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3.2.5 Tambores místicos e mistagógicos

diz o místico-poeta, “ao ritmo das coisas belas/ ao gosto agreste do bom/ do belo que profetiza/ a ternura que és tu/ Elisa”.

No poema O Agadá da transformação, Abdias, singularmente, exibe o poder do tambor, do som, da dança e do ritmo para o fortalecimento e vitória na batalha coletiva contra toda forma de dominação e servilismo. Exclama de forma paradigmática no referido poema/oriki o poeta das sonoridades ancestrais, Abdias Nascimento (1983, p. 85-90): “Somos a semente noturna do ritmo...”. E diz no mesmo poema:

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[...]. Ouçamos o pipocar do couro retesado/ (ó Agadá da transformação)/ rompendo a couraça do insensível mundo/ branco/ na sola dos pés sangrentos/ temos dançado/ o madrigal da escravidão/ o minueto do tráfico/ o fado do racismo/ agora na pele flamejante dos tambores/ dancem eles o nosso baticum de guerra/ até despontar aquela aurora/ de dançar o afoxé/ da nossa batalha final vitoriosa [...]

A uma dança de morte imposta à população negra (“madrigal da escravidão”, “minueto do tráfico” e “fado do racismo”), Abdias subverte a ordem exigindo que o sistema de poder hegemônico dance ao ritmo dos subalternizados até despontar o afoxé da vitória dos que, nos corpos em movimento (“na pele flamejante dos tambores”), subverteram as coreografias sem vida e os ritmos genocidas do status quo. Memorizando sonoridades, toques, batidas, gestualidades, coreografias e gingas a gente preta foi “dizendo no pé” verdades insurgentes. Num ambiente hostil e perigoso, a população negra, fazendo valer memórias do corpo, foi, entre frestas descolonizadoras, “dançando pra não dançar”.

3.2.5 Tambores místicos e mistagógicos

Tambores, na perspectiva do candomblé, são “pessoas”, corpos vivos preparados e nutridos pelo axé. Para Abdias Nascimento o tambor significa muito mais que um mero instrumento musical, e cita Tejada, que diz que para além de um simples apetrecho musical o tambor é “fonte do ritmo cósmico, arquivo das complicadas harmonias do universo, poder que suscita poderes que regem a ordem do mundo, coisa sagrada com poder para dominar o curso das coisas: Deus” (NASCIMENTO, 1976, p. 24).

Reiteramos, tambores no candomblé são considerados “pessoas”, são, pois, corpos vivos que se comunicam com as divindades e as chamam para assumirem os corpos de seus filhos ou filhas. Mais delimitadamente, três tambores estruturam a vida religiosa do candomblé; são eles: o Rum (atabaque maior), o Rumpi (atabaque médio) e o Lé (atabaque menor).

Escreve Abdias: “Integrado também nas cerimônias religiosas e evocação dos antepassados, consignemos ainda a presença do tambor – atabaque cuja significação não se esgota na simples qualificação de instrumento musical” (NASCIMENTO, 1979, p. 24).

Em Orixás: os Deuses Vivos da África Abdias Nascimento (1995) nomeia os tambores de “entidades místicas” que se nutrem do axé das comidas e bebidas:

Os tambores sagrados, rum, rumpi e lé (na ordem decrescente de tamanho) são mediadores e/ou intermediários, pois, através dos ritmos especiais eles levam a petição dos crentes aos orixás. Entidades místicas, os tambores também ‘comem’ o produto da cozinha sagrada: azeite de dendê, água sagrada, e sangue de galinha (NASCIMENTO, 1995, p. 57).

Em Sortilégio II Abdias faz com que o processo de encontro do doutor Emanuel com a divindade, intermediado por Exu, seja marcado pelo fundo musical dos tambores, facilitadores mistagógicos de real grandeza. Eis, exemplarmente, um excerto da peça:

Emanuel tenta sair da esquerda. O pessoal da macumba que durante o fim do diálogo precedente tomou seu lugar na cena, faz soar subitamente os atabaques. Simultaneamente o Orixá surge sob a gameleira e faz o gesto de puxar alguém por uma corda invisível. Emanuel estaca, os tambores dão uma brusca parada. Ouve-se depois as palavras cabalísticas da Yalorixá dando início à função ritual. Os atabaques começam uma espécie de fundo rítmico, em surdina, que as vezes nem se ouvem acompanhando os ‘pontos’; a música eleva e baixa o ritmo e a intensidade conforme as indicações respectivas. Emanuel recua de costas, como se puxado contra a vontade (NASCIMENTO, 1979, p. 60).

A saga de Emanuel reverbera a trajetória da população negra em diáspora. A tarefa de inventar letras e recompor os próprios nomes implica um enraizamento na cultura e na religiosidade africanas. “Em cosmologia de povos da África do Oeste, instrumentos musicais conectam-se a corpos sem fronteiras que escapam a definições de qualquer ordem etnocêntrica” (ANTONACCI, 2014, p. 149). Pelo que expusemos acima fica a mensagem de que os tambores estão sempre envolvidos nas encruzilhadas históricas. E isso faz da saga negro-africana e diaspórica uma ocorrência musical, rítmica e dançante. Assim Abdias termina Sortilégio II: “Enquanto cantam e dançam o pano desce lentamente” (NASCIMENTO, 1979, p. 140).

Dançar, tocar e evocar ao som dos atabaques são formas de saberes e poderes que as comunidades dos terreiros preservaram, a despeito de toda sorte de perseguição. Atabaque/tambores são veículos de comunicação porquanto são capazes de fala, de discurso e enunciação. Humanos e divindades têm ouvidos capazes de ouvir e identificar sons e melodias sem as quais a mística no candomblé não acontece.

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