Edição 206 - Caderno 1

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Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo do UniBH

Ano 36 | Nº 206 Belo Horizonte | MG

SETEMBRO | 2017

Foto: flávia nunes

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

causos

e espantos do interior


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primeiras palavras

Setembro de 2017 Jornal Impressão

Pra encurtá o papo Bê Franco Chega mais, sô! Se apruma e vem de um jeito bem minerinho abocanhá as página dessa edição. Aqui nós não perde os costume, as tradição e nem os trejeito de contá um bom causo, sinhô e sinhá! Por falá em tradição, não perdemos a nossa memo! Não acredita ni mim? Dá só uma espiada nas frotografia desse númuro. Capa do caderno Um, do caderno DO!S, as que rechea as matéria tudo, profissionalidade pura. Eita povo bão de serviço! Daqui a poco o povo do estrangeiro procura nós. Já que falei de foto, pru quê não dá uma oiada na história de Comercinho? O causo tem a ver com foto e Seu Tranquedo Neves, vale a pena espiá.

E desse modo, vamo viajando esses interior da Terra do Pão de Queijo. Minha Ave Maria, José, padastro de Jesuis e divino Esprito Santo, me ajude nessa hora. Tem causo de terror por essas terra toda. Nova Lima e Inimutaba que o diga, e óia que eu precisava passá por aquelas banda ainda nesse meis. Acho que vô dá um tempim. Mas por aqui não temo só causo tenebroso, não! No interior temo uns nome esquisito, né?! Mais esquisito do que nome de jogador de bola. Tem base uma cidade ter nome de fruta? Pra um país com nome de madeira tá tudo certo, né? Tô te falando cum cê é de Melancias. Isso mermo: ô lugarzinho arretado de bão. Já pensô pru quê um nome des-

se? Pois é, temo umas teoria aí. Além desses canto todo que já discursei, tem caso de Vespasiano, Bambuí, Araçuaí, Serra do Cipó, ques pedaço de chão bão, só de pensá me bate uma saudade! Saíno desse dossiê nosso, vamo vortá pra capital, nossa querida Belzonte. Aqui, dexa eu assuntar uma coisa. Tarveis seu maior sonho seja casar, certo? Bão, de muita gente é! Mas esse trem de casório fica uma careza que nem sei se caso ou compro uma bicicreta. Mais de mil pessoa teve esse sonho realizado. Vamo contá de um casamento coletivo lá no Minerim, óia que chiqueza! Tem também evento pra leitor crionça, que rolou por essas banda, reunindo vários escritor,

lá no Parque Municipal. Agora, cê conhece duas pessoa que são compretamente o contrário uma da otra, até na baixeza e na alteza? E óia que os dois gosta muito mermo de futebol. Craro que um torce pro maior do nosso estado e otro pro segundo mió time de Minas. Tô falando de dois jornalista bão de serviço. Confere com a gente os perfil de Lélio Gustavo e do Pequetito. Aqui sabemos de dançá um tanto, menino. E aconteceu lá na faculdade federal uma disputa de passinho das mió de boa. Na minha terra eu era campeão! Jornal dos bão tem de ter entrevista, né não?! Pois então tá, temo uma excrusiva, cum cantadô famoso que adora caçá confusão. É o tar do Lobão,

expediente

que fala pra gente um poco de suas opinião sobre música e política. Nossas crítica são também muito das boa. Dessa veiz temo o documentário The Mask You Live In, viram só como eu arranho nas língua estrangera? O filme fala da dificuldade dos home viverem numa sociedade machona. Super bacana de ver. E se ocê quer uma dica dum livro bão, O Segundo Suspiro conta a história dum ricaço que fica tretaplégico, coitado, e como que ele se ajeita depois do acidente. O livro já passô até no cinema, moço, foi expiração pros Intocáveis. E logo depois tem as tradicional crônica que fecha o jornal. Aproveita aí, boas leitura e embarca de cabeça nesse interiorzão! E tiau procê!

VICE-REITOR Profa. Rafael Ciccarini

INSTITUTO DE COMUNICAÇÃO E DESIGN Profa. Cynthia Enoque

COORDENAÇÃO DO CURSO DE JORNALISMO Prof. João Carvalho

LABORATÓRIO DE JORNALISMO EDITORES Prof. Leo Cunha Prof. Maurício Guilherme Silva Jr.

DIAGRAMAÇÃO Ludmila Alves (LEGRA) Stephanie Morgana

PROJETO GRÁFICO Laboratório de Experimentações Gráficas (LEGRA)

ESTAGIÁRIOS Bê Franco Mariane Fernandes Stephanie Morgana

ILUSTRAÇÃO William Araújo Ludmila Alves Gabriel Andrade

em uma redação qualquer... william araújo

PARCERIAS Laboratório de Jornalismo Online Laboratório de Fotografia Laboratório de Experimentações Gráficas (LEGRA)

IMPRESSÃO/TIRAGEM Sempre Editora 3.000 exemplares

Eleito o melhor Jornal-laboratório do país na Expocom 2009 e o 2º melhor na Expocom 2003 O jornal IMPRESSÃO é um projeto de ensino coordenado pelos professores Maurício Guilherme e Leo Cunha, com os alunos do curso de Jornalismo do UniBH. Mesmo como projeto do curso de Jornalismo, o jornal está aberto a colaborações de alunos e professores de outros cursos do Centro Universitário. Espera-se que os alunos possam exercitar a prática e divulgar suas produções neste espaço. Participe do JORNAL IMPRESSÃO e faça contato com a nossa equipe: Av. Mário Werneck, 1685 BH/MG CEP: 31110-320 Tel.: (31) 3207-2811 contato.tudouni@gmail.com


visão crítica

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Mariana Oliveira O que antes era conhecido como “Era do Conhecimento”, com a revolução tecnológica deu espaço à “Era da Informação”. Em uma sociedade na qual jovens e adultos estão a todo tempo conectados e desesperados por consumir notícias, cada vez mais podemos perceber a eclosão de debates. Nas redes sociais isso se torna mais evidente, basta uma notícia ser postada no Facebook para vários usuários se engajarem em uma discussão calorosa e cheia de argumentação. Somos levados a acreditar que, por termos acesso fácil e praticamente instantâneo às informações, possuímos conhecimento sobre tudo. Mas até que ponto esse tipo de informação desenfreada pode ser considerada uma maravilha da nova geração? O questionamento é: de onde essa informação vem? Diariamente, podemos presenciar no-

tícias com o deputado federal Jair Bolsonaro, por exemplo, ou com a ex-presidente Dilma Rousseff, nas quais não conseguimos identificar uma fonte confiável. Muitas vezes, quando se tem interesse em pesquisar sobre o fato, chegamos à origem da notícia e conseguimos perceber a manipulação de um acontecimento a fim de se obter likes. Há poucos meses, tivemos um caso de agressão, protagonizado pelo cantor sertanejo Victor, da conhecida dupla Vitor e Léo. Acusado de agressão física contra a esposa grávida, o cantor foi alvo de retaliação a ponto de ser afastado da bancada do programa em que era jurado na Rede Globo . Antes de qualquer apuração profunda, as notícias foram disparadas nas redes sociais. Não foi necessário um dia para o assunto virar trending topics no Twitter, e ganhar diversos textos de indignação no Facebook. A notícia, divulgada de forma irresponsável e sem in-

vestigação, poderia ter destruído a carreira do cantor, caso a denúncia se comprovasse como uma inverdade. Até que ponto essa “desinformação na informação” é culpa do usuário comum da internet? Hoje em dia, qualquer um pode produzir notícia em plataformas como blogs, sites, youtube e até mesmo em uma rede social pessoal. O que deve ser analisado é a responsabilidade que uma pessoa carrega ao divulgar um acontecimento. Recentemente, tornou-se febre a série 13 reasons why, lançada pela Netflix – sobre uma adolescente que cometeu suicídio por sofrer bullying no colegial e deixou fitas para cada um dos culpados dizendo o motivo pelo qual ela tirou a própria vida. O sucesso da série viralizou a discussão sobre depressão. Psiquiatras apontaram o perigo, de certa forma, a onda “glamourizar” o ato do suicídio. A menina, ao tirar a própria vida e montar

gabriel andrade

imediatismo: arma ou privilégio?

