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5.4 Mística à flor dos pratos

Galo preto deste conguê [...].

Coro: Laroiê, Axé! (NASCIMENTO, 1979, p. 121).

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Podemos atribuir ao enlace místico de Abdias com os orixás (e Exu, singularmente), que, a propósito, faz eco a tradição das místicas afro-brasileiras, o que reza a música As coisas de Arnaldo Antunes e Gilberto Gil: “As coisas têm peso, forma, composição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, sentido. As coisas não têm paz”!251 À flor das coisas pretas, completaríamos: tampouco os homens, os ancestres e os orixás...

5.4 Mística à flor dos pratos

Tratando sobre Religião e Comida declara, de forma, emblemática, Hans-Jürgen Greschat252 (2005, p. 9): “Comida para o estômago. Sua escassez pode colocar em risco um povo, e, com ele, seus deuses e sua religião”. E no horizonte da “afirmação da vida” sustenta ainda: “A comida religiosa é o alimento da mente e da alma”. Completaríamos, no escopo da experiência mística em chave nagô: e do corpo também. Dizendo de outro modo, no pensamento místico nascimentista homens e deuses estão umbilicalmente imbricados numa trama nutricional, o que faz da vivência da fé, nesse horizonte religioso, uma experiência, inescapavelmente, gastronômica. Nas palavras de Rubens Alves (2003, p. 106), que bem se aplicam à mundividência do candomblé: “Comer é viver; comer é prazer”. Comer, reiteramos, é afirmar a vida, sustentar a disposição para a luta e garantir na esperança a alegria insubmissa.

A “afirmação da vida” passa, no plano místico do candomblé, pela lei de reciprocidade que ata ser humano e divindade numa cumplicidade sagrada. Eis porque Abdias fala a Exu:

[...]receba estas aves e

os bichos de patas que

trouxe para satisfazer

tua voracidade ritual (NASCIMENTO, 1983, p. 10).

Abdias em prece, faz memória da voracidade de Exu que, recém-nascido, tudo devora, inclusive a mãe. Desejo indômito e ilimitado de vida, instância pulsiva capaz de movimentar todas as

251 Ver OLIVEIRA (2006, p. 26). 252 Professor aposentado de História da Religião na Universidade de Marburgo, Alemanha.

coisas. Oferecer o que agrada ao santo reverbera a intenção de um vínculo capaz de beneficiar a divindade e, simultaneamente, o ofertante. O encontro de ambos é mediatizado e internamente atravessado pelo alimento. É nessa ordem de sentido ancestral que não polariza comida humana versus comida divina (ou estômago versus sagrado) que compreendemos as palavras de Abdias Nascimento endereçadas a Exu no PEL253:

...espero que estas oferendas

agradem teu coração

alegrem teu paladar

um coração alegre é

um estomago satisfeito e

no contentamento de ambos

está a predisposição

para o cumprimento das

leis de retribuição

asseguradas da

harmonia cósmica?

A partir das palavras de Abdias supracitadas, podemos perceber que a mesma boca que ingere é a que profere e também a que realiza o ser humano na sua sede de infinito. E a divindade é posta num único e mesmo jogo gastronômico; ambos precisam comer, ambos ensejam poder, ambos desejam viver. A boca divino-humana transmuta-se num portal profano/sagrado aberto às possibilidades.

Levis-Strauss (2004) em O cru e o cozido254 situa a produção do alimento como expediente vinculado à passagem do estado de natureza para o estado de cultura; logo, no plano da produção criativa, que participa forçosamente do processo de hominização. Essa consideração é importante para o nosso trabalho porquanto ajuda a pensar o ato humano de comer enquanto situação atrelada à

253 Ver introdução de nossa obra. 254 Cf. Claude LÉVI-STRAUSS. O cru e o cozido. Mitológicas 1. São Paulo, Cosac Naify, 2004. A primeira edição da obra foi produzida na França no ano de 1964. A primeira edição brasileira da obra data de 1991.

competência de criar mundos, ultrapassando assim o domínio da pura exigência biológica. Nessa perspectiva, o comer pressupõe o fazer, o transformar, o inventar e o inventar-se – o ir além.

Falar de comida/alimentação no que se refere à relação Áfricas↔ Brasil, implica abordar trânsitos, intercâmbios, trocas, diálogos e circularidade de padrões, valores, crenças e resistências que atravessaram o Atlântico. Desde o navio negreiro, o comer já se apresenta como reverberação de disposições culturais. E essa história da alimentação (CASCUDO, 2004) se prolonga e se dinamiza no Brasil que também se pensa e se diz através da comida. Por isso, a comida, inevitavelmente, é um assunto relacional e, especialmente, reverbera o enraizamento do Brasil com a África.

Os alimentos, juntamente com os cativos, vivenciaram diáspora, “transplantadas para cá muitas das plantas alimentares da África: o feijão, a banana, o quiabo” (CASCUDO, 2004, p. 230). E através da comida os negros se impuseram no Brasil, deixando marcas de sua presença. O comer, então, guarda uma história de resistência, sobrevivência e inventividade.

