Ocupação Antonio Nóbrega

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Sou um artista

que, embora não pertença intrinsecamente a nenhuma família artística específica, se sente pertencente a todas elas.

Do circo à literatura , sinto-me parte de todos esses universos. Não de uma forma

superficial, mas também não de uma forma visceral. A minha única visceralidade, na verdade, é o Brasil, e digo que essa visceralidade é descompromissada com qualquer ideia ufanista.

Uma ausência de ufanismo, todavia, que não prescinde da

presença de

paixão

.

Antonio Nóbrega


Que comece a jornada! Pegue sua carroça e vamos botando dentro tudo o que nos forma − e nos transforma. A viagem pela música, pela dança, pelo teatro e pela literatura não tem hora para terminar. A publicação que está em suas mãos traz conteúdos inéditos coletados com o artista, sua família e amigos. São ilustrações, depoimentos e fac-símiles dos cadernos de anotações que narram trechos da vida e das criações de Antonio Nóbrega. A carroça que o acompanhará nas próximas páginas está cheia de influências, paixões, histórias e referências aos momentos marcantes da vida de Nóbrega. Sua trajetória reflete não apenas a criatividade, a didática ou a quantidade de informações transmitidas em seus trabalhos, mas também a abrangência da pesquisa que tem feito, por meio dos estudos, das vivências e das trocas, ao longo de sua vida. Itaú Cultural




Antonio Nóbrega por

Walter Carvalho

Quando era pequeno, minha mãe me levava para ver os folguedos populares tão comuns na minha época. Assisti à Nau Catarineta e ao Bumba Meu Boi, entre tantos outros. Um dia, ainda criança, andando nos canaviais, eu me deparei com o maracatu; com os caboclos de lança; com o esplendor de cores e vestimentas brilhosas por todo corpo; com o som ao vento dos chocalhos de ferro nas costas e nas mãos; com as lanças enfeitadas com fitas coloridas. O céu estava bem azulzinho e a luz reverberava em meus óculos. Tive a sensação de viver um delírio visual. Anos depois, já morando no Rio de Janeiro, vi pela primeira vez Antonio Nóbrega representar. Foi um alumbramento. Nóbrega, da mesma origem que a minha, trazia para o espaço sagrado do palco tudo aquilo que fervilhava numa das gavetas da minha memória. Só que Nóbrega transcendia em tudo o que estava na minha imaginação de menino em um espetáculo universal.

Fiquei a imaginar como ele podia recriar todo aquele universo popular do Nordeste e de outras regiões do Brasil sem perder as características, elevando ainda o espetáculo para a dimensão da arte contemporânea. Pensei cá comigo: “Um dia vou trabalhar com Antonio Nóbrega”. E o sonho se realizou. Hoje, depois de tantos projetos juntos, aprendi um pouco mais de mim, o que me faz lembrar dos versos de Murilo Mendes: “[...] ainda não estamos habituados com o mundo, nascer é muito comprido”. Antonio ajudou-me a olhar para mim mesmo, na tentativa de compreender a vida. Walter Carvalho nasceu em João Pessoa (PB) em 1947 e mora no Rio de Janeiro. É fotógrafo e cineasta. Curador da Ocupação Antonio Nóbrega, é responsável pela direção de Brincante, longa-metragem sobre a trajetória de Nóbrega, que será lançado ainda neste ano.


1991


texto elaborado a partir de entrevista exclusiva e depoimentos enviados pelo artista

Foi meu pai quem descobriu em mim a vocação musical. Nas refeições, ele notava que eu ficava tamborilando com os dedos na mesa. Para ele, aquela ação era coisa de quem levava jeito para a música. Na época, eu tinha 7 para 8 anos e ele era diretor de um centro de saúde onde um dos funcionários tinha uma irmã violinista da Orquestra Sinfônica do Recife. Foi ela, essa senhorinha pequenina, corcunda, de “crecas” nos cabelos, dona Belinha, quem me introduziu na música, ensinando-me a tocar violino. Nunca entendi a ligação que meu pai havia feito entre o batuqueiro de mesa e o violinista. Dos 12 aos 16 anos, eu já demonstrava interesse pela dança, pelo teatro e por instrumentos musicais. Tinha um conjunto com as minhas irmãs, no qual tocava, fazia arremedos de dança e cantava. Quem nos incentivava e promovia era o meu pai, que tinha um gosto muito grande pelo grupo.

