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CONCLUSÃO

CONCLUSÃO

Para falarmos em nossa tese do enlace místico da díade Abdias↔Exu no âmbito da

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“patronagem mística” lançamos mão da oportuna e bem-vinda metáfora “cavalo do santo”, cara ao povo do axé. Considerar, a partir da multifacetada trajetória de Abdias, a relação devoto↔divindade fazendo uso do cavalo como representação imagética da vivência religiosa afro-brasileira, reverbera incorporação de potências que subvertem o cânone do pensar antropocêntrico e logocêntrico do Ocidente de brancura. O cavalo carrega consigo simbólicas de potências e movências do corpo. Na relação Abdias↔Exu nossa pesquisa colheu narrativas na ordem do agenciamento e do empoderamento. A vivência com os orixás, em geral, e, particularmente com Exu, o dinamizador por excelência, encheu a vida do negro revoltado de viço e poder. Nesse sentido, Exu constitui a força nutriz e motriz e da longeva e plurifacetada trajetória de Abdias. Verificamos e confirmamos em nossa investigação o que tínhamos como hipótese: a presença de Exu se espraiou no conjunto da vida do místico-ativista (poesia, teatro, pintura, política etc). Por essa razão, podemos dizer que onde esteve Abdias lá estiveram os orixás, com especial destaque, Exu, o dinamizador – a divindade mais próxima dos humanos – o excelso patrono. Para demonstrarmos que tal vivência de enlace com o sagrado faz eco à trajetória da negra gente, no primeiro capítulo do trabalho abordamos práticas místicas em estado germinal na crudelíssima travessia atlântica. O primeiro capítulo intitulado “Deuses diaspóricos e a gênese de uma mística de protest-ação na encruzilhada atlântica” trouxe a compreensão segundo a qual seres humanos e divindades são, no pensar afro, realidades que não se dissociam. Trazendo memórias em seus corpos, a população negra respondeu de forma resiliente e inventiva às agruras infernais dos tumbeiros ensaiando já “em pleno mar” uma história de heroísmo a partir de peripécias culturais e religiosas. Numa leitura simbólica, captamos o Atlântico como encruzilhada, isto é, território de Exu; logo, lugar das possibilidades inventivas. No segundo capítulo, intitulado “Abdias Nascimento: biografia mística do herói de mil faces”, buscamos acessar, no limite de nossa tese, a biografia de Abdias sob o enfoque do sagrado. A partir do material colhido, verificamos o lugar central que a experiência religiosa ocupou na vida do intelectual e ativista negro, a ponto de sua biografia não se justificar fora dos referencias religiosos africanos e diaspóricos. Exu, de modo especial, exerceu, pelo que coletamos na pesquisa, papel indispensável na trajetória de do negro revoltado. Desse modo, constatamos que a trajetória heroica de Abdias foi nutrida, movida e significada pelo sagrado, nomeadamente Exu. Por essa razão, conforme comprovamos, seu heroísmo multifacetado não resultou de competências ou atributos

individuais, mas de companhias sobrenaturais sem as quais o negro revoltado não chegaria onde chegou. Essa convicção acerca do poder religioso é colhida, dentre outras fontes, no testemunho do próprio Abdias. No terceiro capítulo, intitulado “Só Exu vence a demanda colonial, desamarra o corpo e solta a língua: Sortilégio do Dr. Emanuel/Abdias”, expusemos como Abdias, pelo sagrado, responde à colonialidade de poder cujo projeto de dominação invizibiliza/oculta corpos e sequestra a fala/língua. Sublinhamos o lugar sagrado conferido à palavra e ao corpo no universo africano. Essa compreensão vai atravessar os arranjos religiosos afro-brasileiros e também, conforme expusemos, a vida de Abdias. A saga do Dr. Emanuel na peça Sortilégio é tomada como exemplo-chave do papel libertador de Exu – libertação do corpo e da fala. “Abdias, o Dom Quixote irado e o místico de olhos abertos” foi o título do quarto capítulo. Tratamos de forma concisa a trajetória de Abdias sob o enfoque simbólico. A experiência travada com o orixá Exu dinamizou o corpo do negro revoltado, e sua luta vivida numa espécie de quixotismo quilombista seguiu mergulhada num tipo de mística que o fez ver o invisível das coisas e todas as coisas a partir do invisível. Os mesmos olhos que se abriram para o sagrado das coisas foram os olhos atentos à leitura crítica dos processos históricos de massacre da população negra. A expressão “Olhos abertos”, nesse horizonte, significa uma competência mística que não separa o sagrado do profano, a fé da sociedade, a experiência dos orixás dos processos libertários da população negra. No quinto capítulo, intitulado “Exu Pelintra e as místicas nascimentistas: místicas negras importam”, refletimos sobre a experiência mística de Abdias, sobre sua exemplaridade e sobre o que tal experiência credibiliza em termos de práticas ou peripécias culturais e religiosas partejadas no contexto de diáspora. Consideramos que a experiência religiosa de Abdias não apenas faz eco às peripécias culturais e espirituais da população negra como as credibiliza enquanto potências produtoras de resistência, resiliência e encanto inventivo. Pelas encruzilhadas percorridas no desenvolvimento de nossa tese, podemos, nesta parte final, dizer que conseguimos confirmar nossas hipóteses. Religiosidade, espiritualidade ou místicas compuseram a saga da população negra desde a travessia atlântica, constituindo apetrechos ou municiamentos potentes. Nesse sentido, acessar a história da população negra nas Américas implica levar a serio a religiosidade enquanto fator de sobrevivência, resistência e inventividade. A partir da trajetória de Abdias verificamos que se não podemos negligenciar o lugar social e o lugar epistemológico do sujeito do discurso, de igual modo, não podemos descuidar do lugar de potência. Desse lugar mistérico emergem agenciamentos e empoderamentos capazes de estuporar e estilhaçar cânones enrijecidos, tanto da direita quanto da esquerda.

