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São Paulo, março de 2023
EXPEDIENTE
Coordenação editorial Carlos Costa
Produção e edição de texto Duanne Ribeiro, Juliana Ribeiro e William Nunes
Produção e edição de fotografia André Seiti
Conselho editorial Ana de Fátima Sousa, Andréa Martins, Andréia Schinasi, Galiana Brasil
e Vinícius Murilo
Projeto gráfico Guilherme Ferreira e Letícia Perjan (estagiária)
Produção gráfica Laércio Beatrice (terceirizado)
Produção editorial Mylena Santos (estagiária)
e Pamela Camargo
Supervisão de revisão Polyana Lima
Revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)
Ilustrações Flavia Ocaranza e Gustavo Inafuku – Girafa Não Fala (terceirizada)
Colaboração Dominik Giusti e Josivana de Castro Rodrigues
UmchamegoparaDonaOnete ........... 9 NasaladeauladaprofessoraIonete ........... 13 Integrandoculturaeeducação ........... 23 RainhadoCarimbóChamegado ........... 33 Treme,treme,treme! ........... 41 Doencantoaocanto ........... 51 Fichatécnicaeserviço ........... 67
Sumário
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Um chamego para Dona Onete
quemisturapai-d’égua aconteceunoPará
misturaderaça,misturadecores misturadesons,tradiçõesesabores
eonossotempero
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e,noPará,agentesecurte agenteseabraça
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égostosoessechamego
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– trecho de “Mistura pai-d’égua”, de Dona Onete
Que mistura pai-d’égua fez Dona Onete! Hoje com 83 anos, a cantora, que inventou uma nova forma de tocar carimbó – o carimbó chamegado –, reuniu na sua música a paisagem do Pará, a espiritualidade – no caso dela, entre catolicismo e encantaria – e uma poesia com um jeito próprio de contar histórias, pintar cenários e cenas, evocar afetos.
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Este livro, parte daOcupaçãoDonaOnete, homenageia essa trajetória, aprofundando-se em facetas e impactos e apresentando Ionete da Silveira Gama (é esse seu nome de batismo; “Dona Onete” surgiu de uma confusão frequente e foi adotado). Não é uma tarefa fácil: Ionete é, ela própria, uma mistura que não acaba mais. Foi professora, atuou em gestão cultural e realizou pesquisas sobre as tradições do povo amazônico. Para dar conta de tudo isso, fizemos também uma mistura de temas e conteúdos.
Assim, a mística das lendas populares aparece em texto da neta de Dona Onete, Josivana Rodrigues, pedagoga e coautora da série de livros infantis ContosdaDonaOnete. Ela fala sobre como se imbricam na vida e na criação da sua avó tanto mitos como a cobra-grande quanto a crença nos encantados.
A música de Dona Onete é retratada por meio dos depoimentos de músicos parceiros seus: a cantora Fafá de Belém, o cantor e guitarrista Felipe Cordeiro e o baterista Nil Almeida, conhecido como Vovô. O jornalista William Nunes, da equipe do Itaú Cultural (IC), conversou com eles sobre o estilo da artista e a importância dela para a cultura paraense.
Sua forma de ensinar e de entender a educação – marcada pela investigação das culturas populares e pelo incentivo à produção artística – também é abordada com falas de quem conheceu isso de perto: Duanne Ribeiro, repórter do IC, coletou os relatos de dois alunos seus. Já a atuação de Dona
Onete nas políticas culturais é detalhada em reportagem de Dominik Giusti, jornalista paraense mestra em comunicação, cultura e Amazônia.
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Por fim, três conteúdos foram inspirados em um perfil pessoal da cantora. Seu prazer de cozinhar nos sugeriu uma releitura: pedimos achefs do restaurante belenense Casa Igá que executassem receitas suas. Seu jeito faceiro motivou um ensaio feito por André Seiti, fotógrafo do IC. E, com referências de Dona Onete, fizemos um mapa afetivo – não de qualquer Belém, mas da Belém de Ionete...
No final desse chamego, esperamos ter mostrado um pouco da mulher ao mesmo tempo interessada pela tradição e desprendida de padrões, que sabe cultivar diálogos criativos e também efetivar perspectivas próprias. Que, enfim, fez uma obra mesclando os símbolos e as vivências dos seus territórios – Cachoeira do Arari, na Ilha de Marajó, onde nasceu, e as cidades de Igarapé-Miri e Belém, onde viveu a infância, a juventude e a maturidade. Dona Onete canta uma experiência de Brasil.
Acesse outros conteúdos sobre Dona Onete em itaucultural.org.br/ocupacao.
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Itaú Cultural
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Na sala de aula da professora Ionete
por Duanne Ribeiro
Ainda não havia Dona Onete. Após concluir a 5ª série em Belém, entre 1950 e 1955, a adolescente Ionete da Silveira Gama começou a dar aulas em uma escolinha no interior de Igarapé-Miri. Tinha então 16 anos. Depois, já formada no magistério e empregada na mesma cidade, ela ganhou um novo “nome”: professora Ionete. Trabalharia em Miri até se aposentar, aos 62 anos. Nesse período, ao passo que se engajava na política, seja na luta sindical, seja na gestão cultural, desenvolveu uma prática de ensino afinadíssima com a cultura local, atenta aos alunos e ligada a um braço artístico: o grupo Canarana.
A música já estava na sua vida, mas ela deixou uma trajetória profissional nesse sentido para mais tarde: “Eu sempre disse para umas pessoas que diziam que eu sabia cantar e que ia ser alguém”, contou ela ao jornalOLiberal, “que eu queria primeiro ser professora, me aposentar, para ter o meu dinheiro, porque a gente não sabe se o sucesso vem”. Por outro lado, as canções entravam nas aulas – serviam de ferramenta para instigar a classe –, assim como a cultura popular, cujos saberes a professora recolhia em pesquisas pelo município. Lecionava matérias sob medida para tal: estudos paraenses e história. Neste texto, dois antigos alunos seus – ambos tiveram aulas
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com Ionete na escola Aristóteles Emiliano de Castro, em Igarapé-Miri – relembram como foi ter estudado com ela: Renato Pinheiro Sinimbú, músico e historiador, que sublinha a sua leveza, independência e visão crítica sobre a educação; e Benedito Wagner de Almeida Corrêa, professor de educação física, que foi parte do Canarana e destaca nele um rigor que traz consigo até hoje. Nos depoimentos, os frutos do incentivo de Ionete à arte e à cultura são evidenciados.
Uma contribuição de vida
– Renato Pinheiro Sinimbú
Sou historiador, então costumo analisar as coisas tentando ver o contexto da época, tentando não cometer anacronismos, não pensar com os olhos de hoje, mas pensar “naquela época”. O período em que a gente começou a estudar com [Ionete], no ginásio, na escola Aristóteles Emiliano de Castro, em 1984, ainda era um período muito rígido em Igarapé-Miri, e a gente está falando de um período anterior à redemocratização.
