13 minute read
4.2 As funções do mito
from QUEM DISSE QUE EXU NÃO MONTA? ABDIAS NASCIMENTO, O CAVALO DO SANTO NO TERREIRO DA HISTÓRIA
by IPEAFRO
Nas palavras de Campbell (1990, p. 51) em O poder do mito, a “fonte da vida temporal é a eternidade. É a ideia mítica, básica, do deus que se torna múltiplo em nós (...). Identificar-se com esse aspecto divino, imortal, de você mesmo é identificar-se com a divindade”. É nesse plano que se situa a identidade mítica; e é sob essa ótica que interpretamos e compreendemos a relação Abdias↔Exu.
Para Campbell (1990, p. 32) cada humana criatura “deve encontrar um aspecto do mito que se relacione com sua própria vida”. Abdias experimentou a vida como um campo de combate e a presença de Exu constituiu um indispensável companheiro de luta.
Advertisement
4.2 As funções do mito
Para Campbell (1990, p. 32) os mitos possuem quatro funções básicas, quais sejam: A) A “função mística” – que situa o homem na dimensão mistérica da vida; B) A “dimensão cosmológica” – que oferece um novo olhar e uma nova hermenêutica, por conseguinte, acerca do universo; C) A dimensão ou função “sociológica” – “suporte e validação de certa ordem social”; o que manifesta que toda mitologia está enraizada em contextos particulares, ainda que aborde temas universais; D) A “função pedagógica” – dita o comportamento, como orientar a vida em face das exigências do cotidiano. A “função pedagógica” assinala o caráter performático do mito. Nesse sentido, os mitos se tornam forjadores de existências, modelos exemplares capazes de engendrar um ethos215 . “Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual...” (CAMPBELL, 1990, p. 24).
Hollis (1998, p. 18), abordando as funções do mito na perspectiva de Campbell (1977) destaca também as funções: cosmológica, metafísica, sociológica e psicológica. Acerca da função psicológica, importante para o nosso trabalho que busca uma compreensão mitologizada da trajetória de Abdias, escreve Boechat (2008, p. 21): “Se por um lado o indivíduo procura entender o cosmos e a natureza à sua volta, o indivíduo necessita também, fundamentalmente, entender-se a si mesmo”. E enfatiza ainda: “A problemática básica do Oráculo de Delfos – conheça-te a ti mesmo – encontra uma via de resposta nos mitos”. Abdias, nesse rastro, forjou uma “identidade mítica” a partir da qual foi se definindo na história e compreendendo e significando seu papel no terreiro da história.
215 Escreve Boff (2000, p. 35) em Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos: “Ethos se traduz, então, por ética. É uma realidade da ordem dos fins... Ética tem a ver com fins fundamentais...”. Nesse sentido, os mitos, por serem capazes de engendrar ethos/ética, são, pois, forjadores não só de comportamentos, mas, antes, de sentido para a vida.
Enfatiza a psiquiatra Nise da Silveira (2007, p.117-118): “Do ponto de vista da psicologia analítica, portanto, o estudo da mitologia não será diletantismo de eruditos. Faz parte indispensável do equipamento de trabalho de todo psicoterapeuta”. Segundo essa perspectiva, sem o auxílio da mitologia não se pode perscrutar as profundezas da psique pessoal e coletiva da humanidade.
Escreve Jung (2007, p.47) em Os arquétipos e o inconsciente coletivo: “O processo simbólico é uma vivência na imagem e da imagem”. E nesse horizonte o candomblé oferece aos seus filhos e filhas uma via simbólica capaz de transfigurar a vida e dar sentido à realidade. Assinala Jung (2008, p. 111) que o ser humano é capaz de “suportar as mais incríveis provações se estiver convencido de que elas têm um sentido (...). O papel dos símbolos religiosos é dar significação à vida do homem”. Em O poder do mito, Campbell (1990, p. 6) afirma que mitos “são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana”. E afirma: “Eles ensinam que você pode voltar para dentro, e você começa a captar a linguagem dos símbolos”.
Nessa perspectiva, a vida de Abdias reverbera uma centração mítica exemplar. Para Campbell (1990, p.16) quando uma pessoa se torna um “modelo para a vida de outros, a pessoa se move para uma esfera tal que se torna passível de ser mitologizada”.
