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4.4.1 Quando lutar é conchavar

E mostrando o lugar proeminente do orixá, o samba diz: “Sua cultura pelo mundo se espalhou. Energia e fé no candomblé/ Os Orixás lhe deram axé...”. Na sinopse do samba vem escrito: “Agarrado às suas raízes, mensageiro de Zumbi, tem no Candomblé sua fé. Sempre encontrou nos orixás motivação para lutar e também sempre os agradou, como manda a tradição”.

Escreve Abdias Nascimento (2016, p. 125) que a religião constitui “a fonte e a principal trincheira da resistência cultural do africano, bem como o ventre gerador da arte afro-brasileira”. Sublinha Muniz Sodré (1983, p.143): “Nas relações dos homens com os orixás, destes entre si, dos animais com os homens, do princípio masculino com o feminino, há sempre a dimensão de luta (ijá, em nagô). Na verdade, as coisas só existem através da luta que se pode travar com eles...”. E escreve ainda Sodré que Exu é chamado, dentre outros atributos, o “Pai da luta”. Contudo, a luta, na dinâmica no santo não se restringe ao duelo físico, mas, sobretudo, a um jogo que reclama inevitavelmente competências variadas.

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Diz Sodré (1983, p. 143): “Não é violência ou força das armas que entram em jogo aqui (a guerra é um aspecto pequeno e episódico da luta), mas as artimanhas, a astúcia, a coragem, o poder de realização (axé) implicados”. E diz ainda:

A luta é o movimento agonístico, o ‘duelo’, suscitado por uma provocação ou um desafio. Quando o homem toca o orum com as suas mãos sujas, quando o garoto pisa a região proibida, os orixás são obrigados a responder, dinamizando assim a existência. Igualmente, quando um babalaô (sacerdote de Ifá) diz a alguém que é necessário fazer um sacrifício (ebó) aos pés de um orixá determinado, trata-se também da provocação humana à resposta de uma entidade cósmica. A luta é o que põe fim à imobilidade: todos (orixás, humanos, ancestrais, animais, minerais) são obrigados a responder imediatamente, concretamente, ritualisticamente, às provocações, aos desafios, e assim darem continuidade à existência.

4.4.1 Quando lutar é conchavar

A luta pela sobrevivência e invenção da população negra no cativeiro e no pós-abolição não se baseia, mormente, num enfrentamento aberto ao poder dominante. Resistência e rebeldia compõem a vida subalternizada; e ambas são formas diferenciadas de luta. Nas palavras de Brito (2018, p. 80), “a condição básica para se compreender as atitudes e sentimentos, os valores e as normas que norteiam as ações dos escravos é superar o mito da ‘coisificação do escravo’ e o seu contraponto, a ideia do escravo sempre rebelde”.

Parafraseando o poeta português Fernando Pessoa, podemos dizer a respeito da trajetória de Abdias Nascimento (o que é extensivo à população negra, de forma geral): a vida é trincheira, e tudo

é trincheira! A vida doce da pequena Franca paulista, onde nasceu Abdias, transmutou-se num campo de batalha de guerra sem trégua para o negro revoltado. Viver tornou-se sinônimo de guerrear. Gonçalves Dias ( apud BOFF, 2000, p. 120) já advertia para toda humana criatura aquilo que para o negro (e qualquer negro) tornou-se um dogma de fé. Diz o poeta: “A vida é um combate, que os fracos abate, que os fortes e os bravos só quer exaltar”. Nas palavras de Boff (2000, p.120), dessa situação existencial inescapável de combate emerge a figura do “herói/heroína: o lutador” . E, na sequência, explicita Boff acerca da batalha humana sem trégua no palco da vida: “Luta contra os obstáculos que se antolham na caminhada de sua realização. Luta no plasmar da vida e do mundo conforme seus sonhos e suas metas. Nada do que realmente vale se alcança sem esforço e sem fatigante trabalho” .

Expusemos na introdução de nossa obra que, a nosso juízo, Abdias construiu sua existência sob o signo do que chamamos “paradigma palmarino”, o que equivale dizer que o lutar/batalhar pela libertação efetiva e integral da população negra tornou-se o mote de sua longuíssima trajetória. E quando falamos luta, entendemos tanto o confronto radical, direto e implacável quanto os sem número de estratégias de adaptação e sobrevivência.

Nem sempre lutar significou para o negro atacar diretamente o sistema opressor escravista/racista; mormente, lutar implicou “conchavar”, conforme confessa Abdias de forma surpreendente à jornalista e biógrafa do negro revoltado, Sandra Almada (2009). Narra a jornalista: “Certa feita, enquanto conversava com o professor Abdias em sua casa, ele me disse, referindo-se à sua vida política: ‘Conchavei muito’. O tom era quase confidencial, e um silêncio reflexivo seguiuse àquela frase dita em voz baixa” (ALMADA, 2009, p. 18).

Continua Almada:

Na semana seguinte, observando algumas fotos do ativista, pude dimensionar a envergadura daquela figura pública. O sul-africano Nelson Mandela e os brasileiros Leonel Brizola e Darcy Ribeiro foram, entre outros – e cada um a seu modo e em momentos diversos –, parceiros de lutas, de resistência, de utopia. (ALMADA, 2009, p. 18).