A alimentação afro aparece no Brasil pela discreta complementação alimentar dos produtos trazidos da África e pouco a pouco disseminados na cozinha das senzalas e na casa-grande; este fato pode ser compreendido como início de uma cozinha culturalmente miscigenada e da resistência negra (CORREIA, 2009, p. 125).

A história dos negros no Brasil é, dentre outras, história da alimentação; tanto religiosa quanto profana. Por vezes, sequer essa diferenciação se torna possível. Mas é fato que, através da comida o negro se afirma no solo brasileiro e também o constrói no diálogo e nas trocas com outros pratos e paladares. Endossa Cascudo (2004, p. 373): “Uma vez no Brasil, os negros tornaram-se verdadeiros donos da terra: dominaram a cozinha. Conservaram em grande parte sua dieta”.

Salienta Juana Elbein dos Santos (1986, p. 211) que Exu está “associado à cavidade da boca e do estômago em primeiro lugar por causa de sua atividade de introjetar, de introduzir ‘alimentos’”255. E assevera ainda a autora que o orixá mensageiro “também está profundamente relacionado com a boca em sua função de Enúgbárijo, boca coletiva. Princípio de comunicação, a boca é cavidade que transmite e comunica”. A boca, dessa feita, comparece como órgão relacional e, portanto de extrema competência alteritária; alteridade que constitui domínio próprio de Exu. Expõe

255 O artigo de David A. Bergen (2005, p. 55-78) –“A hermenêutica do consumo: comer, falar e a apropriação da Páscoa de Moisés” – contribui na reflexão acerca da relação vital e dinâmica entre o falar e o comer, dois expedientes caros à sustentação da experiência mística no candomblé. Realça o autor: “Avanços evolutivos moldaram o aparelho vocal da espécie humana, estampando irrevogavelmente em sua fisiologia os parâmetros dentro dos quais comer e falar devem ser realizados (...). O aparelho vocal é o locus físico onde a prática distintivamente humana de fala e comer se unem”. Bergen sustenta na mesma linha que “a fala não é mais sui generis que a refeição humana” (p. 62).

Bergen (2005, p. 62): “Tanto o falar quanto o comer alimentam-se do corpo do outro, ambos empregam processos complexos de apropriação do que é externo para consumo interno”.

No âmbito religioso, em especial nas religiões de matrizes africanas, a comida não foge ao plano mais amplo da integração e realização humanas. Somente o ser humano come simbolicamente; pois visa não apenas matar a fome física, mas também atender à necessidade de dar sentido à vida; e mais, munir-se para o combate. Comida, nesse horizonte, é lugar de potência. Nesse horizonte de gastronomia mística, clarifica Junior256 (2005, p. 101) quando escreve Tem gente que pensa que é só comida. Notas sobre alimentação ritual nos terreiros de candomblé257:

Nos terreiros de candomblé a chamada ‘cozinha africana, resultado de técnicas conservadas, adaptadas, recriadas e inventadas no Novo Mundo pelos diversos grupos étnicos a partir de elementos portugueses e ameríndios, surge associada a um ritual complexo e elaborado, no qual a comida é veiculo de comunicação entre a comunidade e os orixás. Cada prato, assim, mais do que uma combinação de ingredientes, veicula, através de um tratamento especial, visões de mundo intimamente associadas às histórias dos ancestrais trazidos para o Brasil por aqueles que reorganizaram o culto destes através do candomblé.

Considerando a mística do candomblé no âmbito da “afirmação da vida”, o comer comparece com pujança e centralidade. Certifica Lody (2012, p. 30): “Comer equivale a viver, a manter, a ter, a preservar, a iniciar, a comunicar, a reforçar memórias individuais e coletivas” . E nessa direção destaca Correia (2009, p. 97).

O alimento no terreiro pode ser representado para o culto dos orixás como a força motriz, pois se configura no verdadeiro, mas não o único movimento capaz de estabelecer a comunicação com os deuses, renovar o axé, atrair novos seguidores e simpatizantes. Em suma, a cozinha do candomblé é a responsável pela resistência do culto dos orixás até os dias de hoje.

De singular valor em termos de mística afrodiaspórica é o fato que seres humanos e divindades não são pensados separadamente, pois o laço de interdependência e reciprocidade ata os dois planos da existência sempre prontos à re-ligação; e a comida desempenha papel de destaque nessa trama. “A relação entre o ser humano e seu deus deve ser vista, portanto, e fundamentalmente, em termos de reciprocidade. Há um laço pessoal entre ambos” (RISÉRIO, 1996, p. 66).

256 Cf. JÚNIOR, Vilson Caetano de Souza. Religião & Cultura. Departamento de Teologia e Ciência da Religião PUCSP – IV, n. 7 (jan./jun.2005). São Paulo: Educ-Paulinas, 2005, pp. 101-127. 257 O título mesmo do artigo de Júnior já reverbera uma plataforma mística possibilitadora de um olhar para além das aparências ou do puro fato material. Nessa perspectiva, as coisas não são apenas o que aparentam ser. Dessa feita, num padê, por exemplo, pode conter um mundo complexo de crenças, valores, sentimentos, buscas e desejos. E isso faz do ato religioso um ato tipicamente humano.

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