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5.5.3 Alacridade: a alegria de um contente Erê

Que orixá por sua dimensão cosmogônica, pelas suas características de princípio dinâmico associado à Criação, a Olodumré e a todas as coisas, poderia servir de base à grande resistência que se fazia necessária frente à dominação, seja física, seja cultural e religiosa, que a escravidão impunha, do branco sobre o negro? Que orixá, mais que Exu, podia garantir a sobrevivência da identidade e a cosmovisão negras na América europeizada e cristianizada? Quem, senão Exu, para lembrar ao dominado o pacto estabelecido por Deus, Olodumaré, com a Sua Criação, aí incluindo o grupo humano, do qual, naquele momento, os africanos se achavam aviltados pela escravidão e pela barbárie branca? (RIBAS apud, MARIAN, 2017, 73).

Só um ser entusiasmado in extremis pode, a despeito de tantos ataques e ultrajes sofridos, dizer como Abdias: “Mas o sangue continua rubro a ferver, inspirado nos Orixás que nos faz crescer” (NASCIMENTO, 1983, p. 83).

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5.5.3 Alacridade: a alegria de um contente Erê

Expõe Sodré (2017, p. 149-150), citando, oportuna e sugestivamente, o poeta português Guerra Junqueiro: “A alegria é uma alavanca”. Nesse horizonte, efetivamente característico das místicas nascimentistas, a alegria é filha e mãe da festa – força potente da população negra em diáspora. Dessa feita, a festa, esconde/revela o que Ribeiro (1982) compreendeu como “pedagogia de resistência”; há nela dizeres e utopias, por vezes negligenciadas por olhos forâneos presos aos domínios externos (cf. PRIORE, 1994)260 .

A festa é golpe na dureza do crudelíssimo cotidiano, sobretudo para os povos subalternizados. “A ‘festa que espanta a miséria’ torna-se culto da potência transgressora que dobra a escassez e o desencantamento produzido pelo colonialismo” (SIMAS e RUFINO, 2018). Alegria e festa são, pois, ferramentas poderosas nas mais diversificadas produções culturais e religiosas afrodiaspóricas261 .

Como Ernest Bloch (2005) defende na obra O Princípio Esperança, podemos, à luz das peripécias culturais e religiosas afro-brasileiras, abdiasianamente expressas, postular o “princípio alegria/alacridade” – apanágio dos Erês/Ibejis. Mas, antes, é mister uma afirmação de base: alegria/alacridade, entendida sob a ótica afro, não necessariamente antagoniza com a tristeza ou

260 Brito (2000, p.117-121) refletindo sobre a dimensão libertária da festa no Brasil colonial auxilia na compreensão da festa na obra de Priore (1994). Para o autor, “Compreender as festas do passado, sem dívida é compreender um poço de nós mesmos e reavivar as utopias de um amanha diferente”. 261 Importante salientar que também a dimensão da festa pode sofrer apropriações do sistema dominante e tornar-se instrumento de estigmatização mobilizadora do subalternizado. Joel Rufino dos Santos atento a essa artimanha de subjugação faz valiosa ressalva: “Aquilo que se convencionou chamar ‘cultura da festa’, um conjunto de comportamento e manifestações lúdicas, extemporâneas e quase infantis, quase uma segunda natureza do negro, diferenciadora com relação ao branco e ao índio. Não é difícil ver que estamos diante de um ‘discurso de atribuição’, nascido da necessidade histórica de justificar a condição de subproletário do negro no pós-Abolição.”

banzo262, mas, antes o reclama como parceiro de travessia. Dessa feita, alegria/alacridade não está radicada no cultivo obstinado de emoções fortuitas ou euforias espúrias e artificiais, muitas vezes produzidas mediante fármacos ou um sem número de drogas, conforme constatamos na atualidade ocidental. Tais recursos, amiúde, fabricam uma pseudoalegria e também uma pseudotranscendência. São oportunas as palavras de Geertz (2017, p. 6-77):

E ainda:

Como problema religioso, o problema do sofrimento é, paradoxalmente, não como evitar o sofrimento, mas como sofrer, como fazer da dor física, da perda pessoal, da derrota frente ao mundo ou da impotente contemplação da agonia alheia algo tolerável, suportável – sofrível, se assim podemos dizer.