uma vingança, ao ser ovacionada pelos internautas, pode levar outras pessoas a terem o mesmo comportamento. Foi o que argumentou, por exemplo, o professor-doutor em psiquia-

tria da Unicamp,Luís Fernando Tófoli. A “viralização” e compartilhamento rápido de informações pode ser, e deveria ser, uma excelente ferramenta, porém deve-se ter muito cuidado

com o que se acredita no ambiente virtual. Divulgar uma notícia deveria ser levado cada vez mais a sério, e , nesse quesito, o usuário brasileiro ainda tem muito o que aprender.

rodapé Mulher Maravilha

Olhar sereno

Victória Farias

Camila Marques

Ao contemplar de longe aqueles olhos cor de mel, ninguém poderia imaginar a dor e o sofrimento já presenciados por eles. Dor similar à de perder uma mãe, um pai, vários irmãos, um marido e uma filha. Nem por isso, porém, a tristeza eminente criou raízes nessas pupilas. Muito pelo contrário: elas continuam a sorrir diante de uma piada sem graça. Setenta e oito anos de pura admiração da vida. Dia a dia, ela agradece, piamente, por respirar, uma coisa tão

banal que as pessoas fazem no automático. Mesmo com a passagem do tempo, uma lembrança específica não consegue fugir de sua memória. No dia de seu casamento, seu noivo lhe mandou uma carta, na qual declarava: “Não irei mais!”. Horas depois, ele chega de trem, todo arrumado, de terno, e ela se revela surpresa: “Você disse que não viria”. Ele, então, diz: “Só queria ter certeza de que você me amaria eternamente”. Mais tarde, ela aparece no altar, vestida de noiva.

Naquele tempo, não existiam câmeras fotográficas. O único lugar onde aquele momento está registrado chamase memória. Hoje, ela se encontra numa situação critica de saúde, e, quando chego ao hospital, com os olhos marejados, pergunta-me por que estive chorando. “Por nada, vó”, eu respondo. Ela, então, me diz que a vida é mesmo esse vai e vem. Ainda assim, tem consciência de que vivemos para sempre, não em nossos corpos, mas no bem que propagamos ao outro, dia após dia. Desse modo, poderemos ser eternos.

Guanaãns: “aquilo que corre”. E realmente o tempo “correu” em Ganhães, cada vez mais moderna. No Vale do Rio Doce, todo mundo tem um primo ou amigo que foi tentar a vida no exterior e traz as novas tendências. Mas as casas coloridas e os costumes prevalecem. Quem chega à cidade costuma se apresentar, para mostrar a que família pertence. O ritmo de vida no centro é acelerado, mas diminui nos bairros. Toda casa que se preze tem um pé de couve e uma roseira. É pré-requisito.

Na casa da Maria “di” Alice, tem a roseira, a couve, o pé de cidra, a alface. Aos 88 anos, mantém com a terra uma relação útil e produtiva. Muito significativo para a moradora de uma cidade cujo lema é “o trabalho vence tudo”. “Nasci e quero morrer aqui; é o meu lugar”, diz dona Maria. A fé se tornou o caminho para a sabedoria e a serenidade. Rezar o terço significa começar o dia com o pé direito. Depois, prepara o café e, em seguida, começa a cuidar do almoço. Exatamente nessa ordem. “O fogão a gás deixa a comida diferente, não gosto não”, diz.

À tarde, boas conversas sobre a vida, os forrós na juventude ou um “causo” para quem chega: uma amiga, um dos filhos e até netos. Televisão, só no fim do dia, depois de tudo arrumado. A distração se resume a assistir à novela e a missa. Grata, celebra ter conseguido criar oito filhos na roça. Não reclama da quantidade de remédios que toma. “O fim da vida não é o princípio”, reconhece. E assim, passam-se os dias, serenos. Provavelmente, consequência de uma vida honesta, de quem pôde ser e ainda é um bom exemplo.


DOSSIÊ causos e espantos Foto: JORGE LOPES

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DOSSIÊ causos e espantos

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prosas do mundo de lá Foto: JORGE LOPES

Para além de praças, casas, carros, ruas e igrejas, cidades são feitas de narrativas, transmitidas de geração a geração

Jorge Lopes Vitória Ohana Durante a vida, é possível que tenhamos a oportunidade de conhecer muitas cidades pelo Brasil – e, até mesmo, pelo mundo afora. Talvez seja possível deparar com alguma história ou fato curioso sobre o lugar que estamos prestes a desvendar. Este é o tema do dossiê “Causos e espantos do interior”. O hino de nosso estado, escrito por Lucas Brandão, diz em sua introdução: “Oh, Minas Gerais, oh, Minas Gerais, quem te conhece não esquece jamais...”. Não é apenas por conta das Belas Vistas de Minas, de seus Belos Horizontes com Montes Verdes e Claros, ou pela riqueza, com seu Ouro Preto, Branco, e suas Pedras Bonitas, Turmalinas e Diamantinas. Sim, claro, somos inesquecíveis por todas essas belezas, mas não somente por isso. O legado de uma cidade não é construído apenas com base nos seus pontos turísticos, personalidades públicas notórias, eventos ou monumentos importan-

tes. A cultura e a riqueza de um lugar também estão enraizadas naquilo que necessita de um pouco mais de trabalho para descobrir: são verdadeiros achados. Uma cidade é construída e lembrada por seu bem mais precioso: você. Isso mesmo, suas histórias, mensagens, seus contos e causos. Os fatos reunidos nessa edição trazem narrativas profundas sobre lugares que muitas vezes passam despercebidos por nós. O tema revela sobre as cidades do interior de Minas Gerais aquilo que não pode ser visto a olho nu. As histórias são registros construídos e mantidos por gerações inteiras. Algumas passam por personagens que já não se encontram mais vivos, porém, permanecem preservados na memória do povo. As paisagens, em suas formações arquitetônicas de concreto, escondem particularidades que não só tornam tais lugares únicos, como, também, contribuem para a formação da identidade cultural, que pode ser definida como a cultura que um

indivíduo compartilha com outros membros do mesmo grupo.

Memória coletiva A historiadora e professora de Sociologia Luzia Gabriele diz que tais histórias “contribuem para a manutenção de uma memória coletiva. Ao conectar os habitantes com narrativas sobre seus antepassados, ajudam a desenvolver um sentimento de pertencimento”. Elas também promovem a valorização das tradições e a consolidação de valores que, compartilhados pela comunidade, conferem uma identidade singular para essas cidades. É inegável a importância da conservação dessas narrativas na formação da identidade da cidade. Para as novas gerações, elas ainda podem recriar um cenário que foi perdido no tempo e resgatar histórias que também foram contadas para os familiares. Gabriele ressalta o valor desses acontecimentos para os mais jovens: “tais causos e contos, quase sempre repassados oralmente

de geração a geração, permitem o conhecimento de certos aspectos da história local, além de refletirem a cultura popular dos municípios. Permitem, ainda, que os jovens identifiquem e tenham contato com as crenças, tradições e costumes. E também, por serem recontados, alguns causos chegam a ter mais de uma versão, e, dessa forma, mantêm viva a história das origens da cidade e da sociedade que ali se formou”, segundo a professora. Assim, estes são transmitidos para as novas gerações e continuam na transmissão do legado cultural.

É bom lembrar que, quando deparamos com tais histórias e as transmitimos para outras pessoas, nos tornamos responsáveis por enriquecer a nossa cultura, agregar o nosso valor humano e tornarmos a cidade viva. E é com esse objetivo que chega a suas mãos mais um dossiê do IMPRESSÃO. Com tudo que já foi falado, esperamos que a partir daqui o caro leitor comece a olhar mais atenciosamente para o lugar onde pisa. Não importa por onde andemos, é certo que sempre haverá um lugar recheado de histórias sobre os mais inusitados eventos, alguns

leitura complementar Nascido em Morro dos Ferros, Olavo Romano sempre quis ser escritor, porém, formouse em Direito e seguiu carreira como servidor público. Depois de passar um longo tempo nos Estados Unidos, retornou a Minas para se dedicar aos registros de causos e contos do estado, inicialmente com o objetivo de preservar a memória da cidade onde nasceu. No livro Casos de Minas, Olavo – atual presidente da Academia Mineira de Letras – conta de forma bem-humorada diversas passagens do interior. Vale a leitura!

reais, outros do imaginário popular e aqueles que foram aumentados quase que como um “telefone sem fio”. São essas histórias que vão contar de verdade sobre o lugar onde estamos. Tomara que a leitura dessa edição possa resgatar memórias antigas e que você embarque conosco nessa viagem pelo interior de Minas. Que os Causos e Espantos possam alimentar sua cultura com os incríveis relatos do povo mineiro. Que eles despertem sua curiosidade para desvendar outros mistérios pelo país e que você esteja sempre abastecido de uma boa história do interior.