Outra hipótese confirmada é a de que Exu foi significado por Abdias como fonte inesgotável de força e poder. Exu fez-se presença indispensável na vida e na obra do ativista. Pelo que colhemos em nossa pesquisa, para Abdias, era Exu que abria os caminhos, que o enchia de um “poder indestrutível”, que lhe dava a palavra certa, que desbancava o adversário, que conferia um viés epistemológico etc. Numa palavra, Abdias praticou Exu no domínio público. Podemos dizer que Abdias fez de sua vida uma liturgia agradável aos orixás; fez de sua palavra um ebó entregue a Exu, e de seu corpo, o “punho” do santo. Abdias, desse modo, existencializou Exu – “incorporou” o santo no “terreiro da história”. Mas, conforme um provérbio calabari, “são os homens que tornam os deuses importantes”. Nessa perspectiva, se Exu ajudou Abdias, o negro revoltado também ajudou o orixá; o fez mais importante e conhecido. Religiosamente falando, Abdias é cria do Rio de Janeiro, mais especificamente do Morro da Mangueira e da Baixada Fluminense. Abdias tirou os orixás dos confinamentos da periferia e os levou ao coração do mundo. E como um Prometeu, “roubou” o fogo dos terreiros e distribuiu à humanidade, pretos e brancos. Disse de variados modos que podemos acessar Exu na religiosidade, na política, na estética, na erótica, na dramaturgia, na poesia, na dança, na epistemologia etc. Dessa feita, se Exu foi para Abdias um libertador, o contrário também é verdadeiro.

O negro revoltado não apenas vivenciou a religiosidade no plano cívico de forma sui generis, mas foi, ao mesmo tempo, um intelectual negro que, cônscio de seu lugar social, racial, religioso e epistêmico conferiu à religiosidade/espiritualidade (mística) afro um estatuto epistemológico de real grandeza que cruzamos em nossa obra com o que Rufino e Simas nomearam de epistemologias das macumbas. Para Abdias, candomblé, umbanda e toda peripécia religiosa africana e diaspórica escondem/revelam dizeres, saberes e poderes. Acessar, pois, a biografia de Abdias sob as lentes do sagrado, nomeadamente Exu, não apenas nos remete a uma experiência religiosa de unidade cósmica na qual os reinos animal, mineral e vegetal se interpretam e se retroalimentam numa cadeia viva e dinâmica de forças, quanto nos conduz a pensar o cavalgar (no Ayê e Orun) como questão de mobilidade expansivo-transgressora suficientemente capaz de transgredir quaisquer limites e, consequentemente, conquistar e assumir quaisquer espaços de poder e de prazer no corpo social. Desse modo, a experiência mística cristalizada no enlace Abdias↔Exu apresentou-se como fator de agenciamento, protagonismo e empoderamento. Por essa razão, a trajetória plurifacetária de Abdias reverbera o dado místico como condictio sine qua non do heroísmo. Em outros termos, no rastro da experiência africana e afrodiaspórica, a religiosidade/espiritualidade constitui na biografia de Abdias a sua arma mais poderosa.

A presença de Exu nas encruzilhadas da vida o fez um ser apetrechado ou municiado. A experiência da fé constelada na competência ubiquitária de Exu constitui-se em ferramenta para o enfrentamento, para a luta e para o combate, não somente contra o racismo, o genocídio da população negra e o mito da democracia racial, mas também para a recuperação e afirmação dos valores civilizatórios africanos e diaspóricos sequestrados. Não encontramos em nossa pesquisa nenhuma obra (tese, dissertação, artigo ou livro) que tenha se dedicado a abordar a trajetória de Abdias sob o viés da religiosidade, embora essa dimensão seja quase sempre considerada. Contudo, a nosso juízo, o mundo místico de Abdias é, mormente, tratado de forma periférica ou marginal. Dizendo de outro modo, é como se a religiosidade fosse um apêndice ou nota de rodapé na trajetória do ativista. Nossa tese, nesse sentido, traz consigo algumas contribuições que julgamos fundamentais: No bojo da Lei Federal 10.639, colaborar no entendimento do valor de biografias negras como fonte histórica. Nesse sentido, o trabalho de resgatar e valorizar histórias de vidas traz valiosos materiais que muito tem a dizer do Brasil e para um Brasil que se deseja mais pulsivo e plural. Ler essas biografias sob o enfoque religioso, pode ser um auspicioso campo de trabalho para o cientista da Religião que deseje levar a serio a religiosidade vivida na cotidianidade e, quase sempre, no anonimato.

