292 culturais e religiosos que a população negra inventou para sobreviver, resistir e potencializar a vida. ii) O que nomeamos de Projeto-Político-Mistagógico de Abdias extraído do poema “Olhando no espelho”. Enuncia o sujeito místico-poético: “[...] devemos continuar sonho/ nosso trabalho/ reinventando nossas letras/ recompondo nossos nomes próprios/ tecendo laços firmes/ nos quais/ ao riso alegre do novo dia/ enforcaremos os usurpadores de nossa infância” (NASCIMENTO, 1983, p. 50). As duas frases destacadas acima se reclamam mutuamente e orientam nossa compressão de que tornar-se “cavalo do santo no terreiro da história” para Abdias significou incorporar místicas potentes e credibilizá-las enquanto portadores de uma chama indestrutível. Também significou continuar o sonho e os trabalhos dos que o antecederam, “tecer laços firmes” e “ao sorriso alegre do novo dia” enforcar os que matam a vida e felicidade do povo negro; e isso significa uma nação liberta do racismo e da lógica de dominação-servidão. É nesse obrar “nutrido ao axé de Exu, ao amor infinito de Oxum, à compaixão de Obatalá, à espada justiceira de Ogum” (NASCIMENTO, 1983, p. 50), que místicas afro-brasileiras, em geral, e, singularmente, místicas nascimentistas, importam enquanto reverberações de lógicas, racionalidades, sensibilidades e epistemes que se enunciam enquanto lugar de potência e de reinvenção da resistência, da sobrevivência e do encantamento da vida e da sociedade.
5.3. Mística à flor das coisas Diz Abdias no poema “Mucama-mor das estrelas”: “Meu ferro de três pontas aponta em ti...” (NASCIMENTO, 1983, p. 80). A referida fala do místico abre caminho para pensarmos o lugar de envergadura das coisas ou objetos nas místicas afro-brasileiras. Místicas nascimentistas credibilizam materialidades como potências indispensáveis ao enlace. A propósito, humanos e divindades possuem seus apetrechos com os quais se identificam, vivem e se constroem243.
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O que seriam dos orixás sem seus apetrechos? O que seria dos humanos? A navalha do malandro é o malandro. O ser humano se identifica de tal forma com as coisas que elas podem fazer parte de seus nomes, isto é, de sua identidade. Por exemplo: Paulinho da Viola, Jackson do Pandeiro etc. A cantora, Dona Ivone Lara, narra que, órfã de pai e mãe, sem ter possibilidade de possuir uma boneca, fez do passarinho Tiê o seu brinquedo ou, seu objeto transacional, na conceituação de Winnicott (1975). Para o referido teórico da psicologia do desenvolvimento do bebê, o objeto transacional “representa a transição do bebê de um estado em que este está fundido com a mãe para o estado em que está em relação com ela como algo externo e separado” (WINNICOTT, 1976, p. 30). Linebaugh (1983, p. 26) relata oportunamente: “Em 1666 um escravo africano e um indentured servant inglês fugiram de suas respectivas fazendas. Antes de sair, o escravo cuidou, antes de mais nada, de levar o violino do seu senhor”.