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5.2. Abdias, o místico à flor dos laços
from QUEM DISSE QUE EXU NÃO MONTA? ABDIAS NASCIMENTO, O CAVALO DO SANTO NO TERREIRO DA HISTÓRIA
by IPEAFRO
Sentir-se “punho” do santo no contexto de genocídio físico e simbólico da população negra significa assumir a missão de defender, cuidar e proteger a confraria dos historicamente desvalidos. É, pois, a partir desse contexto, que místicas negras “nascimentistas” assumem lugar de potência porque delas nascem resistência, resiliência, insurgências, rebeliões, enfrentamentos e toda sorte de mirongas, dribles, gingas, manhas, mumunhas e inventividades. Diz Ligiério (2004, p. 184-185): “Vejo a figura de Zé pelintra como o malandro divino, uma espécie de patrono espiritual do Brasil, ajudando muitos na sobrevivência difícil abaixo da linda tolerável da miséria”. E sublinha ainda:
Vivemos um momento de busca de novas referências e novos mestres, uma época em que muitos já não creem mais nas religiões e nos partidos políticos, nas grandes revoluções. Nesse sentido, Zé Pelintra, em suas múltiplas versões, tem se mostrado um guia maleável e exemplar, apesar de ainda pouco conhecido e muito combatido pelas religiões do poder.
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Místicas nascimentistas se alimentam da energia simbólica de Exu-Pelintra, potência sagrada que sustentou o punho de Abdias no seu projeto libertário. Tais peripécias importam porque, na lógica do místico-ativista, libertação não se reduz ao dado socioeconômico, mas relaciona-se com a totalidade da vida: cultura, estética, poética, erótica, política etc. Apresentaremos, de forma sucinta, algumas das riquezas das peripécias culturais e religiosas aferidas das “místicas nascimentistas”, que sob o influxo da potência de Exu-Pelintra exuniza malandramente o “terreiro da história”.
Nosso intento fundamental é assinalar que a experiência mística de Abdias se relaciona com a saga e os périplos afrodiaspóricos no horizonte não apenas da resistência ou sobrevivência, mas na produção malandreada de uma vida pulsiva e encantada. Queremos, pois, responder à seguinte indagação: o que a mística vivenciada por Abdias revela das potentes práticas culturais e religiosas da gente preta no Brasil? O que as místicas nascimentistas produzem e o que credibilizam?
5.2. Abdias, o místico à flor dos laços
Segundo Rediker (2011), laços estabelecidos nos navios negreiros construíram uma cultura de resistência. E a trajetória de Abdias não se explica sem a construção e sem a potência da coletividade. Místicas nascimentistas são, fundamentalmente, místicas à flor dos laços. Tudo que vive participa da sacralidade que não secciona os mundos ou os reinos. Conforme Hampâté Bâ (1982, p. 187), “a tradição africana não corta a vida em fatias”. O ser humano, nessa compreensão, é parte de tudo que há; não existe antagonismo ou oposição entre o mundo visível e invisível. E o ser humano
vê-se habitado e, por isso, sempre acompanhado. Enuncia Hampâté Bâ (1982, p. 195) lembrado antigas tradições: “As pessoas da pessoa são numerosas no interior da pessoa”. E discorre oportunamente Antonacci (2014, p. 145),
Com tantas pessoas habitando a pessoa, delineiam-se perfis de corpos sem limites, configurando corpo comunitário, voltado para a memória, espiritualidade e preservação física, mental, moral, psíquica das pessoas com as quais convivem, em acentuada divergência a corpos individuais, isolados, voltados para a satisfação de seus interesses, projetando um eu personalizado, historicamente produzido em lógica racional.
A mística fez de Abdias um lutador diferenciado, um combatente fincado no sagrado. Vemos, pois, na pintura O Cavalo e o Santo apresentada no início deste capítulo, um estado de união sem fronteira e sem barreira. Essa situação comunhonal é fruto de uma experiência religiosa que não é marcada pela ideia de pecado ou culpa, e nem pelo distanciamento abissal entre ser humano, mundo, cultura e divindade. Enfatiza Antonacci (2014, p. 265):
Sem apartar sagrado/profano, matéria/espírito, são corpos negros e não almas –vocábulo e ideia ausente em suas culturas – que migram entre mundo visível e invisível, em vida espiritual alheia a lutas entre o bem e o mal. A ética religiosa de povos africanos e da diáspora concentra-se na preservação de tensos e precários equilíbrios entre regentes naturais e espirituais de seus mundos, personalizados em termos de um panteão de deuses que se mantém ao largo de arquiteturas religiosas pautadas no eterno dualismo do-Bem-e-do-Mal.
