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5.1 Mística de encruzihada (ou rizomática
from QUEM DISSE QUE EXU NÃO MONTA? ABDIAS NASCIMENTO, O CAVALO DO SANTO NO TERREIRO DA HISTÓRIA
by IPEAFRO
que “nenhum filho de Yemanjá consegue, como esse, comprometer a força vital num discurso, num poema, num quadro”. Assinala Clóvis Brigagão (1995, p. 116):
Seus quadros são gritos de liberdade, que vem lá do fundo, do interior, das raízes que se transformam, incandescentes, nos vértices dos orixás de sangue e de vida. São hábitos, coreografias, gravações míticas, na arte que ritualiza e profetiza a luta política, soberana, perene e humana. Ali está Xangô tomando o poder dos idólatras do poder; Oxossi uivando a ira de sua ancestralidade violada. Rei, ali vai Exu cavalgando o emblema do poder imperial derrocado.
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Depreende-se dessa afirmação a narrativa de um homem polivalente cujo ser e o agir estavam enraizados em místicas potentes. E essa relação com o sagrado fez de Abdias um lutador cujo empoderamento não se pode explicar fora dos referenciais religiosos. Nesse horizonte, o que verdadeiramente empodera é a mística; saber-se possuído, incorporado, acompanhado e apetrechado pela divindade. Testemunha Joel Rufino dos Santos (1955, p. 112) acerca do fundamento da saga heroica de Abdias:
Se lutasse pela transgressão dos limites apenas no plano político seria uma pessoa comum nada mais que um lutador. Além da política, porém, está a vida; além da vida está o mundo, o cosmo, o espaço-tempo e o além-de-tudo-isso. Está o Segredo, único ponto de fuga a partir do qual se organiza a existência
5.1 Mística de encruzihada (ou rizomática)
Pensar em termos de uma “mística de encruzilhada ou rizomática” é tributário do
posicionamento alteritário de Glissant (2005) que, a partir de Deleuze e Guattari, usa o termo “identidade raiz” e “identidade rizoma” para pensar a relação da cultura e da identidade no âmbito de uma poética da diversidade. Escreve Glissant (2005), fazendo referência aos dois autores supracitados: “A raiz única é aquela que mata à sua volta, enquanto o rizoma é a raiz que vai ao encontro das outras raízes” (GLISSANT, 2005, p. 71). A nosso ver, essa é uma imagem poderosa e sugestiva para pensarmos sistemas religiosos autocentrados e sistemas religiosos abertos e dispostos ao estabelecimento de relações transformadoras nas encruzilhadas da vida.
Ir ao encontro, deslocar, flexibilizar, estabelecer relação significa abandonar a fixidez, o imobilismo, a intolerância e o sectarismo; e isso não significa desprezar raízes, mas abrir-se a novas possibilidades identitárias a partir da relação. “Se entrarmos na diversidade do mundo tendo renunciado a nossa própria identidade, ficaremos perdidos numa espécie de confusão” (GLISSANT, 2005, p. 154).
No pensar de Glissant (2005, p. 154), a saída para o mundo é, como o rizoma, estender “suas ramificações em direção aos outros”. Acreditamos, pois, que a “biografia mística” de Abdias segue, sob o influxo de Exu, o deus dos encontros e das trocas, essa direção alteritária, o que fez de Abdias um ser aberto à humanidade, um homem plural e artífice de uma mística diversificada e inclusiva. Ressaltando a mobilidade própria do orixá Exu, escreve Abdias Nascimento (1995, p. 63): “Como portador do axé, ele é o único orixá que passa de um domínio ao outro”.
Elegbara caracteriza-se como um poder incontrolável e inacabado. Assim, infere dinamismo para toda e qualquer possibilidade de criação, versa sobre todas as dimensões da ambivalência, dominando e operando como princípios de possibilidades e imprevisibilidades. (SIMAS e RUFINO, 2018, p. 52).
Estamos falando, nesse sentido, de uma possibilidade mística que não atua no binarismo de oposição, mas na lógica da complementaridade.
[...]as práticas culturais da diáspora africana tendem a transgredir qualquer tentativa de ajuste em esquemas binários. A potência transgressiva dessas práticas se dá na perspectiva de que as mesmas se assentam sobre outras bases de conhecimentos de mundo (SIMAS e RUFINO, (2018, p. 43).
Encruzilhada, dessa feita, aparece para além do lugar geográfico, como locus mistagógico e, sob esse viés, epistemológico.
O dono da rua, morador da encruzilhada, manteve a dinamização das invenções da vida nas esquinas da modernidade. [...]. No riscar do ponto de uma pedagogia encruzada, Exu é aquele que come primeiro. As formas de conhecimento e de educação que o negam são modos imóveis e avessos a transformações. Exu é o princípio dinâmico fundamental a todo e qualquer ato criativo. Elemento responsável pelas diferentes formas de comunicação, ele é o tradutor e linguista do sistema mundo. As mentalidades que buscam interditá-lo, o pintando como o ‘diabo a quatro’, restringem suas visões, invisibilizando um vasto repertório de sabedorias que alargam as possibilidades de interação e invenção de outras possibilidades (SIMAS e RUFINO, 2018, p. 20).
