso. Na intercalada entrevista com atendimento aos “amigos clientes”, ela mostra liderança

ao administrar a loja. E mostra com suas palavras a mesma coisa que demonstram suas atitudes: “ Para mim é Deus no céu e o cliente na Terra”. Apesar de morar na região metropolitana de Belo Horizonte e ter de pegar estrada todo dia, não há impedimento que faça com que Brigite chegue na Dubitrix antes das 7h. Segundo ela o fato de todos os comércios tradicionais do bairro serem pequenos comerciantes faz com que aconteça uma ajuda mútua. Para construírem uma imagem tradicional, os comércios do bairro necessitam de uma economia estável, que os mantenha por vários anos. Ao entrevistar as comerciantes, todas responderam que o comércio de bairro é um negócio familiar. Esse mercado possui grande proximidade com o cliente e, de acordo com os elas, tal fator é um diferencial para que os compradores escolham o comércio bairrista.


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