Para aqueles capazes de adotá-los, e enquanto forem capazes de adotá-los, os símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica não apenas para a sua capacidade de compreender o mundo, mas também para que, compreendendo-o, deem precisão a seu sentimento, uma definição as suas emoções que lhes permita suportá-lo, saturna ou alegremente, implacável ou cavalheirescamente.

Na tradição africana a vida é tomada na sua totalidade. Nessa perspectiva, a tristeza/dor pode, de algum modo, ser pensada, inclusive, como condição de possibilidade da alegria profunda, alacridade sapiente.

Rubens Alves (2008) escreveu um livro intitulado Ostra feliz não faz pérolas. E explica o educador na contracapa da obra:

A ostra, para fazer uma pérola, precisa ter dentro de si um grão de areia que a faça sofrer. Sofrendo, a ostra diz para si mesma: ‘Preciso envolver essa areia pontuda que machuca com uma esfera lisa que lhe tire as pontas’... ‘Ostras felizes não fazem pérolas’... Pessoas felizes não sentem a necessidade de criar. O ato criador, seja na ciência ou na arte, surge sempre de uma dor.

Desse modo, para o referido educador, o ato criador é filho da tragédia. Mitos sobre Exu, por exemplo, enunciam que o orixá, por ser o ente humanizador, leva a tragédia a sério, pois nela jaz o nascedouro do humano enquanto ser inacabado e, portanto, projeto infinito. Nem os deuses escapam aos desconfortos e conflitos causados por Exu.

262 Ney Lopes (2015, p. 29) define banzo como uma forma “de melancolia ou nostalgia com depressão profunda, quase sempre fatal, em que caiam alguns africanos escravizados nas Américas. O termo tem origem ou no quicongo mbanzu, ‘pensamento’, ‘lembrança’, ou no quimbundo mbonzo, ‘saudade’, ‘paixão’, ‘mágoa’”. Escreve Rediker (2011, p. 291292): “Quando chegavam a bordo do navio, alguns escravos caiam numa ‘melancolia permanente, uma depressão em que não respondiam a nada do que lhes diziam ou perguntavam seus raptores, inclusive ordem para que comessem”.

Alguns títulos dos mitos sobre Exu narrados por Prandi (2001) dão conta de sustentar a importância filosófica263 do trágico na mundividência nagô: “Exu põe fogo na casa e vira rei” (p. 4748); “Exu leva dois amigos a uma briga de morte” (p. 48-49); “Exu promove uma guerra em família” (p. 52-53); “Exu provoca a ruína da vendedora do mercado” (p. 58); “Exu põe Orunmila em perigo e depois o salva” (p. 68-70); “Exu instaura o conflito entre Iemanjá, Oiá e Oxum” (p. 70-73); e “Exu provoca a rivalidade entre duas esposas” (p. 75-76).

Mãe Beata de Yemanjá264 diz, acerca de Exu: “Ele é brincalhão. Uma das coisas que eu acho que Exu mais adora é brincar com as pessoas, experimentar o limite da pessoa. Ele pode fazer você agora ter uma decepção e daqui a vinte minutos depois você ter uma grande alegria. É uma artimanha dele” .

Assinala ainda Rubens Alves (2008, p. 12): “A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas” .

Isso posto, vale ressaltar que no horizonte afro busca-se acolher o “bocado de dor” que a existência impõe aos habitantes do Ayê; contudo, um dos maiores legados da mundividência afro é que a experiência inapelável e inaliável da dor encontra seres que cantam e dançam; cantam e dançam, inclusive, a própria dor. Por isso, a tristeza/dor só pode ser compreendida dentro de uma tessitura cultural em face da qual será sentida e interpretada. Na tradição africana tristeza/dor pode ser combustível para a vida criativa e alavanca para a arte; sobretudo, a arte de viver.