Podemos também sublinhar no PEL232 dois outros conteúdos de fundamental importância para a negra gente no que tange às invenções de novas possibilidades de cruzar, conectar, coexistir, pensar e criar a partir das frestas. Esses dois signos mistagógicos e epistêmicos da ambivalência de encruza são: a “meia-noite”233 e o “marafo forte”.
232 Ver na introdução da obra. 233 Logo no começo do PEL Abdias escreve “...ao bruxuleio das velas” (NASCIMENTO, 1983, p. 9), isto é, ao apagar das velas, ao escurecer. Trilhando uma via mística afrodiaspórica, o ativista situa seu diálogo com Exu na boca da noite. Escrevem Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 640): “A noite simboliza o tempo das gestações, das germinações, das conspirações, que vão desabrochar em pleno dia como manifestação da vida. Ela é rica em todas as virtualidades da
A meia-noite é a hora, por excelência, da indeterminação. Ela manifesta o entretempo, pois o velho dia ainda não morreu e o novo ainda não nasceu. Na passagem de ano diz-se “hora da virada”. Essa hora sem hora é, simbolicamente, carregada de riscos, perigos e suspeitas. É, pois, o tempo das possibilidades... É nessa “hora grande”234 (e não noutro momento) que Abdias estabelece no poema/oriki sua mística com Exu. Escreve: “Não recuso provando do teu mel, cheirando meia noite de marafo forte...” (NASCIMENTO, 1983, p. 9). Na mística do candomblé tem encruza no relógio... Os tempos não são iguais. Isso é apanágio de UM mundo místico ritualizado.
O “marafo forte” também é signo da ambivalência. Segundo Cacciatore (1977, p. 178), marafo é “aguardente”, termo muito usado pelos exus. Em chave mística o marafo ou a aguardente, sob os véus dos símbolos, reclama o diálogo, a reunião e encontro – a interação dos contrários. Escrevem Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 28): “O álcool realiza a síntese da água e do fogo” [negrito do autor]. E também dizem: “O álcool simbolizará a energia vital que deriva da união dos dois elementos contrários, a água e o fogo”. Dessa feita, podemos também aferir no marafo as potências do corpo que, “põe imediatamente o seu calor no fundo do peito” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2007, p. 28). E é desse calor que vive o encante, a mística e a magia. Estamos tratando aqui de artimanhas de relação e transformação, mas também de “agenciamento alcoólico”, empoderamento mediante goladas místicas capazes de fazer “terreiros” no “terreiro da história”.
Nas palavras de Simas e Rufino (2018, p. 45):
Praticamos terreiros nas mais variadas formas de invenção da vida cotidiana. Nas festas, nas brincadeiras, nas alegorias da vida comum, na carnavalização no mundo, na avenida em que os corpos performatizam seus saberes em forma de desfile. Ao lançarmos versos como pedidos de licença, ao cruzarmos o chão ‘dando de beber’ ou até mesmo na esquina mais próxima onde o marafo foi cuspido como forma de interlocução com o invisível, o terreiro está.
Retomando as artimanhas e habilidades da negra gente durante a travessia, importa ressaltar o poder ambivalente da encruzilhada, campo de relação e possibilidades. Conforme Simas e Rufino (2018, p. 50),
A encruzilhada transatlântica codifica-se de forma ambivalente, forja-se em caráter duplo. Ao mesmo tempo em que a experiência de desterro é produzida como impossibilidade há o cruzo e a necessidade de reinvenção como possibilidade de
existência. Mas entrar na noite é voltar ao indeterminado... Na teologia mística, a noite simboliza o desaparecimento de todo conhecimento distinto, analítico, exprimível; mais ainda, a privação de toda evidência e de todo suporte psicológico”. 234 Cacciatore (1977, p. 140) define “hora grande” como hora em que na quimbanda, nos candomblés de caboclo e em alguns terreiros de umbanda popular Exu é chamado para a incorporação nos médiuns, sendo essa cerimônia denominada “gira dos exus”.
sobrevivência [...]. O traçar dessa rede transcultural reescreve outras perspectivas que confrontam e rasuram as pretensões monoculturais do colonialismo.
O que está em jogo no que nomeamos “mística da encruzilhada ou rizomática” é a competência do “cavalgar”, isto é, caminhar, percorrer mundos, borrar, rasurar, fronteiras, estar aberto, relacionar-se, trocar, intercambiar, comunicar, transformar e ser transformado, numa palavra, viver-conviver.
Nesse horizonte, a luta de Abdias não se deu no sentido de construir um mundo a partir de um exclusivismo ou supremacismo negro (invertendo a ordem de dominação), tampouco elaborar arranjos sociais de oposição negro versus branco. Sua batalha residiu, substancialmente, em colocar o negro, (com sua história, valores, exigências e contribuições) no plano alteritário.