Nesse contexto, ela fugia dos moldes do professor rígido, que cobra excessivamente dos alunos – era isso que os pais, em sua maioria, naquela sociedade tradicional, esperavam do professor. E ela não seguia esse estereótipo, era uma pessoa muito leve, que conversava bastante, que sempre tentava compreender. Quando você tinha feito uma avaliação, escrito algo um pouco diferente, ela chamava você na mesa dela, tentava considerar alguma coisa que pudesse ajudar. Isso já era um grande diferencial.
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Às vezes, parecia que ela era uma professora boazinha, mas, na realidade, no fundo, no fundo, ela estava preocupada com questões mais profundas ligadas à educação.
A maneira como ela se comportava em sala de aula tem muito a ver com a vida que ela levava. Ela teve que se tornar uma mulher independente muito cedo, quando ficou viúva. Ela assumiu esse protagonismo como mulher, como educadora – e isso, naquela sociedade ainda bastante conservadora, não era muitas vezes bem-visto.
Mas era uma pessoa que se relacionava muito com os agentes culturais aqui de Belém. As pessoas iam e ficavam na casa dela. Ela tinha uma visão muito ampla sobre a cultura, e em todo momento isso transparecia nas suas aulas. Ela buscava fazerlinks, tentando exemplificar na prática, cantarolando músicas, contando histórias. E a disciplina dela na época, estudos paraenses, era, como posso dizer, bem favorável ao que ela gostava.
Se tem uma coisa que aprendi com Dona Onete, foi valorizar a cultura, a cultura da região onde nós vivemos, aqui da Amazônia. Tentar estudá-la, conhecê-la, pesquisá-la.
Hoje sou pesquisador, estou terminando um doutorado em história social da Amazônia, exatamente sobre o período e a região em que [Ionete] se criou. Ela foi uma das grandes incentivadoras para eu trilhar esse caminho, e agradeço muito. Ela me mostrou o quanto é importante registrar isso aí e tornar de amplo conhecimento para as futuras gerações.
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Dona Onete é uma mediadora cultural. É uma artista com conhecimento e que consegue transformá-lo em poesia e música, de uma forma muito inteligente e fácil de consumir. Assim como [os músicos] Pinduca e Verequete, ela é muito importante para a nossa cultura, aquela cultura tradicional aqui da Amazônia. Esse é o grande trunfo, sua grande contribuição artística – uma contribuição de vida que ela oferece à sociedade.
Como professora, posso dizer que [Ionete] era uma excelente profissional. Ela hoje tem seu legado no município [de Igarapé-Miri], em que é muito reconhecida pela prática que desenvolveu com os alunos. Eu e todos os meus colegas da época, sempre que temos a nossa roda de conversa, tocamos no assunto do quanto foi importante a disciplina de estudos paraenses, que veio a valorizar mais ainda a cultura da região.
Ela foi minha professora de estudos paraenses, na qual desenvolvemos a parte da dança e da cultura local, no ano de 1987 ou 1986, nesse período na escola Aristóteles Emiliano de Castro. Como ela trabalhava muito a parte cultural, a aula se tornava diferenciada. Ela tinha o domínio da turma e fazia com que todos participassem. Trabalhava a teoria e a prática ao mesmo tempo. O trabalho ficava mais dinâmico, mais prazeroso.
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Fazer o melhor para mostrar o melhor
– Benedito Wagner de Almeida Corrêa
Eu tinha um pouco de conhecimento de dança também e fui me aperfeiçoando por meio do incentivo que [a professora Ionete] deu. Naquele momento, além de professora, ela era coordenadora de um grupo que se chamava Canarana. Tive o privilégio de fazer parte dele, na época eu tinha 18 para 19 anos. Como [já tinham] o domínio, ela aproveitava [estudantes] para o grupo e a maioria [dos integrantes] eram alunos dela.
A parte da dança, para mim, foi muito prazerosa, muito importante, porque me fez sentir melhor, mais leve. O carimbó é dançado de várias formas, cada um tem o seu jeito, mas o grupo dela era instrumental, era percussão, não era colocado disco, tinha o batuque, era muito legal. Eu participava dele, tinha toda uma responsabilidade – pois, para estar nele, tinha de ser bom e, para ser bom, tinha de se dedicar: era ensaio, ensaio, ensaio em cima de ensaio, que é para tudo sair perfeito.
[Integrar o Canarana] era muito cobiçado. Na peneiragem que a gente fazia, para passar tinha de ser bom. Ela dizia assim para as meninas [inscritas na seleção]: “Se não souber fazer o rebolado, você não vai, você não passa na peneira”. Isso [fica] até hoje. As amigas que eram do grupo – a gente –têm esse molejo, porque aquilo ficou marcado.
Para formar o grupo, [ela] passava a coreografia e daí ia lapidando: “Na passada, a batida é esta...”. Sempre trabalhava dessa forma, no conjunto. Mas, para passar para o conjunto, [havia uma avaliação individual]: você ia dançar para [ela] ver qual era a sua habilidade e ir fazendo a correção. Assim ela ia trabalhando. Até com relação à forma de passar a coreografia, ela sempre se preocupou em fazer o melhor para mostrar o melhor.
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Além da dança, da responsabilidade, do respeito, agradeço a ela por ter me dado essa oportunidade de participar do grupo e poder ter sido seu aluno. Para mim, é muito gratificante poder, hoje, fazer este relato, porque acredito que só coisas boas é que ficaram e sempre ficarão na memória, no aprendizado.
Hoje estou também atuando na educação, como professor de educação física, área em que sou bacharel. Como eu já gostava da dança, que está inserida no conteúdo programático do curso de educação física, [compor o Canarana] foi algo que me influenciou a me profissionalizar nesse campo. Amo o que faço.
[É perguntado se no presente ainda dança] Danço. E como! Carimbó, sirimbó, retumbão, valsa, merengue, cúmbia... O que tocar! Mas por prazer. Estou focado na escola de arte. E, quando há festas juninas, sou solicitado pelas escolas para montar quadrilha, danças.