Nessa época, eu me inscrevi nuns concursos de canto, declamação e oratória que aconteciam anualmente no colégio onde estudava. O diabo é que em todos que eu me metia me saía bem. É mole? Mas somente a partir do meu encontro com a cultura popular – já em 1970 – pude direcionar e potencializar melhor essa vocação de artista generalista, multidisciplinar ou multifacetado, como alguns dizem. Ainda hoje eu não sei como me apresentar. Meu universo artístico circulava entre a música erudita da Escola de Belas Artes (violino e teoria musical) e a que escutava nas rádios e nos programas de TV. Nessa ocasião, Ariano Suassuna me viu tocando o “Concerto em Mi maior”, de J. S. Bach, em um recital numa igreja do Recife. E me convidou a integrar o Quinteto Armorial.


O convite era para que eu tocasse violino, tanto em sua versão tradicional quanto em sua versão popular − a rabeca. A partir desse momento, passei a tomar conhecimento da chamada cultura popular. Comecei a entrar em contato com esse universo pelas obras musicais que me eram apresentadas logo nos primeiros ensaios na casa de Suassuna. Na medida em que essas novidades chegavam, eu tentava descobrir de onde provinha tudo aquilo. E acabei batendo com o Bumba Meu Boi. O Boi Misterioso de Afogados era praticamente o único do Recife. Afogados é uma região da periferia onde, em geral, aconteciam essas manifestações. Descobri o Capitão Antônio Pereira − cuja patente vem do Capitão Boca Mole, figura que representava no festejo. Aos 18, passei a acompanhar suas apresentações, realizadas na Casa da Cultura, no período do Natal até o Dia de Reis. Fui tomando intimidade com o mestre Antônio Pereira, almoçava na casa dele, fazia anotações e tudo ia fluindo. E então a figura do Mateus − outro personagem do Boi − começou a me seduzir com micagens, trejeitos, pequenos passos, caretas e chistes, que eu passei a tentar reproduzir. Mateus está presente em quase todo teatro popular brasileiro e tem no cômico corporal a base de seu jogo de atuação. Eu o vi pela primeira vez como Mateus Guariba − alcunha dada por causa das acrobacias que lembravam os movimentos de um macaco.

Mateus é um nome genérico. Não tem o palhaço Arrelia? Tem o Mateus Guariba, o Mateus Cravo da Noite, o Mateus Fulô do Dia. E no começo eu me chamava Mateus Tonheta. Depois comecei a aprender, também por imitação, o jogo das outras figuras dramáticas do Boi de Antônio Pereira, como as danças da Burrinha, do Morto Carregando o Vivo, do Valentão, do Babau e assim por diante. Assimilei os movimentos até decidir fazer meu próprio Bumba Meu Boi. Criei o Boi da Boa Hora e o Boi Castanho do Reino do Meio-Dia, com os quais me apresentei em ruas e praças do Recife no Carnaval e no Natal. Esses Bois só existiam por causa da minha vontade. Ninguém estava muito impregnado e eu é que gerava e geria uma necessidade que, até aquela altura, não tinha consciência de para onde me levaria. Aproveitava as ocasiões para treinar o Mateus, que me interessava profissional e artisticamente. Para as outras pessoas era coisa passageira; para mim, uma necessidade vital. O Boi da Boa Hora foi criado quando eu fazia cursinho pré-vestibular. Na minha turma, havia um grupo de pessoas com um pensamento mais de esquerda. Hoje esse tipo de postura está mais dissolvido, mas naquela época a gente vivia em meio à ditadura militar. Eram pessoas da minha idade que tinham uma visão mais aguda da coisa e com as quais eu me encontrava muito, por isso as convidei para fazer parte do Boi, apesar da ausência de ideologia dessa manifestação popular.