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A pelada, A MULA E a barbada Thiago Fonseca “Menino, não repita essa palavra! Se você chamar, ela vai aparecer. Não quer que isso aconteça. Não é mesmo?! Quando voltar sozinho para casa, de madrugada, é que ela surge. Dois metros de altura, vestido branco e luz radiante. Seu rosto jamais foi visto. O filho de Mariazinha, o sobrinho de Juca e até seu tio Pipa já foram surpreendidos!”, contava minha falecida avó, Ieda Silva. Cresci escutando a história. Sempre surgia quando eu, ou um dos meus primos, xingava o palavrão, tido, por todos, como o mais feio e inaceitável: “Desgraça”. O famoso nome da “pelada” Segundo meu pai, Mário Fonseca, era uma sexta-feira, de madrugada fria. Meu tio Pipa estava na gandaia. Ao passar na rua Doutor Ari Teixeira da Costa, bem no centro da cidade, ela apareceu, entre as casas e o poste. “Sem pôr, nem tirar, era a mesma coisa de que minha mãe falava. Pipa chegou em casa pálido e borrado”, relembra. A história se repetia por todos os cantos de Vespasiano. Meus amigos de escola também sempre escutavam as estripulias de “pelada”. Seria apenas conversa para boi dormir, conto de interior, ilusão de ótica ou... “verdade verdadeira”? Poderia ela existir? Mil histórias sobrenaturais como essa rondaram minha infância. Como pode uma cidade como Vespasiano, tão perto de BH, guardar tanto “causo”?

Homenagem no além? Com 122 mil habitantes, carrega inúmeros mistérios e histórias. Casos e “causos” intrigantes não só do

passado, mas, também, da atualidade. O mais recente foi o desaparecimento do busto de dona Marianna Joaquina da Costa, em plena praça pública. Segundo levantamento do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Marianna foi a primeira moradora da cidade. Com o marido, se fixou na região em 1853, e seu patrimônio, conhecido como Fazenda do Capão, ocupava a área central de Vespasiano e alguns trechos de Lagoa Santa. Aos poucos, doou pequenas áreas, para que as pessoas ali se estabelecessem. Da Fazenda, surgiu o Arraial do Capão e, logo mais tarde, com a vinda da Ferrovia, nasceu o município de Vespasiano. Para homenageá-la, a prefeitura, em 27 de dezembro de 2013, aniversário da cidade, presenteou os moradores com um busto de bronze, erguido na praça da igreja Nossa Senhora de Lourdes, padroeira do município. A peça de bronze ficou lá por alguns anos, até desaparecer, misteriosamente, no ano passado. Como pode sumir uma estátua, com mais de 100 quilos, sem ninguém ver? Não se trata de placa ou de ornamento fácil de carregar. Ainda mais em uma praça muito frequentada. Eis que surgem várias versões para o fato. Nos primeiros dias, os moradores cogitaram que a peça poderia ter sido levada para reparos ou restauração. Passado um tempo, contudo, perceberam que não era bem isso. “É dona Marianna, que veio buscar a homenagem! Todo mundo sabe que o fantasma dela fica vagando por aqui. Gosta de vigiar a cidade e guardar suas

terras. Nada mais justo! Se o busto era para ela, qual o problema de levar para onde está hoje?”, retruca Tereza Silva, moradora de 75 anos que, perto do cemitério velho, a poucos metros da praça, já se deparou com vultos do que seria uma idosa. “É ela, tenho certeza”. A versão logo se espalhou pela cidade. Seria mesmo um espírito capaz de levar consigo objeto de tal tamanho? Uns não acreditam; outros replicam. “Aqui em Vespasiano, há muita alma penada. Tudo desapegado! Se não foi ela, foi outro”, destaca José Cunha, outro morador. Já a assessoria da prefeitura aposta em furto: “Os bustos de dona Marianna e do Padre José Senabre foram roubados”. Não há, contudo, pistas dos suspeitos.

Pipa X Barbada Histórias de fantasmas não faltam na cidade. Além do caso da “pelada” – cujo desfecho revelo já, já – minha família sempre relembra outros. Quem nunca ouviu a folclórica história da mula sem cabeça? Em Vespasiano, a famosa figura também deu as caras... Meu pai é que garantia: “A mula passava toda lua cheia. De dentro da casa de pau a pique a gente podia escutar o trote da mula. O ruido vinha acompanhado de uma luz que parecia fogo. Morríamos de medo. Nenhum de nós ousávamos ver o que era”. Mas nem todo mundo concorda. “Que mula nada. Eram apenas os cavalos que passavam na rua puxando as carroças iluminadas por vela. Mas a gente era criança, e nossa mãe falava que era a mula-sem-cabeça pra pôr medo na gen-

fotos: thiago fonseca

A apenas 22 km de BH, Vespasiano reúne inúmeros “causos” misteriosos

Na foto de cima, mostramos, com exclusividade, o busto que desapareceu da praça de Vespasiano; na imagem de baixo, outro furo de reportagem: a cabeça da mula sem cabeça

te.”, explica meu tio Fernando Fonseca. Mula sem cabeça, noiva do cemitério, lobisomem e diversas almas penadas também estão presentes nas narrativas de Vespasiano, mas pode ser que tudo não passasse de causo, nada foi comprovado. Até mesmo uma cabeça de boi que flutuava no muro do cemitério! “Era marrom, com os olhos de jabuticaba bem arregalados e chifre. Até roupa tinha”, relembra meu pai. Tal figura aparecia sempre na Quaresma, período em que aumentavam histórias de assombração e coisas estanhas. O palco da aparição da coisa era o cemitério velho. Sempre de madrugada, surgia no topo do muro.

“Era só passar alguém que ela aparecia e andava atrás da pessoa. O povo corria, uns desmaiavam, outros rezavam e se borravam”, explica tio Ademir Fonseca, o Pipa, ou melhor, o próprio homem-boi. “Pegava e vestia a cabeça usada no ‘boi-da -manta’ – tradicional festa pré-carnavalesca da cidade –, cobria as costas com um lençol e ia para lá. Eu e meia dúzia de amigos. Era uma festa. Até que mãe descobriu e me deu uma coça”. Meu tio, aliás, estava sempre envolvido nos “causos” da cidade. Certa vez, enfrentou a mulher barbada do circo. Na ocasião, anunciou-se que o homem que conseguisse derrubar a donzela ganharia um prêmio.

Mais que depressa, lá estava meu tio e, logo de primeira, Pipa venceu (apesar de ter combinado, previamente, com a trupe, a vitória da mulher). Quando anunciada a revanche – exigida pelos irados circenses –, Vespasiano parou: prefeitura, comércio, banco etc. fechados em nome do grande acontecimento. O duelo, porém, não se efetivou. Vó Ieda, é claro, o impediu. Por falar em Pipa, sempre envolvido em tantos mistérios vespasianenses, o que falar da polêmica “pelada”? Curiosamente, em suas frequentes aparições, meu tio sempre estava por perto. “Mas não quero falar mais disso”, comenta, incisivamente.


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CIDADE DE FRUTA Cenas de um povo obcecado por melancias Gente na janela, crianças brincando sem preocupação nas ruas sem asfalto. E melancias por todos os lugares. É assim que o povoado situado no Norte de Minas, com menos 800 habitantes, dá boas-vindas aos visitantes e faz com que eles se sintam em casa. Por ter um nome tão característico – Melancis – a pequena cidade foi um dos primeiros lugares a chamar atenção do IMPRESSÃO, pois além de ouvir os contos e causos dos moradores dali, queríamos descobrir, por meio deles, o que motivou tal nome. O primeiro contato não é bem-sucedido, afinal, mesmo que todos se mostrem tão hospitaleiros, conversar com uma desconhecida, que possui uma câmera e um celular na mão, não lhes parece tão atrativo. Contudo, quando anuncio que sou neta de Dona Zefa, antiga moradora que durante muitos anos viveu ali, logo o receio se transforma em animação para conversar com a “menina da Zefa que veio da cidade”. Não demora muito para eles desembestarem a falar.