O mito só enche a vida humana de sentido e viço se o homem o mantiver vivo no seu interior e/ou na coletividade. Nessa perspectiva, as religiões, em geral, e as religiões de matrizes africanas, em particular, são captadas também sob o enfoque junguiano, como exímias guardiãs de mitos e celeiros de símbolos. Para Roger Bastide (2001, p. 31), quando o negro se sente africano passa a “pertencer a um mundo mental diferente”, dotado do que o sociólogo buscou descrever, de “representações coletivas”; que numa abordagem psicológica junguiana são nomeadas de “Arquétipos” – imagens primordiais do inconsciente coletivo.
Sublinha DaMatta (1986, p. 115) acerca da experiência religiosa brasileira sempre afeita ao contato com o mundo do além. “Do mesmo modo que temos pais, padrinhos e patrões, temos também entidades sobrenaturais que nos protegem”. Essa compreensão é fundamental para a nossa tese, pois manifesta uma dimensão da vida humana que Abdias Nascimento constelou em sua existência; vivência, a propósito, cara na tradição africana e afrodiaspórica. Exu, nessa perspectiva, exerceu na atividade de Abdias a função que DaMatta (1986, p. 115) nomeou de “patronagem” ou “patrocínio místico”.
Sublinha Boechat (2008, p. 21-22): “Assim, a imagem é a linguagem fundamental da alma e os símbolos são a chave para a compreensão das imagens. Os mitos, por sua vez, são estórias simbólicas que se desdobram em imagens significativas”.
Para Campbell (2015, p. 7) o “material do mito é o material de nossa vida, do nosso corpo, do nosso ambiente...”. E é essa materialidade que faz do mito uma realidade viva e capaz de conferir sentido à vida. Abdias construiu sua existência desde os referenciais africanos ancestrais que ele encontrou ululante nas comunidades de terreiros do Rio de Janeiro quando vivia numa situação pessoal de desterro, pobreza e desamparo. A religião tornou-se a senha de entrada ou de mergulho nas “raízes africanas” onde encontrou e extraiu a seiva que alimentou sua vida.
Abordar, pois, os orixás, em geral, e Exu, em particular, na vida de Abdias, implica acessar o mundo de representações mentais ou psicológicas mediante às quais Abdias costurou sua existência e construiu sua identidade social assentada na identidade mítica e na vivência mística.
Leonardo Boff (1999, p. 38) faz uma afirmação de real grandeza para o nosso trabalho quando afirma: “Espiritual e psiquicamente não somos monoteístas, mas plurais”. O ser humano, dessa feita, segundo a experiência africana ancestral exemplarmente vivida por Abdias, é um “interior povoado”, porque leva consigo uma multiplicidade de figuras carregadas de potência que a tradição nagô nomeou de orixás.
Assinala Augras (1980, p. 104): “Do ponto de vista psicológico, e adotando mais uma vez uma perspectiva junguiana, poder-se-ia considerar a figura de Exu como a própria encarnação da libido, da energia vital, ‘a força grande de toda a força’, cujo poder ‘não tem limites sobre a terra’”. O mito tem o poder de se apoderar do humano de fê-lo maior, desde que o ser humano se apodere do mito. Para Augras (1980, p. 106)
A identificação do orixá ‘dono da cabeça’ de cada pessoa não tem sido objeto de estudo de cunho psicológico. Se há diversos trabalhos sobre as modalidades de adivinhação do nome do santo, não se denotam, quase, preocupações com o tipo de relacionamento que o iniciado estabelece com o dono de sua cabeça e, especificamente, com o tipo de personalidade que o orixá representa.
E diz ainda: “Haveria lugar, portanto, para um campo praticamente novo de pesquisas psicológicas, visando estudar o relacionamento de cada pessoa com o ‘dono da sua cabeça’ e, em particular, os mecanismos de identificação e integração com essa imagem”. Se Augras manifesta,
com legitimidade, preocupação com estudos no campo psicológico, de igual valor e importância são as pesquisas de cunho religioso como as possíveis no âmbito da Ciência da Religião. É nessa perspectiva que julgamos de singular envergadura nos interessarmos em nossa tese como, segundo Abdias, Exu tomou posse de sua trajetória auxiliando-o nas incontáveis batalhas nas trincheiras da história.