Por outro lado, eu integrava o Quinteto Armorial, que era aparentemente despolitizado. A própria palavra “armorial” é sinônimo de “heráldica” [arte ou ciência que estuda a origem, a evolução e o significado dos emblemas, assim como a descrição e a criação de brasões]. Comecei a conciliar minha visão de mundo com a visão artística que não tinha esse input político. O movimento armorial é amplo, no sentido das artes, da recriação do universo popular por meio da assimilação de elementos da arte erudita, da procura de um casamento entre essas duas esferas culturais. Ariano Suassuna queria um grupo que trouxesse o universo popular para o palco e convidou o Boi da Boa Hora para participar de um bailado. Meus amigos do Boi achavam que eu era reacionário por estar no movimento armorial – sempre malvisto e mal compreendido. Então o pessoal fez uma assembleia e decidiu não participar. Eu disse que não concor-

dava e pedi para sair do Boi da Boa Hora. “Quem quiser ir comigo vai”, eu disse. E o povo rachou: metade foi e outra ficou. Pedi apenas que me dessem o desenho do Boi da Boa Hora para eu guardar de recordação [ver desenho na próxima página]. Foi então que decidi fundar outro Boi: o Boi Castanho do Reino do Meio-Dia, em outro bairro. Essa palavra foi retirada da Pedra do Reino [Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-eVolta, de Ariano Suassuna], e “meio-dia” é uma antiga denominação dada aos povos do Hemisfério Sul, abaixo da linha do Equador. O grupo durou uns dois anos, até acabar naturalmente. A primeira experiência com o Mateus Tonheta em palco foi com Bandeira do Divino (1976), uma releitura dessas folias caminheiras que chegam às casas pedindo permissão para comemorar o nascimento de Jesus e a chegada dos Reis Magos. Só que no meu espetáculo o dono da casa não dava essa permissão, então, eu criava uma série de situações com o Mateus até que a folia fosse acolhida.


Reprodução da ilustração do Boi da Boa Hora que Nóbrega guardou de recordação. Autor desconhecido.


Passo a passo por

Antonio Nóbrega

As danças brasileiras se agrupam em três famílias principais. Os batuques, coreograficamente, têm em comum a roda, o sapateado, as palmas e, sobretudo, a umbigada ou sua insinuação. Musicalmente, o canto e os tambores tocados com as mãos. Alguns grupos usam o ganzá, o reco-reco, o pandeiro, a alfaia e, por vezes, uma lata percutida com varetas. Essa família remonta às reuniões festivas, às práticas e às celebrações religiosas – os ditos calundus – realizadas pelos negros em seus ajuntamentos, senzalas e quilombos durante o nosso largo processo de colonização. Com peculiaridades, esse gênero está presente em todo o país. Coco de roda, praiano ou simplesmente coco em Pernambuco, em Alagoas e na Paraíba; coco de zambê no Rio Grande do Norte; samba rural no interior baiano; tambor de crioula no Maranhão; jongo no Rio de Janeiro; batuque em São Paulo; carimbó no Pará etc. É dessa família, ainda, o samba, derivado de “semba”, que quer dizer umbigada em banto. Os cortejos são diretamente descendentes do procedimento colonial de coroação dos reis de congo. A um rei negro, na maioria das vezes escravo, era dado o poder de governar determinada comunidade denominada “nação”. Essas coroações eram celebradas através de cortejos dramáticos marcados por cantos animados por robustos tambores e caixas de guerra (taróis). Coreograficamente, além dos movimentos no deslocamento do cortejo e do jogo dos bastões, havia simulações de combates (reminiscências

africanas). Nessa família estão, entre outras manifestações, moçambiques, maracatus, congadas, congos, cucumbis e taieiras. A mais vistosa das três famílias é a dos folguedos. Sua ascendência é ligada às janeiras e reisadas portuguesas: grupos que jornadeavam ao som de violas, rabecas, cavaquinhos e percussões cantando o nascimento do menino Jesus e a chegada dos Reis Magos na época da natividade cristã – solstício de verão europeu. No Brasil, incorporaram tipos e figuras do cancioneiro e do romanceiro, personagens populares, mitos etc. Esses grupos itinerantes ganham o nome de reisados, cada um intitulado a partir de suas figuras mais representativas (João do Vale, Pinica-Pau, Jaraguá, Cavalo-Marinho). Da aglutinação de vários reisados num só vão surgindo trupes de brincante que se fixam em determinada região para apresentação de sua numerosa galeria de tipos e figuras. Paulatinamente, se firmam com os nomes de Bumba Meu Boi, Cavalo-Marinho, Boi Bumbá, Boi de Mamão, Boi de Reis, Cordão de Bichos, Auto dos Guerreiros etc. A persistência do nome “boi” é devida provavelmente ao significado mágicoreligioso do animal e por ser a figura de maior sedução e encantamento graças às suas estripulias, investidas e galhofarias. Esses folguedos são, portanto, espetáculos hospedeiros totais, pois abrigam a dança, o canto, a música instrumental, a comédia, o drama, o recitativo, a pantomima etc. (Adaptação de excerto de texto do espetáculo Naturalmente – Teoria e Jogo de uma Dança Brasileira [2009].)