Conversa entre túmulos O encontro principal acontece dentro de um belo cemitério, localizado no centro da cidade. O papo se divide entre túmulos, garrafas de café e conversas altas. O lugar atrai não só

fotos: bárbara souza

Bárbara Souza

quem está ali visitando um ente querido, mas também amigos como: Neco, Xico e Deusa, que conversam animadamente sobre a vida. “O cemitério está aqui para honrar velhos amigos e pessoas que amamos, não é lugar de ficar triste. Além disso (ri) tem sombras ótimas sô.”, diz Neco, com seus 81 anos. Por ser o mais extrovertido, é também o primeiro a começar a falar, dizendo que o falecido José Pereira, da rua de cima, contava que ali na cidade existia uma plantação de melancias “Os tropeiros viajavam dias e uma de suas paradas era na plantação, para matar a sede”, diz Neco. Porém, antes mesmo de terminar sua versão, o Seu Xico, com seus 76 anos, interrompe, dizendo que o seu falecido avô conheceu, na

infância, um ladrão de melancias “Ele foi procurado durante muitos anos e surrupiava as plantações”, revelou. Dona Deusa, de 58 anos, prontamente concorda e afirma ter conhecido o tal ladrão – e, ainda que minha curta experiência com números me dissesse que não poderia ser o mesmo ladrão do avô de Xico, continuei ouvindo a sua história. A senhora conta, ainda, que o tratante era um Robin Hood das Melancias. Para ela, estava tudo bem roubar algumas plantações, afinal, era para alimentar quem precisava. Com o fim da conversa, os debates levantados sobre o nome peculiar de Melancias ganham mais intensidade. Ao andar pelas largas ruas dali, nossos entrevistados começam a perguntar a todos so-

bre a origem do nome. Muitos causos e nenhum consenso.

Café com melancia Já na casa de Dona Deusa, após alguns espirros, novamente o café é oferecido, porém, junto dele também surge um pedaço de melancia. Estranho! Questiono se a combinação é costume por ali e ela anuncia um sermão: “Ora, menina! Isso é batata para quem tá gripado como você”. Aceitei a união duvidosa de sabores e até gostei – mesmo que os espirros tivessem ocorrido por causa da poeira da estrada de terra. No fim do dia, me despeço e entro no ônibus para voltar para Belo Horizonte, encantada. Embora sem as respostas exatas do que fui procurar, fico satisfeita refletindo sobre

as pessoas, histórias e costumes que conheci ali. Afinal, mesmo que o tempo passe, é visível que a paixão e as cren-

ças pela cidade com nome de fruta continuarão eternizadas e transmitidas de geração a geração.

CURIOSIDADES

• As pessoas se reúnem no cemitério para conversar; • A escola e a igreja de Melancias possuem o mesmo nome; • Todos os anos acontecem três grandes festas na igreja; • Clemente de Maria, Rael de Zú, Vanir de Celina, Quinca de Luíza estão entre os primeiros moradores de Melancias; • Os habitantes buscam água nas torneiras “da chegada” para beberem; • Maria Vaide, ou Tia Vaí, como muitos conhecem, é cantineira da escola e grita quadrilha; • A fruta melancia não é deixada na geladeira.


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O mundo do$ e-$port$ ports. Os desafios enfrentados por quem decide transformar um hobbie em profissão

Izabela Cardoso Guilherme Peixoto Mariane Fernandes

Durante muito tempo, os jogos eletrônicos foram tidos como meros “passatempos”. Com o passar dos anos, porém, os games saíram do campo dos “hobbies” e tornaramse profissão. Treinos exaustivos, prêmios, troféus e fãs: tudo isso está presente na rotina daqueles que têm os games como ocupação profissional. A participação em torneios online, a publicação de vídeos-tutoriais, sobretudo no YouTube, e a própria criação e produção de jogos são algumas das formas de ingressar no mundo dos e-S-

Vitor Hugo Dzivielevski, conhecido como “Vitinho Dzi”, tira do pôquer virtual seu sustento há cerca de oito anos. “Sempre fui viciado em jogos online e, com o pôquer, uni o útil ao agradável. Na época, meu pai tinha uma empresa que foi à falência. Como eu já jogava pôquer recreativamente, vi ali uma oportunidade de, com dedicação, gerar renda para a minha família”, diz ele. “Tive muito receio antes de entrar nisso [o mundo do pôquer]. Só depois de estudar bastante e ver que era possível depender apenas dos lucros do jogo, decidi me dedicar 100% ao pôquer online”, recorda o curitibano Vitor.

A principal façanha do jogador ocorreu no fim de 2013, quando conseguiu a terceira colocação no “800 Million Celebration”, torneio pro-

movido pelo site Pokerstars.com. A “medalha de bronze” rendeu US$ 108 mil (cerca de R$ 342 mil) ao saldo bancário de Vitor, que disputou o campeonato contra 22 mil competidores. O top-10 do certame contou com outro membro da família Dzivielevski. Trata-se de Yuri, irmão de Vitor, que terminou na nona posição. Eles chegaram a se enfrentar ao longo do torneio, que durou uma noite inteira. “Naquele dia, fiz duas finais simultâneas, uma delas com meu irmão, que estava no quarto ao lado e também é profissional”, conta.

Para Vitor, os atletas de e-Sports precisam estar sempre atualizados quanto às táticas de jogo. “Se hoje eu usar a mesma estratégia que me fazia ganhar dinheiro há três anos, serei “jantado” na mesa de pôquer. Temos sempre que evoluir e buscar novos conhecimen-

FTOTOS: LUIZ VILA REAL

Os desafios enfrentados por quem decide transformar um hobbie em profissão

tos. Sempre tem alguém disposto a ajudar”, opina.

25 membros.

Paixão nacional (e virtual) Paralelamente à carreira de atleta profissional de pôquer online, Vitor atua como coach de outros de jogadores, fornecendo dicas e orientações relacionadas ao jogo. Além disso, comanda o “VHD Poker Team”, equipe que conta com

O futebol é o esporte predileto dos brasileiros. No entanto, o país ainda engatinha nos “chutes virtuais”. Se comparados aos gêneros mais tradicionais, como ação e aventura, o futebol virtual ainda não tem o mesmo prestígio com

os gamers profissionais, embora campeonatos de jogos como FIFA e Pro Evolution Soccer movimentem boas cifras.

Envolvido nesse mundo, Vinícius Alves, 22, tenta ingressar no mundo profissional do futebol virtual. Com uma dupla jornada, o ajudante de motorista tenta conciliar seus horários


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Por muito tempo, Casa Grande foi residência do padre Antônio de Freitas, onde coisas estranhas cismam de acontecer

entre emprego e videogame. “Durante a semana, trabalho no período da manhã e geralmente tiro a parte da noite para jogar”, conta. Aos

sábados e domingo, costuma passar várias horas em frente à TV, jogando. “Nos fins de semana me dedico bastante. Jogo à tarde, à noite e,

às vezes, continuo até a madrugada”, complementa.

Fã da série “FIFA”, Vinícius utiliza o PlayStation 4 para

jogar. Em 2017, representando o Cruzeiro, chegou a conquistar uma das etapas da Hero League, torneio mais importante do universo do “FIFA

NOBREZA NOVALIMENSE

Estados, cidades, bairros e vilarejos não são feitos só de “causos” e contos. Muitas vezes, tais áreas constituem-se por pessoas que passam por lá, e, de alguma forma, marcam a história do local. Assim aconteceu com Cândido Cardoso Canuto da Cunha, o Marquês de Sapucaí, em Nova Lima. Ao ouvir tal nome, provavelmente, a primeira referência de um cidadão brasileiro diz respeito ao sambódromo mais famoso do mundo, no Rio de Janeiro. O que poucos sabem é que Marquez de Sapucahy, na grafia da época, é novalimense, nascido na cidade ainda conhecida por “Congonhas de Sabará”, a 15 de setembro de 1793. Em sua carreira como desembargador e político, Sapucaí foi nomeado, em 1839, como mestre de literatura e ciências positivas de D. Pedro II, e, posteriormente, ajudou na educação da filha do imperador, princesa Isabel, “A Redentora”, que seria conhecida como a libertadora dos escravos do Brasil. Atuou, ainda, como deputado geral, presidente de província (equivalente ao atual cargo de governador) e senador, por Minas Gerais, de 1840 a 1875. Além disso, foi presidente do Senado entre 1851e 1853. Segundo a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Alto Rio das Velhas, tratase, por fim, da única pessoa a ocupar quatro pastas de ministério na história do Brasil, como Ministro da Justiça e da Fazenda, Procurador da Coroa e fiscal do tesouro.

17”. Ele, que também venceu uma das seletivas rumo ao Campeonato Mundial do game, teve a chance de ir à maior cidade do país. “Fui jogar em

São Paulo, em um torneio que pagava R$ 5.000,00 e dava a vaga ao Mundial, mas acabei não tendo sucesso”, explica.


