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5.1.2 Místicas da malandragem: tem Zé, tem resistência

Carlos Moore questiona Abdias (com 90 anos) em entrevista indagando sobre o porquê Abdias candomblecista não conseguia se desvencilhar de sua herança católica, supondo ser incompatível a crença no candomblé e a herança católica.

Você é um homem religioso, adepto do candomblé, você se criou dentro do catolicismo; o catolicismo nunca saiu de você; suas referências sempre têm algo de católico dentro. Como é essa convivência entre as tradições africanas e o catolicismo? Como você vive isso? São coisas contrárias...

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Abdias, responde: “Será que são contrárias? Penso que não; são complementares...”. Advertem, oportunamente, Simas e Rufino (2018, p. 69): “Não custa lembrar que a incorporação de deuses e crenças do outro é vista por muitos povos como acréscimo de força vital; e não como diluição dela ou estratégia pensada com a frieza dos devotos da razão”.

5.1.2 Místicas da malandragem: tem Zé, tem resistência

Conforme Augras (1977), Zé Pelintra é o “patrono da malandragem” e, portanto, aquele que pode auxiliar os seus nas noites sinistras da vida vulnerabilizada. O malandro é a encruzilhada viva, encruzilhada ambulante, encruzilhada em movências, encruzilhada vagabunda. O malandro é, pois, o modus vivendi e o modus vivendi e operantis das encruzas. “A malandragem é antes de qualquer coisa a potência que baixa nos modos de vida do homem comum” (SIMAS e RUFINO, 2018, p. 87). O malandro traz no corpo a fresta, a brecha, o interstício, o intervalar... Nesse horizonte, Exu-Pelintra permite o golpe mesmo quando, aparentemente, só ginga. Malandragens são, pois, nessa perspectiva, obras de sobrevivência e movências insurgentes. Místicas nascimentistas incorporam e reverberam esse repertório de gingas e golpes decoloniais.

Mestre Zé Pelintra é o encantado da jurema e do catimbó nordestino, é o que conhece a dobra da morte pela via do encante e por isso é mantenedor de sabedorias inesgotáveis. Não à toa, mestre Zé Pelintra carrega fama de doutor, notoriedade essa curtida no reconhecimento popular e não nos diplomas típicos dos casacos e cartolas. O doutoramento de seu Zé é advindo da sua fama de trabalhador nas linhas de cura da jurema sagrada e do catimbó. Conhecedor das mandingas de livramento da má sorte, dos males do corpo e da proteção contra as maldades alheias, Seu Zé é aquele que fez sua fama entre pessoas e lugares que, geralmente, são relegados à condição de subalternidade e incredibilidade (SIMAS e RUFINO, 2018, p. 84).

O malandro é o andarinho, o que caminha, o homem da rua; e essa maneira de viver traz consigo possibilidades epistêmicas e místicas. O malandro incorpora a marca do exilado, do deslocado – do “não lugar”. Said (2004, p. 429) em Fora do lugar: memórias diz que com tantos abalos aprendeu a preferir “estar fora do lugar e não absolutamente certo”. E esse “não lugar” faz

com que se abra aos dribles em todos os espaços. A propósito, Abdias subjetivou sua existência como em condição de exílio. Escreve Abdias em Memórias do exílio:

Minha situação nesse depoimento é a mais paradoxal possível [...]. Meu exílio é de outra natureza. Não começou em 1968 ou em 1964, nem em momento algum dos meus sessenta e dois anos de vida. Hoje, mais do que nunca, compreendo que nasci exilado, de pais e mães que também nasceram no exílio, descendente de gente africana trazida à força para as Américas (NASCIMENTO, 1976, p. 25).

Para Said (2005, p. 67), o intelectual é alguém sem território fixo, um ser em estado permanente de exílio,

um náufrago que, de certo modo, aprende a viver com a terra, não nela; ou seja, não como Robinson Crusoé, cujo objetivo é colonizar sua pequena ilha, mas como Marco Polo, cujo sentido do maravilhoso nunca o abandona e que é um eterno viajante, um hóspede temporário, não um parasita, conquistador ou invasor.

Esse vagar ou perambular, apanágio do malandro, faz possível ou inevitável a construção de “muitas identidades” (SAID, 2004, p. 22). “Fora do lugar”, o intelectual aguça a observação, dilata a pupila dos olhos e enxerga construções humanas enquanto realidades mutáveis. Paulo Freire, falando de seu exílio confessa: “O distanciamento do meu passado no Brasil e o meu presente em contextos diferentes, estimulou minha reflexão” (FREIRE apud ROMÃO, 2012, p. 66).

Isso significa observar as situações como contingentes e não como inevitáveis, encarálas enquanto resultado de uma série de escolhas históricas feitas por homens e mulheres, como fatos da sociedade construída por seres humanos e não como naturais ou ditadas por Deus e, por consequência, imutáveis, permanentes, irreversíveis (SAID, 2005, p. 67-68).

