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4.4.2 Quando o lutar é combater (enfrentamento
from QUEM DISSE QUE EXU NÃO MONTA? ABDIAS NASCIMENTO, O CAVALO DO SANTO NO TERREIRO DA HISTÓRIA
by IPEAFRO
Os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo, se situando na sua maioria e a maior parte do tempo numa zona de indefinição entre um e outro pólo. O escravo aparentemente acomodado e até submisso de um dia podia tornar-se o rebelde do dia seguinte, a depender da oportunidade e das circunstâncias. Vencido no campo de batalha, o rebelde retornava ao trabalho disciplinado dos campos de cana ou café e a partir dali forcejava os limites da escravidão em negociações sem fim, às vezes bem, às vezes malsucedidas. Tais negociações, por outro lado, nada tiveram a ver com a vigência de relações harmoniosas, para alguns autores até idílicas, entre escravo e senhor. Só sugerimos que, ao lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos (REIS; SILVA, 1989, p. 7).
4.4.2 Quando o lutar é combater (enfrentamento)
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Ogum, irmão mítico de Exu, é um Orixá caro no imaginário afro-religioso de Abdias Nascimento. A saudação de Exu é ‘laroiyê’, a de Ogum é ‘ogunhiê’; Abdias cria a expressão/saudação ‘larogunhiê’. Ata, desse modo, na expressão inventada, os irmãos míticos numa única e mesma emissão de voz – saudação uníssona. E para o Ogum guerreiro produz também um poema/oriki. Os versos, embora não tragam muitas referências semânticas a Ogum, são férteis em referências a ‘luta’, ‘bravura’, ‘guerra’, etc., elementos atribuídos à divindade, além de finalizar com a saudação yorubá ao orixá ferreiro, ogunhiê (BARBOSA, 2009, p. 170).
O poema/oriki “Agadá da transformação” é paradigmático no que se refere à dimensão da luta concebida sob o prisma do enfretamento ou irrecusável e intransferível conflito. Agadá, espada de Ogum, diz Abdias, “tem uma forma diferente da espada convencional” (NASCIMENTO, 1983, p. 105). Pela insígnia ou ferramenta do orixá pode-se, de imediato, se ter uma noção de sua função enquanto guerreiro, desbravador – lutador220. Destaca Barbosa (2009, p. 168): “A espada de Ogum é o elemento primordial do Orixá. Forjada em metal, ela possui funções bélicas...”.
Depois que Exu é despachado, Ogum é o primeiro a ser saudado; também ele tem a função de abrir os caminhos, expediente que o aproxima do agir de seu irmão mítico Exu. “Quando Ogum se manifesta no corpo em transe de seus iniciados dança com ar marcial, agitando sua espada e procurando um adversário para golpear” (VERGER, 1997, p. 94).
Importante assinalar que os deuses oferecem modelos de conduta aos fiéis; são, pois, figuras exemplares. “O arquétipo de Ogum é o das pessoas violentas, briguentas e impulsivas, incapazes de perdoar, as ofensas de que foram vítimas” (VERGER, 1997, p. 95). São também pessoas que são lutadoras que não abandonam seus sonhos e ideais; pessoas que combatem o bom combate. Nesse
220 No Rio de Janeiro Ogum é sincretizado com o intrépido guerreiro São Jorge que, montado em seu cavalo, vence o dragão com uma lança (Cf. VERGER, 1997, p. 94).
sentido, se o assunto é batalha ou se a necessidade é de guerrear, deuses belicosos são, sem embargo, bem-vindos.
Para Ogum são cantadas louvações que falam de seus feitos guerreiros e da sua força hercúlea... “Ogum é o orixá que tem o ferro como elemento primordial, por isso é o responsável pela transformação do ferro em ferramentas usadas na agricultura, o que lhe confere característica de civilizador. Também é produtor dos instrumentos utilizados na caça, assim como na guerra, enfim, ações que são fundamentais para a manutenção e sobrevivência da comunidade” (BARBOSA, 2009, p. 167).
Dizer-se “filho ou filha de Ogum” pode, sobretudo em tempos de embate, significar sinal de poder, bravura e disposição para enfrentamento. Conforme Augras (1980, p. 6-107), não se pode negligenciar “o prestígio que o santo confere a seus filhos”. E ainda diz: “O santo confere um certo status”. A companhia desses agentes sobrenaturais, como defendemos em nossa tese, engendra segurança e vigor para a vida e para a luta. A relação com o santo reclama um processo de identificação em que o modo de ser do santo é capaz de plasmar o modo de ser do devoto; não apenas gerar como também estimular, respaldar e justificar. Ilustra Bastide (2001, p. 173):
A luta racial só pode influenciar as linhas já traçadas pela tradição ancestral, ela não abre propriamente novas vias. Se os negros se serviram de Ogum para resistir ao regime servil, foi porque Ogum, na mitologia que tinha transportado da África, era o deus da guerra e das armas brancas.
Ogum é, pois, o “senhor da faca” (VERGER, 1997, p. 94), aquele que domina o ferro e, portanto, os instrumentos para a civilização e para a guerra, o que tende a agradar aos deuses e aos homens221. E nesse poema de explícito chamamento ao combate a figura do orixá Ogum assume a dianteira do embate; contudo, divindade e humanos estão imbricados numa mesma e única batalha de libertação/transformação da população negra. Lélia Gonzales (In: NASCIMENTO, 1983), na introdução de Axés, assim se exprime:
Empunhando o agadá, ‘obrigação a Ogum e Ifá’, o griot/guerreiro conclama seu povo a transfigurar o tempo do chorar e reclamar em tempo de afirmação do próprio ser, através da luta semeada com decisão, ampliada ‘com ardor e paixão’, às custas da ‘incompreensão/do inimigo ou do irmão’. Pois só o ser-em-luta é capaz de se desvencilhar das armadilhas do louvor e do egoísmo, do desejo de glória ou do medo da morte, todas elas armadilhas, sobretudo a última ‘do insensível mundo branco’ (NASCIMENTO, 1983).
221 Ver mito narrado por Prandi (2001, p. 86-87).