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DOSSIÊ causos e espantos

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O “retratRo” de Tancredo Carente e distante das metrópoles, Comercinho é cheia de histórias; dona Nicinha conheceu até ex-presidente Bê Franco

Escassez Apesar de toda a felicidade, hospitalidade do povo e a beleza da localidade, a água é um grande problema.

Na maioria das vezes, ela chega nas casas por meio de uma cisterna que enche a caixa d’água de determinada residência. Na transição para caixa d’água, o “Clorador” exerce sua função. O objeto possui três extremidades: duas na horizontal, onde é conectada a mangueira; uma na vertical, onde uma pequena porção de cloro pode purificar toda a caixa d’água. Dependendo da época do ano, a água pluvial chega a ser uma necessidade.

Casa aberta Em pouco tempo, já me sentia um engenheiro, dando aulas sobre como instalar e utilizar os “Cloradores”. Em um desses dias, eu e um dos estudantes de engenharia ficamos encarregados de fazer a instalação em uma das últimas casas da região de Córrego Fundo. Residência onde conheci Bonifácia

e Dona Nicinha com contos e causos peculiares de alguém com muitos anos de vida no povoado pode ter. Foi a maior residência que conhecemos em nossa viagem: a grandeza das terras, os animais remanescentes e faixada central davam impressão de um período de glória passado. Assim que chegamos avistamos uma figura de meia idade, de pele escura, sustentada por um par de muletas, que, estranhamente pulava em nossa direção: “Entrem, entrem, eu, minha mãe e meu irmão estamos esperando! ”. A mulher nos recebeu desse modo antes mesmo de explicarmos o porquê de estarmos naquela região. Após algumas breves explicações do estudante de engenharia que estava comigo, ela permitiu a instalação do “Clorador”. Quando ficamos sozinhos, logo descobriu

que eu era estudante de jornalismo, e foi logo dizendo: “Tenho que te apresentar minha mãe, conheceu Tancredo Neves, é muito importante por aqui”. Antes mesmo que pudesse ouvir alguma resposta de minha parte, foi trazendo sua mãe, a amável Dona Nicinha, uma figura curvada, lenço na cabeça e uma bacia na mão, na qual preparava o almoço. Ela, por influência da filha, foi logo sentando ao meu lado para contar sua história. Estava um pouco sem jeito e chorosa por não ter o que me oferecer com a exceção de um copo de café. Comecei meio sem graça: “Então a senhora conheceu Tancredo? ” Nicinha respondeu: “Tancredo era um homem muito bom, veio passear em Medina na época da política. Meu marido era candidato a vice-prefeito da cidade. Até retratro eles tirô. Tá

aí, não sei onde tá, mas tá aí guardado.” Achei estranho ela não saber onde estava o retrato, já que era um fato importantíssimo para aquela família. “Meu marido era muito querido por esse povo, mas ele não ganhou, não. Ele era muito bom pra cidade, não é porque era meu marido. Deixou nós firmado, deixou casa pra nós, essa terrinha”

Saudade Mais tarde ela me contou que o falecido marido mexia com garimpo, ocupação comum naquele local décadas atrás, o que foi comprovado por uma fotografia emoldurada de Zé com uma enorme pedra preciosa, na parede. “Ele ficou doente, teve de vender um pedaço de terra, vendeu baratinho, cinco alqueires para a pedreira”. Nesse momento Dona Nicinha Foto: FLÁVIA NUNES

Comercinho é uma cidade localizada na região do Vale do Jequitinhonha, localizada nas proximidades de Araçuaí e Medina. Se por acaso sentir vontade de conhecer o povo hospitaleiro que constitui a cidade, a inusitada, diferente beleza do lugar, e, resolver perguntar sobre o município, procure por “Comercinho do Bruno”: é como os nativos e vizinhos conhecem o local. Sinal telefônico? Muito difícil, mas a praça principal da cidade possui um sinal de wifi melhor que em qualquer ponto da capital. Por isso, os comercienses não “arredam” o pé do lugar. Lá está localizada uma estátua em tamanho real do fundador da cidade, o famoso Bruno. Bem em cima de onde era seu antigo “comercinho”, uma tabaca-

ria, marca registrada do local. A população da cidade é pouco superior a 8 mil habitantes em seus 656,563 quilômetros quadrados de extensão, contando sua área rural, que, é bastante superior ao centro da cidade. E é aí, nessa parte da cidade que se encontram os povoados de Córrego Fundo e Palmital, onde acontece nossa jornada. Com um projeto denominado de Vale Mais Saúde, realizado por professores e estudantes do UniBH, tive a oportunidade de conhecer a região. O projeto procura melhorar a qualidade da água da zona rural de Comercinho, por meio de uma engenhoca denominada “Clorador”.

Dona Nicinha (terceira, da esquerda para a direita), entre os amigos, em confraternização no povoado


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11 Foto: FLÁVIA NUNES

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aqui. Tem foto, mas o povo não deixava a gente ver ele não”. Mais uma vez ela tocou no assunto da fotografia, enquanto sua filha, pulando em um pé, se desdobrava para tentar achar a relíquia. “Meu marido foi tratar em Belo horizonte. Foi muitas vezes pra lá. Que Deus abençoe os médicos todos de lá, que o trataram muito bem. Chegou bem tratado, bonito, gordo. Foi operado. Morreu, mas foi bem cuidado”.

Último pedido “O dia que ele morreu, nós estávamos em Medina, fazendo uns exames, aí ele teve uma gripe e morreu rapidim. Uma semana antes ele disse assim ‘Oh, moça, eu tô com uma vontade de comer uma feijoada’. Aí eu disse a ele ‘Pois você vai comer, eu vou fazer’! Aí eu fiz a feijoada, foi lá pra baixo comer, ele tava forte, ia devagarinho mas conseguia chegar lá. Chamou até a vizinha pra comer com a gente. Ele orou nela, porque nós somos evangélicos, né?! “Aí, menino, ele disse: ‘me leve para o hospital que eu não tô

bom não’. Ele nunca tinha pedido pra levar ele pro hospital não! Levantei depressa, fui pra rua, com medo de ele cair, e o nosso carro não estava em casa. Chamei o vizinho, que, tinha carro”. “Meu marido chegou na janela e disse: ‘Oh, Seu Joaquim, pode me levar ali, no hospital’? Conversando bom, que nem precisava de morrer naquela hora. ‘Claro, Seu Zé, vamo bora’”. “Cheguei no hospital, o enfermeiro segurou ele, sentou ele, colocou o soro, um comprimidinho debaixo da língua dele, quietou. Deu aquele suspiro bem fundo, assim, e com o olho fechado. Peguei no olho dele, o olho dele tava murcho, pensei que morreu. Aí fiquei quietinha, o enfermeiro também não falou nada. Ficou quieto, quieto, quieto, ficou bem quietinho. Eu não sabia, nunca tinha visto ninguém morrer, o enfermeiro não falou nada comigo. Levaram ele para outra sala e eu já chorando muito. Foi todo mundo pra outra sala, sumiu os médicos todos, demorou uma vida. Então uma médica chegou e disse:.

‘Olha nós esforçamos muito, mas não teve jeito mesmo. Podem ir visitar ele’”. “Ah, meu Deus do céu, vou falar uma coisa com o sinhô. Eu já sabia que ele tava morto, mas quando ela falou aquilo, eu fiquei de um jeito... Não escandalizei no hospital não, mas fui lá pra fora e chorei tanto, tanto, tanto, tanto, que eu falei, meu Deus, não esperava uma coisa dessas, o homem morreu de repente, tava bom, comendo, saldio, alegre”. Nessa hora, Nicinha parecia copiar os sentimentos que expressava. “Vou falar uma coi-

sa pro sinhô, depois que José foi embora, eu nunca mais tive alegria, felicidade, saúde, minha vida aqui é chorar e xingar, fico com raiva também, que tem hora que o pessoal aqui tá até enjoado de mim. Que eu reclamo mesmo!” “Eu tô sentida, passou pra seis meses que ele morreu, mas eu não acostumei. Não posso ver nada dele, eu doei duas bolsa de roupa dele pra igreja e ainda tenho mais duas malas de roupa guardadas, ele ajudava, dava tudo. Tá no céu com Jesus, eu sei que tá, porque ele não fez mal pra ninguém aqui, eu tenho certeza

disso. Morreu em paz, deixou a gente estabilizado sem dever nada, só a geladeira que ele ficou devendo, mas eu acabei de pagar já, semana passada”. “Disse pra gente não sair daqui não, pra ficar aqui, recomendou que nós soubesse viver com as pessoas, que não maltratasse ninguém, deu esses conselhos sem saber que ia morrer, menino, e rapidinho foi”. Nesse momento, misteriosamente ela levantou, foi ao seu quarto e como se fosse uma prova de meu merecimento, em menos de trinta segundos, voltou com a dita fotografia. Foto: BÊ FRANCO

