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5.3. Mística à flor das coisas
from QUEM DISSE QUE EXU NÃO MONTA? ABDIAS NASCIMENTO, O CAVALO DO SANTO NO TERREIRO DA HISTÓRIA
by IPEAFRO
culturais e religiosos que a população negra inventou para sobreviver, resistir e potencializar a vida.
ii) O que nomeamos de Projeto-Político-Mistagógico de Abdias extraído do poema
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“Olhando no espelho”. Enuncia o sujeito místico-poético: “[...] devemos continuar sonho/ nosso trabalho/ reinventando nossas letras/ recompondo nossos nomes próprios/ tecendo laços firmes/ nos quais/ ao riso alegre do novo dia/ enforcaremos os usurpadores de nossa infância” (NASCIMENTO, 1983, p. 50).
As duas frases destacadas acima se reclamam mutuamente e orientam nossa compressão de que tornar-se “cavalo do santo no terreiro da história” para Abdias significou incorporar místicas potentes e credibilizá-las enquanto portadores de uma chama indestrutível. Também significou continuar o sonho e os trabalhos dos que o antecederam, “tecer laços firmes” e “ao sorriso alegre do novo dia” enforcar os que matam a vida e felicidade do povo negro; e isso significa uma nação liberta do racismo e da lógica de dominação-servidão.
É nesse obrar “nutrido ao axé de Exu, ao amor infinito de Oxum, à compaixão de Obatalá, à espada justiceira de Ogum” (NASCIMENTO, 1983, p. 50), que místicas afro-brasileiras, em geral, e, singularmente, místicas nascimentistas, importam enquanto reverberações de lógicas, racionalidades, sensibilidades e epistemes que se enunciam enquanto lugar de potência e de reinvenção da resistência, da sobrevivência e do encantamento da vida e da sociedade.
5.3. Mística à flor das coisas
Diz Abdias no poema “Mucama-mor das estrelas”: “Meu ferro de três pontas aponta em ti...” (NASCIMENTO, 1983, p. 80). A referida fala do místico abre caminho para pensarmos o lugar de envergadura das coisas ou objetos nas místicas afro-brasileiras. Místicas nascimentistas credibilizam materialidades como potências indispensáveis ao enlace. A propósito, humanos e divindades possuem seus apetrechos com os quais se identificam, vivem e se constroem243 .
243 O que seriam dos orixás sem seus apetrechos? O que seria dos humanos? A navalha do malandro é o malandro. O ser humano se identifica de tal forma com as coisas que elas podem fazer parte de seus nomes, isto é, de sua identidade. Por exemplo: Paulinho da Viola, Jackson do Pandeiro etc. A cantora, Dona Ivone Lara, narra que, órfã de pai e mãe, sem ter possibilidade de possuir uma boneca, fez do passarinho Tiê o seu brinquedo ou, seu objeto transacional, na conceituação de Winnicott (1975). Para o referido teórico da psicologia do desenvolvimento do bebê, o objeto transacional “representa a transição do bebê de um estado em que este está fundido com a mãe para o estado em que está em relação com ela como algo externo e separado” (WINNICOTT, 1976, p. 30). Linebaugh (1983, p. 26) relata oportunamente: “Em 1666 um escravo africano e um indentured servant inglês fugiram de suas respectivas fazendas. Antes de sair, o escravo cuidou, antes de mais nada, de levar o violino do seu senhor”.
Canto o soteropolitano Dorival Caymmi: “Quem não tem balangandãs não vai ao Bonfim”244 . E no rastro de Câmara Cascudo (2009)245 , podemos citar o dito popular: “Quem não aguenta com a mandinga, não carrega patuá”. A nosso ver, como assunto a ser considerado é a negligenciada questão do lugar dos objetos ou da materialidade na experiência religiosa humana, a fortiori em culturas como a africana que não secciona o físico do espiritual, o material do imaterial, o concreto do abstrato246 .
