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Estudante

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João Henrique Piva Boeira

Psicólogo clínico (CRP: 08/32732), graduado em Design (UEM), pós-graduando em Psicoterapia Psicanalítica Contemporânea (EPPM) e membro do Instituto Psicologia em Foco.

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Cláudia Ribeiro Minari

Graduanda em Psicologia (Unicesumar) e membra do Instituto Psicologia em Foco.

“Tirésias já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não visse… Sim, são para se ter medo, os espelhos” (Guimarães Rosa).

Ao pensarmos em nos debruçar sobre o narcisismo e o uso feito das redes sociais na contemporaneidade, de início nos parece insuficiente propor uma discussão sem que se passe pelo conceito introduzido por Freud, e posteriormente resgatado e recontextualizado por outros tantos psicanalistas.

A ideia de narcisismo passa a se difundir com melhor contorno no imaginário coletivo através de versão do mito de Narciso escrita por Ovídio em “As metamorfoses” . Todavia, não é daqui que Freud parte. No cenário psiquiátrico de sua época, contesta os apontamentos feitos por Näcke, em 1899, em que atribuía o sentido da palavra às situações em que o corpo do sujeito era tratado como objeto sexual de si mesmo. Nessa perspectiva, o entendimento médico daquela época aproximava o conceito muito mais de uma perversão na concepção psicanalítica do que de qualquer outro entendimento atual (FREUD, 2010).

Em discussões alavancadas com as análises de Leonardo Da Vinci (1910) e do caso Shrebber (1911), Freud começa a estruturar o seu entendimento do que classificaria como narcisismo primário e secundário. Em vias gerais, o narcisismo primário seria entendido como um estágio do desenvolvimento psicossexual em que a criança se escolhe como objeto de amor antes de estar preparada para se voltar aos objetos externos. Já o secundário, caracterizaria a retirada do investimento da libido dos objetos externos em decorrência de frustrações da realidade e o retorno de toda essa energia ao Eu (ROUDINESCO, 2008).

O narcisismo foi vital na obra de Freud por pelos menos seis anos, entre 1914 e 1920, até que o autor acaba introduzindo nas discussões psicanalíticas a ideia de pulsão de morte com a publicação da icônica obra “Além do princípio do prazer” (1920), substituindo a aparente necessidade de um desdobramento maior do narcisismo.

De acordo com Green (2002), a tendência freudiana de empurrar o conceito de narcisismo para longe do palco teve sequência com os psicanalistas kleinianos. Para Klein, não haveria razões para considerarmos um estágio narcísico do desenvolvimento que fosse responsável pela estruturação do Eu, já que dentro de sua teoria ele estaria presente, ainda que em estado primitivo, desde o início da existência do bebê. Posteriormente, em 1971, o conceito foi retomado por Rosenfeld a partir dos pressupostos kleinianos em um congresso da IPA sediado em Viena.

Cabe destacar que outros teóricos também se aventuraram na exploração do conceito de narcisismo. Em 1949, Jaques Lacan apresenta no XVI Congresso Internacional de Psicanálise realizado em Zurique, a sua ideia, publicada posteriormente no célebre texto “O estádio do espelho como formador do Eu: tal como nos é revelada na experiência psicanalítica, onde discorre sobre o movimento de reconhecimento do Eu pelo bebê, retornando, em alguma medida, ao que fora apresentado por Freud em 1914 (IMANISHI, 2008).

Cabe destacar que outros teóricos também se aventuraram na exploração do conceito de narcisismo. Em 1949, Jaques Lacan apresenta no XVI Congresso Internacional de Psicanálise realizado em Zurique, a sua ideia, publicada posteriormente no célebre texto “O estádio do espelho como formador do Eu: tal como nos é revelada na experiência psicanalítica, onde discorre sobre o movimento de reconhecimento do Eu pelo bebê, retornando, em alguma medida, ao que fora apresentado por Freud em 1914 (IMANISHI, 2008).

O narcisismo ganha maiores discussões com os trabalhos de Grunberger, 1957, André Green, 1967, e Kohut, 1971 (GREEN, 2002). Lou Andreas-Salomé antes antes destes, ainda em 1921, também propõem um novo olhar sobre o conceito com a publicação de “Narcisismo como dupla direção” , em que tenta simultaneamente se contrapor a segunda tópica da teoria pulsional e preservar boa parte do que fora estruturado nas discussões sobre o narcisismo na teoria psicanalítica (ANDREAS-SALOMÉ, 2021).