[As práticas de Ionete continuam até hoje], mas com outros profissionais. O legado ficou, e a gente vai desenvolvendo de acordo com o que foi adquirido de conhecimento. Hoje a gente desenvolve as habilidades aqui na escola de arte da mesma forma praticamente, só vai lapidando o aluno para a hora da apresentação. Se aprendi que ser profissional é ser bom, tenho de ensinar o meu aluno a ser bom também.
foto: Professora Ionete e alunos da 3ª série do grupo escolar
Manoel Antonio de Castro, em Igarapé-Miri, 1975
autoria desconhecida | acervo da família
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Integrando cultura e educação
por Dominik Giusti
“Nete, te prepara, que estão todos contra ti.” Foi assim que um colega de trabalho anunciou à cantora e compositora Dona Onete o clima tenso de uma importante reunião de trabalho em Belém em meados da década de 1980. Àquela época, a artista atuava como professora de história do Ensino Fundamental no município de Igarapé-Miri, localizado no nordeste paraense, distante mais de 140 quilômetros da capital do estado. E também lecionava no Movimento Brasileiro de Alfabetização, que ficou popularmente conhecido pela sigla Mobral e era destinado a adultos não alfabetizados, uma iniciativa do então Ministério da Educação e Cultura do Brasil.
O diálogo nada ameno se deu porque Ionete Gama – como era conhecida antes de seu nome artístico – alterou por conta própria parte da estrutura do curso do Mobral, sem autorização de instâncias superiores. “Achava um estudo fraco, e aprovaram os alunos mesmo sem eles terem aprendido. Eu me perguntava como eles iriam enfrentar, depois, o Ensino Médio. Então, o mesmo conteúdo que eu trabalhava de 5ª a 8ª série eu trabalhava com os adultos, de outra forma”, justifica-se. “Eu lia Paulo Freire e acreditei que pudesse ser capaz de ensinar melhor.”
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O episódio, relatado conforme a sua memória alcança, ilustra bem como Dona Onete conduziu sua vida como docente de escolas públicas: com forte senso de justiça social, demonstrado em seu engajamento político, comunitário e cultural. “Durante aquela reunião, pensei que fosse sofrer algum tipo de retaliação, mas no final fui liberada para dar as aulas conforme já vinha fazendo, e nos anos seguintes o conteúdo das disciplinas do Mobral foi alterado”, celebra, mais de três décadas depois.
Ela já escrevia suas letras de música e cantava, como atividades paralelas à sala de aula, mas diz que a vontade de militar na educação foi maior. Integrou o Partido dos Trabalhadores (PT) e realizou intensa mobilização de professores da região do Baixo Tocantins, no Pará, em municípios como Barcarena, Abaetetuba, Moju, Cametá, Limoeiro do Ajuru, Tailândia e Tomé-Açu. Tornou-se uma das fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras em Educação Pública do Pará (Sintepp) e até mesmo da Central Única dos Trabalhadores (CUT), tendo estado no ato fundador da entidade sindical em São Bernardo do Campo (SP), em 1983.
Foram anos de luta que renderam conquistas, como a criação de um campus universitário na cidade de Abaetetuba – para onde posteriormente ela e os colegas foram completar os estudos para exercer melhor a docência, já que a maioria passava a lecionar apenas tendo o Ensino Fundamental completo. “Quando eu disse que seguia Paulo Freire e que até debaixo duma mangueira eu dava aula, contanto que tivesse negócio para eu riscar o chão, me acharam rebelde. Mas não era rebelde, eu só não aceito aquilo que me jogam goela abaixo para engolir o que não quero”, diz.
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Uma grande amiga, Dona Benoca, como é conhecida a também professora aposentada Benedita dos Santos Miranda, de 76 anos, atuou ao lado de Dona Onete na busca por melhores condições de trabalho. Fizeram atos, paralisações, greves, reuniões com pais de alunos a respeito da situação política dos docentes. Chegaram até a trancar um prefeito em uma escola para que ele assinasse um termo comprometendo-se com mudanças na lei vigente, em Igarapé-Miri. Mas Benoca diz que foi preciso tempo para que Onete pudesse pensar e agir dessa forma mais transgressora. “Ela era casada, e o marido era muito ciumento, não a deixava sair de casa. Então, nossa primeira luta foi para ela mesma estudar, já que tinha baixa escolaridade, mas era muito sábia”, comenta a amiga.
Elas se conheceram na casa da sogra de Dona Onete, na Rua Rui Barbosa – logradouro conhecido como África, por ter uma grande quantidade de pessoas negras como moradoras. E ficaram amigas. Amizade que se fortaleceu na docência e na perspectiva de mudanças reais para os professores. “Chegamos a passar três meses sem receber salário. Era realmente muito necessária a nossa organização. Começamos fazendo encontro de professores com um tema que dizia ‘integrar a educação’, para não nos entregarmos aos caprichos dos políticos”, diz Benoca.
“Não sou só compositora, tenho uma enorme história de luta nas costas. Fui sindicalista e tenho até hoje a carteirinha do sindicato. No tempo da ditadura militar, a luta no interior também era grande. Você está vendo como é lutar hoje, imagine naquela época. As pessoas diziam para eu largar, mas eu não largava, eu disse que só largava depois de aposentada.
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E aí não sabia o que a cultura me reservava. Era muita coisa dentro do Igarapé-Miri”, declara Onete em tom sereno.
“Dona Onete era uma militante exemplar, foi importante para nós e foi para mim, que sou mulher, negra, separada. São as marcas que crucificam uma mulher, ainda mais naquela época. Hoje ainda existem, mas a nossa luta valeu a pena e conseguimos quebrar alguns tabus”, aponta Dona Benoca. “Ela é uma mulher de força, coragem e decisão.”
A trajetória da militante pelos direitos dos professores, no entanto, é posterior ao seu envolvimento com o incentivo à cultura popular miriense, já que seu primeiro marido, chamado Raimundo Nonato, era de uma família tradicional que organizava folias populares, Carnaval, boi-bumbá e pássaros juninos no município. Então, durante o período em que esteve casada, ela acabou se tornando também uma entusiasta da cultura popular – o que levou depois para as lutas docentes. Suas músicas eram verdadeiras ferramentas de mobilização, como “Mutirão da farinhada”.
Após a aposentadoria, para não ficar parada, Dona Onete decidiu não esperar o destino e retomou suas atividades
culturais de forma mais intensa: em 1989, criou o Grupo
Folclórico Canarana, constituído de 12 pares de dançarinos, que realizaram muitas apresentações de carimbó, benguê e lundu, com suas composições autorais, pelo estado do Pará.
A música “Boto namorador”, por exemplo, é dessa época
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A gestão municipal e a cultura popular
e chegou a ser destaque na novelaAforçadoquerer (2017), da TV Globo. O grupo acabou sendo um desaguar de sua trajetória de vida, entre a política, a educação e a cultura –com sólido conhecimento e pesquisa sobre a região. Mesmo com essa trajetória construída e reconhecida em Igarapé-Miri, Dona Onete ainda custou a acreditar no convite que recebeu para assumir a Secretaria de Cultura do município. “Foi quando o prefeito Manoel Pantoja ganhou. Ele foi para uma reunião em Belém com o professor Paes Loureiro, que era secretário de Educação do Pará, e foi questionado pelo secretário se já tinha alguém para a cultura do município, me indicando”, recorda. “Pedi alguns dias para pensar, fiquei apavorada. Meus alunos do grupo Canarana me incentivaram.”