Diz Abdias em forma de confissão no “Oriki da Elisa” (NASCIMENTO, 1983, p. 42-43): “Danço minha lágrima”. E o tambor traz a imagem da amada, Elisa, como se trouxesse um orixá da África ancestral. E é essa experiência erótica, musical e dançante que multiplica a força e expande o horizonte do místico-poeta. A lágrima, pois, não é negada e nem extirpada, mas a partir dela o universo se encanta e toda humanidade se junta na ciranda de amor cantado e dançado ao som do tambor “feliz na afirmação”, como continua Abdias no mesmo poema:

263 Nas palavras de Heidegger (In: BATISTA, 2012, p. 11), “ser humano já significa filosofar. Segundo sua essência, o homem, como tal já se encontra na filosofia. Como o ser tem diversas possibilidades, múltiplos níveis e graus de lucidez, o homem pode encontrar-se de diversas maneiras na filosofia. De modo correspondente, a filosofia como tal pode permanecer velada ou manifestar-se no mito, na religião, na poesia, nas ciências sem que seja reconhecida como filosofia”. 264 Documentário: A boca do mundo: Exu no candomblé. https://www.youtube.com/watch?v=tcO7fN_19kY.

... transforma a vida

num grito

feliz na afirmação

de um

de dois

de todo o mundo

em nós.

Na “pele escura” da mãe Josina, Abdias encontra a dor do mundo negro. No corpo-vida da mãe, conforme diz Abdias, de “tão curta alegria’, jaz o holocausto tramado à população negra pelo poder/dominação da escravatura de ontem e de hoje. Mas o poeta ao denunciar os “séculos de gritos” que ecoam no corpo, afirma os “milênios de ritos”. E se há rito a dor pode ser transubstanciada na companhia dos agentes da mística ancestral capaz de embebedar a vida de esperança. O corpo da mãe é para Abdias o oceano de dor, resistência, insurreição, alegria e esperança. No corpo da mãe jaz um “terreiro” de afirmação da vida e da fé. Atesta Abdias ainda no poema “Mãe”:

nadaremos nosso mar de sangue

mergulharemos nosso oceano de leite

varando os cabos de tormentas

náufragos do sonho

bêbados da esperança

bebedores do sangue e

das águas da liberdade

na fonte do teu ventre

mãe.

Para Sodré (2017, p. 150) alacridade/alegria, concebida no horizonte do pensamento nagô, é movida por “uma afirmação radical da vida”. E é nessa perspectiva que compreendemos que a vida e obra de Abdias foi orientada, conforme o próprio escreve em Axés (1983) no poema “Olhando no espelho” (p. 52-55), para o “riso alegre do novo dia”. Enuncia Abdias no mesmo poema.

...Somos tantos

somos tontos

somos congos

dos quilombos

somos contentes erês265 [...].

No excerto acima, extraído do poema “Brisas Panamenhas”, o místico-poeta afirma seu ser que se autocompreende na coletividade (“Somos”), e isso reverbera um dos legados mais preciosos da tradição africana: a comunidade. A comunidade, nesse sentido, constitui vetor indispensável na construção identitária. Diz Hampâté Bâ (2003, p. 23): “Na África tradicional o indivíduo é inseparável de sua linhagem, que continua a viver através dele e da qual ele é só um prolongamento”. E reforça:

É por isto que, quando desejamos homenagear alguém, o saudamos chamando-o repetidas vezes, não por seu nome próprio, que corresponderia no Ocidente a seu nome de batismo, mas pelo nome de seu clã: ‘Bâ!Bâ!’, ou ‘Diallo!Diallo!’, ou ‘Cissé!Cissé!’ Porque não se está saudando o indivíduo isolado e sim, nele, toda a linhagem de seus ancestrais.

Na declaração “somos congos266/somos quilombos” revela-se uma identidade ou identidades diaspóricas construídas em intercâmbio e trocas Áfricas↔Brasil. Dizer “somos” é estar de posse de uma verdade coletiva, de um rosto, de uma autonomia, de um agenciamento construído em mutirão e em flagrante contraste e contraposição ao “ergo sum” ocidental.

É a partir da coletividade “congos/quilombos” que Abdias vai professar, poeticamente, uma identidade mística ancestral capaz de, no deboche, na flexibilidade e irreverência, desqualificar ou desestabilizar a “seriedade” petrificada e mórbida de quaisquer sistemas de dominação. Enuncia o místico-poeta: “Somos contentes erês”. Essa é uma afirmação de fé; não apenas na divindade, mas na vida e nas suas infinitas possibilidades – fé no poder transcendental da alegria.