Nas palavras de Gates Jr. (2014, p. 76), Abdias Nascimento “é amplamente reconhecido como o maior ativista negro brasileiro. Havia até quem o chamasse de o Nelson Mandela do Brasil”. Destaca Almada (2009, p. 17):

Seu nome figura ao lado de Martin Luther King, Angela Davis, Aimé Césaire, Toussaint Louverture, entre várias outras grandes lideranças afrodescendentes que vêm marcando história e fazendo ecoar a luta negra, em âmbito internacional, de forma eloquente. Seja no seu discurso memorialista, seja pesquisando outras fontes

de consulta, não foram poucas as ocasiões nas quais a alma potencialmente revolucionária de Abdias se apresentaria como fadada a aceitar sempre novos desafios, a comprar muitas outras brigas.

Figura 19: Abdias Nascimento e Nelson Mandela. Fonte: http://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2018/07/abdias-com-mandela.jpg

O lutar e o conchavar na trajetória de Abdias podem ser compreendidos como duas facetas de uma mesma moeda; ou dizendo de outra maneira, o conchavo é luta com roupagem “inocente” e, aparentemente, despretensiosa. Nessa direção, ensina Paulo Freire (1992, p.43) em Pedagogia da esperança: “A luta não nega a possibilidade de acordos, de acertos entre as partes antagônicas. Em outras palavras, os acertos e os acordos fazem parte da luta, como categoria histórica e não metafísica”. E o mesmo educador comenta oportuna e sugestivamente que o passado/presente escravocrata não pode ser pensado de forma simplista e reducionista, negando, desse modo, a capacidade e inventividade do negro de lutar muitas vezes, não com armas ou balas de canhão; mas, sim, mediante manhas e artimanhas.

Mas o passado escravocrata não se esgota apenas na experiência do senhor todopoderoso que ordena e ameaça e do escravo humilhado que ‘obedece’. Para não morrer, mas na relação entre eles. E é exatamente obedecendo para não morrer que o escravo termina por descobrir que ‘obedecer’, em seu caso, é uma forma de luta, na medida em que, assumindo tal comportamento, o escravo sobrevive. E é de aprendizado em aprendizado que se vai fundando uma cultura de resistência, cheia de ‘manhas’, mas de sonhos também. De rebeldia na aparente acomodação [grifos do autor] (FREIRE, 1992, p.108).

O biógrafo de Abdias, Éle Semog, em marco de 1998 encontrou-se com Abdias e conversaram sobre como o Teatro Experimental do Negro (TEN) conseguiu adentrar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro para a apresentação da peça O Imperador Jones, no dia 8 de maio de 1945. Tal ocorrência

chama a atenção e causa perplexidade pelo fato de o espaço do referido teatro representar como que o conclave da elite branca da época. Pobres e negros entravam para a limpeza ou para quaisquer outras prestações de serviços de baixa remuneração e valor social. Dessa feita, a entrada do TEN no Teatro Municipal constituía não somente a realização de um fato impensável à época, mas, sobretudo, a reverberação de um processo de agenciamento negro na ordem da luta, da negociação e do conchavo. E o próprio Abdias relata:

Uma comissão, formada por vários setores do teatro, foi pedir ao Getúlio Vargas proteção ao teatro, leis especiais, uma política, enfim... E o Getúlio... Não sei, realmente eu não sei por quê... Porque eu era o único negro? Por causa da minha juventude? Só sei que ele me deu uma atenção muito especial. Me levou para um canto lá do palácio e ali, numa janela, ele quis saber mais das minhas idéias, o que era esse Teatro Negro e coisa e tal... E eu expus. Mas eu devo ter exposto de uma maneira muito subjetiva, ou muito lírica, sei lá; porque ele falou mais ou menos assim: ‘Ah, mas Abdias, essas suas idéias são muito abstratas...Tinha que ter um projeto mais concreto...’ Foi nessa hora que eu falei: ‘Bom, o concreto nosso é a estréia’. Queríamos estrear no Teatro Municipal. Expliquei o porquê. Tinha uma espécie de símbolo, de poder entrar lá na cidadela do racismo, onde o negro não entrava nem como artista, nem como platéia, só como faxineiro. E ele, para minha surpresa, não só apoiou a idéia, como imediatamente telefonou para o prefeito[...] Mandou que imediatamente se reservasse a data que eu escolhesse para a estréia do Teatro Negro. Na mesma hora. (SEMOG e NASCIMENTO, 2006, p.132-133).

Reis e Silva (1989) em Negociação e conflito buscam no marco da historiografia brasileira romper com a ideia de uma escravidão absoluta e redutora da inventividade escrava e também daquele segmento historiográfico segundo o qual o escravizado aparece como herói absoluto. Os autores procuram captar as tramas alteritárias possíveis entre esses dois espaços: possibilidades, limites, interdições e, simultânea e paradoxalmente, brechas sistêmicas. Nessa perspectiva, o caráter violento e truculento da escravidão não é capaz de extinguir possíveis agenciamentos da população escrava; mas também, os sem número de inventividades e protagonismos não faz do escravizado um permanente herói ou vencedor. Perdas e ganhos, avanços e recuos compõem o espectro da vida escrava e da população negra de ontem e de hoje. O heroísmo, nesse registro, consiste muito mais no “saber jogar”, consoante o jogo de capoeira. Reis e Silva (1989, p. 11) na obra citada consideram, fortemente,

Atitudes às vezes paradoxais na aparência, mas atitudes concretas, pois a vida concreta do escravo era algo como um jogo de capoeira – luta, música e dança a um só tempo. Quilombolas que reivindicam liberdade para ‘brincar, folgar e cantar’; religiões de santos guerreiros e santos de paz.

Esses autores também asseveram:

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