A propósito, para além de Abdias, há um sem-número de biografias místicas soterradas que merecem trabalhos corajosos para que venham à baila. E quantas peripécias culturais e religiosas potentes tem o Brasil, para além do candomblé e da umbanda, que a trajetória de Abdias pode credibilizar?

Pensamos que outra contribuição que nossa tese oferece é o fato de eleger um não iniciado no candomblé, nas palavras do próprio Abdias, um leigo. Importante investigar como o candomblé e demais produções religiosas afro-brasileiras, para além dos limites dos terreiros, pode significar trajetórias. Quando lidamos com biografias, podemos investigar como as pessoas sentem, lidam e interpretam seus sistemas religiosos. Nossa tese, nesse sentido, abordou Exu sob as lentes de Abdias. O tema de nossa tese poderia ser: “Semânticas do orixá Exu segundo Abdias Nascimento”. A religiosidade de Abdias, embora beba nas fontes da afro-brasilidade, é única, singular e irrepetível. Investigar, no âmbito da Ciência da Religião, tais processos de subjetivação do sagrado é uma obra de singular valor. Nossa tese também contribui para o resgate da autoestima da população negra no sentido de conhecer seus heróis e seus místicos, seus caminhos ou encruzilhadas espirituais. Julgo de grande importância, por exemplo, fazer entender que as religiões afro-brasileiras, mediante outras lógicas e

racionalidades, produzem seus mestres da espiritualidade com práticas promotoras de agenciamento, empoderamento, sapiência, saúde e sentido para a vida. No que se refere ao orixá Exu, nossa tese, a partir de Abdias, contribui não apenas para a população negra ou para o povo do candomblé, mas para todo o Brasil no sentido de se apropriar da simbólica de Exu não apenas como signo religioso stricto sensu, mas também como instância antropológica, pedagógica, psicológica, epistemológica etc. Abdias confere a Exu o status de grandeza civilizacional. A encruzilhada, nesse sentido, assume um lugar de potência epistemológica. Entendemos que nossa tese abre caminhos para futuras pesquisas sobre o mundo místico de Abdias. Não foi possível, no limite da pesquisa, aprofundar a rica produção pictórica do ativista. Acredito que outras pesquisas possam, de forma mais delimitada, abordar obras que trazem consigo a subjetividade e o inconsciente de um místico para o qual pintar era forma sublime de comunhão com as divindades. Abdias chega a dizer que pintava como se estivesse em transe. A obra Axés do sangue e da esperança (orikis) é, a nosso juízo, um Tratado de Mística Afro-brasileira que merece ser investigado com o mais refinado rigor. Por fim, a maior dificuldade da tese, por incrível que pareça, foi abordar a vida de um homem tão vasto, tão polifônico, tão multifacetado e tão exúnico como Abdias. Acho que Abdias Nascimento

é encruzilhada em pessoa – um aurum non vulgi; non vulgi sed complexus! Quanto à pretensão confessada na introdução da tese de recompor alguidares em minhas letras inventadas, não sei se cheguei a bom termo. Mas, se as letras inventadas neste trabalho mirongado não forem suficientes para reconstituir, pelo menos alguns alguidares quebrados pela colonialidade e pelo escravista de ontem e de hoje, quando eu morrer... que meu corpo se transforme em alguidar Que seja eu os alguidares que quis recompor; e nas letras enfarofadas de meu lombo preto eu possa (intransferivelmente) ofertá-lo com sorriso largo de “contente erê, ao Deus Pai/Mãe de todos nós. Diante do Celeste direi cantando e dançando das místicas que fizeram do meu povo uma gente altiva, uma raça nobre, um quilombo feliz; também direi que cada palavra por mim escrita (com a lâmina afiada da ancestral navalha), agora entremesclada com marafo e dendê é, sim, meu corpo e meu sangue, e que minha vida vivida na carne não foi mais valiosa e nem mais saborosa que os ebós de meus versos que no reverso preparou padês para ofertar. Findo, pois, com o sentimento interior de ter absorvido pouco, apreendido pouco e de ter dito pouco. Mas, é hora de findar... “cantar para o santo subir”. E se o assunto é encruzilhada, não se pode ficar quando a hora é de partir. Por isso, faço minhas as palavras de negro revoltado: “... tenho muito a caminhar, muita encruza a farejar”. E conforme meu sapientíssimo avô, Silvino: “Seja lá que santo for, ora pro nobis!”.

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