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5.5.4 Mística da Esperança

O “princípio alegria/alacridade”, energia própria do Erê/Ibeji, engendra a possibilidade/necessidade da festa enquanto ato supremo, não somente de afirmação, mas, sobretudo, de transfiguração da vida. Nessa forma de transfigurar a vida radica-se dimensão transformadora e revolucionária da festa – gozo dos humanos e das divindades. Expõe Roberto DaMatta (1986, p. 81): “Todas as festas – ou ocasiões extraordinárias – recriam e resgatam o tempo, o espaço e as relações sociais”. Festejar, nessa acepção, implica em recriar – reinventar a vida. Na festa, mundos religiosa e socialmente separados, se encontram. A festa abole barreiras, algumas das quais intransponíveis sem a sua realização. Sob as lentes do sagrado, consoante o que defendemos em nossa tese, assinala também DaMatta que “o patrocínio ou patronagem dos santos e deuses cria essas regiões neutras...” (p. 83).

Essa vivência místico-religiosa já experimentada no solo africano a partir do pensar sacramental, foi expressa de forma sui generis pelos cativos no horror da travessia atlântica. A partir dessa experiência, podemos falar de uma alegria diaspórica, ao que parece, indestrutível.

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Marcus Rediker (2011, p. 290), discorrendo sobre a experiência de sofrimento infernal dos cativos no navio negreiro, relata duas ocorrências que julgamos preciosas no que se refere a nossa reflexão sobre uma alegria flambada no marafo forte da mística diaspórica e, portanto, reveladora de competências libertárias no marco da “afirmação da vida”. Na primeira, narra o historiador:

Os embarcados no Hudibras cantaram ‘canções de alegria’ depois de seus turbulentos resmungos obrigaram uma desculpa e o esclarecimento do capitão quanto à duração e ao destino de sua viagem. Ao que parece, a cantoria prolongouse noite adentro, expressando suas esperanças em uma vida na ‘terra de Makarahrah’ .

O segundo relato:

O vice-almirante Richard Edwards, da Marinha Real, observou algo semelhante: nos navios negreiros que chegavam aos portos das Antilhas, os negros normalmente se mostravam alegres, cantando – de modo que se tomava conhecimento da chegada de um navio negreiro pela dança e cantos dos negros a bordo.

E comenta Rediker instigando a nossa reflexão e, de algum modo, endossando-a: “Que motivos teriam eles para se alegar, o vice-almirante não informou”.

5.5.4 Mística da Esperança

Rubens Alves (1966, p. 101) supõe que a esperança seja “a grande marca da religião”, e escreve que para as humanas criaturas pendentes em suas cruzes cotidianas “é mais belo o risco ao lado da esperança que a certeza ao lado de um universo frio e sem sentido”. Eis porque, assevera o

educador: “A experiência religiosa, assim, depende de um futuro. Ela se nutre de horizontes utópicos que os olhos não viram e que só podem ser contemplados pela magia da imaginação”. Rediker (2011, p. 311) escreve que no horror infernal a bordo navio negreiro negros e negras construíram uma “esperança desatinada”.

Sustentamos, nessa direção, que a experiência místico-religiosa de Abdias o fez vivenciar um sentido radical da existência que o pôs, esperançosamente, de pé e de cabeça erguida na batalha do mundo.

É mister chamar a atenção e sublinhar que a virtude ancestral da esperança jaz no título da obra magna de nossa tese: Axés do sangue e da esperança (orikis) [grifos nossos]. Esse fato já reverbera per se um lugar de envergadura que a esperança ocupa na subjetividade de Abdias Nascimento, “O Quixote irado”. E ele mesmo declara em entrevista a Henry Louis Gates Jr. (2014, p. 79).

Perguntei como ele via o futuro do Brasil. Por acaso via com otimismo uma mudança na situação? Estava curioso para ver que resposta ele daria a essa pergunta. Esperava, creio, algum tipo de explosão visceral. No entanto, Abdias, mostrou-se sereníssimo, como se tivesse formulado a resposta havia muito tempo.