Podemos, pois, dizer que, à luz do pensamento de Said, o intelectual exilado é o malandro. Ele perambula, observa, ginga em flexibilidades – ele conhece desde complexidades. Em chave africana ancestral, reforça Hampâté Bâ (1982, p. 210):

O homem que viaja descobre e vive outras iniciações, registra diferenças e semelhanças, alarga o campo da sua compreensão [...] O africano da savana costumava viajar muito. O resultado era a troca e a circulação de conhecimentos. É por esse motivo que a memória histórica coletiva, na África, raramente se limita a um único território.

A nosso juízo, Abdias, de modo especial mediante o cultivo anímico de orquídeas vagabundas, zombou do trabalho que nunca dignificou o povo negro (vide os estragos irreversíveis produzidos nos braços de sua mãe, Georgina (também chamada de Josina). Abdiasianamente pensando, orquídeas podem ser potências decoloniais em forma de flor. Assinala Ligiéro (2004, p. 89):

Existe um consenso de que o malandro nunca trabalha e de que seja um tipo completamente avesso a qualquer atividade produtiva. A verdade é que, tradicionalmente, o malandro é aquele que prefere se virar para não encarar o trabalho pesado, que lhe foi destinado desde o período colonial.

Por isso, em gingas de madrugada (“ao bruxuleio das velas”, conforme o poema “Padê de Exu libertador”235), Abdias fez-se, ele mesmo, uma orquídea236, isto é, um malandro em flor. Dessa feita, em místicas nascimentistas, orquídeas é lugar de potência. Em entrevista ao ator Lázaro Ramos237 , Abdias, aos 95 anos, em sua casa, pede que coloquem a orquídea mais perto e diz: “Eu acho que agora o que está faltando mesmo, é meu símbolo de vida a orquídea. A orquídea ficou tão distante... A orquídea é sempre uma referência básica em minha vida” .

Malandro é o que dribla, mas também o que enfrenta, o que cuida, o que briga, o que defende. É, pois, no horizonte dessa leitura místico-política de deuses “insuperavelmente ativos” (RISÉRIO, 1996, p. 68) e engajados que Abdias, no poema-chave de nossa obra, “Padê de Exu libertador”238, vai afirmar sua comunhão de vida e luta com Exu-Pelintra, manifestando as razões de sua vivência e crença em divindades comprometidas com a vida espoliada da população negra. Afirma o sujeito místico-poético, Abdias:

Teu punho sou, Exu-Pelintra quando desdenhando a polícia defendes os indefesos

vítimas dos crimes do

esquadrão da morte punhal traiçoeiro da mão branca

somos assassinados

porque nos julgam órfãos desrespeitam nossa humanidade

235 Ver introdução de nossa obra. 236 Na trajetória de Abdias, sua participação na Santa Hermandad Orquídea constituiu a época de aventuras pela América do Sul. Elisa L. Nascimento (2014, p. 139) escreve que Abdias, unido aos poetas Geraldo Melo Mourão e Napoleão Lopes Filho, que se juntaram aos três argentinos, Efraím Tomás Bó, Juan Raúl Young e Godofredo Tito Iommi, “juraram um pacto de vivência estética e existencial, que chamaram de Santa Hermandad de la Orquídea”. Narra Geraldo Mello Mourão: “[...]Éramos seis, não tínhamos grana para pagar aluguel, vivíamos no mesmo quarto, seis pessoas, dormíamos no chão... durante três anos vivíamos e nos chamávamos a Santa Hermandad de la Orquídea. Porque a Orquídea não tem vida própria; a Orquídea sobe à vida da árvore e nós à vida do divino: disto vivíamos; do divino. Era uma aventura a Santa Hermandad de la Orquídea. Creio que nos temos mantido fiéis à nossa primeira consigna, a esta coisa de estar sempre com o sobrenatural” (MOURÃO apud NASCIMENTO, 2014, p. 140). 237 Programa Espelho – Abdias do Nascimento: https://www.youtube.com/watch?v=H9XPt4gJHBQ Acesso em: 5 de dezembro 2018. 238 Ver na introdução de nossa tese.

ignorando que somos os homens negros as mulheres negras orgulhosos filhos e filhas do Senhor do Orum

Olorum

Pai nosso e teu

Exu

de quem és o fruto alado da comunicação e da mensagem.

Ao proclamar-se punho de “Zé-Pelintra”, Abdias enlaça o Exu iorubano às divindades paridas no Brasil (Seu Zé, Zé-Pelintra, o malandro etc.) a fim de socorrer o povo negro em tempos de vida ameaçada. Essa conjunção é valiosa para sustentação de nossa tese porquanto manifesta uma vivência mística que bebe das experiências e construções religiosas autóctones da negra gente que, fundamentalmente, só contava com o auxílio de agentes e forças sobrenaturais como as armas mais potentes na luta sem trégua pela sobrevivência. Dessa feita, “místicas nascimentistas” incorporam conteúdos do Exu-Pelintra para ensaiar peripécias forjadoras de dribles, gingas, golpes e navalhadas no sistema de dominação e genocídio.