O contentamento irremediável do Erê, podemos traduzir em tempo de colonialidade e escravatura como revelação da insurgência ou insubordinação sob os véus do riso, aparentemente despretensioso e inocente riso. Por debaixo do riso do Erê, no fundo mais fundo, jaz a “afirmação da

265 Cacciatore (1977, p. 116) define Erê como “vibração infantil pertencente à corrente vibratória de um orixá. Cada iaô tem seu erê particular (correspondente ao orixá ‘dono da cabeça’) que a acompanha na iniciação, auxiliando-a no aprendizado que deve fazer na camarinha, transmitindo oralmente as ordens e desejos do orixá (que não fala) etc. (...). É também muito ligado aos Gêmeos (ibêji) e, na Umbanda, é assimilado às ‘crianças’, espíritos infantis, também particulares de cada filho de santo, mas que tiveram vida terrena...”. 266 “Congos – Nome dado no Brasil aos africanos pertencentes aos vários subgrupos do povo bacongo falantes do quicongo e seus dialetos, localizados nos territórios das atuais Repúblicas do Congo-Kinshasa e de Angola, na porção setentrional do país” (LOPES, 2015, p. 47).

vida”! Sob o signo do pensar-erê, o simbólico costuma se insinuar, misteriosa e debochadamente, ingênuo.

Os Erês desempenham a função de intermediários entre os homens e os Orixás, durante os rituais. Nesse sentido, a atuação dos Erês é análoga àquela realizada por Exu no oráculo de Ifá e na mitologia dos Orixás, uma vez que ele normalmente não se incorpora nos candomblés (LIGIÉRO, 1998, p. 106).

Erês e exus situam-se num plano intervalar; logo, no “não-lugar”. São seres risonhos em virtude da competência de não levarem a sério a caducidade da ordem e, assim, patrocinarem a legitimidade do novo. Exu é irremediavelmente brincalhão. Escreve Silva (2015, p. 23-24): “Exu pertence a categoria dos tricksters, que designa pessoas, divindades ou seres míticos que geralmente questionam, invertem ou quebram regras e comportamentos. Por isso Exu é também visto como trapaceiro, brincalhão, esperto ou malandro” .

Sob a ótica do contentamento do “eu coletivo” advindo da simbólica da energia-erê, Abdias escreve no poema “Mãe”:

Soluçando meu pranto

navego minha alegria

na gota infinita da tua presença

nutrindo os bagos vermelhos da romã

infundindo delicadeza ao ramo da avenca

afinando o gorjeio dos pássaros (NASCIMENTO, 1983, p. 21).

O místico-ativista no excerto do poema supracitado assume o paradoxo da existência que o faz soluçar seu pranto (seguramente, de homem negro num mundo construído – pelos negros – para os brancos) navegando sua alegria na “gota infinita” da presença da mãe. Nutrindo sua alegria, Abdias, como um ativista multiforme, segue no gerúndio: nutrindo (“bagos vermelhos da romã”), infundindo (“delicadeza ao ramo da avenca” e afinando (“o gorjeio dos pássaros”).

Como se não bastasse a beleza conhecida da avenca, o poeta ainda lhe presta o libérrimo serviço de infundir delicadeza aos seus ramos. E não só deseja como se percebe como o agente da vermelhidão do romã e ainda artífice da afinação do “gorjeio dos pássaros”. Verifica-se, pois, um estado de profunda comunhão e participação com a criação, como uma criança que brinca e trabalha para o aperfeiçoamento e embelezamento do mundo. Obra de Erê?

No glossário de Axés (1983), Abdias define Erê como “projeção infantil dos Orixás; estado de Erê é o transe suave intermediário entre o estado normal e o transe dos Orixás” (p. 106). Esse é o estado místico da criança ancestral; logo, do instituinte. Simbólica o status quo é fissurado fazendo emergir o status nascendi. A criança inaugura o “intermediário”, o “entre-lugar”; as possibilidades risonhas da vida, a despeito das durezas e truculências do real. E essa criança ancestral ri, debocha e instaura, descontraidamente, a misteriosa alacridade, parindo, assim, os “contentes erês” que, segundo Abdias, “somos”.