já estava visivelmente emocionada. Enquanto ela continuava a contar a história, Bonifácia, sua filha, recheava a mesa com fotografias da família, do tempo que seu pai era vivo, e enchia de nomes, e mais nomes da família, que, ao final ficaram embaralhados em minha mente. Desta vez, mostrou uma bíblia bilíngue que seu pai, como pastor, usava nas pregações. “Ele falava inglês”, concluiu Bonifácia. “Nós somo pobre. Pobre não, da graça de Deus, somo rico. Sempre temos muitos amigos, se eu falar que ele (Zé Crente, como era conhecido o marido de Nicinha) morreu com algum inimigo, eu estou mentindo. Todo mundo que chega aqui, a gente recebe direitinho. Às vezes não tem condição de receber, a comidinha não dá, mas a gente serve um cafezinho, recebe eles direitinho. Fiquei viúva, mas o povo tudo aqui cuida de mim. Não temos malquerência”. Nicinha voltou brevemente no assunto Tancredo. “Ele ficou em Medina. Não chegou a vir

A lembrança do encontro com Tancredo Neves foi registrado, também, em foto


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Viagem sem volta? Leíse Costa No início do século 18, a atividade de garimpo nas Minas Gerais embalava o sonho de muita gente. A saga de quem arriscava a vida em busca de ouro passava por um cenário que, agora, é o Parque Nacional da Serra da Canastra. A distância, um risco branco e tímido entre os majestosos paredões da Serra da Canastra. De perto, a inconfundível queda de 186 metros de altura da cachoeira da Casca D’anta, a primeira queda do rio São Francisco, 14 quilômetros depois de sua nascente. No auge do garimpo em terras mineiras, por volta de 1730, um mistério circulava pelos municípios, que, hoje, são conhecidos como São Roque de Minas, Vargem Bonita e Delfinópolis – a 334 quilômetros de BH. A Estrada Real, que ligava os portos do RJ ao centro-oeste mineiro – e, adiante, a Goiás –, era percorrida por muita gente. Tropeiros e garimpeiros enfrentavam longuíssima viagem. Em tal jornada, devido aos dias e dias até o destino final, muitas paradas eram necessárias. Os homens, então, pernoitavam em estalagens à beira da estrada. No alto da Canastra, na região de São Roque de Minas, ficava uma dessas pousadas. Trata-se da (enigmática) fazenda Chapadão da Zagaia.

Mistééééério! Moradora de Bambuí (MG), Edna Torres, de 80 anos, ouve essa história desde menina. Segundo seu pai, inúmeros tropeiros e garimpeiros estavam desaparecendo na rota do ouro, sem relatos de assaltos ou testemunhas de crimes. O que se sa-

bia é que, “vira-e-mexe”, como destaca dona Edna, as boas e as más línguas espalhavam a notícia de mais um garimpeiro sem retorno. Uma das histórias diz respeito ao tropeiro que retornava de Goiás. Cansado, hospedou-se na fazenda da Zagaia, onde foi recebido pelo simpático dono da pousada e por sua mucama. Mais tarde, o homem observava a escrava a fabricar cigarro artesanal e resolveu presenteá-la com um pedaço de seu próprio fumo de rolo. Agradecida, ela cochichou certa dica preciosa no ouvido do viajante, e, em seguida, pediu: “Apenas faça”. A solicitação era simples: a mulher dizia ao tropeiro que se deitasse na cama ao lado, e não no leito indicado pelo dono da fazenda. Obediente, o homem assim o fez. Quando a noite caiu, porém, não demorou muito para que ele entendesse o recado da escrava. Um forte barulho no quarto o acordou. Abertos de susto, seus olhos flagraram uma zagaia cravada na cabeceira da cama. Para quem não sabe, zagaia é uma lança de ferro, com a ponta bem afiada. Na improvisação criminosa do dono da pousada, várias zagaias eram soldadas e formavam um emaranhado de pontas presas a uma armação de ferro. Em outros termos: um objeto pesado e mortal. No caso do viajante seduzido pela escrava, a arma era colocada acima da cama onde o viajante dormia, devidamente escondida pelo forro do teto. “Se o viajante carregava ouro ou outras pedras preciosas, o dono da pousada o presenteava com o quarto da zagaia”, relembra a bambuiense. No quarto

fotos: ana ribas

A incrível história dos viajantes mineiros que seguiam da Estrada Real... ao desconhecido!

ao lado, sem compaixão, o simpático dono aguardava a exaustão do viajante vencer. Atento e experiente, sabia exatamente quando desamarrar a corda que segurava a zagaia no alto e que caía, fortemente, sobre a cama com ares de cova.

Dizem que a cruel estratégia foi várias vezes repetida, de maneira a render bastante ouro ao dono da pousada. Assim o foi, até que sua mucama, que sabia dos crimes, acabasse encantada pelo tropeiro que sobrevivera à armadilha e rendera o assassino.

Ele denunciou o caso às autoridades da época, que encontraram mais de cem ossadas numa voçoroca – escavação no solo, ou em pedras, causada por erosão do lençol de escoamento de águas pluviais – próxima à fazenda.

Tropeiro e mucama ganharam uma história com aqueles finais bem conhecidos: casaram-se e se mudaram para São Roque de Minas. Dona Edna, não sabe precisar o que há de lenda e realidade em toda a história. “É do tempo do zagaia!”, sentencia.


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mistério no Mucambo foto: ana ribas

O “causo” do Barranqueiro que assustou a pequena cidade de Inimutaba

Francyne Perácio Em uma pequena cidade situada a 170 km de Belo Horizonte, fatos estranhos atraíram a atenção dos moradores. Na fazenda do Mucambo, localizada no município de Inimutaba, região central do estado, algo estava errado. Pedras eram arremessadas nas janelas, árvores arrancadas pela raiz e alimentos caíam da despensa. Mas a grande questão estava na ausência de um responsável por esses fenômenos, aparentemente, nenhum autor vivo.

Garimpeiro do amor Jesuíno da Rocha Ribeiro, o Barranqueiro, como ficou conhecido, era baiano, da cidade de Feira de Santana. Chegou a Minas aos 15 anos, montado em uma mula, sobre a qual transportava cargas em balaios. Não tinha bens, nem propriedades, ape-

nas a roupa de couro que cobria seu corpo. Chegando à região, foi trabalhar na fazenda do Picão, onde vivia Donana Pedra, viúva de dois maridos, herdeira de grandes hectares de terra e sua futura esposa. Logo casou-se com a dona. Já idosa, morreu e deixou toda a herança para Jesuíno. Ele, homem feito, de 40 anos, mais novo rico da cidade, tomou por sua nova esposa, Rita Alves Rezende, e tiveram oito filhos. Até então, tivera uma vida feliz e a cada ano multiplicava sua fortuna em terras e rebanhos. Adquiriu várias fazendas, entre elas, a do Mucambo. Mas, aos 90 anos, um episódio afastou a tranquilidade da família. Segundo a filha de Jesuíno, Idalina de Jesus Ribeiro Perácio, seu pai sofreu três acidente vasculares cerebrais e, enquanto estava hospitalizado, eventos estranhos

na fazenda assustavam os parentes. “Portas abriam sozinhas, chaleiras com água viravam e apagavam o fogo. Pessoas iam em caravanas para visitar o local. João Smith Filho, senhor religioso e respeitado na região, foi chamado para rezar o terço. Durante a oração, não aconteceu nada, tudo em paz, mas foi só o pessoal ir embora que os alimentos começaram a cair na despensa”, conta Idalina. Ela ainda relata que um padre visitou a fazenda e benzeu vários jarros d’água, mas, quando foi embora, eles se viraram e derramaram todo o líquido. Apesar de tudo, a filha de Jesuíno diz não sentir medo da situação. O mais curioso de toda a história é que tudo se passou durante a enfermidade do Barranqueiro. Ao todo, foram três dias de tormento. Após o terceiro

AVC, ele faleceu e tudo na fazenda voltou ao normal. Nenhum episódio semelhante voltou a acontecer no local. De acordo com o padre da região que visitou a fazenda, Jesuíno da Rocha havia feito um

pacto com forças ocultas para adquirir posses e bens, e, no fim da vida, veio a cobrança, que resultou em sua morte. Essa história repetiu-se com o outro senhor, João Lopes, próximo da região do Picão.