por

Antonio Nóbrega

Durante algum tempo pensei que a rabeca e o violino fossem instrumentos diferentes. Estudando a história do desenvolvimento do violino descobri, entre outras inúmeras coisas, que era pelo nome de rabeca que o instrumento, até pouco tempo atrás, era conhecido em Portugal. Isso não é difícil de entender. A palavra rabeca é uma espécie de latinização de rebab, nome de instrumento árabe que chega à Península Ibérica junto com os árabes, como sabemos, por volta do século VIII. Até esse momento ainda não havia na Europa, e consequentemente na Península Ibérica, instrumentos de cordas tocados com arco. Foram os árabes que trouxeram essa novidade. O que havia eram os primitivos instrumentos de cordas dedilhadas.

A maioria fazia parte da família das violas (mas nada semelhante às atuais). É do encontro dessa família de instrumentos com o rebab que lentamente vai surgindo o que hoje conhecemos pelo nome violino. Não nos esqueçamos de que é dentro desse mesmo percurso que se constituem também a viola de arco (viola da braccio) e o violoncelo (viola da gamba). O que ocorreu é que, enquanto na maioria dos países europeus esse pequeno instrumento tocado sobre o ombro ganhava o nome de violino (violon na França e violin na Inglaterra), em Portugal era chamado de rabeca e com esse nome chegou ao Brasil. Se fizermos uma pesquisa sobre esse nome vamos encontrá-lo em várias partituras de música clássi-


ca brasileira do século XIX. Seria natural, portanto, que o brasileiro em geral falasse em rabeca para se referir ao violino. A partir do começo do século XX, no meio musical, todavia, o nome violino começa a substituir o termo rabeca. No meio rural, diferentemente, a designação rabeca continua a ser usada. É aí que ocorre um fenômeno sociocultural importante: como nem sempre o povo tinha acesso à compra ou à aquisição do instrumento, usava o expediente de construí-lo. E como construí-lo? Com a madeira mais acessível. É por essa via que, como consequência, nasce uma espécie de luteria popular. Uma luteria primitiva e artesanal cuja referência de construção era um vaguíssimo conhecimento (via olhar, foto, tradição oral etc.) do violino.

O fato é que esse instrumento, chamado de rabeca ou de violino, é composto de quatro cordas afinadas quase sempre em quintas sobre um cavalete curvo, excitadas através de um arco composto de crinas de cavalo, e tocado em cima do ombro ou peito esquerdos. O que ficou de interessante nessa história toda é que o povo imprimiu nesse violino rústico um modo, uma maneira de tocar identificada com os mesmos padrões e procedimentos da música popular brasileira (acentuações, fraseados, impulsos) que se encontram tanto no choro quanto no baião, no frevo e assim por diante.


Ilustração Romero de Andrade Lima

por Braulio

Tavares

Tonheta é um possível arquétipo de artista de rua que começou a ser lapidado por Antonio Nóbrega muitos anos antes de ser reunida a equipe de criação da peça Brincante, formada pelo próprio Nóbrega, Rosane Almeida, Romero de Andrade Lima e eu. Entre 1990 e 1992 trabalhamos, em surtos eventuais de grande intensidade, na criação de versos, cenas, indumentárias, piadas, adereços, diálogos, cenários e números de malabarismo ou de habilidades cênicas. O sucesso de Brincante, de 1992, e de Segundas Histórias, de 1994, deu ao personagem grande popularidade, que se ampliou quando Nóbrega fez uma transição gradual da peça de teatro com números musicais para o show musical ilustrado por pequenos entremezes cênicos. Tonheta está presente em praticamente todos os seus discos e espetáculos mais importantes, como um brasileirinho galhofeiro que, na sua ingenuidade astuciosa, cristaliza um pouco dos milhões de brasileiros (e não só brasileiros) que o inspiraram. Os ancestrais de Tonheta são saltimbancos de beira de estrada, prestidigitado-

