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5.5.1 Rebeldia, a mística do “diabo” do Abdias

Mediante a comida verifica-se que o mundo da cultura e o mundo do santo são realidades intercambiáveis. Declara Risério (1996, p. 69) que “os ingredientes da chamada ‘comida de santo’ , como se diz no Brasil, não são estranhos à mesa humana. Não há uma culinária apartada, comida ou bebida privativa dos deuses”.

A arte do cozinhar podia, inclusive, ser via de alforria para alguns escravizados, o que atesta o prestígio do ofício em determinados contextos da escravaria (FREIRE, 2006, p. 542).

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Exu é, por antonomásia, um orixá humanizador, o que implica pensar quer conhece o homem desde dentro; e conhece porque sem ele não haveria existência e a vida sequer poderia ser pensada. Exu está presente, dentro e fora; isso o faz o mais humano dos orixás. Em se tratando de processo humanizador e civilizacional em chave nagô, a comida/alimento tem lugar de incalculável e imprescindível valor, pois sem comida não há nem humano e nem divindade.

O sistema nagô está assentado numa mística gastronômica e a cozinha é locus de enunciação fundamental. Nas palavras de Lody (1998, p. 26), “A comida é, antes de tudo, um dos mais importantes marcos de uma cultura, de uma civilização, de um momento histórico, de um momento social, de um momento econômico”. Completaríamos, dizendo: de um momento mistagógico também. Escreve Agossou (1977, p. 49):

O fon está tão apegado à vida que ‘viver’ se diz em sua língua: ‘comer a vida’. Quando lhe acontece um fenômeno agradável, ele diz que come a vida. Vale dizer: tudo quanto contribui ao nascimento, desenvolvimento e conservação da vida é uma ‘manducação vital’.

Não sem razão, o padê (comida) possibilita a vida pulsiva do candomblé; não aleatoriamente Exu é o primeiro a comer e também não é por acaso que nas peripécias culturais e religiosas afrobrasileiras místicas são forjadas no preparar e no servir dos pratos. No PEL258 exibi Abdias a Exu: “bebo em teu alguidar de prata...”. E no poema/oriki “Axexê em Oxalá” o místico diz: “Comi do teu arroz/ cozido ao sangue da paz que me filia a ti, Oxalá[...]” (NASCIMENTO,1983, p. 101).

5.5 Quatro virtudes das místicas nascimentistas: rebeldia, entusiasmo, alacridade e esperança

5.5.1 Rebeldia, a mística do “diabo” do Abdias

Rebelar-se é, sob a ótica cristã, um posicionamento diabólico. O diabo é o que se rebela e rompe com a ordem estabelecida. Viver a fé nos orixás no contexto da moral e do imaginário cristão,

258 Ver introdução da nossa obra.

inevitavelmente impôs a Abdias um confronto com o sistema religioso do poder. Rebeldia, em Abdias, significou não abaixar a cabeça, não entrar pela porta dos fundos e abominar qualquer tipo de servilismo. Escreve Albert Camus (2017, p. 24) em O homem revoltado: “O revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se rebela. Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta”.

Abdias recebeu desde criança no solo francano a formação católica, porém, conforme vimos em sua biografia, que na fase adulta de sua vida sofre um processo de conversão para o candomblé. Fato ainda não exposto que Abdias Nascimento (1976) narra que, em sua juventude desejou ser padre, porém percebeu o lugar servil que a estrutura eclesiástica destinava aos negros. Em virtude do ambiente em que nasceu, tornou-se como que um católico compulsório, “aulas de catecismo, primeira comunhão, toda aquela formação católica tradicional...”. E continua:

Mas foi muito mais tarde que me senti bastante motivado para a vida monástica. Procurei inicialmente a Ordem dos Franciscanos. Eram uns alemães racistas: me aceitariam caso eu permanecesse como ‘irmão leigo’. Respondi: ‘Ser empregado padre? Essa não!’. Porém não desisti, fui aos Agostinianos; estes agora eram espanhóis. A mesma estória se repetiu. Me aconselharam humildade cristã e outras virtudes que eles não praticavam comigo. Posteriormente, muito mais tarde, iniciando-me no candomblé, foi que voltei a dedicar-me seriamente à religião (NASCIMENTO, 1976, p. 27).

Conforme o exposto, Abdias rejeita ser “empregado de padre”. Pelo relato acima, podemos constatar da parte de Abdias um corte na ordem dos valores propalados e legitimados pela tradição cristã: amor, perdão, paciência, resignação, sofrimento, obediência, humildade etc. A esses valores socialmente aceitos e compartilhados como ideais de vida e civilidade, Abdias erige ao patamar de excelência axiológica para negra gente subalternizada, valores diametralmente opostos ao regime cristão: revolta, ingratidão, luta, intrepidez, valentia, altivez etc.