Diz Jung (2008, p.112): “O mito que se apoderou de São Paulo fez dele algo muito maior que um mero artesão”. Exemplar e oportunamente escreveu Roger Bastide (2001, p. 39) acerca da transmutação sofrida pelos filhos e filhas de santo no momento do transe:
Não são mais costureiras, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando os seus cabelos de algas. Os rostos se metamorfosearamse em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de misérias... Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão (...). Não existem mais fronteiras entre natural e sobrenatural; o êxtase realizou a comunhão desejada.
Nesse horizonte, salienta Augras que em virtude da complexidade e dinamicidade da religião nagô, qualquer tentativa explicativa “esbarra no receio da explicação reducionista”. Abdias encontrou, abrigou e se nutriu de uma mitologia poderosa. Para Campbell (1990, p. 6) o mundo de hoje está “desmitologizado”, e, por isso, carente de mensagem que provenha da interioridade humana. “Os mitos servem para nos conduzir a um tipo de consciência que é espiritual”.
O mito, ao contrário, manifesta o ser humano como um ser, irremediavelmente, simbólico; e, nesse sentido, povoado. Em perspectiva junguiana, Murray Stein (2003, p. 40) assinala ser o ser humano um “interior povoado” e movido por “emoções e imagens” mais que por uma plataforma racional clara e distinta.
A noção de “interior povoado” faz da psique, pessoal e coletiva, um espaço vivo e dinâmico de diálogo e interações com forças que superam e destronam o absolutismo da razão. Escreve Boechat (2008, p.40): “Os conteúdos psíquicos são, na psicologia analítica, personificados, não sendo conceitos abstratos ou teóricos, como o id, inconsciente ou arquetípico; são personagens vivos internos, deuses”.
Dessa feita, as religiões em geral e os terreiros em particular, psiquicamente pensados, constelam mundos de símbolos e imagens mediante as quais homens e mulheres, uma vez alinhados, são misticamente empoderados na fé, na vida e na luta. Os adeptos do candomblé, por exemplo, estabelecem um elo pessoal com as divindades, e em especial com os patronos de suas cabeças. Os orixás se apresentam como deuses guias, orientadores e defensores. Assinala Roberto DaMatta (1986, p. 114-115): “Nós brasileiros, temos intimidade com certos santos que são nossos protetores e padroeiros; do mesmo modo que temos como guias certos orixás ou espíritos do além, que são nossos protetores”. E escreve ainda:
A relação pode ter forma diferenciada, mas a sua lógica estrutural é a mesma. Em todos os casos, a relação existente é pessoal, isto é, fundada na simpatia e na lealdade dos representantes deste mundo e do outro. Somos fiéis devotos de santos e também cavalos de santo de orixás, e com cada um deles nos entendemos muito bem pela linguagem direta da patronagem ou do patrocínio místico –por meio de preces, promessas, oferendas, despachos, súplicas e obrigações que, a despeito de diferenças aparentes, constituem uma linguagem ou código de comunicação com o além que é obviamente comum e brasileira.
A Escola de Samba do Rio de Janeiro, Estação Primeira de Mangueira216, escolheu e defendeu na avenida, no ano de 2017, o samba-enredo com o título “Só com a ajuda do santo”. Cremos que o título de nossa tese tem a pretensão de defender justamente essa proposição patente no imaginário religioso brasileiro que, mormente, compreende que, sobretudo as pessoas que passaram grandes tormentas e dificuldades, como a população negra desterrada, só conseguiram superar os obstáculos e as tormentas da vida mediante auxílio espiritual. A religião, nessa perspectiva, emerge como fonte de sentido e instância capaz de oferecer instrumentos e forças para o combate. Diz o samba-enredo:
[...] Sou filho de fé do povo de Aruanda, nascido e criado pra vencer demanda... No peito patuá, arruda e guiné para provar que o meu povo nunca perde a fé... O manto a proteger, mãezinha a me guiar, velei-me meu Padim onde quer que eu vá/ levo oferenda a rainha do mar: Inaê, Marabô, Janaina [...]. Meu padroeiro irá sempre interceder, clareia, tenho um guerreiro a me defender. Firmo o ponto pro meu orixá, no terreiro; pelas matas eu vou me cercar, mandingueiro; mel marafo e abo, só com a ajuda do santo eu vou [...].