Com o aceite, deixou sua marca na gestão política, sendo responsável por impulsionar grupos de cultura popular. O pesquisador e professor Patrich Depailler, miriense e que acompanhou Dona Onete desde a infância, diz que, como assessora, ela também incentivou escolas de samba, blocos de rua e quadrilhas juninas, além de ter criado a Casa Ribeirinha, localizada na Praça Matriz, onde recebia músicos para tentar “resgatar” cânticos de manifestações afrorreligiosas cantados em ladainha por seis vozes.
“Ela trabalhou na mesma escola que a minha mãe, e pude acompanhar desde a fase militante até agora, artista. Como professora, fez parte de um grupo de mulheres muito importantes por seus posicionamentos políticos, como a professora Benoca e a professora Eurídice. Elas foram à luta e começaram a ocupar espaços”, comenta Patrich, informando que, sob a gestão de Ionete, os grupos populares se disseminaram
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no município. “Houve uma explosão na nossa produção cultural; ela começou a abrir muito espaço.”
Patrich conta ainda que, nesse período de gestão como assessora, ela reforçou a parte artística de festivais ligados às práticas extrativistas do município, como oFestivaldocamarão e oFestivaldoaçaí, com a inclusão deshows musicais e a apresentação de grupos escolares e grupos folclóricos. Dona Benoca destaca que as ações não tinham caráter só de entretenimento: “Naquela época, a ‘cultura’ ainda tinha uma visão de que era para fazer festa, mas ela deixou um legado de reconhecimento da nossa identidade, com a criatividade de suas músicas e reforçando seu amor pelas manifestações populares e pela realidade do nosso lugar”.
Outra iniciativa criada por Dona Onete destacada pela amiga foi a criação da competição intermunicipal de quadrilhas juninas. Eram chamadas para apresentação as campeãs dos municípios vizinhos, que em Igarapé-Miri disputavam o título de campeã da região. Nesse contexto, Patrich reforça algo fundamental: “Tem uma coisa típica da Dona Onete que é um didatismo em relação às suas atividades. Antes de se apresentar, ela conta uma história lá de Igarapé-Miri, e sempre foi assim.
Até hoje, se você for a umshow dela, ela vai contar algo. Isso começou quando ela cantava boleros nas serestas”, explica.
“Ela é um ícone miriense, mesmo tendo nascido no Marajó. Se você for a Igarapé-Miri e disser que ela não é de lá, as pessoas não aceitam. Tomaram ela como nosso patrimônio”, ressalta o pesquisador e professor. Dona Benoca orgulha-se:
“E depois ela voltou para Belém, para o bairro da Pedreira, bairro do samba e do amor, foi brilhar ainda mais”.
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Rainha do Carimbó Chamegado
por William Nunes
Em todas as conversas sobre Dona Onete para a construção deste material que você está lendo – junto com a exposição presente na sede do Itaú Cultural (IC) e nosite itaucultural. org.br/ocupacao –, alguns pontos sempre surgiram de forma muito clara: a poesia e o canto sobre o Pará, sua forte presença que evoca ancestralidade e seu carisma capaz de conquistar artistas e público de forma imediata e, praticamente, unânime. É o que reforçam também a cantora Fafá de Belém, o cantor e guitarrista Felipe Cordeiro e o baterista Nil Almeida, o Vovô.
Consagrada como a Rainha do Carimbó Chamegado, Dona Onete é personagem fundamental no Pará. Sua presença e sua obra são importantes tanto internamente – para a consolidação de uma cena musical em Belém – quanto externamente – para a difusão da cultura paraense. Hoje com uma bagagem musical intensa – são três discos e umDVD lançados e turnês pelo Brasil e pelo mundo –, vale dizer que a música sempre fez parte de sua trajetória – mesmo quando não era artista. Dona Onete lutou pela sua música, pelo sonho de viver da música. Nas beiras dos rios, nas salas de aula, nas noites com grupos de carimbó, essa arte esteve presente de forma natural.
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Nos depoimentos a seguir, conhecemos um pouco mais sobre a cantora Dona Onete e o seu carimbó chamegado, por meio de histórias de quem já dividiu tantos palcos e bastidores com ela.
é uma doce força da natureza”
– Fafá de Belém
“Carimbó chamegado é essa forma como ela canta. Uma mulher de 83 anos que tem uma sensualidade extrema, porque nunca se adequou, nunca quis entender o que a caretice disse para ela. O que diz para nós, mulheres. Não, Dona Onete segue. Segue com seu charme, sua sensualidade e esse jeito chamegoso que só ela tem, que é muito paraense”, começa dizendo Fafá de Belém.
A cantora lembra quando conheceu Dona Onete, no festival TerruáPará – projeto da Secretaria de Cultura, que tinha um olhar transversal sobre a música do estado. Em meio a tantos talentos, era ela que mais se destacava naquele palco.
“Ela é uma doce força da natureza, carrega uma ancestralidade sem bandeiras forçadas, sem querer ser nada. Dona Onete é”, sintetiza.
A empatia foi imediata e, com o tempo, ficaram amigas. Fafá recorda um encontro marcante para ambas em 2021 – numa fase de abertura da pandemia de covid-19 –, no qual as duas foram convidadas para encerrar uma feira de negócios performando para uma plateia de todo o mundo com olhos voltados para a Amazônia. “Tive a honra de cantar junto com ela, acompanhadas por um grupo de percussionistas
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“Ela
de Belém, o Trio Manari, e sem nenhum instrumento de harmonia. Foi lindo, desafiador, poderoso. No final, a Onete, maravilhosa, se levanta e a gente termina meio que dançando um carimbó improvisado. Uma extrema felicidade de falar mais uma vez: nós somos do Pará, somos Amazônia, somos mulheres que nascemos para ser desafiadas e ganhar todos os desafios.”
DonaOneteéapossibilidadedavida,dafelicidade, dasensualidade,desercriativo,decontinuarvivoe vibrante,pulsanteeesperançoso.DonaOnetenãose submeteàsregras,eladocementeespalhaessafelicidade,positividadeevontadedeviver,independentementedaidade.Sãocoisasqueasociedadeformata, eelanãoéformatável.DonaOneteérainhae,como rainha,dáasordens,espalhacharme,poder,alegriae belezaporondepassa.