Dessa feita, o negro revoltado, fez-se, por forças das circunstâncias, negro ingrato, desaforado, abusado, malcriado, irado, e a lista segue ad infinitum. Diz Camus (2017, p. 24): “O escravo, no instante em que rejeita a ordem humilhante de seu superior, rejeita ao mesmo tempo a própria condição de escravo”.

Abdias captou a necessidade, no horizonte do projeto libertário, de uma descolonização axiológica. Em Sortilégio II (NASCIMENTO, 1979, p. 135), doutor Emanuel não tem culpa nem remorso (valores cristãos) por matar a branca Margarida; mas, ao contrário, põe na boca de Emanuel a senha de sua liberdade: “Eu matei Margarida. Sou um negro livre!”. No poema “Olhando no

espelho” o negro escreve: “[...] enforcaremos os usurpadores de nossa infância” (NASCIMENTO, 1983, p. 50). E no poema “Peregrinação à Gorea” o negro, em contranarrativa, expõe:

[...]chego aos teus ruivos infernos/ onde um Cristo pálido/ nos oferece uma hóstia de fel/ enquanto o látego lateja nossas costas/ lateja nossa alma/ até nosso espírito subir/ aos céus da dor suprema/ à pontaria dos canhões civilizadores/ sorvemos o cálice de sangue/ na eucaristia/ de nossa própria agonia transubstanciada[...] (NASCIMENTO, 1983, p. 73).

Vale dizer que, cuidar das coisas do santo no domínio público, conforme a sacerdotisa do candomblé, Mãe Senhora, disse ao negro revoltado, conduziu Abdias, no contexto de um catolicismo hegemônico e exclusivista, a tomar posições e assumir publicamente valores antagônicos aos legitimados pelo status quo dominante259. Com a mesma altivez e orgulho que Abdias assumia ser negro de alma negra, bem como os valores culturais africanos e diaspóricos, com a mesma intensidade e intrepidez assumiu publicamente (teatro, escritos, pintura, política, parlamento etc.) a fé nos orixás e os saberes e poderes advindos das potências dos mesmos.

Podemos dizer que, Abdias não tergiversou em “esfregar” seus orixás, de modo especial Exu, na face cristã e branca da sociedade brasileira; sociedade, a propósito, estruturada sob o binarismo de oposição: verdade versus mentira, bem versus mal e Deus versus diabo; e nessa direção, podemos estender a antinomia entre branco (civilizado/cristão) versus negro (selvagem/macumbeirofeiticeiro). É nesse contexto social e imaginal separatista que Exu é associado pelas lentes cristãs às forças das trevas (o diabo e suas artimanhas) em oposição às forças da luz e da salvação (Jesus, os anjos, os santos e as santas). Desse modo, pensar o Abdias como anticristo significa dizer que, dentro desse paradigma de oposição, estar do lado dos orixás e, especialmente de Exu, inevitavelmente, implicava estar do lado do diabo e a seu serviço.

Se Abdias manteve em sua trajetória relação positiva, de diálogo e trocas com vertentes do catolicismo do Brasil, fruto, assim cremos, de sua herança familiar, com o paradigma hegemônico a serviço do genocídio da população negra, o místico ativista, em especial na afirmação e visibilização

259 No ano de 1997, na revista do seu gabinete de senador, intitulada Thoth, Abdias Nascimento (1997, p. 10) faz duras críticas ao primeiro discurso do então papa João Paulo II em sua visita ao Rio de Janeiro. Disse o papa referindo-se aos afro-brasileiros: “[...]. estes brasileiros de origem africana merecem, têm o direito e podem, com razão, pedir e esperar o máximo de respeito aos traços fundamentais da sua cultura a fim de que, com esses traços, continuem a enriquecer a cultura da nação, na qual estão perfeitamente integrados como cidadãos a pleno título”. Abdias em resposta escreve: “Vimos anteriormente como Dom Lucas Moreira Neves definiu a cultura africana: berimbau, atabaque e estampas afros – puro folclore. E o papa arremata o conceito salientando o único direito que reconhece aos africanos no Brasil: o de continuar enriquecendo a cultura da nação com ‘traços’ da cultura afro-brasileira. Mais grave, o papa nega a legitimidade de nossa luta por direitos de cidadania alegando que já os exercemos ‘a pleno título’”.

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