E Gates Jr. conta a resposta surpreendente de Abdias já com avançada idade: “Se eu não fosse otimista, já teria me enforcado”. Para Ernest Bloch (2005, p. 117), a esperança é capaz de engendrar a confiança que se enuncia no “polo oposto do desespero”. Se, com base em nossa pesquisa, fizéssemos a seguinte indagação: Por que Abdias, com tantas vivências e escrevivências de dor e sofrimento, não se “enforcou”? Responderíamos, sem tergiversar: Em virtude da fé nos orixás. O candomblé encheu sua vida de força (axé) e esperança.

Importante ressaltar que o termo entusiasmo, etimologicamente, relaciona-se ao ser visitado pela divindade; logo, faz referência ao ser que vibra a partir do sagrado ou de uma força capaz de alterar os gonzos da existência. Na prospectiva de Ernest Bloch, consoante epígrafe, o ser religioso é um ser otimista, um ser esperançoso e, por isso, um ser de competência utópica. E essa chama leva o ser a não apenas sonhar, mas também se engajar na melhoria do mundo. Desse modo, Abdias Nascimento com seu quixotismo quilombista comprometeu-se desde as entranhas nos processos de libertação da população negra.

Para Bloch (2005, p. 95-96),

o sonho diurno, em seus aspectos comuns, estende-se na sua dimensão tão larga quanto profunda, não sublimada e sim concentrada, na sua dimensão utópica (...). O sonho diurno como prelúdio da arte visa assim, de maneira especialmente significativa, à melhoria do mundo; é esta a aspiração saudável e realista que constitui seu cerne.

Podemos, pois, dizer, pelos materiais colhidos em nossa pesquisa, que o otimismo de Abdias, que o fez um esperançoso irremediável, repousa sobre base religiosa. Tal afirmação vai ao encontro do postulado de Eric Bloch expresso na epígrafe de nossa reflexão: “Onde há religião, ali está a esperança”; e completamos: onde há esperança há alegria e onde há alegria faz-se possível pensar numa luta risonha, com gingado, com maleabilidade e destreza, mas também com apaixonado ódio, conforme a iracunda irremediável de Xangô justiceiro, por exemplo.

Leonardo Boff271 , discorrendo sobre A força política da esperança face à atual situação assinala:

Mas importa resgatar o caráter político-transformador da esperança. Ernst Bloch, o grande pensador da esperança, fala do princípio-esperança que é mais que a virtude comum da esperança. É aquele impulso que nos habita que sempre nos move, que projeta sonhos e utopias e dos fracassos sabe tirar motivos de resistência e de luta. A Santo Agostinho, talvez o maior gênio cristão, grande formulador de frases, nos vem esta sentença: ‘A esperança tem duas filhas queridas: a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a recusar as coisas como estão aí; e a coragem, a mudá-las’ .

Para Boff, as religiões “são fonte de utopias salvadoras” porquanto nasce da interioridade humana que recusa aceitar a realidade tal como se apresenta. Nesse sentido, religião e “princípio de esperança”, nos termos de Bloch (2006), caminham juntas. Na biografia de Abdias encontramos o entrecruzamento do imaterial com o material, da dor e das propostas para superá-la, do desterro com a construção original de projeto quilombista. No fundo, a força mística nascida do patrocínio dos orixás fê-lo ver para além dos óbices históricos. Diz Boff272: é deste transfundo que emerge a experiência religiosa que subjaz a toda religião institucionalizada.

Desse modo, o entusiasmo esperançoso captado na biografia de Abdias Nascimento reclama uma fundamentação de ordem religiosa, o que não se desvincula da história e luta atual e passada de seus irmãos e irmãs de raça e destino. Poderíamos falar, nesse sentido, da experiência de uma esperança Ubuntu na qual todos e todas (inclusive, ou sobretudo, os mortos) estão implicados. Os orixás são interpretados por Abdias como potencialização e maximização de todas as possibilidades

271 https://leonardoboff.wordpress.com/2017/06/04/a-forca-politica-da-esperanca-face-a-atual-situacao/ 272 http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2017/03/05/a-religiao-como-fonte-de-utopias-salvadoras/

humanas e cósmicas. Os orixás, dessa feita, são entidades que engendram utopia que, exemplarmente, fez Abdias engajar-se com singular intrepidez nos processos de libertação integral da população negra. Abdias, nos termos de Bloch (2005, p. 77) se alimenta de um afeto expectante.

