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Psicóloga hospitalar
Maria Eduarda Gaspar Branco da Silva
Maria Eduarda graduou-se em psicologia pela Universidade Estadual de Maringá e atualmente é residente do Programa Multiprofissional de Saúde Mental HU-UEPG.
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SER PSICÓLOGA HOSPITALAR NA PANDEMIA
1. Fale um pouco sobre você e como tem sido sua história dentro da profissão.
Me formei em Psicologia com ênfase em saúde pela UEM em 2019, e logo em seguida entrei para o programa de residência pela UEPG. A proposta da residência em saúde mental, que tem duração de dois anos, é que os profissionais percorram diferentes pontos da rede de saúde do município de Ponta Grossa. Em decorrência da Pandemia, alguns pontos sofreram alterações de fluxo para atender o COVID e não puderam receber os residentes, enquanto outros foram “criados” para atender demandas da pandemia, sendo solicitado a participação da residência. Até o momento (no meio do meu segundo ano como residente), já passei por CAPS-AD, CAPS-II, Ambulatório de Saúde Mental Municipal, Hospital Geral (HU-UEPG), Hospital Materno Infantil (HUMAI-UEPG), e atualmente estou nos seguintes campos: UPA 24h, Secretaria de Saúde Mental do Município de Carambeí, Ambulatório de Reabilitação pós-covid HU-UEPG.
2. Você, como um profissional da Psicologia, trabalhando em um hospital, poderia compartilhar um pouco da sua experiência no contexto atual?
O hospital universitário passou por diversas mudanças por causa do covid, sendo a principal a “substituição” de alas inteiras por leitos covid. A fim de ilustrar, hoje são 60 leitos de UTI covid vs. 10 leitos de UTI limpa (que pode receber pacientes de covid de longa permanência, que não transmitem mais o vírus - acima de 21 dias da contaminação). As equipes tiveram de se adaptar a essa nova realidade, incluindo a equipe de psicologia hospitalar, devido a extinção de rotinas de visita com os familiares na UTI e a inserção dos atendimentos presenciais em áreas contaminadas.
Fiz poucos plantões no covid, uma vez que minha escala sempre mesclava dois ou três campos por vez (na mesma semana), o que “quebraria” a rotina da equipe de psicologia do hospital. O que posso contar não é nada diferente do que é relatado repetidamente por diversos profissionais (o cansaço das equipes, as condições clínicas assustadoras dos pacientes, o medo da contaminação…), mas posso falar do sentimento de enclausuramento e descaracterização que vivenciei. Apesar de serem andares inteiros do hospital, são espaços restritos e bastante controlados, em que a sensação de enclausuramento é agravada pelo uso da paramentação, que limita os movimentos, e me deixava hipervigilante. Descaracterização porque todos usam as mesmas roupas, os mesmos EPIs, o que também nos “esconde” , e dificulta a distinção dos profissionais por parte dos pacientes (e por vezes dos colegas também). Em um atendimento com uma senhora muito simpática, que aguardava nova visita do médico para avaliação da alta, ela me disse “eu não vou te reconhecer na rua, porque vocês são todos iguais, mas se você me ver por ai, me dê oi que eu vou ficar muito feliz” .
Nos atendimentos, a repetição dos temas esperados e já bem conhecidos da Psicologia Hospitalar, como o medo da morte, o receio pelo bem-estar da família, medo dos procedimentos, medo das sequelas, além dos sintomas que podem surgir com a internação e que são fonte de angústia, como desorientação auto/alopsíquica e delirium.
Outros motivos de angústia relatados/observados são o tédio, solidão (uma vez que não é possível receber visitas ou ficar com acompanhante), o sofrimento por deixar pets em casa sem cuidador, e testemunhar cenas fortes (como parada/reanimação dos companheiros de quarto).
Preciso dizer que o trabalho do psicólogo, apesar de necessário e valorizado pelos colegas, não se compara ao desgaste físico dos demais profissionais que atuam na linha de frente e que estão muito mais próximos dos pacientes realizando procedimentos.
3. Como você acha que as outras pessoas percebem o "ser psicóloga"? Existem clichês?
No ambiente hospitalar, ainda é comum que o psicólogo seja visto como aquele que maneja comportamentos “indesejáveis” dos pacientes, como choro, humor deprimido e resistência aos procedimentos, e que “investiga” sobre o paciente e a família. É comum ver as pessoas esperando que sejamos calmos, pacientes, equilibrados e acolhedores o tempo todo, o que não é possível.
4. Pandemia. Para você, o que mudou de antes para hoje?
Na atuação profissional, sinto que as restrições interferem na qualidade da vinculação e nas possibilidades oferecidas ao paciente. Para mim, é angustiante porque vemos casos graves que ficam “soltos” , sem amparo, pois não dependem só de mim ou de apenas um serviço, me sinto “amarrada” . Nos CAPS, por exemplo, os grupos foram suspensos, o que aumentou muito o número de atendimentos individuais, mas o dia tem um número limitado de horas, e somos limitados pela estrutura em que atuamos. Se é difícil acompanhar a demanda em tempos “normais” , na pandemia isso se agravou de forma exponencial. Para proteger todos da contaminação, o afastamento físico e restrições de acesso são sentidos como frieza, dificuldade de comunicação, e, às vezes, falta de interesse.
5. Tem vivido algum tipo de isolamento por estar na sua posição? Fale um pouco sobre isso.
Acho que minha situação foi muito parecida com a da maioria das pessoas que seguiram as recomendações de isolamento social. Minha família mora em Maringá, vi meus pais duas vezes de março até dezembro de 2020 por medo de contaminá-los. As interações sociais foram restritas aos colegas de trabalho. Como moro sozinha, não precisei me preocupar muito.
6. Você acha que a situação atual é vivenciada na ordem de um trauma?
Partindo da definição de J. Laplanche/ J.B. Pontalis, Vocabulário da Psicanálise: ” o traumatismo caracterizase por um afluxo de excitações que é excessivo, relativamente à tolerância do indivíduo e à sua capacidade de dominar e elaborar psiquicamente estas excitações” , acredito que é possível propor uma reflexão em dois níveis. O primeiro, pensando no contexto de estrutura de saúde e sociedade, poderíamos dizer que sim (num exercício grande de transposição de contexto), uma vez que a pandemia impôs uma demanda muito alta de atendimentos de saúde, e sofremos com a falta de leitos, respiradores, mão de obra… uma exigência abrupta de recursos para lidar com a situação. Pensando no nível do sujeito, é possível que seja vivenciado como traumático para muitas pessoas que precisam lidar com diversos tipos de luto (seja por entes queridos, seja pelo trabalho, pelas consequências físicas da doença…).