res de paletó surrado desdobrando baralhos de ouro para plateias sonolentas, rabequeiros roufenhos puxando cortejos em veredas batidas de sol, parelhas de palhaços virando bunda-canastra diante das câmaras, capoeiras empoeirados jogando rabos de arraia na praça da feira. Muitos venderiam a alma ao diabo para ser Tonheta. O problema é que o diabo não negocia nesse ramo. Iludidos, ferveram poções mágicas, beberagens que incluíam asa de morcego, rabo de lagartixa, solado de bota de soldado de polícia, pneu de carro fúnebre, chave de cadeia, sapo barbudo, trevode-cinco-folhas, chifre de boi tungão, prepúcio de gorila, dentadura postiça de vampiro, lona de ringue de MMA, lençol de motel. Ferveram, coaram, beberam. Não adiantou. Em suas andanças pela ciclovia periférica que rodeia os séculos, Tonheta teve numerosos encontros com homens notáveis. Com o escriba barroco Alcofribas Nasier ele destroçou regabofes acompanhados de vinho tinto e forró de alaúde. Com o amanuense


Albert Einstein tocou duetos ao violino e trocou ideias sobre a relatividade da escala diatônica. Com o grande Nijinski ele tomou um porre de caipirosca moscovita que os fez voltarem juntos para o hotel pulando de teto em teto. Com Luís Vaz de Camões ele exumou as estrofes censuradas da Ilha dos Amores e fez parceria em estrofes escarninhas contra a monarquia europeia. Ao lado de Villa-Lobos, coube-lhe inventar uma pianola musical automática capaz de colocar melodia em qualquer texto recitado à sua frente, e sua parceria com Santos Dumont produziu um para-raios que em vez de raios atraía chuva. Tonheta vê com simpatia a prática da arte pela arte, mas, para poder praticar sua arte nas horas vagas, ele já foi vendedor de picolé, entregador de pizza, sapateiro, engraxate, porteiro de sinuca, cambista de senha bancária, flanelinha de engarrafamento, vigia de monumento em praça pública, vendedor de amendoim torrado em avião de empresa decadente, cortador de rolete de cana, empinador de pipa em tarde sem vento, desbloqueador de celular achado no lixo de um show de rock, procurador de cachorro perdido, vendedor de bolão vencido da Mega-Sena, contador de filme para quem não tinha o dinheiro do ingresso, puxador de palma em comício, garçom de carroça de angu.

Seu DNA histórico guarda cromossomos dos truões e das barregãs que se alojavam no Pátio dos Milagres da corte francesa; dos degredados e convictos que vieram em galés e grilhões povoar o Brasil de pequeninos caboclos bastardos; dos pícaros nômades que mendigavam e furtavam na beira de todas as estradas entre Santiago de Compostela e Gibraltar; dos tangerinos e tropeiros que chicoteavam suas alimárias nos contrafortes das serras nordestinas; dos carregadores de fardos das missões científicas europeias que se internaram nos cerrados insondáveis do Brasil profundo; dos violinistas ciganos que rasquearam zíngaras em volta das fogueiras do Oiapoque ao Chuí; dos canibais pintados que pularam de maracá em punho diante dos inimigos atados ao poste no centro da taba; dos amarelinhos, jecas-tatuzinhos, mulatinhos, cancãozinhos, caboclinhos, sararazinhos, malazartinhos, pivetinhos e zés-povinhos espalhados pelo sistema circulatório da nação, todos os filhos do lodo em cuja testa está escrito: “Eles herdarão a Terra”. Braulio Tavares nasceu em Campina Grande (PB) em 1950 e mora no Rio de Janeiro. Escritor e compositor, ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura Infantil com A Invenção do Mundo pelo Deus-Curumim (2008), em parceria com Fernando Vilela, e o Prêmio Shell de Melhor Texto com Brincante (1992), em parceria com Antonio Nóbrega.


por

João Sidurino 1

Posso dizer que eu, João Sidurino, epopeísta, mestre de cerimônias, rapsodo, coreografador, cantador, homem-banda e encenador, só decidi-me a revelar ao mundo as extraordinárias façanhas do industrioso Tonheta, o carroceiro andante, depois que conheci Rosalina de Jesus, ex-rumbeira e malabarista do famoso circo Alakazan, hoje minha única, insuperável e inseparável partner e companheira de toda a vida. Só com a união de nossas qualidades e exuberantes habilidades artísticas é que tal empresa seria possível. Mas quem é esse fabuloso Tonheta, cujas crônicas se acham dispersas em velhos alfarrábios desaparecidos, cujas histórias a quintessência dos meus sentidos mal pode escutar das longínquas vozes daqueles que há séculos foram conduzidos para o outro-lado, amém?