O afeto expectante mais importante, o afeto do anseio, portanto o auto-afeto por excelência, continua sendo constantemente a esperança, pois os afetos expectantes negativos da angústia e do medo são totalmente passivos, oprimidos, presos, não obstante toda a repulsão que exercem. Neles se manifestam um tanto da autodestruição e do nada para o expectante contrário à angústia e ao medo, é a mais humana de todas as emoções e acessível apenas aos seres humanos. Ela tem como referência, ao mesmo tempo, o horizonte mais amplo e mais claro. Ela representa aquele appetitus no âmbito que não só o sujeito tem, mas no qual ele consiste essencialmente, como sujeito não plenificado.

O “princípio esperança”, então, para Abdias, segue arraigado na fé como princípio; fé nos orixás, mas não só. Exu é, por excelência, o “princípio esperança” do candomblé por assenhorear-se da reinvenção da vida, isto é, das possibilidades, porque ele é o deus do movimento, da dialética, da pulsão, da vibração – da “afirmação da vida!”, da vida pulsiva e, desavergonhadamente, erótica, sensual e libidinosa. O candomblé, desse modo, alimenta uma esperança que goza (a depender de Exu) espermaticamente.

No PEL, Abdias espera com especial interesse em Exu, razão maior de sua investida. Fala como bom sacerdote: “... espero que estas oferendas agradem o teu coração e alegrem o teu paladar...” (p. 10). É a esperança suprema do crente, do devoto e do fiel: satisfazer a divindade. Sabe-se que o sistema nagô está ancorado na lei da troca e, portanto, na reciprocidade. Exu satisfeito é Exu prestimoso companheiro – incomparável patrono. Trata-se aqui de uma esperança religiosa de base. Tanto Abdias quanto Exu sabem dos que mantiveram a esperança na luta quilombista; daqueles e daquelas que mantiveram a chama no coração a partir dos “fogos de Xangô” – deus justiceiro. Diz Abdias:

Exu

tu que és o senhor dos

caminhos da libertação do teu povo

sabes daqueles que empunharam

teus ferros em brasa

contra a injustiça e a opressão

Zumbi Luiza Mahin Luis Gama

Cosmo Isidoro João Cândido

sabes que em cada coração de negro

há um quilombo pulsando

em cada barraco

outros palmares crepita

os fogos de Xangô

iluminando nossa luta

atual e passada.

No poema “Mãe” a esperança nasce de um mergulho coletivo: “mergulharemos nosso oceano de leite/ varando os cabos de tormentas/ náufragos do sonho/ bêbados da esperança/ bebedores do sangue e/ das águas da liberdade...” (p. 23). Em “Autobiografia” Abdias confessa que deita sua existência no leito de uma esperança teimosa:

PRECONCEITO esmagado no feito

destruído no conceito

eito ardente desfeito

ao leite do amor perfeito

sem pleito

eleito ao peito

da teimosa esperança

em que me deito. (NASCIMENTO, 1983, p. 26).

No poema “Escalando a serra da Barriga” o místico-poeta enuncia: “Meus passos ecoam ao resgate da esperança/ pelo caminho antecedente/ (nem largo nem estreito)/ soturno ruído de correntes à luz de Orum incandescente...” (NASCIMENTO 1983, p. 28). E ainda: “Serra-templo ancoradouro/ de sonhos e ossadas africana/ da esperança o tesouro/ da negra dignidade humana” (p. 31).

Na perspectiva de DaMatta, porque os seres humanos, e mais delimitadamente os brasileiros, se sabem acompanhados e protegidos por misteriosos e poderosos agentes, suas vidas, dores, perplexidades, tramas, negócios e “jeitinhos” são vivenciados num horizonte de esperança mediante

o qual se postula que, porque há deus ou deuses, tudo no final dará certo. Realça oportunamente Boff (2000, p. 162):

Estes podem ser desprezados socialmente, podem ser considerados zeros sociais e econômicos, podem não ser escutados por ninguém, nem pelo vereador, deputado ou prefeito que elegeram, mas sabem que são escutados por Deus, que podem se relacionar diretamente com ele e com seus santos, emprestar o seu corpo para ser ‘cavalo’ da divindade, para que ela baixe e marque presença entre os humanos, auxiliando-os, dando-lhes conselhos, fortificando-os na luta pela vida.