Há explicação? Para o espiritismo, segundo a professora e estudiosa da doutrina, Maria da Conceição Neres, há uma explicação plausível para as manifestações. A partir dos estudos de Allan Kardec e de seu “Livro dos Médiuns”, Jesuíno da Rocha era médium de efeitos físicos involuntários, ou seja, ele fornecia energia para que espíritos presentes na fazenda movimentassem objetos. E como estava hospitalizado poucos dias antes de morrer, tais acontecimentos foram mais intensos, pois o espírito estava mais desconectado da matéria. De acordo com Márcio de Azansú, sacerdote do candomblé, o Barranqueiro teria fortes ligações com os orixás. E esta relação com espiritualidades africanas ancestrais provocavam os fenômenos na fazenda. O fato é que, atualmente, a Fazenda pertence a outros proprietários e a casa foi demolida. Restam apenas os causos e contos narrados pelos moradores de Inimutaba.

causo do exterior

Em 1847, na cidade de Hydesville, EUA, a família Fox presenciou algumas manifestações na casa, semelhantes ao ocorrido na Fazenda do Mucambo. Passados dois meses que eles haviam se mudado, começaram a escutar batidas leves, sons de arranhões nas paredes, assoalhos e móveis. Na noite do dia 31 de março de 1848, os ruídos foram mais fortes. Foi quando Kate Fox, de sete anos, repetiu os barulhos que escutava na casa. A cada batida da menina, uma reposta imediata podia ser ouvida. Assim, criaram um código para comunicar-se com o espírito. O responsável pelos ruídos revelou-se como um comerciante que foi assassinado naquela casa, cujo corpo foi enterrado na adega pelos antigos moradores. A família Fox procurou pelo cadáver, mas não encontrou. Somente em 1904, algumas crianças, ao brincarem na casa, acharam partes de um esqueleto humano nos escombros da parede da adega.


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Coroa, pedra e caixão Júlia Amorim Localizado a 90 km da capital mineira, Serra do Cipó – distrito da cidade de Santana do Riacho – encanta moradores e turistas pelas belezas naturais, culturais e pela história do seu povo. O distrito está inserido no Circuito Turístico Serra do Cipó, que também abrange os municípios de Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim, Itambé do Mato Dentro, Jaboticatubas, Morro do Pilar e Santa Maria de Itabira. A fé em Deus e em Nossa Senhora é característica forte na região. A época da quaresma, a proteção celeste, o pecado e a falta de compromisso com a igreja aos domingos são figuras presentes nos causos e contos transmitidos de geração a geração. “Uma coisa muito importante na nossa família é a fé. Os meninos da comunidade rezam e pedem proteção a Deus. Eles sabem que conseguem a graça por conta da fé que têm”, relata o bailarino e coreógrafo, remanescente do Quilombo do Açude, Flavio José dos Santos, de 45 anos, mais conhecido por Cuta.

Olha o disco voador! Ele conta ainda que, em sua infância, os moradores acreditavam que o disco voador aparecia no céu para pegá-los, enquanto saíam para as tradicionais rezas do mês de maio. “Maio é o mês de Maria, né?! A gente saía todo mundo para ensaiar a coroação, aqui embaixo na fazenda Cipó. Eu tava aí com meus 12, 13 anos. Na volta, todo mundo ia olhando para o céu, por conta do disco voador, e, às vezes, passava um avião piscando e todo

mundo corria, entrava no mato. Enquanto aquela luz não sumia, ninguém aparecia. Eu já corri muito... Era uma coisa de louco, porque o medo aumenta muito o volume das coisas, entendeu?”. Os mais velhos da comunidade ainda têm medo das coisas que vêm do céu. “Mês de maio, mesmo, eles falam pra tomar cuidado. Achavam que o disco voador esperava as comunidades ir pra reza pra pegar eles, e é só no mês de maio porque é quando a comunidade todinha sai pra coroação. Então, o pessoal só ia pra reza, mesmo, e já voltava e ficava quietinho”, completa.

Caçados por urubu

A falecida avó de Raquel Ferreira, 19, moradora do Capão São José, zona rural de Jaboticatubas, lhe contava que havia três amigos caçadores que trocavam as missas de domingo pelas caçadas com seus cachorros no meio da mata. Segundo ela, suas esposas insistiam com os rapazes para frequentar a igreja, mas eles achavam que aquilo tudo era bobagem. Só passaram a frequentar as missas depois que, num dia de caçada, foram surpreendidos por um urubu gigante: “Apareceu um urubu gigante, sabe? Ele batia as asas, mas era muito grande, mesmo. Era do tamanho de uma árvore”. Assustados, os caçadores nunca mais tiveram coragem de voltar ao ofício. Quando perguntada se acreditava naquela história, Raquel, que é babá e também se arrisca nas escritas, respondeu: “Minha avó contava. Agora, se foi verdade, não vou saber te dizer”.

Terror e fé A professora aposentada Dulce Maria Marques Abreu, 70, conta um caso de coragem de seu avô, que era muito namorador. “Tem uma história com meu avô, pai da minha mãe. Ele tinha uma namorada lá onde é a Igreja Matriz [de Jaboticatubas]. Toda noite ele ia lá namorar. As pessoas usavam chapéu naquela época, né?! Era de lebre, ninguém andava sem chapéu, não. Quando ele foi descer a rua Santa Luzia, aquela da cadeia, tinha um caixão. Ninguém sabe se o troço apareceu lá ou se foram os companheiros que colocaram para ver se ele tinha medo. O caixão atravessava a rua toda, só deixando o bequinho de um metro pra ele passar, e já era tarde. Naquela época, não tinha iluminação pública, né? Aí ele colocou o chapéu do lado que tava o caixão e passou depressa, correndo. Que coragem! Depois, voltou lá com uma lamparina, e não tinha mais caixão”, completa. Mato benzido Dulce conta, ainda, que, no bairro São Benedito [Jaboticatubas], havia uma moita onde caíam umas pedras dia

foto: júlia amorim

Causos de fé e coragem fazem parte das tradições da Serra do Cipó

e noite. Algumas pessoas eram atingidas. Ninguém sabia como acontecia aquilo e nem o motivo. “Meu avô, Leônidas Marques, até guardou algumas pra poder fazer um estudo”. Aquele fenômeno só parou de acontecer

quando o padre Acácio, que, segundo ela, era um sacerdote santo, benzeu o mato. Antigamente, nas estradas escuras e solitárias, agarrar-se na fé era a única alternativa para essa população, que, ainda hoje, traz

UTOPIA CULTURAL O primeiro Cipó Cultural Itinerante foi realizado de 18 a 20 de agosto, no Capão Grosso, zona rural de Jaboticatubas. Ao misturar sonho e cultura, o evento contou com apresentações de candomblé, samba de crioula, roda de capoeira, maracatu, balé clássico, dança afro, poesia, viola caipira, músicos regionais, folias de reis locais, dentre outras apresentações. Mas teve causo? Teve demais da conta!

consigo o amor imensurável por Deus e por Nossa Senhora. Nas festas de São João, também é essa fé que encoraja homens e mulheres a passarem descalços nas brasas das fogueiras que queimam sobre o chão.


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Araçuaí, dura na queda foto: arquivo impressão

Ao longo da história, enchentes trouxeram dificuldades, mas, também, boas histórias para se contar

Igor Moreira Araçuaí é uma típica cidade de interior mineiro. Um lugar pacato, onde todos conhecem todos. A população é de 37.317 habitantes, segundo a pesquisa mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dois córregos do município já secaram, mas o mais difícil, segundo os moradores

antigos, foi enfrentar três grandes enchentes.