216 Abdias diz em entrevista que a Mangueira o “batizou” na carioquice. O morro da Mangueira localiza-se na zona norte do Rio de Janeiro. Inicialmente chamado de morro do Telégrafo, mas o nome “Mangueira” foi devido à estação ferroviária. A ocupação do morro está ligada ao processo de reforma urbana no início do século XX do então prefeito Pereira Passos, quando a população empobrecida migrou para os morros e periferias da cidade. Pobreza, marginalização, samba, negritude e religiões afro-brasileiras situam-se, à época, nos mesmos espaços. São nesses lugares sociais que Abdias tem suas primeiras experiências no Rio de Janeiro. A Escola de Samba foi fundada em 1928. Cf. Lopes e Simas, Dicionário na história social do samba, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
Nessa perspectiva, a referida Escola de Samba217, mediante uma linguagem religiosa faz reverência a situações humanas típicas diante das quais homens e mulheres se reconhecem e reconhecem acompanhados de forças extraordinárias e buscam testemunhar a presença e eficácia dessas companhias benfazejas de variadas formas. E a Ciência da Religião tem o mérito de se interessar, sob o enfoque interdisciplinar, por essa gama variada de discursos. E, nesse sentido, o dito e o expresso pelos homens e mulheres religiosos constituem os “textos” fundamentais sobre os quais os cientistas se debruçam.
Compreendemos, sob o prisma junguiano, que Abdias viveu um mito e sua multifacetada existência, por sua vez, traduz com exemplaridade, o “poder do mito” (CAMPBELL, 1990).
A escola psicanalítica junguiana afirma, por exemplo, que certa pessoa virou mito quando viveu uma biografia (um relato existencial ou saga) com tal densidade que muitos se reencontram a si mesmos nela ou por ela vêem realizar ideais e sonhos ancestrais [...]. Tais pessoas se transformam em símbolos poderosos, quer dizer, mitos, capazes de cristalizar energias coletivas, falar ao profundo das pessoas e mobilizar multidões (BOFF, 1999, p. 57).
Mitos são, pois, na compreensão de Campbell (1990, p. 19), “sonhos públicos”, ao passo que os sonhos são “mitos privados”. Nessa perspectiva, mito é categoria valiosa para uma aproximação compreensiva da trajetória de Abdias Nascimento; porque o mito faz referência não fundamentalmente a fatos e ocorrências (vis ou descomunais) de uma saga humana, mas, antes e, sobretudo, ao significado que ela engendra. Em A jornada do herói, Campbell (2003, p. 73) compreende o mito como “estrela guia”. Salienta: “boff”. E escreve ainda: “Minha definição de mito agora é ‘transparente para a transcendência’”.
Desse modo, mediante uma leitura mítica de uma vida, se tem acesso ao sentido escondido que confere ao vivido sua plena significação. Na perspectiva de Jung (2006) o que o ser humano é, sob o prima do sagrado, só pode ser descrito mediante o mito. Escreve Jung (2006, p. 31): “O que se é, mediante uma intuição interior e o que o homem é sub specie aeternitatis só pode ser expresso através de um mito”. Por essa razão, do ponto de vista junguiano “as imagens advindas da mitologia e da religião servem a fins positivos em prol da vida” (CAMPBELL, 1990, p. 19). Os orixás para Abdias foram potências sagradas, seres que plasmaram a sua trajetória, enchendo-a de força e brilho e encanto.
217 No ano de 2016 a Escola de Samba Estação primeira de Mangueira foi campeã do carnaval carioca com o enredo dedicado a cantora soteropolitana Maria Betânia, com o samba-enredo Menina de Oya. Para o nosso trabalho o referido samba tem grande importância porquanto reverbera a lógica mística vivida por Abdias do “patrocínio místico”, nos termos de Roberto DaMatta (1986).