A magia, o encante e a mironga reclamam a manipulação de forças e de coisas –materialidades potencializadas. Nesse registro, podemos falar, a partir de nossa tese, de uma vivência mística afro-brasileira capaz de englobar numa única dinâmica: o cavalo, o santo, o mundo das coisas e as coisas do mundo. Em outros termos, se campo de batalha é tempo de mandinga, a vivência mística e mágica com as entidades sobrenaturais, em chave afro, intui que não se vai para a batalha com as mãos abanando; e isso serve tanto para os homens quanto para os deuses – que estão sempre munidos (Ogô, Opá, Agadá, Ekodidê, Pachorô etc.) e dispostos a munir ou apetrechar os seus (“fio de Ariadne”).
Acreditamos que um diálogo no plano interdisciplinar da Ciência da Religião com a Psicologia, Arqueologia, Antropologia e História, por exemplo, tendo como objeto de análise o lugar dos objetos na saga humana, desde o passado evolutivo, pode lançar luzes sobre uma competência humana de base que aparece desde os primeiros momentos do desenvolvimento do bebê. A psicanálise winnicottiana, por exemplo, trabalha com a noção de objetos transacionais247 como
244 Música O que que a baiana tem? 245 Para Cascudo (2009, p. 15) a expressão vox Populi, vox Dei não resulta do consenso coletivo, mas está “ligada a um processo de consulta divina, sendo o povo o oráculo, a pítia da transmissão”. 246 A trajetória de Arthur Bispo do Rosário é emblemática para se pensar a relação do humano com as coisas do mundo como caminho de integração. Confinado num hospício no Rio de Janeiro, Arthur Bispo do Rosário estabeleceu com os objetos relações que o possibilitou percorrer os labirintos ou encruzilhadas da psique. Escreve Hidalgo (2011, p. 22-23): “De início, na falta de material, Bispo teria desfiado o próprio uniforme azul da Colônia para reaproveitar os fios em seus bordados. Desmanchou toda a veste, aproveitou linha a linha e deu inicio à teia que abrigaria os lotes de seu novo mundo. Ao desfazer o próprio uniforme, desconstruía um dos grandes símbolos do poder psiquiátrico e reutilizava a matériaprima para construir seu universo paralelo [...]. Em toda a essa representação, destacam-se, sempre, as palavras. Palavras escritas, bordadas, pintadas”. Ligiéro (2011, p. 228-229) faz sugestiva observação: “Embora Bispo do Rosário não tenha deixado nenhum discurso sobre a sua aproximação com o mundo afro-brasileiro – ao contrário, enfatizou a sua ligação com o mundo católico –, a presença dos elementos africanos está viva e pulsante”. Da nossa parte, os labirintos ou encruzilhadas do Bispo foram percorridos mediante coisas e palavras – coisas nas palavras e, simultaneamente, palavras nas coisas. 247 O psicólogo de orientação junguiana da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Álvaro Gouvêa, assume o objeto material, especialmente o barro, como participante do setting analítico, formando assim uma triangulação de atores: analista-objeto-analisando. Os três participarão ativamente de uma obra vincadamente alteritária. Escreve Gouvêa (1989, p. 33): “Na utilização do objeto material os estados afetivos de onde nascem as imagens se impregnam na matéria [...]. É o encontro com o fenômeno e não mais com o discurso infindável sobre o fenômeno”. Para aprofundar, ver. GOUVÊA, A. P. Sol da terra: o uso do barro em psicoterapia. São Paulo: Summus, 1989; e do mesmo autor, A tridimensionalidade da relação analítica. São Paulo: Cultrix,1999. OLIVEIRA DE, Santina Rodrigues, “Reflexões sobre a materialidade numa abordagem imagético-apresentativa: narrativa de um percurso teórico e prático à luz da psicologia analítica”. Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2006.
constitutivos do processo de formação da personalidade. Diz Winnicott (In: OLIVEIRA, 2006, p. 25): “É verdade que as pessoas passam a vida segurando o poste no qual se apoiam, mas tem que ter havido em algum ponto, no início, um poste de fato”. Sublinha Von Franz (In: OLIVEIRA, 2006, p. 12):
O que é divino? Os materiais são divinos e, portanto, se usarmos qualquer tipo de matéria, estamos usando um deus, ou uma divindade repleta de mana e ao misturar materiais, misturam-se forças divinas e uma força é exercida, ou se realizam mudanças dentro do reino das forças divinas.
