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4.3 Mito e mística: no pensar e no sonhar

A mitologia é, aparentemente, contemporânea da humanidade. Desde que, por assim dizer, fomos capazes de acompanhar as primeiras evidências fragmentadas e dispersas da emergência de nossa espécie, foram encontrados sinais indicando que as metas e as preocupações mitológicas já estavam moldando as artes e o mundo do Homo sapiens (CAMPBELL, 1990, p. 24).

Em O homem e seus símbolos Jung (2008, p. 69) escreve: Nessa época de convulsões sociais e mudanças drásticas é importante sabermos mais a respeito do ser humano, pois muitas coisas dependem das suas qualidades mentais e morais. Para observarmos na sua justa perspectiva precisamos, porém, entender tanto o passado do homem quanto o seu presente. Daí a importância essencial do mito.

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Jean-Pierre Vernant (2000, p. 12) em O universo, os deuses, os homens escreve: “Memória, oralidade, tradição: são essas as condições da existência do mito”. Desse modo abordamos a vitalidade mítica experimentada por Abdias em místicas potentes porque ele mesmo a expressou de variadas formas. Vida e palavra na trajetória de Abdias são, pois, facetas de uma mesma moeda.

O mito também só vive se for contado, de geração em geração, na vida cotidiana. Do contrário, sendo relegado ao fundo das bibliotecas, imobilizado na forma de textos, acaba se tornando uma referência erudita para uma elite de leitores especializados em mitologia (VERNANT, 2000, p. 12).

Importante salientar que o pensamento mítico não é um setor a parte do pensamento racional; nesse sentido não há oposição, necessariamente, entre essas duas formas de se lidar com o mundo e consigo mesmo. Boechat (2008, p. 26) sublinha que

Uma forma de pensamento é inseparável da outra... No instante em que o indivíduo alcança essa junção, o processo de individuação se processa com grande vigor, pois a função simbólica do inconsciente está plenamente operativa, produzindo representações eficazes ao desenvolvimento do todo.

Abdias encontrou, abrigou e se nutriu de uma mitologia poderosa. Para Campbell (1990, p. 6) o mundo de hoje está “desmitologizado” e, por isso, carente de mensagem que provenha da interioridade humana. “Os mitos servem para nos conduzir a um tipo de consciência que é espiritual”.

4.3 Mito e mística: no pensar e no sonhar

Ferreira Gullar (2002) em nota a sua tradução resumida e adaptada da magistral obra de Cervantes, escreve que Dom Quixote “extrapolou os limites da literatura e da arte para fazer-se

presente em cada momento da vida de todos nós”. E diz ainda que “a expressão quixotismo incorporou-se ao vocabulário de todas as línguas para designar o comportamento daqueles que sobrepõem a fantasia à realidade, o idealismo ao realismo, o desprendimento às conveniências”.

Nesse sentido, para Gullar, Dom Quixote é “o retrato fiel de cada um de nós, dividido entre os voos da fantasia e os impedimentos da realidade”. Pensar, nesse registro, a saga de Abdias Nascimento sob as lentes do quixotismo implica identificar sua luta e heroísmo, de forma geral, com a dimensão da batalha – apanágio de toda humana criatura; mas, também, especificamente, com a saga da população africana e afrodiaspórica para as quais o simples fato de nascer e viver demandou uma batalha sem trégua para sobreviver. Não sem razão Abdias se autocompreendeu como um “sobrevivente de Palmares”, sobrevivente-lutador que encontrou na figura de Exu, conforme Lody (1992, p. 12), “um verdadeiro herói, libertador essencialmente negro e com isto comprometido com a história e a vida africana”.

Abdias colocou a religião afro-brasileira num patamar mais alto e edificante da saga humana terrenal – o campo do conhecimento. Desse modo, conferiu a Exu, para além da esfera estritamente religiosa, o status de signo cognoscente por antonomásia. Exu leva a conhecer, e conhecer é, sobretudo, para o subalternizado, ato transgressor.

Exu pensado sob as lentes abdiasianas é signo da inteligibilidade profunda, do pensamento complexo e do saber ancestral que supera a fragmentação estéril de um saber puramente livresco porque atravessa a existência e, por isso, é um saber pertinente, processual e compreensivo – saber com sabor218. Nesse horizonte, a simbólica de Exu, para além do dado religioso stricto sensu, apresenta-se como signo do conhecimento – instância desconcertante e insubmissa do subalternizado. Falar, pois, do orixá mensageiro implica refletir uma forma sui generis de apreensão e interpretação do real. Há, dessa feita, uma forma de pensar radical que desbanca o absolutismo do logos e, por isso, produz uma desconstrução do solipsismo da razão analítica esquartejadora do mundo.

218 Em Silva (2000, p. 44-45), Juana Elbein dos Santos relata uma forma de saber/sabor elaborada pelo povo do candomblé, segundo a qual para conhecer necessita-se de tempo, atenção e silêncio. Explica Elbein: “Se você pergunta a um alto sacerdote ‘Por que isso?’, ele vai te cantar uma cantiga ou vai dizer um odu. Então a cantiga e odu são resposta. Ele não dicotomiza; ele não esfacela o conhecimento. Para ele o conhecimento é uma coisa holística”. E Giselle BinonCossard diz, nessa direção, respondendo à pergunta do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, por que uma filha de santo deve aprender sem perguntar. Explica a sacerdotisa Giselle: “Dentro do candomblé se acredita que tudo que é feito às pressas não é bom; a pessoa vai gravando uma quantidade de noção que ela não assimila. Então, o tempo tem que fazer as noções descansarem, vamos dizer, décanter, sabe essa noção de vinho francês que tem que deixar uma parte na borra? É a mesma coisa intelectualmente. As coisas têm que descansar. Você aprende, mas depois deixa para lá. Quando vem a ser madura então você estrutura, você equilibra”.

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