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Com quantas perdas se faz uma pandemia?
Jose Valdeci Grigoleto Netto
Psicólogo clínico (CRP 08/24556). Mestrando em Psicologia – UEM. Especializando em Ações Terapêuticas para Situações de luto – LELu/PUC-SP. Especialista em Saúde Mental – UNICESUMAR. Coorganizador do livro Múltiplos Olhares sobre Morte e Luto: Aspectos teóricos e Práticos (CRV, 2021). Escritor e poeta.
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Ninguém gosta de perder. Nós, seres humanos, não fomos programados, se essa for a palavra, para lidar facilmente com rupturas e privações ao longo da vida. Nós gostamos, sim, do ganho: a conquista de um novo amor, de um novo emprego, de um carro, uma casa. Gozamos com os encontros. Exemplos de conquistas e acréscimos que nos constituem e, inclusive, alimentam a falsa ideia de completude.
A verdade, repito, é que ninguém gosta de perder. E, pensando bem, por que gostaríamos? Perdendo, na melhor das hipóteses, há quem sofra, chore, coma demais, coma pouco, durma demais, durma pouco, se isole, esqueça de tomar banho... Em resumo: na perda, em um primeiro momento, pode ser que a gente se perca também. Quando algo que amamos vai embora, uma parte vultosa da gente se vai igualmente.
Aí, me indago: e nesta pandemia? Metaforicamente, pensando que nossa vida é um jogo de quebracabeças e as peças são nossos laços e conquistas, quantas peças você perdeu? Teu jogo está completo?
No livro Luto por perdas não legitimadas na atualidade, publicado pela Summus Editorial em 2020, Gabriela Casellato apresenta uma série de perdas factíveis que ocorrem com a pandemia: a perda do mundo presumido, isto é, o mundo conhecido e seguro. Ainda, a perda da segurança, aspecto instintivo e constituinte do ser humano que promove possibilidade de sobrevivência. Na sequência, há as perdas, no plural, inerentes ao distanciamento físico e da convivência social. Não obstante, podemos falar acerca das perdas no aspecto da saúde, as perdas econômicas e, por fim, mas não menos importante, a perda das inúmeras vidas.
Desta forma, é possível pensar em distintas perdas que acometeram (e ainda acometem) os seres humanos neste momento em que vivemos. É tarefa árdua e desafiadora falar sobre um momento que ainda se faz presente, teorizar, traduzir fatos em palavras. No entanto, cotidianamente as perdas adentraram nosso lar e, de uma maneira assustadora, tornaram-se cenas rotineiras em canais de televisão, nas redes sociais. Como nos acostumamos a isso? Em qual momento?
Especificamente em relação à perda da vida, tornou-se fato presente na grande parcela das famílias ao redor do mundo a morte pela pandemia da Covid-19. No Brasil, em especial, frente ao descaso com as vidas (até a escrita deste texto mais de 530 mil vidas foram perdidas), me questiono: com quantas perdas se faz uma pandemia? Qual o valor de uma vida? Pensar e refletir acerca destas questões é importante para dimensionarmos a quantidade avassaladora de pessoas enlutadas neste momento.
Neste caminho, Casellato (2020) pontua que o número de pessoas enlutadas por uma morte pode ultrapassar uma dezena. Logo, se fizermos a conta, o número é assustador. Faça a conta e veja por si só. Multiplique. E ainda mais: como viver um luto em um contexto de pandemia, no qual os rituais foram significativamente abalados e/ou interditados? Velórios, despedidas, a reunião dos familiares, amigos e conhecidos para acolher as pessoas enlutadas foram impedidas. Vive-se um luto não-pleno, isto é, que não goza de todos os aspectos primordiais para o processo de adaptação e de reorganização frente a uma
uma perda.
Finalizo esta breve reflexão com uma verdade que deveria ser fato notório: É impossível mensurar o valor de uma vida. No jogo do viver, nenhuma peça é substituível: cada uma possui seu formato e tamanho de atributo único. Cada peça ocupa espaço especial no jogo de outra(s) pessoa(s). Perder uma vida é transformar o jogo (ou tantos outros mais) permanentemente incompleto. Faltante.
Referências
CASELLATO, G. Posfácio - Os lutos de uma pandemia. In: CASELLATO, G. (Org.) Luto por perdas não legitimadas na atualidade. São Paulo: Summus, 2020.
608.071
Quando este material foi estruturado, o Brasil passava de 608.071 óbitos por conta da pandemia de COVID-19.
O Instituto em Foco destaca a atrocidade que foi feita contra o povo brasileiro em decorrência das decisões tomadas pelo atual governo.