– Felipe Cordeiro
“Lembro que, quando a vi – e até hoje é a mesma sensação –, a impressão que tive é de uma parada meio louca. Quando vejo outros artistas ao vivo, eu me conecto com a música, o discurso, a sonoridade. Dona Onete me seduz por tudo isso, mas o que realmente me impacta, especialmente no palco, é sua afirmação da vida. Uma senhora, [hoje] em cadeira de rodas, que põe todo mundo para dançar e pular em uma grande catarse”, enaltece o músico Felipe Cordeiro.
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“Dona Onete representa um ápice da música paraense”
Ele conta que conheceu Dona Onete na época em que ela tocava com o Coletivo Rádio Cipó, “que foi quando ela começou a sair de uma coisa tradicional para essa conexão com o resto da cena”. Viraram amigos de vida: ele frequentava sua casa para ouvir gravações de músicas novas, ela ia aos seusshows e o estimulava a seguir carreira solo. “Ela é uma das grandes madrinhas da minha vida musical e da minha carreira”, afirma.
Para ele – filho do mestre da guitarrada Manoel Cordeiro –, Dona Onete representa um ápice da música paraense, de uma coletividade consolidada. “Sou filho de artista paraense de outra geração, então sempre acompanhei um pouco essa questão. Temos artistas que já faziam sucesso, como Fafá de Belém, Pinduca, Beto Barbosa e Banda Calypso, e nos anos 2000 surgiu a galera do tecnobrega, mas havia dificuldade de se afirmar como cena, uma coletividade que é muito diversa e cheia de vertentes”, comenta. “Acho que, para a minha geração, que vem no começo dos anos 2010 – eu, Gaby Amarantos, Pio Lobato etc. –, a Dona Onete simboliza este momento porque ela consegue ser unânime entre artistas e público. Apesar de cantar carimbó – uma dessas vertentes –, ela consegue ser moderna, tradicional, contemporânea, ancestral. É uma figura que de certo modo representa todo mundo.”
Assimcomoosambapossuiváriasvertentes,ocarimbótambém.Ocarimbóéessamúsicaafro-indígena-amazônica,amaistradicionaleancestraldoPará,e quetemdoispontosdeorigem,ameuver.Oprincipal éoMarajó,ondeocarimbó,historicamentefalando, temsuaorigemnarelaçãodeescravidãodosindígenas-africanos.OutroéaregiãodoSalgadoParaense, aúnicapartedoestadoquepegaumapontadoOcea-
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“No começo, ela tinha um pé meio atrás comigo, um baterista na banda?”, brinca Nil Almeida, músico que acompanha
Dona Onete desde o primeiro disco,Feitiçocaboclo (2012), ao lado do guitarrista e produtor Pio Lobato. Conhecido como Vovô entre os amigos e companheiros de cena, para ele, a construção do carimbó chamegado passa por uma mistura do tradicional com arranjos de música pop. “Ela participou muito de grupos de carimbó, desse carimbó raiz que ela curte até hoje, feito com o curimbó, as maracas e o sax. Eu e o Pio já tocávamos essas vertentes mais tradicionais, como os mestres da guitarrada, além de fazer arranjos pop. Estávamos ligados a isso quando entramos na banda, era uma situação legal, porque pegamos uma cantora tradicional e adaptamos com a música pop – com um groove diferente na bateria ou umriff de guitarra – sem esquecer a nossa cultura. A gente arrumou um jeito de tocar para Dona Onete e que também nos agrada”, explica.
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“Ela canta o Pará”
– Nil Almeida, o Vovô
Vovô diz que a relação dos músicos com ela é a melhor possível, sempre divertida, com todos contando histórias e vivências sobre e no Pará: “Ela tem uma música que fala sobre a farinha que é uma maravilha. Ela canta sobre aquela época antiga, sobre como fabricar uma farinha de mandioca. Isso é muito interior. Entre outras coisas, como a culinária paraense em ‘Jamburana’ ou o linguajar local em ‘Banzeiro’. Ela canta o Pará, sua poesia é muito forte. É o mais gratificante para nós”.
O baterista compartilha também um momento íntimo entre a cantora e os músicos: uma reza feita antes de cadashow.
“Acho muito legal, porque tem algo místico nela. Quando fazemos a reza, sentimos algo muito forte, positivo. Uma vez fomos nos apresentar e estava chovendo forte; de repente a chuva parou e fizemos umshow maravilhoso – um dos melhores. Outra vez fomos tocar em Brasília e, até pouco tempo antes doshow, não tinha ninguém; de repente surgiu uma multidão. Parece que tem um negócio avisando ‘Ó, aqui está Dona Onete, uma entidade’”, afirma. “Ela é a pessoa mais representativa do Pará, a que tem mais voz. [Ainda bem que] hoje ela gosta da bateria”, finaliza em meio a risos.
Elanãodesistiu.Issoservedeexemploparaoutras gerações,paraascriançasemeninasqueestãocrescendoevendo-atocarasuavidatantomusicalquantopessoalcomoumamulherforteedegarra.Comum gênioforte.Umamulhercommiscigenaçãoindígenae negra,emuitocarregadadeformaçãoecultura.
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Treme, treme, treme!
Você deve conhecer a fama do jambu de deixar a boca dormente, talvez pela cachaça ou por outros produtos derivados do seu uso, mas não é só isso. Essa planta originária do Norte do Brasil, além de afrodisíaca e medicinal, é um tempero versátil e bastante utilizado em receitas tradicionais paraenses. No pato no tucupi, no tacacá, no arroz paraense, como canta Dona Onete, ou mesmo comendo a folha de forma natural, o jambu tem finalidades diferentes.
Nesta seção, trazemos três receitas que Ionete, enaltecida como uma cozinheira de mão cheia por quem a cerca, gosta de fazer em sua casa. Elas foram executadas peloschefs Oriana Bitar e Roger Depablo, do restaurante Casa Igá, em Belém. O resultado é de dar água na boca!
OjambuéumtemperogostosoquetemperaoPará
Ondetemtucupi,ojambuvaitemperar
[...]
Opatonotucupi(Temjambu,temjambu)
Ofamosotacacá(Temjambu,temjambu)
Oarrozparaense(Temjambu,temjambu)
CaldeiradanoPará(Temjambu,temjambu)
Ovatapáeocaruruagenteenfeitacomjambu
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– “Jamburana”, de Dona Onete
Queimoso e tremoso (molho de pimenta)
Ingredientes
Flor de jambu
Pimenta-cumari
Azeite de oliva
Preparo
Macere a pimenta com a flor de jambu e o azeite de oliva.
Estemolhodepimentaéfeitocomingredientesregionais,paraenses.Aflordejambueapimenta-cumari, essaamarela,sãonossas.Oprocessodemacerardeixa maissuaveecheirosa.