Dessa feita, o sentimento de parentela na ordem mística plasmou a trajetória do negro revoltado. E essa vivência Abdias Nascimento (1983) exprimiu de forma abundante na obra Axés do sangue e da esperança (orikis), que pode ser tomada como o corpus místico-poético do ativista. Citaremos algumas frases e expressões que, a nosso juízo, manifesta a vinculação humano-divina em chave africana e diaspórica, o que nomeamos, à luz da vivência de Abdias, de “místicas nascimentistas”242. Escreve Abdias Nascimento (1983,36-40):
a) Reconheceis em mim, Oxum, vosso pássaro Odidê?/ sustentai-me com a vossa pupa amarela/ fortalecei-me com a vossa gema de ovo (p. 36); b) ... neste templo solene diante do qual/ me prosterno em dobalê... (p. 37); c) ... sou vosso filho-peixe/ peixe-filho nadando vim/ ekodidê trançado a meus cabelos (p. 37); d) ... milhões de crianças negras/ estão no beijo que vos trago... (p. 37); e) ... sou vosso Ataojá (p. 40);
242 Em virtude do limite de nossa obra, nos restringiremos a algumas formulações extraídas do poema/oriki “Prece a Oxum”. Faremos alusão às frases que julgarmos mais importantes para a sustentação de nossa tese. Escolhemos esse poema pelo fato de Oxum ser a mãe mítica de Abdias, a regente de sua cabeça. Mas, o conjunto da obra se presta a ulteriores investigações no plano das místicas afro-brasileiras.
f) ... nem o Rei Laro/ nos alvoreceres da criação/e Meninha vossa ilustre/ e bem amada yalorixá/ hão sido adoradores vossos/ mais fiéis do que eu... (p. 40); g) ... em vosso abebê bebemos/ nossa própria origem e destino. Oraieieu (p. 40).
O limite de nosso trabalho não permite maiores reflexões sobre os excertos acima; contudo, vale sinalizar o quanto de imersão na realidade divina eles manifestam; o quanto desvelam de um universo místico-religioso de caráter unitivo e vibrante. Podemos dizer como Hampâté Bâ (1982, p. 186):
No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário, e o comportamento do homem em relação a si mesmo, em relação ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será objeto de uma regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou regiões.
Destacamos em nosso trabalho o lugar de Exu na trajetória de Abdias; contudo, é mister sublinhar que Exu não trabalha isoladamente, tampouco pode ser pensado de forma individualista. A propósito, onde estão orixás, lá está Exu, sem o qual sequer as divindades poderiam existir. Cada orixá tem o seu próprio Exu com o qual se relaciona e atua. Segundo Santos (1986, p. 131), é o elemento Exu “de cada um deles que executa suas funções”. Dessa feita, quando falamos em Oxum, não deixamos de falar de Exu e de todo sistema no qual seres visíveis e invisíveis participam na ordem da reciprocidade.
Risério (1996, p. 68) salienta que, não obstante a separação do Orum e do Ayê nos primórdios, os “orixás continuam intervindo sem cessar no Ayê. São deuses insuperavelmente ativos [...]. Os deuses iorubanos estão engajados até a medula na trama da vida humana [...] são deuses comprometido com o terrestre”. E diz ainda: “A Terra é um teatro para as proezas dos deuses”. Essa compreensão dos orixás como agentes engajados corrobora e credita a experiência mística de Abdias vivida fincada no sagrado e engajada com a sorte do mundo. Diz o místico-ativista:
Meus orixás não estão imobilizados no tempo e no espaço. São forças do presente. Emergem na vida diária e em assuntos seculares. Os orixás recebem nomes de pessoas vivas, assumem a defesa dos heróis e mártires que ainda hoje são oferecidos pela raça negra como sacrifício na busca de liberdade (NASCIMENTO, 1975, p. 49-50).
Não é demasiado repetir duas frases lapidares de Abdias para a feitura e sustentação da nossa tese, quais sejam: i) “De primeiríssima importância é a peripécia espiritual e cultural do afro-brasileiro: a história e os deuses da religião exilada com meus antepassados”. (NASCIMENTO, 2006, p. 22). Desse modo, para Abdias é de fundamental valor todos os arranjos