Desse modo, a alegria/felicidade pode ser descrita também como forma anímica de resistência e combustível para a luta. “E por mais prostrados que estejamos, sempre podemos dar um salto, pelo menos recorrer ao direito de espernear e de protestar. Esse direito nos é sempre preservado, ninguém pode destruí-lo” (BOFF, 2000, p. 77). Dessa feita, na perspectiva da ancestralidade-erê, rir, alegrarse, contentar-se, sobretudo em tempo de horror e tirania, são coisas muito sérias – tanto pode ser uma carícia quanto um soco no sistema; ou as duas coisas, simultaneamente. Diz-se em linguagem vulgar: “Um soco sem mão!”.

Enuncia Abdias Nascimento (1983, p. 85) no poema “ O Agadá da transformação”, unindo ritmo, consciência da dor, batida do tambor, cadência, alegria e o “rancor justiceiro da metralha”:

Somos a semente noturna do ritmo

a consciência amarga da dor

florescida nos toque anunciadores

da perenidade das coisas vivas

à batida dos tambores

aquele marcado por tánatos

emerge do seu vale sombrio de inércia

nas veias insuflado

em lugar da letargia cancerosa

a pulsação vital cadenciada

à harmonia do tambor

à alegria do sangue

ao rancor justiceiro da metralha [...]

Prandi (2001, p. 375-377), ao narrar o mito Os Ibejis enganam a morte267 , enuncia que até a macabra e temida Morte, quando dança/brinca ao som dos atabaques tocados pelos Ibejis, pode esquecer de matar. Conta:

Os Ibejis, os orixás gêmeos, viviam para se divertir. Não é por acaso que eram filhos de Oxum268 e Xangô. Viviam tocando uns pequenos tambores mágicos, que ganharam de presente de sua mãe adotiva, Iemanjá. Nessa mesma época, a Morte colocou armadilhas em todos os caminhos e começou a comer todos os humanos que caíam nas suas arapucas. Homens, mulheres, velhos ou crianças, ninguém escapava da voracidade de Icu, a Morte. Icu pegava todos antes de seu tempo de morrer haver chegado. O terror se alastrou entre os humanos. Sacerdotes, bruxos, adivinhos, curandeiros, todos se juntaram para pôr um fim à obsessão de Icu. Mas todos foram vencidos. Os humanos continuavam morrendo antes do tempo. Os Ibejis, então, armaram um plano para deter Icu. Um deles foi pela trilha perigosa onde Icu armara sua mortal armadilha. O outro seguia o irmão escondido, acompanhando-o a distância por dentro do mato. O Ibeji que ia pela trilha ia tocando seu pequeno tambor. Tacava com tanto gosto e maestria que a Morte ficou maravilhada, não quis que ele morresse e o avisou da armadilha. Icu se pôs a dançar inebriadamente, enfeitiçada pelo som do tambor do menino. Quando o irmão se cansou de tanto tocar, o outro, que estava escondido no mato, trocou de lugar com o irmão, sem que Icu nada percebesse. E assim um irmão substituía o outro e a música jamais cessava. E Icu dançava sem fazer sequer uma pausa. Icu, ainda que estivesse muito cansada, não conseguia parar de dançar. E o tambor continuava soando seu ritmo irresistível. Icu já estava esgotada e pediu ao menino que parasse a música por instantes, para que ela pudesse descansar um pouco. Icu já não aguentava mais dançar seu tétrico bailado. Os Ibejis então lhe propuseram um pacto. A música pararia, mas a Morte teria que jurar que retiraria todas as armadilhas. Icu não tinha escolha, rendeu-se. Os gêmeos venceram. Foi assim que os Ibejis salvaram os homens e ganharam fama de muito poderosos, porque nenhum outro orixá conseguiu ganhar aquela peleja com a Morte. Os Ibejis são poderosos, mas o que eles gostam mesmo é de brincar269 .