E prossegue o teólogo:

Essa religião confere dignidade ao ser humano reduzido a não-pessoa e excluído da presente ordem. Faz com que ele sempre tenha uma perspectiva de esperança... Desta esperança teológica derivam esperanças de vida, de trabalho, de saúde para os filhos, de possibilidade de uma vida melhor no futuro.

Esperança e alegria, na experiência afrodiaspórica, podem ser descritas como as duas asas de um mesmo condor; e uma asa depende da outra para que se possa voar no céu da liberdade sem fim, liberdade essa negada à negra gente. Segundo o adágio popular, “a esperança é a última que morre”, razão pela qual, ela acompanha a humana criatura em todos os desvãos da existência. E se o assunto é esperança, Abdias, tanto em sua vida quanto na obra Axés, se revela um ser talhado de uma visceral esperança, a ponto de receber o epíteto emblemático de “Quixote irado”.

Quixote é figura paradigmática do delírio vital, do sonho indomável, da luta encantada e da esperança vibrante forjada na aventura. Em se tratando de Abdias, é forçoso especificar que se trata de uma aventura palmarina e, portanto, atrelada à coletividade, não apenas negra, mas de toda humanidade. Eis porque o educador Paulo Freire testemunha no prefácio da obra Axés sobre as vezes que encontrou Abdias: “Em todas estas oportunidades, Abdias era o mesmo intelectual comprometido, o mesmo artista criador, a mesma sensibilidade inquieta. Sua prática confirmava sempre o seu discurso”. Paulo Freire captou em Abdias uma chama ou uma verve quixotesca de enraizamento profundo. E diz acerca da obra: “Nada neste livro bonito nega ou contradiz a sua forma de estar sendo no mundo – nada nega as suas raízes que lhe dão vida e autenticidade”.

Paulo Freire (1992, p. 10), em Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido273 , diz que a “esperança é necessidade ontológica” de cada humana criatura’ , a desesperança, para o educador, é a esperança que perdeu o endereço, razão pela qual distorce essa

273 Segundo Freire (1992, p. 12), a referida obra foi escrita “com raiva, com amor, sem o que não há esperança”. A frase faz lembrar a perspectiva da revolta (e também da raiva e do amor) que tanto marcou a trajetória de Abdias Nascimento.

necessidade intrínseca. Sem esperança o sujeito e/ou coletividade sucumbe no fatalismo que paralisa e dispensa a luta. Contudo, para o educador a esperança sozinha não move a história. Faz-se necessário uma esperança crítica e engajada. Diz Freire (1992, p. 10):

Não sou esperançoso por pura teimosia mas por imperativo existencial e histórico. Não quero dizer, porém, que, porque esperançoso, atribua à minha esperança, o poder de transformar a realidade e, assim convencido, parto para o embate sem levar em consideração os dados concretos, materiais, afirmando que minha esperança basta. Minha esperança é necessária mas não é suficiente. Ela só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia. Precisamos da esperança crítica como o peixe necessita da água despoluída.

Lembra Cortella em Educação, convivência e ética – audácia e esperança (2015, p. 24): “Paulo Freire já dizia: ‘É preciso ter esperança, mas tem de ser do verbo esperançar, porque tem gente com esperança do verbo esperar, e, aí, não é esperança, mas pura espera’”.

Enfatiza ainda Freire:

Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo. Mas, prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas, à pura cientificidade, é frívola ilusão. Prescindir da esperança que se funda também na verdade como na qualidade ética da luta é negar a ela um dos seus suportes fundamentais (1992, p. 10)

A vida e obra de Abdias estão, pois, ancoradas nesse “esperançar” prenhe de utopia de que fala Paulo Freire, por isso sua vida, tem na luta sua fundamentação e legitimidade. É nessa perspectiva que Abdias (1986, p. 50) se une a Exu, Oxum, Obatalá e Ogum quando proclama no poema “Olhando no espelho”:

Para a infância negra

Construiremos um mundo diferente

Nutrido ao axé de Exu

ao amor infinito de Oxum

à compaixão de Obatalá

à espada justiceira de Ogum

Nesse mundo não haverá

trombadinhas

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