Escreve Abdias acerca da democracia no Brasil: “Trabalhamos com esforço ininterrupto para que tudo isso seja uma realidade que o povo – brancos e negros – possa vivenciar na existência de todos os dias, de todos os minutos, de todos os instantes” (NASCIMENTO apud NASCIMENTO, E., 1985, p. 60). Podemos dizer que Abdias, ao desmarcar e denunciar o racismo no Brasil, dizia, de outro modo, que era a elite branca hegemônica que se opunha às trocas, aos cruzos, ao híbrido. Diz Abdias:
O Brasil se ergueu sobre o crime, foi construído utilizando-se do crime da escravidão. E os herdeiros desse crime – a elite social, econômica e política – herdou todos os poderes e todas as possibilidades de manipular os instrumentos de força e coerção [...]. Não estamos criando e nem advogando um novo gueto [...] (NASCIMENTO, apud NASCIMENTO, 1985, p. 63).
A África, pois, significou para o ativista não um ponto de chegada, mas de partida; partida para todas as encruzilhadas, para todos os relacionamentos, para todas as trocas, hibridizações... É da competência de Exu o indeterminado, o status nascendi, o imponderável, o flexível, o dialógico, as negociações, as mutações, as encruzas – o rizomático.
As palavras de Roger M. Isaacs sobre as pinturas de Abdias podem lançar luzes acerca do imaginário vivo e dinâmico do negro revoltado – imaginário de encruzilhada, imaginário rizomático. Diz Isaacs:
Os objetos de Abdias são, portanto, deliberadamente ambíguos. Cruzes serpentinas, flores lunares, peixes alados, olhos estrelados, e pássaros-folhas estão entre as mutações mais comuns, e essas mutações podem transformar-se rapidamente em permutações – serpentes floridas, luas oculares, cruzes aladas, peixes estrelados, asas-folhas, serpentes e flores estreladas, cobras apassaradas – através do princípio da troca, da contaminação. Esses exemplos podem ser multiplicados ad infinitum,
mas aqui basta dizer que o mundo constitui uma sempre-crescente antropocosmografia dependente da filosofia da troca. Cada objeto doa de si a outro: assimila as qualidades do outro enquanto retém apenas o suficiente para ser reconhecido como indivíduo (ISAACS apud NASCIMENTO, 1995, p. 123).
Ainda escreve Isaacs no mesmo horizonte:
No Segundo manifesto surrealista (1963:92), André Breton afirma que ‘tudo me leva a crer que existe um certo ponto na mente onde a vida e morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, não mais são percebidos como contraditórios’. Abdias tem essa mesma visão maravilhosa – utilizamos o termo no sentido surrealista – do mundo e isso permite a ele certa licença poética, conduzindo ao deslocamento físico no espaço [...]. Estou frequentemente tentado a denominar todos os seus objetos de ‘fênix’, pois todos respondem à tripla necessidade de existir como geradores, morrer na perda parcial de si mesmos através desse mesmo fogo da assimilação sexual, e renascer das próprias cinzas, através desse mesmo fogo que os destruiu. Entretanto, mais que outra coisa, esse pintor ama o vento, esse invisível agent provocateur que completa o seu trabalho. O vento, talvez, mais que outra coisa nessas telas, precisa ser visto dinamicamente, pois ele libera objetos que parecem estar enraizados no espaço e no tempo e os une com os outros.
Segundo Guerreiro Ramos (In: NASCIMENTO, 1995, p. 95), Abdias “não alimenta a vã esperança de voltar ao passado, a uma falaciosa África original. Evidentemente, ele está comprometido com sua herança negra, porém recorre a ela para enriquecer sua experiência da história contemporânea” .
Não sem razão, sublinhou Clóvis Brigagão (In: NASCIMENTO, 1995, p. 116): “Militante da polis abrangente, universal, Abdias está longe de qualquer provincialismo”. Para Daniel Irving Larkin (In: NASCIMENTO, 1995, p. 102), “o amor à humanidade e o compromisso com ela estão sempre no centro do trabalho de Abdias”. É ainda digno de menção outro testemunho de Guerreiro Ramos acerca da competência rizomática de Abdias. Explana Ramos (In: NASCIMENTO, 1995, p. 1):
Abdias acredita que nenhuma pessoa e nenhuma raça específica deve ser destituída de suas características para merecer as prerrogativas do universal. Como negro, e porque o negro tem sido o ser mais destituído dos últimos séculos, Abdias fez sua a missão de tentar descobrir e explorar maneiras de trazer para o fluxo principal da História da humanidade aquilo que tem sido excluído. Assim, ele aceita sistemática e profundamente a sua condição circunstancial como uma perspectiva concreta sob a qual pode-se alcançar o eterno. O divino, a beleza, podem ser encontradas na negritude, onde convencionalmente se enxerga a degradação. Mas o fato de a arte de Abdias ser verdadeiramente uma arte negra deriva apenas do compromisso autêntico com um acidente biográfico. Seus símbolos visam o que está além da negritude, da brancura ou de qualquer contingência, e dizem que todos os homens podem ser reunidos na base de sua herança comum.