– chef Oriana Bitar
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Mujica de camarão na cuia
Ingredientes
Camarão de água doce
Temperos (cheiro-verde, cebola, tomate, alho, chicória, alfavaca, urucum e sal a gosto)
Pó de farinha-d’água
Folhas de jambu cozidas
Preparo
Refogue o camarão com os temperos e o óleo. Acrescente água e, quando estiver no ponto de pré-fervura, acrescente o pó de farinha-d’água aos poucos (sempre mexendo para não embolotar). Deixe ferver até engrossar o caldo. Sirva a mujica na cuia e enfeite com folhas de jambu cozidas.
A gosto: acrescente o molho de pimenta queimoso e tremoso!
Amujicaéumacoisaindígena,umpratobemnosso. Normalmentesefazdepeixe,vocêusaacarcaçaea cabeçadopeixe.Nestecaso,aDonaOneteusaocamarão,maspodeseratécomcaranguejo.Éumareceita absolutamenteregional.
– chef Oriana Bitar
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Pudim de jerimum (abóbora) com pupunha
Ingredientes
1 litro de leite condensado
4 ovos
4 colheres de amido de milho
3 colheres de açúcar
1 cacho de pupunha cozida
1 jerimum médio cozido
Preparo
Bata no liquidificador metade da pupunha, o jerimum e o restante dos ingredientes. Após caramelizar a forma, acrescente a outra metade da pupunha e derrame a massa. Coloque em banho-maria em forno preaquecido a 160 graus. Deixe assar por duas horas.
Éofrutodapupunheira,écomissoquenósfazemos estepudim.Geralmentesóseconheceopalmitopupunha.EmBelém,agentecozinhaessefruto,tiraacasquinhaecostumacomeracompanhadodeumcafé.É umfrutosalgado,queagentecozinhacomsal.
Opudiméumasobremesainternacional,mas,pelo fatodeDonaOnetefazercomingredientesnossos, acabasetornandoumacoisaparticular.Essamistura deabóboracompupunhaéumacoisainusitada,mas deliciosa.Éumpudimfantástico!
– chef Oriana Bitar
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Do encanto ao canto
por Josivana de Castro Rodrigues
Todo ser humano, desde os tempos mais remotos, tem atuações para respaldar sua existência. Dona Onete, na sua trajetória de vida, sempre esteve atenta e participativa nessa caminhada. Suas experiências individuais e coletivas estão expressas em sua arte poética e musical. Suas composições são construções baseadas nas vivências cultivadas desde criança entre seres encantados, como botos, cobras-grandes, uiaras e seres da mata, cultuados na região amazônica.
Muito antes de ser consagrada como a Rainha do Carimbó Chamegado, Dona Onete respondia pelo nome de Ionete da Silveira Gama, nascida em Cachoeira do Arari, na Ilha de Marajó (Pará, Amazônia), e filha caçula de Alfredo Gama e Maria Raimunda. Após a morte do pai, a guarda da menina ficou com Dona Quitéria, avó paterna. Maria Raimunda, não conformada com a perda da guarda da filha, foi para Belém do Pará, arrumou emprego, casou-se novamente e conseguiu a guarda de Ionete. Logo, mãe e filha passaram a morar no bairro da Pedreira.
A menina, muito curiosa e criativa, começava a apreciar em seu bairro as escolas de samba, os grupos folclóricos, os bois-bumbás e as apresentações de cantores consagrados, como Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves e Ângela Maria. Como
ainda era menor de idade, não podia adentrar espaços de shows, mas, junto com os primos, ficava escutando as apresentações musicais em frente à sua casa. No dia seguinte, a imaginação vinha à tona quando tentava imitar as cantoras: a pequena Ionete colocava um caixote de madeira como palco, e o microfone era uma lata encaixada num cabo de vassoura. Ali, em uma brincadeira, cantava para primos, tios e amigos, que a aplaudiam e diziam que ela seria cantora.
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Festejos para Ogum
Ainda no bairro da Pedreira, por volta dos 8 anos de idade, a menina frequentava com a tia os festejos para Ogum no barracão de Seu Raimundo, onde os batuques duravam três dias. Ionete e os primos participavam do ritual designado para as crianças: ficavam de joelhos em cima de um tecido branco, e Ogum passava com sua espada por cima de suas cabeças, depois apertava levemente os braços e as cabeças, dizendo quais seriam as contas e proteções de cada criança – para Ionete foram designadas quatro contas; por fim, eles tomavam uma espécie de mingau, servido na cuia.
Ela conta que sua proteção estava em Mariana, Jarina, Herondina e Jurema. As três primeiras são princesas turcas encantadas na Amazônia; já Jurema, a Rainha das Matas. Diante dessa experiência, tempos depois, Ionete escreveu algumas composições sobre esse tema.
Quatrocontasmeprotegemdesdemenina
AvermelhaéMariana,aamarelaéJarina
AbrancaéacaboclaJurema,juremê,juremá
Averdeéacaboclabrava,éaminhacaboclaHerondina
Quenãomedeixacair,nãomedeixatombar
– trecho de “Quatro contas”, de Dona Onete
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Encontro com os botos
Depois de Ionete completar 9 anos de idade, Dona Maria veio a falecer, e a guarda da criança voltou para a avó Quitéria, parteira muito requisitada na região de Igarapé-Miri (Pará, Amazônia), lugar onde seus filhos moravam. Quitéria sempre viajava pelos rios, levando a neta como companhia.
Quando atravessavam para Cachoeira do Arari, a menina tinha contato com pastos para gado, fazendas, cavalos, búfalos e manifestações culturais e religiosas típicas da região. Ela participava da festividade de São Sebastião com o tio, devoto do santo e componente da banda que fazia parte da esmolação, cantando e tocando viola. Com ele, Ionete aprendeu a entoar ladainhas em louvor ao santo protetor e contra a peste, a fome e a guerra.
Com a avó, já embarcou em direção ao Rio das Flores, o rio dos encantos da menina Ionete. Foi nele que, levada pela imaginação das lendas dos botos de que escutava falar, construiu uma realidade condizente com seu desejo de fazer amizades e brincar. Ionete, quando morava na cidade de Belém, sempre esteve cercada de primos e tios para se aventurar em suas travessuras, mas, ao chegar à zona rural do município de Igarapé-Miri, percebeu que não tinha companhia para brincar. Então, cansada da monotonia, ela vivenciou um encontro inusitado com os botos.
Sempre depois do almoço, a menina corria para o quintal, apanhava flores e frutos, colocava-os em um cesto e corria para a cabeceira da ponte, na beira do rio. Lá, sentava com os pés submersos na água e chamava os botos com suas cantorias, aque-
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las do bairro da Pedreira. Para eles jogava os alimentos, com promessas de um reencontro futuro. A cada dia que passava, o número de botos aumentava para escutar a menina cantar.