Queridos amigos, Tonheta vive em mim como uma espécie de pedrinha-caroço (tais são as palavras que me ocorrem) que lateja sem parar no âmago profundológico da minha essência abismal recôndita! Será Tonheta então, por isso, um ser invisível? Vejamos. Quando rodamos, eu e Rosalina, com nosso Circo-Teatro Brincante pelas estradas do país, encontramos pelas feiras e praças velhos cantadores que contam as aventuras de João Grilo, Pedro Malazartes. Canção de Fogo, como se sabe, nomes menos usuais com que Tonheta é alcunhado. Aliás, um dia desses, ali perto do trevo que leva a Águas de Totorobó, encontramonos com Mestre Saúba, um folgazão completo, assim como eu, que brincava (atuava, para quem não é versado em nomenclatura tonhetânica) com o seu


Benedito na sua tolda de mamulengos. Que nada! Aquele Benedito lá não era nada mais nada menos que uma transfiguração de Tonheta. Mas, voltando à minha pedrinha-caroço que lateja, afirmo que o que me faz verdadeiramente relatar as bravatas e facécias do admirável Tonheta não é nada mais, nada menos do que um imponderável impulso que se transforma numa louca vontade de brincar com o mundo, de nele fazer cócegas, um desejo incontrolável de lambuzar-me na desordem primitiva: dançando, pulando, cantando, piruetando, pinotando, mimicando, berrando, assobiando, gingando, mugan-

gando, até atingir o meu gozo no êxtase caótico da paz celestial endiabrada. Às vezes as pessoas me dizem: “Tempos difíceis esses em que vivemos”. Concordo. Só que, em sendo mestre de cerimônias, epopeísta etc. e tal, eu, João Sidurino, também conhecido como Mestre Siduca, não posso calar-me. Mestre que é mestre ensina, aconselha, serve para alguma coisa. Por isso digo sempre: queridos amigos meus, tonhetai-vos uns aos outros! 2 1 Personagem de Antonio Nóbrega que conta as aventuras de Tonheta. 2 Texto publicado originalmente em COELHO, Marco Antônio; FALCÃO, Aluísio. Antônio Nóbrega: um artista multidisciplinar. Estud. av., São Paulo, v. 9, n. 23, abr. 1995, e revisto pelo autor para esta publicação.



Eles cantam, dançam, versejam. Mas quem participa de folguedos populares Brasil afora, apesar de ensaiar, produzir figurino, conhecer coreografias, não se diz artista. É brincante. O termo nasceu no Nordeste e se aplica a quem participa de cavalos-marinhos, reisados, maracatus e uma infinidade de “brincadeiras”. Há muito tempo Antonio Nóbrega e Rosane Almeida se encantaram por essa visão lúdica do fazer artístico, os saberes atrelados a ela e a multiplicidade de linguagens utilizadas. Eles enxergam nesse universo uma possibilidade poderosa de melhorar as pessoas e a relação entre elas. Brincante é o espaço que criaram para dar luz a esse encantamento na tumultuada cidade de São Paulo, onde o brincar e a cultura popular parecem tão esquecidos.

Ilustração Romero de Andrade Lima

Trecho publicado originalmente na revista Instituto Brincante (2009).



Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe Sempre sei, realmente.

uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador – sua parte, que antes já foi inventada, num papel... Trecho retirado do livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e utilizado no espetáculo Mátria – uma Outra Linha de Tempo Cultural (2011).