A figura de “Exu-Pelintra”, o deus (des)conhecido239 , é para Abdias, tal como colhemos no excerto do poema supracitado, a da divindade que “compra a briga” dos desvalidos. Exu-Pelintra, segundo o poema, desdenha da polícia, braço do Estado para fazer valer, conforme título da obra do ativista, o genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado (NASCIMENTO, E., 2016).

É diante dele – o irmão, filho de “Olorum, Pai nosso e teu...” – que o místico-poeta expõe a situação da gente preta depois de anos passados da “mentira cívica” da abolição: “... somos assassinados...”. E numa hermenêutica afro-religiosa, Abdias diz: “Porque nos julgam órfãos...”. Desse modo, à luz do supracitado poema, para o místico-ativista, ser órfão, não é apenas estar lançado

239 Em nossa pesquisa não encontramos nenhum registro acerca da entidade nomeada por Abdias de “Exu-Pelintra”. Encontramos, sim, “Zé pelintra”. Supomos que estejamos diante de uma “letra inventada” do místico-ativista, que trocando o “Zé” (brasileiro) por “Exu” (africano) e conservando o “Pelintra” (brasileiro), credibiliza, na “invenção das letras”, a conexão viva, dinâmica e pulsante Africa↔Brasil. Escreve Trindade (1985, p.149): “Nas narrativas apresentadas, observamos que os símbolos da divindade são constantemente reconstruídos e resultam em significados diversos, definidos pela ação dos indivíduos na situação social”.

na solidão e na vulnerabilidade dos corpos, mas também (ou, sobretudo) não ter companhias divinas ou patronagens místicas para se ancorar.

Desse modo, Abdias, no supracitado poema/oriki, expõe a situação de grande parte da gente preta jogada à própria sorte no Brasil construído por suas mãos. É nesse contexto de exploração, abandono e espoliação que emerge a figura de “Exu-Pelintra” como letras inventadas pela gente preta a fim de salvaguardar, proteger, encantar e potencializar a vida.

A partir das “místicas nascimentistas”, podemos dizer que com ele (“Exu-Pelintra”) a gente preta não se sente só nas madrugadas da vida; tem um irmão, um padrinho, um amigo, um compadre – um patrono. Dessa feita, o Exu iorubano (o “princípio”, o “mensageiro” e o “comunicador”) fez-se, na interpretação libertadora da negra gente afro-brasileira, o “Zé-Pelintra”; e na hermenêutica abdiasiana, “Exu-Pelintra”.

Exu adquire no contexto da situação escravocrata, o sentido mais pragmático e agressivo de atuação constante na práxis social dos negros escravos. Os aspectos propriamente mágicos da divindade são enfatizados [...]. Desde que a religião do candomblé constitui um nicho cultural de resistência comunitária a uma situação escravocrata, a magia de Exu passa a ser utilizada como força protetora e de combate ante as relações sociais conflitantes (TRINDADE, 1985, p. 36).

Enfatiza Trindade (1985, p. 80-81)240: “Exu transmite aos homens a energia necessária para superar os obstáculos. Tendo em vista a sua eficácia mágica, ele auxilia os indivíduos a ultrapassarem as barreiras do social que lhes são impostas, pois representa a ordem contra a desordem estabelecida”. E continua:

[...] O conceito de astúcia nesta estrutura social implica em utilizar os meios não institucionalizados mas tradicionalmente reconhecidos, tais como o apadrinhamento (originário do coronelismo), e os recursos, as formas de burlar as leis, que passam a ser aceitos normalmente na sociedade na medida em que o indivíduo se torna vitorioso.

Para Trindade241, numa explicação em chave sociológica, na falta da proteção

de um ‘coronel’ (pessoa influente que restabeleça as antigas relações tradicionais de compadrio), quando o indivíduo urbano se encontra isolado, ele busca Exu, o protetor, o ‘compadre’, conforme denominação de seus adeptos. No plano do imaginário, o herói mítico torna-se representante do ‘coronel’. Exu desempenha o papel de protetor de sua clientela, substituindo na estrutura da experiência do real o homem influente.

240 Ver também de Trindade e Coelho “O homem e o mito: estudo de antrologia psicológica sobre o mito de Exu”, São Paulo: Terceira Margem, 2006. ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1999. 241 “A sociedade escravocrata, baseada nas relações de dominação-subordinação, representa o conflito social do negro enquanto classe economicamente explorada. Neste contexto, a religiosidade africana passa a significar a forma de resistência ante a cultura dominante do branco” (TRINDADE, 1985, p. 35).

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