Psicologicamente, podemos dizer que as coisas tem psique248 e, portanto, gozam de um lugar fundamental no desenvolvimento humano e no seu acontecer criativo no mundo249 – no exercício
intransferível da séria arte de brincar, conforme defende Winnicott (1975) em O brincar e a realidade. “É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação (WINNICOTT, 1975, p. 79). E não existe mística afro sem a competência desse brincar capaz de instaurar o regime poético na dureza do real.
Considerar a mística dinamogênica afro-brasileira à luz da relação de Abdias com os orixás, especialmente Exu, conduz-nos, forçosamente, a considerar a materialidade ou a relação com os objetos não como adminículo ou apêndice na experiência religiosa afro, mas como constitutiva da mesma. Em outros termos, o envolvimento místico de Abdias travado com os orixás reverbera e, simultaneamente, credibiliza a potência das coisas, o valor indispensável da materialidade. Dessa feita, manejar objetos (roupas, talismãs, ferramentas, patuás etc.) atravessam e sustentam a mística na diáspora.
248 O psicólogo James Hillman em Cidade & alma sustenta a necessidade de se romper com a ditadura do intrapsíquico ou intrassubjetivo cuja visão limitada e castradora tira a alma, isto é, a psique, do mundo das coisas. Para o autor a noção de anima mundi oferece a possibilidade de se acolher as coisas do mundo enquanto realidades vivas e, portanto, portadoras de potências humanizadoras. Escreve o autor: “Portanto quando algo dá errado na vida, a psicologia profunda ainda olha para a intra e a intersubjetividade em busca da causa e da terapia. O mundo das coisas públicas, objetivas e físicas –prédios, formulários, colchões, placas de trânsito, embalagens de leite e ônibus – é, por definição, excluído da etiologia e terapia psicológicas. As coisas permanecem fora da alma” (HILLMAN, 1993, p. 10). Cremos que em culturas africanas e diaspóricas, em especial na esfera mística, que implica manipulações de materiais, não se detecta esse divórcio apontado por Hillman. A propósito, o caráter ubiquitário de Exu no sistema nagô sustenta a sacralidade de todas as coisas, visíveis e invisíveis. Se Hillman defende que tudo tem psique, em linguagem nagô pode-se falar, conforme Santos (1986) tudo tem Exu; logo, tudo tem axé – vida e força que exige trabalho e manipulação a fim de que se coloque a serviço da pessoa e da coletividade. 249 No plano clínico escreve Gouvêa: “É o desconhecido do Objeto material que se funde como o desconhecido no homem e traz à tona uma nova vida, uma nova imagem. Esse encontro é Arte. É criação”.
Brito (2017, p. 208-209), dialogando com vários autores (KARASCH, 2000; RANGEL, 2015; SOUZA, 2000 e outros)250 sensíveis aos arranjos e apetrechos da vida escrava, escreve no subtítulo de seu artigo intitulado Da cultura material:
Um campo visto como desafiador remete ao dos objetos de culto realizados pelos escravizados que não apenas têm história, como também significados reveladores de culturas africanas e afro-brasileiras. Entre os muitos artefatos fabricados pelos cativos encontram-se os destinados a práticas religiosas.
Assinala ainda o autor:
A confecção de bolsas de mandinga era muito frequente entre os escravizados, não deixando de impressionar os artefatos encontrados nestas bolsas, como bem notou Mary Karasch. Artefatos reveladores de uma busca incessante para controlar, manipular, agir, sobre o mundo espiritual.
Brito (2017, p. 210), saliente que a cultura material tem muito a dizer aos historiadores e cientistas da religião, no que revelam de “identificação da comunidade; capacidade de simbolização dos escravizados; aspectos do contexto social e histórico; condutas concretas de resistência à escravidão e estudos comparativos entre cosmogonias africanas e as reconstruídas na diáspora”.
No limite de nossa tese, podemos dizer de forma concisa o quanto a experiência mística de Abdias Nascimento (1983), descrita especialmente na obra Axés, manifesta uma materialidade/espiritualidade de envergadura que faz pensar em termos de um diferencial místico. Assinalam Simas e Rufino (2018, p. 31):
Para uma epistemologia das macumbas há que se credibilizar as inúmeras formas de experiências, principalmente aquelas não possíveis no colonialismo ocidental, como mantenedoras e produtoras de saber. Pedras de rio, caroços de dendê, plantas, animais, sons, conchas e muitas outras formas são, na relação com o que inventamos na vida, formas de manutenção, produção e orientação de saberes assentados em outras lógicas.
