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Sentir-se “punho” do santo no contexto de genocídio físico e simbólico da população negra significa assumir a missão de defender, cuidar e proteger a confraria dos historicamente desvalidos. É, pois, a partir desse contexto, que místicas negras “nascimentistas” assumem lugar de potência porque delas nascem resistência, resiliência, insurgências, rebeliões, enfrentamentos e toda sorte de mirongas, dribles, gingas, manhas, mumunhas e inventividades. Diz Ligiério (2004, p. 184-185): “Vejo a figura de Zé pelintra como o malandro divino, uma espécie de patrono espiritual do Brasil, ajudando muitos na sobrevivência difícil abaixo da linda tolerável da miséria”. E sublinha ainda: Vivemos um momento de busca de novas referências e novos mestres, uma época em que muitos já não creem mais nas religiões e nos partidos políticos, nas grandes revoluções. Nesse sentido, Zé Pelintra, em suas múltiplas versões, tem se mostrado um guia maleável e exemplar, apesar de ainda pouco conhecido e muito combatido pelas religiões do poder.
Místicas nascimentistas se alimentam da energia simbólica de Exu-Pelintra, potência sagrada que sustentou o punho de Abdias no seu projeto libertário. Tais peripécias importam porque, na lógica do místico-ativista, libertação não se reduz ao dado socioeconômico, mas relaciona-se com a totalidade da vida: cultura, estética, poética, erótica, política etc. Apresentaremos, de forma sucinta, algumas das riquezas das peripécias culturais e religiosas aferidas das “místicas nascimentistas”, que sob o influxo da potência de Exu-Pelintra exuniza malandramente o “terreiro da história”.
Nosso intento fundamental é assinalar que a experiência mística de Abdias se relaciona com a saga e os périplos afrodiaspóricos no horizonte não apenas da resistência ou sobrevivência, mas na produção malandreada de uma vida pulsiva e encantada. Queremos, pois, responder à seguinte indagação: o que a mística vivenciada por Abdias revela das potentes práticas culturais e religiosas da gente preta no Brasil? O que as místicas nascimentistas produzem e o que credibilizam?
5.2. Abdias, o místico à flor dos laços Segundo Rediker (2011), laços estabelecidos nos navios negreiros construíram uma cultura de resistência. E a trajetória de Abdias não se explica sem a construção e sem a potência da coletividade. Místicas nascimentistas são, fundamentalmente, místicas à flor dos laços. Tudo que vive participa da sacralidade que não secciona os mundos ou os reinos. Conforme Hampâté Bâ (1982, p. 187), “a tradição africana não corta a vida em fatias”. O ser humano, nessa compreensão, é parte de tudo que há; não existe antagonismo ou oposição entre o mundo visível e invisível. E o ser humano