QUEM DISSE QUE EXU NÃO MONTA? ABDIAS NASCIMENTO, O CAVALO DO SANTO NO TERREIRO DA HISTÓRIA

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305 Que orixá por sua dimensão cosmogônica, pelas suas características de princípio dinâmico associado à Criação, a Olodumré e a todas as coisas, poderia servir de base à grande resistência que se fazia necessária frente à dominação, seja física, seja cultural e religiosa, que a escravidão impunha, do branco sobre o negro? Que orixá, mais que Exu, podia garantir a sobrevivência da identidade e a cosmovisão negras na América europeizada e cristianizada? Quem, senão Exu, para lembrar ao dominado o pacto estabelecido por Deus, Olodumaré, com a Sua Criação, aí incluindo o grupo humano, do qual, naquele momento, os africanos se achavam aviltados pela escravidão e pela barbárie branca? (RIBAS apud, MARIAN, 2017, 73).

Só um ser entusiasmado in extremis pode, a despeito de tantos ataques e ultrajes sofridos, dizer como Abdias: “Mas o sangue continua rubro a ferver, inspirado nos Orixás que nos faz crescer” (NASCIMENTO, 1983, p. 83). 5.5.3 Alacridade: a alegria de um contente Erê Expõe Sodré (2017, p. 149-150), citando, oportuna e sugestivamente, o poeta português Guerra Junqueiro: “A alegria é uma alavanca”. Nesse horizonte, efetivamente característico das místicas nascimentistas, a alegria é filha e mãe da festa – força potente da população negra em diáspora. Dessa feita, a festa, esconde/revela o que Ribeiro (1982) compreendeu como “pedagogia de resistência”; há nela dizeres e utopias, por vezes negligenciadas por olhos forâneos presos aos domínios externos (cf. PRIORE, 1994)260. A festa é golpe na dureza do crudelíssimo cotidiano, sobretudo para os povos subalternizados. “A ‘festa que espanta a miséria’ torna-se culto da potência transgressora que dobra a escassez e o desencantamento produzido pelo colonialismo” (SIMAS e RUFINO, 2018). Alegria e festa são, pois, ferramentas poderosas nas mais diversificadas produções culturais e religiosas afrodiaspóricas261. Como Ernest Bloch (2005) defende na obra O Princípio Esperança, podemos, à luz das peripécias culturais e religiosas afro-brasileiras, abdiasianamente expressas, postular o “princípio alegria/alacridade” – apanágio dos Erês/Ibejis. Mas, antes, é mister uma afirmação de base: alegria/alacridade, entendida sob a ótica afro, não necessariamente antagoniza com a tristeza ou

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Brito (2000, p.117-121) refletindo sobre a dimensão libertária da festa no Brasil colonial auxilia na compreensão da festa na obra de Priore (1994). Para o autor, “Compreender as festas do passado, sem dívida é compreender um poço de nós mesmos e reavivar as utopias de um amanha diferente”. 261 Importante salientar que também a dimensão da festa pode sofrer apropriações do sistema dominante e tornar-se instrumento de estigmatização mobilizadora do subalternizado. Joel Rufino dos Santos atento a essa artimanha de subjugação faz valiosa ressalva: “Aquilo que se convencionou chamar ‘cultura da festa’, um conjunto de comportamento e manifestações lúdicas, extemporâneas e quase infantis, quase uma segunda natureza do negro, diferenciadora com relação ao branco e ao índio. Não é difícil ver que estamos diante de um ‘discurso de atribuição’, nascido da necessidade histórica de justificar a condição de subproletário do negro no pós-Abolição.”


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REFERENCIAS BIBLOGRÁFICAS

23min
pages 349-363

CONCLUSÃO

11min
pages 344-348

5.9 A mística do morrer: o axexê do “boi de piranha” (De Exu a Oxalá

14min
pages 335-343

5.5.4 Mística da Esperança

13min
pages 314-320

5.7 Abdias virou deus

15min
pages 324-330

5.8 Exu, Ariadne do Negro revoltado

9min
pages 331-334

5.6 Por Exu Abdias duela com Drumond

5min
pages 321-323

5.5.2 O Entusiasmo do negro revoltado

2min
page 304

5.5.3 Alacridade: a alegria de um contente Erê

18min
pages 305-313

5.5.1 Rebeldia, a mística do “diabo” do Abdias

6min
pages 301-303

5.3. Mística à flor das coisas

12min
pages 292-296

5.1 Mística de encruzihada (ou rizomática

11min
pages 279-283

5.1.2 Místicas da malandragem: tem Zé, tem resistência

10min
pages 284-288

5.2. Abdias, o místico à flor dos laços

6min
pages 289-291

5.4 Mística à flor dos pratos

7min
pages 297-300

4.5 O místico de Olhos Abertos

25min
pages 266-277

3.3 Sortilégio

25min
pages 231-243

4.4.2 Quando o lutar é combater (enfrentamento

4min
pages 264-265

4.2 As funções do mito

13min
pages 249-254

4.4 Abdias, o lutador

5min
pages 257-259

4.4.1 Quando lutar é conchavar

8min
pages 260-263

4.1 O poder do mito

2min
page 248

4.3 Mito e mística: no pensar e no sonhar

4min
pages 255-256

3.2.6 Mística dos sentidos

11min
pages 226-230

3.2.5 Tambores místicos e mistagógicos

4min
pages 224-225
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