A obra Axés (NASCIMENTO, 1983) é repleta dessa experiência potencializadora com as coisas do mundo e com o mundo das coisas. No poema/oriki “Padê de Exu libertador” (NASCIMENTO, 1983, p. 9-14), por exemplo, o místico negro fala de “encruzilhada”, “sangue”,
250 Ver também: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. Com especial destaque para o assunto, ver os subtítulos Poder e proteção: amuletos malês, p. 180-197, e Escrituras em confronto, p. 197-214. Escreve Reis (2012, p. 214): “Os escritos e amuletos, as roupas, os anéis, os nomes pessoais – todos esses sinais distinguiam aqueles que formavam a ´sociedade malê´ na Bahia de 1835. Eram seus sinais diacríticos, marcas de sua identidade [...]. O desafio de sobreviver e resistir foi encontrado coletiva e solidariamente, apesar das diferenças e das tensões étnicas, doutrinárias e outras encontradas dentro de própria comunidade muçulmana”.
“alguidar”, “palmeiras”, “âmago do ferro”, “bichos de patas”, “charutos” etc. Em “Escalando a Serra da Barriga” (NASCIMENTO, 1983, p. 28-31) o místico escreve “risca ponto o dilogum”, fala do “opelê de Ifá e Ogum”, o que já aborda a necessidade mística de se enlaçar com as insígnias dos orixás. Em “Prece a Oxum”, sua mãe mítica pede a insígnia da santa dizendo: “... me dê vosso abebê” (NASCIMENTO, 1983, p. 40). No poema “Peregrinação à Gorea” (p. 74), o sujeito místico-poético diz: “... empunha o duplo machado...”. No poema “O Agadá da transformação” (NASCIMENTO, 1983, p. 85-90), o próprio título já fala da espada do orixá Ogum. E diz o místico combatente (NASCIMENTO, 1983, p. 87): “Empunho o Agadá/ obrigação a Ogum e Ifá...”. No poema “Rumo a Bluefields” (NASCIMENTO, 1983, p. 94-96) jaz escrito: “Empunhando o palo de mayo/ emergem figuras ancestrais...”.
Dentre tantas outras citações que o limite de nosso trabalho não permite colher, destacamos como uma das mais significativas expressões da relação do místico poeta com as insígnias dos orixás, no poema “Axexê de Oxalá” (p. 99-102), em que de forma místico-poética Abdias aborda com extraordinária imaginação religiosa seu próprio rito funeral. No referido poema o autor pede a Oxalá: “Deixa-me antes de ir empunhar o teu opaxorô”; e diz “com ele quero tocar o universo dos mitos/ libertar-me dos limites/ nevados da lógica...”. E ainda quando tomba, é na insígnia do orixá da criação que ele se apoia: “... tombo de costas/ um céu de ameaças/ desaba sobre mim/ minha alma gelada/ tomba sob meu corpo tombado/ ao opaxorô então me apoio/ na prata da tua piedade/ me levanto Obatalá...”; e os tambores emergem como objetos necessários ao rito: “... ao toque dos tambores/ aproximando o tan-tan da esperança ao ritmo intenso do adarrum...”.
E agora o místico confessa que o ritual de sua passagem dar-se-á sob a potência mediadora da matéria, da insígnia ou do objeto. Diz Abdias: “Sob teu opá do mistério comando o mistério do meu próprio funeral...” [o negrito é nosso]. Se a trajetória heroica de Abdias faz crer que a partir de uma mística nascimentista, “campo de batalha é também campo de mandinga” (SIMAS e RUFINO, 2018, p. 105), o negro revoltado não tergiversou em dizer/cantar que quem vence demanda é “Xangô, Xangô, Xangô” e se o assunto são objetos potentes e potenciadores, continua Abdias no canto de mandinga: “Cerveja na pedreira, cerveja pra Xangô...”. E no “Ponto de Exu” entoado no processo de reencontro do doutor Emanuel com a sua ancestralidade, Abdias exibe em Sortilégio II:
[...] Caminhos da meia-noite
Charuto marafo dendê
Mensageiro do Axé forte