À noite, a tia da menina, já preocupada com a mundiação do boto, mandava buscar as melhores benzedeiras da região para benzer a criança, e sobre sua rede eram colocados alhos e plantas para impedir que um possível encantado transformado em homem viesse atormentá-la.
A lenda do boto, quem sabe, seja a mais misteriosa e diversificada na encantaria amazônica. Mas aqui, relacionada à experiência de Ionete, há certa quebra de paradigma. Diferentemente de outras lendas, o boto não assume uma tentativa de encontro sexual, mas, sim, de um laço de amizade. Ionete, em sua imaginação fértil, tentava apenas atrair a amizade deles e buscava uma plateia para escutá-la cantar, assim como acontecia no bairro da Pedreira, com seus amigos e primos, que estavam prontos para aplaudi-la.
E assim a menina Ionete foi tateando as beiras dos rios, escutando lendas sobre os botos que alimentavam seu imaginário. A letra da música “Boto namorador das águas do Maiauatá” expressa uma dessas lembranças.
Ondeéquebotomora?
Moranosrios,moranomar
Ondeéquebotomora?
Moranosrios,moranomar
– trecho de “Boto namorador das águas do Maiauatá”, de Dona Onete
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Cobra-grande do Jatuíra
Aos 16 anos, Ionete começou a lecionar em Rio das Flores por um curto período. Aos 25, casou-se e foi morar no município de Igarapé-Miri, deixando de lecionar por causa da chegada dos filhos. Nesse período, passou a conviver com a sogra, Merandolina, parteira e curandeira, que não possuía o domínio da escrita; por esse motivo, era Ionete quem anotava as receitas que as entidades encantadas emanavam. Assim, aprendeu muito sobre encantarias e sobre os processos de cura.
Tempos depois, voltou a lecionar e percebeu que seus alunos não estavam interessados nas histórias do seu município. A então professora Ionete buscou pesquisar as histórias e lendas de Igarapé-Miri. Percorrendo os interiores, relacionou-se com os moradores mais idosos e, por meio da oralidade, conheceu a lenda da cobra-grande do Jatuíra. Segue abaixo a descrição da lenda:
EmumalocalidadelogoacimadeIgarapé-Miri,chamada Jatuíra,existiaumafazendamuitopróspera,habitadapor portugueses.Porláfabricavammeleaçúcarmoreno,ecompravamborracha,cacaueoutrosprodutos.Comachegada domovimentocabano,osdonosficaramamedrontadose foramembora,vendendoapropriedadeaoSr.Geminiano.
Temposdepois,oSr.Geminianodeuafazendaparaseucaseiro,queestavacomumafilhagrávida.Elatinhamarido, maseraopaidamoçaquetomavaasdecisõesrelacionadas àfamília.Chegadaahoradoparto,aparteiraidentificou queeramduascrianças:aprimeiraanascereraumameninanormal,masasegundaerametadegenteeaoutrame-
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tadecobra.Aparteira,apavorada,chamouopaidamoçae explicouoacontecido.Ovelhoexigiusegredoàparteira.
Aprimeiracriançafoiaceita.EstavamuitofrágilefoichamadaRosa.Quantoàsegunda,foiordenadoàparteiraquea matasseejogassenorio.Aparteira,sensibilizada,nãocumpriutodaaordem:deuàcriançaumpoucodeleitematerno, colocou-aemumpaneiro,batizou-adeRosalinaesoltou-a naságuasdoRioIgarapé-Miri.
Temposdepois,jájovem,quandochegavapertodoriopara sebanhar,Rosatinhaasensaçãodeestarsendoobservada poralguém.MuitosdiziamsersuairmãRosalinaquerendo mantercontato.Jáasegundacriançasofreumetamorfose, transformando-seemcobraencantada,chamadapelonome decobra-grandedoJatuíra,quenasnoitesdeLuacheiapasseavacontraamaré,nafrentedaIgrejadeNossaSenhora Santana.Anossepassarameacobratomoutamanhogigantesco,precisandofazermoradanaságuasdomar;edizem que,nosterreirosdosencantados,incorporacomocabocla DonaRosalina. Segue a composição de Dona Onete sobre a lenda da cobra-grande do Jatuíra:
Naondadomar
Elafezsuaaldeia
Napreamarelapasseia
ÉcobradoJatuíra
NoclarãodaLuacheia
– trecho de “Dona Rosalina”, de Dona Onete
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As lendas da cobra-grande do Jatuíra, assim como a maioria das lendas, são contadas por várias pessoas e de maneiras diferentes. Essa versão é fruto de um trabalho de pesquisa de Ionete Gama quando ela exercia o cargo de professora no município de Igarapé-Miri. Essa lenda, por muito tempo, foi narrada pela professora nas salas de aula, fertilizando o imaginário de seus alunos.
Com a chegada da aposentadoria, ela voltou para Belém, passando a residir no mesmo bairro onde viveu na infância. Seu retorno para a Pedreira possibilitou o encontro com o Coletivo Rádio Cipó, banda musical que a batizou com o nome artístico de Dona Onete. Nesse mesmo período, criou seu grupo de carimbó, Chamego Mirijoara, cantando as experiências vivenciadas e pesquisadas no interior das cidades amazônicas, e trazendo junto um novo estilo, o carimbó chamegado.
Dona Onete passou a ter contato com outras regiões, adquirindo novas experiências, trocando informações com outros mestres da cultura amazônica e, consequentemente, adquirindo novas inspirações como compositora. Em Alter do Chão (Santarém, Pará), incorporou as lendas das icamiabas em uma bela composição.
Asicamiabastribosdeíndiasguerreiras
FogosasecurandeirasmoravamnoNhamundá
IraciAruãmoravanolagodoespelhodaLua
Moldavamosmuiraquitãsafrodisiavam
Eofereciamaosguerreirosqueelaspretendiam
– trecho de “As icamiabas”, de Dona Onete
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Encantarias na região urbana
Embora as encantarias sejam mais comuns nas áreas ribeirinhas, onde estão presentes elementos da natureza nos quais os encantados fazem morada, elas também circulam de forma relevante entre o povo da região urbana amazônica. Em Belém, na feira do Ver-o-Peso, Ionete passou pelas vendedoras de ervas e, de longe, uma erveira a chamou: “Ei, minha linda! Vem cá, meu amor! Deixa eu te mostrar como tu deves amansar teu marido”.
Chegando perto da barraca, Ionete presenciou um tamaquaré dentro de uma pequena rede, calmo, quase dormindo, e, ao lado dele, pequenos vidros com porções de pó do animal. Ionete não comprou e, brincando com a erveira, disse que já tinha deixado o marido. Chegando em casa, ficou pensando no ocorrido. Pegou papel e caneta para escrever “Feitiço caboclo”, música que dá nome ao seu primeiro álbum musical.