EXPOSIÇÃO

Ocupação Antonio Nóbrega 4 abril

19 maio

quinta a domingo 2013 terça a sexta 9h às 20h sábado domingo feriado 11h às 20h Uma homenagem ao artista, que sabe reinventar a cultura de seu país ao absorver as tradições de diversas regiões e escolas do Brasil e do mundo. O visitante poderá viver o universo de Nóbrega passando por um túnel com objetos, figurinos e, no final, uma mostra de vídeos de seus espetáculos. Os filmes serão exibidos na seguinte escala, repetidamente: terças e sextas – Naturalmente quartas e sábados – Nove de Frevereiro quintas e domingos – Lunário Perpétuo piso térreo [indicado para todas as idades]


AULA ESPETÁCULO

Mátria, Uma Outra Linha de Tempo Cultural sexta

5 abril 20h

Aula espetáculo sobre a formação e o desenvolvimento da cultura popular brasileira e a sua relação com a linha do tempo cultural ocidental ou europeia. sala itaú cultural 219 lugares [indicado para maiores de 14 anos] [distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento] Concepção e atuação | Antonio Nóbrega Iluminação | Marisa Bentivegna Som | Tuca Pradella

Produção | Thereza Freitas Assistência | Wanderley D. Lascko

ESPETÁCULO

Tonheta e Companhia sábado

6 abril 20h

Com participação de Rosane Almeida, Maria Eugênia e Marina Abib, viagens pelos espetáculos teatrais e de dança de Nóbrega com esquetes do personagem Tonheta em sua saga épico-bufônica em Brincante e Segundas Histórias e sua procura por uma dança brasileira em Figural e Naturalmente. sala itaú cultural 219 lugares [indicado para todas as idades] [distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento] Roteiro e atuação | Antonio Nóbrega e Rosane Almeida Elenco | Rosane Almeida, Maria Eugênia e Marina Abib

Iluminação | Marisa Bentivegna Operação de luz | Jean Marcel Contrarregra | Domingos Carneiro Convidadas | Maria Eugênia e Marina Abib


SHOW

Meu Cancioneiro domingo

7 abril 19h

Show com maracatus, frevos, baiões, cirandas e peças instrumentais compostas por Antonio Nóbrega e em parceria com os poetas e letristas Braulio Tavares e Wilson Freire. sala itaú cultural 219 lugares [indicado para todas as idades] [distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento] Criação e atuação | Antonio Nóbrega Direção musical, violão de sete cordas e cavaquinho | Edmilson Capelupi Bateria | Cléber Almeida Flauta e sax | Daniel Allain Baixo e violão | Jardel Caetano Pandeiro e percussão | Leo Rodrigues Acordeom | Olívio Filho

Sax e zabumba | Zé Pitoco Iluminação | Marisa Bentivegna Sonorização | André Andrade e Tuca Pradella Roadie | Adilson Ramos Santos Produção | Thereza Freitas Assistência de produção | Wanderley Santos da Silva

OFICINA PARA CRIANÇAS

Brincantinho – Cultura da Infância (Instituto Brincante) domingo

7 abril 11h30 às 13h30

O Brincantinho é um trabalho dedicado à cultura da infância com atividades que integram a música, o canto e a dança, além de proporcionarem o contato com jogos, brincadeiras e com o universo mítico da cultura popular brasileira. Todos esses elementos atuam como ferramentas para um desenvolvimento que permita ao indivíduo tomar consciência e se apropriar de todo o potencial criativo que possui. espaço educativo 20 vagas (crianças e pais) [indicado para crianças de 2 a 11 anos] [inscrições pelo telefone 11 2168 1876, a partir de 1º de abril]


ENCONTROS COM ANToNIO NÓBREGA quartas

10, 17 e 24 abril, 1 e 8 maio 18h

Encontros informais e interativos sobre temas presentes na obra de Antonio Nóbrega ou relacionados ao seu trabalho. piso térreo 20 vagas [duração aproximada 45 minutos] [indicado para maiores de 14 anos] [distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento] 10 abril | Teatro e dança 17 abril | Música e poesia 24 abril | Leituras 1 maio | Teatro e dança 8 maio | Música e poesia

RODAS DE DANÇA sábado

27 domingo 28 abril 14h30

Acompanhado por músicos e cantores, o artista convida o público a participar, tendo como inspiração a roda da ciranda. Nesse evento as pessoas poderão dançar, cantar, tocar e brincar artisticamente, passeando pela diversidade dos ritmos brasileiros. piso térreo 25 vagas [indicado para todas as idades] [duração aproximada 45 minutos] [distribuição de ingressos 30 minutos antes do início do evento] Violão | Alencar Martins Sanfona e voz | Cristiano Meirelles Percussão e voz | Flora Poppovic Percussão | Leonardo Gorosito e Saulo Bortoloso Direção musical | Leonardo Gorosito