Apesar de tantos psicanalistas ainda se distanciarem dos desdobramentos do conceito de narcisismo na atuação profissional, é inegável a contribuição da psicanálise no que seria o entendimento social do termo, ou o termo utilizado na linguagem leiga. Vemos com constância a indicação de que o uso das redes sociais seria essencialmente narcisista. Discussões deste tipo passam a aflorar cada vez mais dentro do cenário pandêmico que está em curso. Logicamente, existiram mudanças históricas que foram paulatinamente alterando a dinâmica das relações interpessoais e intrapessoais. A subjetividade da época de Freud já não se configura como hoje. Desde o início da modernidade, passamos a acompanhar a dissolução da influência de grandes instituições como a igreja e o estado. De forma concomitante, temos tido acesso a recursos tecnológicos que atendem, de forma facilitada, cada vez mais as nossas demandas de comunicação (PIZZIMENTI; ESTÊVÃO, 2019).

É possível que encontremos registros pessoais desde a antiguidade. Todavia, é no renascimento que podemos começar a encontrar de forma inédita a escrita voltada “a si mesmo” , ou o surgimento da individualidade. Até então, o que se via era a vivência da comunitas, uma hiper valorização da tradição e dos papéis que poderiam ser desempenhados dentro de cada sociedade (LIMA; SANTIAGO, 2010). Os diários íntimos da modernidade, que eclodem com a ideia da vida privada, ainda continuam existindo, porém reconfigurados. Na contemporaneidade precisam ser lidos por terceiros. Seriam “diários éxtimos” em uma referência ao termo criado por Lacan indicando que algo é íntimo ao sujeito, mas se encontra fora dele (PIZZIMENTI; ESTÊVÃO, 2019).

Pizzimenti e Estêvão (2019) então nos perguntam, mas será que o uso das redes sociais seria algo essencialmente narcisista? Para eles, devemos pensar na preocupação que existe na qualidade do objeto, identificando se o anseio do sujeito seria de se fazer objeto por meio do olhar do outro ou se existiria uma preocupação de investimento libidinal de encontro com o objeto. Talvez, no entanto, essa não seja a pergunta que deve ser feita ao pensarmos neste fenômeno social. Quando estabelecemos questionamen-

tos deste tipo, é traçada uma linha dicotômica entre o que supostamente seria o uso adequado ou não da tecnologia em questão. A busca pelo olhar do outro ou por uma aproximação com o objeto não pode ser resumida em uma cisão maniqueísta da realidade, necessária a investigação analítica constante das razões por trás do comportamento propriamente dito.

O narcisismo psicanalítico detém uma importante função para o nosso psiquismo, tornando-se um recurso valioso na compreensão das psicopatologias. É importante que não deixemos jamais de lembrar que, como tantos outros conceitos, a sua matriz não é essencialmente psicopatológica. Alguns de seus desdobramentos são.

Referências

ANDREAS-SALOMÉ, L. Narcisismo como dupla direção. Porto Alegre: Artes & Ecos, 2011.

FREUD, S. Introdução ao narcisismo (1914). In: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Companhia das Letras: São Paulo, p. 13-50, 2010.

GREEN, A. A dual conception of narcissism: positive and negative organizations. Psychoanalytic Quarterly, ed. 71, 2002.

IMANISHI, H. A. A metáfora na teoria lacaniana: o estádio do espelho. Boletim de Psicologia: São Paulo, v. 58, n. 129, p. 133-145, dez. 2008.

LIMA, N. L. de; SANTIAGO, A. L. B. O diário íntimo como produto da cultura moderna. Arquivos Brasileiros de Tecnologia: Rio de Janeiro, v. 62, n. 1, p. 22-34, abr. 2010.

PIZZIMENTI, E. C; SILVA, I. G. da; ESTÊVÃO, I. R. Da queda livre ao encontro com o outro nas redes sociais: um estudo do narcisismo. Trivium: Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 85-98, jun. 2019.

ROUDINESCO, E. Dicionário de psicanálise. Zahar: Rio de Janeiro, 2008.

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