O mito Os Ibejis encontram água e salvam a cidade, Prandi (2001, p. 374-375) narra que em virtude da calamitosa situação seca e da sede na qual vivia a população, os Ibejis, brincando no quintal, cavavam buracos no chão. Conta Prandi:

267 Ver também: Os Ibejis nascem de Oiá e são criados por Oxum (p. 368-369); Os Ibejis são transformados numa estatueta (p. 369). Assim termina o mito: “São dois gêmeos-meninos brincando eternamente, são crianças”; Os Ibejis brigam por causa do terceiro irmão (p. 369-370). Assim o mito termina: “Quando eles passam alegres, discutindo, o povo diz: ‘Olha os Ibejis, olha os meninos gêmeos de Oxum’”. Os Ibejis brincam e põem fogo na casa (p. 373-374); Os Ibejis encontram água e salvam a cidade (p. 374-375). Nesse mito os Ibejis salvam a cidade que fenecia em virtude da seca. “Todos estavam à procura de água e todos fracassavam homens e mulheres”. São os Ibejis, segundo o relato, que encontram a fonte, matam a sede do povo e afastam a morte. 268 Vale reiterar que Oxum é a Mãe mítica de Abdias Nascimento. 269 O filme Timbuktu é ilustração cinematográfica exemplar da competência da música no universo africano enquanto “afirmação da vida”. Sob direção de Abderrahmane Sissako, o longa-metragem narra o cotidiano do povoado do norte do Mali sob dominação de extremistas religiosos. A população era proibida inapelavelmente de exercer a liberdade. Com o toque de recolher, todos eram impedidos tacitamente de sair, conversar, cantar, dançar, brincar, sob pena de punição, podendo chegar à execução. A despeito de tão extremada ditadura, vê-se cenas de belíssimas insubordinações: crianças jogando bola sem bola, cantos, encontros etc.

Mas não era exatamente a brincadeira o que os entretinha. Eles cavavam a terra à procura de água. No final dessa busca angustiada, as crianças gêmeas alcançaram uma fonte subterrânea e com a água cristalina abasteceram potes, vasos e quartinhas. Ofereceram então a todo o povoado o líquido precioso, matando a sede de seu povo e afastando a morte.

A partir do supracitado mito, que traz em seu bojo uma cosmovisão africana, podemos definir o “princípio alegria/alacridade”, metaforicamente, como “fonte subterrânea”, “água cristalina” e “líquido precioso”. Sobretudo, em tempos de extrema penúria e sofrimento somente esse líquido bendito é capaz de abastecer os “potes”, os “vasos” e as “quartinhas” da alma; só ele (sagrado líquido de fonte ancestral), nalguns extremos casos, conforme o mito relata, pode matar a sede e afastar a morte.

Sodré (2017) considera discursivamente a alacridade/alegria não como estados de ânimos momentâneos, esparsos ou episódicos; mas, antes, como um modus vivendi nagô. A alacridade é lugar de potência. Escreve:

A alacridade/alegria (ayó, em iorubá) como modo fundamental da existência nagô é antitética ao agapismo crístico ou paulino (Rm270 13, 10), isto é ao amor universal e humano como vetor da crença (...). Entretanto, a alacridade/alegria enquanto modo fundamental da Arkhé nagô não é um afeto circunstancial – portanto, nada que nasça e morra ocasionalmente – porque, como regime concreto e instável de relacionamento com o real, é uma potencia ativa (...) (SODRÉ 2017, p. 149-150).

Salienta ainda: “No ethos mítico e afetivo dos cultos afro-brasileiros, os ritos de renovação do axé, portanto da dinâmica de continuidade da existência, estão estreitamente associados à experiência dessa alacridade ou alegria, conforme o étimo nagô – ayó” (p. 151). Isso conduz à afirmação de que os terreiros, em virtude do axé que portam e dinamizam, foram (e são) espaços da afirmação da alegria e do contentamento por acrescentar o poético na dureza cotidiana do prosaico. Os terreiros, filosoficamente, oferecem o ensinamento, conforme Morin (2003, p. 58-59), que “o ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, transes, mitos, magias, ritos; crê na virtualidade dos sacrifícios...”. Eis, porque, segundo Morin, “o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético”. A religião, de modo geral, oferece a conjunção do poético/prosaico, sapiens/demens. Escreve Morin (2003, p. 59): “Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Homo faber, Homo ludens, Homo sapiens e Homo demens (...). Somos seres infantis, neuróticos, delirantes e também racionais. Tudo isso constitui o estofo propriamente humano” .

270 Capítulo da Bíblia católica: Romanos capítulo 13; versículo 10.

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