ATENDIMENTO EDUCATIVO O público está convidado a conhecer a exposição Ocupação Antonio Nóbrega na companhia da equipe de educadores do instituto. As visitas buscam despertar o olhar do visitante no contato direto com as obras. Visitas educativas para público espontâneo em português e em Libras (língua brasileira de sinais) A equipe está à disposição para uma conversa em português e em Libras nos seguintes horários: português terça e quinta 18h sábado, domingo e feriado 14h libras quinta 14h e 17h sábado 13 e 27 14h domingo 14 e 28 14h 20 vagas [duração aproximada 40 minutos] [informações no balcão de atendimento ao público – piso térreo]


FANZINE OCUPAÇÃO ANTONIO NÓBREGA Concepção e coordenação editorial Núcleo de Comunicação Coordenação de conteúdo Núcleo de Educação Cultural Projeto editorial Gustavo Angimahtz (terceirizado) Maria Clara Matos Roberta Dezan Edição Gustavo Angimahtz (terceirizado) Roberta Dezan Projeto gráfico e design Liane Tiemi Iwahashi Ilustrações Fernando Vilela

Instituto Itaú Cultural Presidente 
Milú Villela Diretor superintendente
 Eduardo Saron Superintendente administrativo
 Sergio Miyazaki Idealização e organização Núcleo de Educação Cultural Gerência Valéria Toloi Coordenação Tatiana Prado Produção executiva Ana Paula Drudi Miranda Tayná Menezes

Projeto gráfico Liane Tiemi Iwahashi Comunicação visual
 Richner Allan Santos Yoshiharu Arakaki Edição Gustavo Angimahtz (terceirizado) Roberta Dezan Revisão Ciça Corrêa (terceirizada) Karina Hambra (terceirizada) Polyana Lima Produção de conteúdo on-line Maria Clara Matos Núcleo de Audiovisual e Literatura Gerência Claudiney Ferreira

Revisão Ciça Corrêa (terceirizada) Karina Hambra (terceirizada) Polyana Lima

Núcleo de Produção de Eventos

Coordenação Kety Fernandes

Gerência Henrique Iodeta Soares

Produção de imagens Jahitza Balaniuk

Produção editorial Cybele Fernandes Lívia G. Hazarabedian

Produção executiva do espaço expositivo Carmen Fajardo Produção Aline Arroyo Edvaldo Inácio da Silva Érica Pedrosa Vinícius Ramos Wanderley Bispo Coordenação de shows e espetáculos Janaina Bernardes Produção Januário Santis Marcos Miranda Priscila Moraes (terceirizada) Rafael Desimone (terceirizado) Rúbia Paião

Edição de imagens Karina Fogaça Rodrigo Lorenzetti

Assistência administrativa Isabella Protta OCUPAÇÃO ANTONIO NÓBREGA

Curadoria Walter Carvalho Assistência de curadoria Leonardo Gudel Projeto expográfico Cassio Amarante Assistência e projeto arquitetônico Avelino Lós Reis Equipe Anatole Mirsky 
 Juliana Andreatta
 Marcelo Laurino Sachais Couto Wagner Olino Parceria Brincante Produções Artísticas

Núcleo de Comunicação e Relacionamento Gerência Ana de Fátima Sousa Produção editorial Cybele Fernandes Lívia G. Hazarabedian

Atendimento educativo Bianca Selofite Claudia Malaco Débora Fernandes Isabela Quattrer Josiane Cavalcanti Juliana Ricchetti Luísa Saavedra Maria Meskelis Otávio Bontempo Paula Pedroso Rafael Anacleto Raphael Giannini Samara Ferreira Sylvia Regina Sato Thiago Borazanian Agradecimentos Fernando Vilela, Maria Eugênia Nóbrega, Thereza Freitas e Wanderley D. Lascko


Realização

/itaucultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 atendimento@itaucultural.org.br avenida paulista 149 são paulo sp 01311 000 [estação brigadeiro do metrô]


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