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4.4 Abdias, o lutador
from QUEM DISSE QUE EXU NÃO MONTA? ABDIAS NASCIMENTO, O CAVALO DO SANTO NO TERREIRO DA HISTÓRIA
by IPEAFRO
É significativo para a nossa reflexão apreender no mito como Exu constrói o processo de conhecimento e como o saber se alia interna e necessariamente ao poder. Hampâté Bâ (2003, p. 197) expõe como na velha África o conhecimento se alia à vida e o quanto demanda atenção e acurada percepção sobre os ensinamentos acerca do que se poderia nomear “as ciências da natureza”.
Todos estes ensinamentos fundavam-se em exemplos concretos e fáceis de as crianças compreenderem. Algumas cenas que observavam propiciavam aprofundamentos: uma árvore abrindo os galhos em direção ao espaço permitia explicar como tudo, no Universo, se diversificava a partir da unidade; um formigueiro ou cupinzeiro ofereciam a ocasião de falar sobre as virtudes da solidariedade e das regras da vida social. A partir de cada exemplo, de cada experiência vivida, o bawoe os anciões ensinavam aos meninos como se comportarem na vida e as regras a respeitar em relação à natureza, aos semelhantes e a si mesmos. Eles os ensinavam a ser homens (HAMPÂTÉ BÂ, 2003, p. 197).
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Ensinar a ser homem implica na apreensão de conhecimentos pertinentes; logo, saberes relacionados à vida concreta compreendida e apreendida na sua globalidade. Ensina Hampâté Bâ (In: KI-ZERBO, 1982, p. 183):
Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da comunidade, a ‘cultura’ africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença particular no mundo – um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem.
Para Gullar, Dom Quixote tipifica as humanas criaturas em suas intermitentes e multiformes sagas, périplos e lutas. Gullar, proferindo palestra intitulada “Dom Quixote e os problemas da leitura”219, diz no início de sua fala que “a leitura pode gerar problemas sérios”. E diz ainda: “Cada um de nós tem a sua aventura em consequência do que lê”. Essa frase tem grande valor para a nossa reflexão porque exprime, a nosso ver, a experiência de Abdias como “cavaleiro andante” que, já na infância, em situações objetivamente adversas, travou clandestinamente com a literatura encontros inesperados. A mística abdiasiana, desse modo, constitui forma de conhecimento, instância interpretativa da sociedade – conhecimento crítico e profundo acerca do mundo.
4.4 Abdias, o lutador
Acessar a trajetória de Abdias implica adentrar num universo onde religiosidade e vida, encanto e luta, mística e heroísmo caminham de mãos dadas. Nesse horizonte, o herói é o místico e o contrário é, igualmente, verdadeiro. Escreve Bingemer (2013, p.312):
219 Cf. 8° Ciclo / Obras primas da literatura universal: “Dom Quixote e os problemas da leitura”. Coordenador: Zuenir Ventura. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=FNFlj2GPJ6I
E, com a sede de Transcendência que se experimenta hoje, apesar da crise cultural e civilizacional que vivemos, os místicos contemporâneos podem ser esses heróis outros, diferentes, discretos e humildes, que estão onde ninguém gostaria de estar, que vão aonde ninguém quer ir e que ardem com uma chama que nunca se apaga.
Considerando a simbólica do orixá Exu sob as lentes da psicologia junguiana, Sonia Regina Corrêa Lages em Exu – luz e sombras (...) escreve acerca do mito do herói:
O mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo [...]. O mito do herói possui um significado psicológico profundo tanto para o indivíduo no seu esforço para afirmar sua personalidade, quanto para a cultura, na sua necessidade de estabelecer uma identidade coletiva [...]. O ciclo heróico, que vai do nascimento à morte, possui várias etapas que se aplicam aos determinados pontos que vai alcançando a consciência rumo à maturidade, até culminar com a morte, que simboliza a conquista desta maturidade (LAGES, 2003, p. 43).
Abdias Nascimento, mesmo não sendo um iniciado stricto sensu, vale para ele as palavras de Prandi (1991, p. 25): “A diferença básica é que o candomblé, como a umbanda, e em menor grau o kardecismo, permite ao iniciado a expressão desse outro que é ao mesmo tempo o eu conhecido e o eu escondido no papel da divindade. Esse outro que pode ser não apenas um, mas vários”.
Abdias aprendeu, e apreendeu a duras penas, que para o negro no Brasil um combate sangrento e intermitente o espera desde o ventre materno, em especial contra a política insidiosa e multiforme de genocídio da população negra.
Luta defendendo-se. Luta contra os obstáculos que se antolham na caminhada de sua realização. Luta no plasmar da vida e do mundo conforme seus sonhos e suas metas... o herói/heroína lutador sabe quantas lutas tem demandado historicamente a dignidade humana e a vida autônoma, justa e plena. Toda luta exige doação, capacidade de renúncia e de sacrifício em favor dos outros e dos sonhos que se quer concretizar (BOFF, 2000, p. 120-121).
Desse modo, a luta é categoria necessária para se acessar a vida e obra de Abdias Nascimento; vida atravessada pela força sagrada, o axé, que o “negro revoltado” extraiu das religiões de matriz africana, em especial, do candomblé. Nesse sentido, homens e divindades se inscrevem nas mais diversificadas trincheiras em defesa da vida de uma população cujo crime na sociedade brasileira reside no fato de ter nascido negro ou negra.
Nesse caminhar, o herói/heroína concreto transcende os limites biográficos. Faz uma experiência universal que o religa aos demais homens e mulheres. Deixa emergirem, então visões, símbolos e valores universalmente válidos que brotam das profundidades do mistério da vida e dos desejos mais íntimos (BOFF, 2000, p. 116).
De forma emblemática, a Escola de Samba do Rio de Janeiro, Acadêmica de Vigário Geral, no carnaval de 2012 homenageou Abdias Nascimento com o enredo “Abdias Nascimento, uma vida de muitas lutas”. E diz o samba:
Canta Vigário Geral
A luta de um negro neste carnaval
Abdias estudou e venceu
Marcou o seu nome na história
Tanta inteligência
Fez faculdade se tornou doutor
Nascia a liberdade...
Sou negro, sou comunidade
Vou lutar e Vou vencer
Abdias Nascimento,
Meu espelho de vida é você
Figura 18: Homenagem a Abdias Nascimento - Escola de Samba Acadêmica de Vigário Geral, no carnaval de 2012 com o enredo “Abdias Nascimento, uma vida de muitas lutas”. Fonte: http://www.academiadosamba.com.br/passarela/acade