Primeira e segunda Em 1939, a água destruiu todas as lavouras da cidade, invadiu o antigo Centro e a maior parte do comércio. Muitos moradores perderam tudo o que tinham e alguns bairros ficaram ilhados por vários dias. Maria dos Anjos Moreira, 83, testemunhou as três grandes enchen-

tes e conta que, na segunda, em 1979, muitas pessoas realmente pensaram que o mundo estava acabando, pois a chuva de proporções bíblicas durou 40 dias seguidos. O volume de água crescia rapidamente nas casas, e muitos não sabiam lidar com tal problema. Maria viu de perto o desespero e o sofrimento das pessoas, e chegou a abrigar duas

araçuaí O nome do município, situado no Vale do Jequitinhonha, é de origem indígena, porém não se sabe ao certo seu significado exato. A explicação mais conhecida é que a palavra quer dizer “Rio das Araras Grandes”, em língua indígena. Mas existem outras teorias... Quando a fundadora da cidade, Luciana Teixeira, chegou ao local, viu varias pedras redondas, mais tarde nominadas de calhau pois se situavam em um córrego – ou calhauzinho – que já se encontra seco, devido à ação do homem. O Calhauzinho desaguava no rio Araçuaí. Luciana chegou à cidade em 1941, mas só em 21 de setembro de 1871, foi oficialmente reconhecida como cidade. O nome ainda era escrito com 2 “s” e “y” “Arassuay”, nome registrado até hoje na estação ferroviária construída à mão, que chegava na Bahia até a cidade de Teófilo Otoni, no vale do Mucuri. Outra versão conhecida é de que a palavra significaria “rio do cocar”, em tupi-guarani. O motivo seria quase o mesmo da primeira explicação: quando Luciana Teixeira chegou à região, teria visto um grande numero de cocares perto do rio.

famílias em casa. Só restava chorar, já que não podia fazer nada. Não pôde salvar nem o açougue que tinha com o marido. O local foi completamente engolido pela água, mas, por sorte, boa parte da mercadoria foi salva.

A terceira Em 2009, ocorreu outra enchente, mas de forma mais branda que as duas anteriores, pois o centro comercial da cidade já havia mudado de lugar e estava instalado na parte mais alta da cidade. Dessa vez, houve um trabalho rápido de prevenção e as famílias que ouviram a Defesa Civil conseguiram escapar sem perder bens materiais. Algumas pessoas levaram seus animais de estimação para os abrigos, já que, da mesma forma que em 1979, vários acharam que era uma prévia do que iria acontecer no ano de 2012, quando, para muitos, o mundo iria acabar. Por sorte, não houve vítimas fatais nas três enchentes.

Energia “Kiau”, como é conhecida a cidade, devido às pedras localizadas no antigo córrego Calhauzinho, tinha poucos recursos tecnológicos nos seus primeiros anos de vida. Nem todas as casas tinham luz elétrica por 24h, somente o hospital funcionava o dia inteiro, graças a um gerador. A população ia para a porta das casas conversar, enquanto as crianças brincavam de roda e cantavam as cantigas aprendidas com os mais antigos. Depois disso, vieram as televisões, que, inicialmente, poucos tinham. Quando viam tal tecnologia, muitos ficavam simplesmente sem entender como “as pessoas cabiam naquela caixa tão pequena”, conta a professora Fátima das Graças. Para muitos, Araçuaí está localizada no vale da miséria, mas a região é muito mais que isso. Se, por um lado, falta riqueza material, por outro há uma incrível riqueza cultural, com grandes artesãos e corais reconhecidos dentro e fora do país, contos passados de geração em geração que retratam a história dos “canoeiros” e dos antigos que fundaram a cidade e que foram morrendo ao longo do tempo. Artesanato e canto Andando pela cidade, é possível conhecer pessoas humildes, que passam um espírito de paz e serenidade no olhar, como é o caso da artesã Lira Marques, 71, filha de sapateiro e lavadeira, de origem humilde. Ganhadora da medalha JK na década passada, Lira aprendeu o oficio com apenas cinco anos de idade, com sua mãe, que, na época

do natal, doava presépios de barro para os vizinhos. Vendo a mãe trabalhar, Lira começou a gostar do ofício e, a partir de então, não queria fazer outra coisa. Com o tempo, conheceu Joana “poteira”, que, ao contrário da mãe de Lira, usava o artesanato como forma de trabalho. Joana lhe ensinou como usar o barro e algumas dicas para trabalhar melhor o material. Com o passar dos anos, sua paixão deixou marcas. Após algumas cirurgias nos braços, Lira não consegue mais coletar o barro, e por isso se reinventa: começa a usar terra mineral para pintar. Porém ainda não deixou o barro totalmente de lado. Seu ponto forte são as máscaras, com as quais gosta de retratar a expressão das pessoas que moram na região. Lira também fez parte do Coral Trovadores do Vale, com o frei holandês Francisco Van der Poel, ou simplesmente Frei Chico. Tudo começou quando o religioso ouvia sua cozinheira, dona Filomena, cantar músicas dos moradores antigos da cidade. Lira percebeu que as músicas do coral eram as mesmas que sua mãe cantava em casa. A partir daí, começaram a gravar com pessoas da cidade e nas comunidades rurais, para registrar esses cantos e cantigas, que eram passados de geração em geração, mas ainda não tinham sido registrados. A pesquisa rendeu 257 fitas gravadas e vários cds gravados em estúdio. Sua principal música é o canto Beira-mar, regravado por grandes artistas como Almir Sater.


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Jornal Daqui (Buritis e Região)

O buriti é das margens Foto: William Araujo

Poucos sabem, mas o nome do famoso bairro belo-horizontino está mais ligado à literatura do que à botânica

Aggêo Lúcio, filho do dono da Fazenda dos Tebaidas, relembra as origens do bairro

Aquela árvore que sempre pensamos ser uma, mas é outra. Palmeira, coqueiro, ou, talvez, seja aquela cujo nome dá-se ao bairro Buritis? A origem do nome que tanto pronunciamos, de fato, pertence a uma árvore tropical típica do cerrado. Mas, por que “buritis”? Por que não “palmeiras” (que, afinal, havia acabado de batizar outro bairro)? Ou, quiçá, “mangueiras”? Não. O motivo por trás da escolha vai além daquilo que nos vem à cabeça. Como muitos sabem, o bairro era, na verdade, uma propriedade com cerca de 5 milhões de metros quadrados, e se intitulava “Fazenda dos Tebaidas”. O terreno pertencia ao químico Aggeo Pio Sobrinho, que a cultivou e abasteceu o município de Belo Horizonte com muitos produtos até o início do loteamento do terreno, na década de 1950.

Segundo Aggêo Lúcio, filho de Aggêo Pio Sobrinho, a fazenda havia sido invadida por várias famílias. Com medo de perder a fazenda, ele e os irmãos lotearam alguns espaços e chegaram a vender 400 lotes em dois dias. Porém, ao manter apenas as regiões montanhosas, não havia registros da árvore buriti.

Fã de Rosa Mas, então, onde diabos entra o nome? Houve um momento em que os filhos de Aggêo tiveram que recorrer ao zoneamento, na prefeitura de Belo Horizonte, devido à excessiva procura pela região da “Fazenda dos Tebaidas”. A partir daí, uma figura importante entra em cena para concretizar a ascensão do bairro. À época, Ismaília de Moura Nunes era Secretária de Planejamento Urbano da capital. Por isso, participou diretamente do zoneamento urbano e da escolha do

nome do bairro. Aggêo Lúcio conta que Ismaília era encantada pelo escritor Guimarães Rosa, que, por sua vez, era amante das árvores buritis, as quais estudou, no mesmo período, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É possível, até mesmo, questionar se ambos chegaram a se conhecer durante o período de graduação. Destacadas no livro Grande Sertão: Veredas, os nomes das árvores foram ditos por Ismaília para que pudessem homenagear seu escritor favorito. O nome foi dado em novembro de 1976, como planejamento unifamiliar, ou seja, quando não é permitido construir casas com mais de dois pavimentos. No entanto, ao contrário do que muitos imaginam, não existem árvores buritis naturais do bairro, devido ao bioma natural da planta.

Você sabia? A árvore buriti pode chegar a 35 metros de altura. Natural de terrenos pantanosos, a espécie pode ser encontrada em grupo ou sozinha, sendo que, na regional Oeste de Belo Horizonte, também aparecem nas movimentadas avenidas Barão Homem de Melo e Tereza Cristina. As flores surgem de dezembro a abril, com disposição para chegar a até três metros de comprimento, sempre amareladas. Para quem não sabe, as amêndoas da árvore são comestíveis. Com formato oval, a espécie é usada em doces e, até mesmo, para fabricação do vinho de buriti. Afora isso, a árvore sempre forneceu matéria-prima para produção de cordas, com suas folhas, e de canoas, com o seu tronco. Por necessitar de um terreno pantanoso, também é conhecida como “palmeira do brejo”, sendo um ótimo sinal para

caboclos viajantes que almejam água e comida. Como é facilmente avistada pelo tamanho que atinge, é comum encontrar muitos homens em torno dessas árvores, que, além de oferecer sombra, saciam

a fome a sede. O grande Guimarães Rosa costumava romantizar a presença dos buritis como um recanto de paz e tranquilidade, ao destacar as “lições” que se pode aprender junto à árvore. reprodução

Arthur Scafutto


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