Ochádotamaquaré
Éumchámuitolouco
Éumfeitiçocaboclo
QuesótemnoPará
– trecho de “Feitiço caboclo”, de Dona Onete
O tamaquaré é uma espécie de lagarto frequentemente encontrada na Amazônia, nos galhos de vegetação seca. O pequeno réptil, na crença popular, funciona como um feitiço, utilizado na forma de chá ou pó. Serve para “amansar o marido ou a esposa”. Em razão da grande comercialização do “produto”, a venda foi proibida por causa da preservação da espécie.
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Encantados na voz de Dona Onete
As encantarias, especificamente as lendas presentes nas composições de Dona Onete, são fruto do seu cotidiano amazônico, movimentado, ainda, por suas pesquisas e pelas vozes da ancestralidade, fazendo-nos acreditar que sua capacidade de transformar encantados em composições seja pelo fato, também, de desde criança conviver com esses seres. De forma genuína, ela viveu em uma “Festa no reino da encantaria”.
Auiaracanta,obotoassovia
Auiaracanta,obotoassovia
Hojeénoitedefestanoreinodaencantaria
Hojeénoitedefestanoreinodaencantaria
– trecho de “Festa no reino da encantaria”, de Dona Onete
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Ficha técnica e serviço
OCUPAÇÃO DONA ONETE
Concepção e realização Itaú Cultural
Curadoria Equipe Itaú Cultural
Consultoria Josivana de Castro Rodrigues
Projeto expográfico Géssica Araújo (assistente), Heloísa
Vivanco (terceirizada), Núcleo de Infraestrutura e
Produção do Itaú Cultural e Patrícia Gondim
Produção em Belém/PA Geraldinho Magalhães, Marcel Arêde e Viviane Chaves
ITAÚ CULTURAL
Presidente Eduardo Saron
NÚCLEO DE ARTES VISUAIS E ACERVOS
Gerência Sofia Fan
Coordenação Edson Martins e Juliano Ferreira
Pesquisa Angélica Pompilio
NÚCLEO DE ARTES CÊNICAS, MÚSICA E LITERATURA
Gerência Galiana Brasil
Coordenação Andréia Schinasi
Pesquisa e produção-executiva Andréa Martins
e Vinícius Murilo
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NÚCLEO DE AUDIOVISUAL
Gerência André Furtado
Coordenação Kety Fernandes Nassar
Produção audiovisual Júlia Sottili
Edição Karina Fogaça
Captação de imagens André Seiti, Karina Fogaça, Richner Allan e Teia Documenta (terceirizada)
Captação de som Assis Figueiredo e Raquel Vieira (terceirizados)
Motiondesign João Zanetti (terceirizado)
Transcrição Nelson Visconti e Paula Lousada (terceirizados)
Interpretação em Libras Florio & Fomin (terceirizada)
NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO
Gerência Ana de Fátima Sousa
Coordenação Carlos Costa e Renato Corch
Edição, produção de conteúdo e edição dosite
Duanne Ribeiro, Juliana Ribeiro e William Nunes
Supervisão de revisão Polyana Lima
Revisão de texto Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)
Identidade visual, projeto gráfico e diagramação
Guilherme Ferreira e Leticia Perjan (estagiária)
Produção editorial Mylena Oliveira dos Santos (estagiária) e Pamela Rocha Camargo
Edição de fotografia André Seiti
Redes sociais Daniela Campos (estagiária), Jullyanna Salles e Victoria Pimentel
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NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO
Gerência Valéria Toloi
Coordenação de atendimento ao público Tayná Menezes
Equipe Amanda Freitas, Domenica Antonio, Matheus Paz, Natasha Marcondes, Victor Soriano e Vinícius Magnun
Coordenação de formação Samara Ferreira
Equipe Edinho dos Santos, Edson Bismark, Elissa Sanitá, Joelson Oliveira, Lucas Batista, Mayra Reis Rocha, Mônica Abreu Silva, Silas Barbosa (estagiário), Victória de Oliveira, Vítor Luz e Vitor Narumi
NÚCLEO DE INFRAESTRUTURA E PRODUÇÃO
Gerência Gilberto Labor
Coordenação Vinícius Ramos
Produção Carlos Eduardo Ferreira, Carmen Fajardo, Érica Pedrosa, Fábio Marotta e Fernanda Tang
NÚCLEO DE MEMÓRIA E PESQUISA
Gerência Tatiana Prado
Digitalização Talita Yokoyama
JURÍDICO
Gerência Anna Paula Montini
Coordenação Daniel Lourenço
Consultoria Carlos Nascimento Garcia e Leticia Santos da Silva (estagiária)
AGRADECIMENTOS
Aos colaboradores da Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, da Casa das Onze Janelas, da Escola de Artes de Igarapé-Miri e do Theatro da Paz. À TV Cultura, à Secretaria Municipal de Cultura, Desporto e Lazer de
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Igarapé-Miri, à família Rodrigues e aos moradores de Belém e Igarapé-Miri. A Benedito Wagner de Almeida
Corrêa, Bruna Bazília, Dalcilene Oliveira Nonato, Fafá de Belém, Felipe Cordeiro, Gaby Amarantos, Josival Moraes
Quaresma, Josivana de Castro Rodrigues, Ligia Castro, Maria Antônia de Oliveira Nonato, Maria Diva Miranda, Maria Fernanda Miranda Pantoja, Marise Maues,
Mestre Laurentino, MG Calibre, Nay Jinknss, Nil Almeida,
Patrich Depailler, Pio Lobato, Regyane Gonçalves,
Renato Pinheiro Sinimbú, Silvana Rose Gama de Castro,
Silvio Renato Gama de Castro, Valmir Silva da Costa, Vânia Leal e Zé do Jatuíra
O Itaú Cultural (IC) realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens/obras aqui expostas e publicadas, além das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br.
O IC integra a Fundação Itaú.
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OCUPAÇÃO DONA ONETE
quarta 15 de março a domingo 18 de junho de 2023
terça a sábado 11h às 20h
domingos e feriados 11h às 19h
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piso térreo
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livre para todos os públicos
Memória e Pesquisa | Itaú Cultural
Ocupação Dona Onete / organizado por Itaú Cultural; ilustrado por Flavia Ocaranza ; Gustavo Inafuku/Girafa Não Fala. - São Paulo: Itaú
Cultural, 2023.
il.: 72 p.; 139Mb
Acompanha um pôster
ISBN: 978-65-88878-63-7
1. Carimbó . 2. Cultura. 3. Educação. 4. Encantaria. 5. Culinária. I. Instituto Itaú Cultural. II. Fundação Itaú. III. Título.
CDD 780
Bibliotecária Ana Luisa Constantino dos Santos CRB-8/10076
Fontes Karmina e LayarBahtera
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