Ocupação Person

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OCUPAÇÃO

São Paulo, 2016

Realização




coordenação editorial Carlos Costa edição Thiago Rosenberg conselho editorial Ana de Fátima Sousa, Ana Paula Fiorotto, Camila Fink, Claudiney Ferreira e Kety Fernandes Nassar coordenação de design Jader Rosa projeto gráfico e diagramação Liane Iwahashi produção editorial Luciana Araripe supervisão de revisão Polyana Lima revisão Rachel Reis colaboradores Daniel Bueno, Fernanda Castello Branco, Inácio Araujo, Indio San, Juliano Barreto, Lourenço Mutarelli, Luís Antônio Giron, Noemi Jaffe e Thiago Lacaz

FOTOS p. 2 e 3: Acervo/Estadão Conteúdo. p. 10: José Amaral/Maristela Filmes (cena de Casei-Me com um Xavante) e Ramalho Filmes (cenas de Anuska, Manequim e Mulher). As demais imagens de arquivo foram cedidas pela família Person.


Analisados em conjunto, os filmes de Luiz Sergio Person (1936-1976) descrevem uma espécie de trajeto, com idas e vindas, entre a realidade concreta e a fantasia. Essa é, pelo menos, uma forma de olhar para parte da breve mas bastante heterogênea obra desse cineasta – e produtor e diretor teatral – paulistano. São Paulo Sociedade Anônima (1965) e O Caso dos Irmãos Naves (1967), os longasmetragens que colocaram Person no radar e na história do cinema brasileiro, têm o mundo real como base: é com a própria capital paulista, em acelerado processo de industrialização, que contracena o protagonista do primeiro, enquanto o segundo retrata uma tragédia verídica – o drama de dois irmãos que, durante a Era Vargas, foram injustamente presos e torturados na cidade mineira de Araguari. Essa representação certeira de figuras, episódios e contextos históricos, no entanto, dá lugar a personagens caricatos e paisagens imaginárias em trabalhos como o faroeste pastelão Panca de Valente (1968), ambientado na fictícia Espalha Brasa, e a chanchada erótica Cassy Jones – o Magnífico Sedutor (1972), que se passa em uma Ipanema idealizada. Ligada à 28ª edição do programa Ocupação Itaú Cultural, esta publicação também percorre diferentes níveis de realidade para apresentar a trajetória de Person. Partindo de matérias sobre trabalhos assinados pelo artista – e sobre seus projetos inacabados –, tanto no cinema quanto no teatro, o percurso se encerra com resenhas de um filme que nunca foi feito, mas que o diretor chegou a roteirizar e sonhava produzir: A Hora dos Ruminantes. Por sinal, o longa seria uma adaptação do romance homônimo de José J. Veiga, autor que definia seu universo literário como um “mundo fantástico real”. Além de preparar estas páginas e uma exposição – em cartaz entre fevereiro e abril de 2016 na sede do Itaú Cultural, em São Paulo –, a Ocupação Person se estende para a internet. O site do programa (itaucultural.org.br/ocupacao) traz, entre outros conteúdos, depoimentos em áudio e vídeo de parentes, amigos e parceiros de trabalho do artista homenageado.

Itaú Cultural


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POR LUÍS ANTÔNIO GIRON

Existe uma forma musical denominada tema e variações, que passou a ser usada como metáfora do trabalho artístico em geral. Nela, o compositor apresenta uma série de variantes para uma mesma base melódica, rítmica ou harmônica – há portanto uma lógica que determina o desenrolar da composição. Mas o que aconteceria se um artista abolisse o tema, ficasse apenas com as variações e fizesse disso a sua obra? Assim poderia ser definida a produção de Luiz Sergio Person – no cinema, na televisão, na publicidade e no teatro. De fato, ele propôs variações em torno de tema algum, ou de todos os temas ao mesmo tempo: variações sobre a criatividade, sobre a busca de ideias inovadoras, sobre a inquietação que não lhe permitiu ser fiel a uma área de expressão, a um gênero ou a um movimento estético. A condição de percurso efêmero e inacabado que caracteriza a trajetória do artista pode ser atribuída ao fato de ele ter morrido abruptamente aos 39 anos, quando seu carro bateu de frente

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com um ônibus na Rodovia Régis Bittencourt, em São Paulo, no dia 7 de janeiro de 1976. A morte interrompeu as ideias, os projetos e os sonhos de um homem no ápice de sua carreira – e abriu espaço para que a posteridade especulasse sobre o que teria sido o seu legado definitivo. Os pedaços de uma utopia artística ganham sentido com o fim trágico de quem a concebeu e lhe dão grandeza na medida em que reservam a cada um de nós a tarefa de completá-la a partir do ponto em que foi interrompida – em meados dos “anos de chumbo”, quando o totalitarismo assombrava a vida cotidiana no Brasil e tudo ainda estava para acontecer no sentido de exorcizar o país de suas desgraças de então.

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Poderosos, sensíveis e ofuscantes O nome de Person se fixou nos anais do cinema brasileiro graças a dois longas-metragens que ele roteirizou e dirigiu nos anos 1960: São Paulo Sociedade Anônima (1965) e O Caso dos Irmãos Naves (1967). O primeiro aborda, a partir de um drama pessoal, o surto de industrialização e crescimento urbano que tomou a capital paulista na virada da década de 1950 para a de 1960. Carlos (Walmor Chagas), o protagonista, galga postos numa empresa de autopeças e sofre um processo de padronização espiritual enquanto lida com dilemas morais, dividido entre o amor doméstico de Luciana (Eva Wilma) e a sedução do sexo, encarnada em Ana (Darlene Glória). O segundo longa, por sua vez, narra o caso real de dois irmãos que, nos anos 1930, foram injustamente acusados de um crime pela polícia corrupta da cidade de Araguari, no interior mineiro. As cenas em que Joaquim (Raul Cortez) e Sebastião Naves (Juca de Oliveira)

são torturados pelos oficiais ainda perturbam, sobretudo porque dramatizam uma prática comum até hoje nos momentos de confronto político e cultural. Poderosos e sensíveis, os dois filmes deram a Person o estatuto de referência cinematográfica, inclusive no plano internacional. No entanto, eles de certa forma ofuscaram outras facetas da produção do artista. Um péssimo ator Nascido em 12 de fevereiro de 1936, em São Paulo, Person demonstrou desde cedo seu gosto pelas artes. A primeira paixão foi o teatro – participou de grupos amadores quando estava no tradicional Colégio São Bento, e essa experiência o levou, aos 15 anos, a iniciar uma formação de ator. Ingressou como bolsista da prefeitura no curso de interpretação cinematográfica do Centro de Estudos Cinematográficos de São Paulo e, em seguida, fez testes para integrar o elenco da peça O Massacre, de Manuel Robbins, que seria encenada no Rio de Janeiro. Selecionado, o rapaz foi proibido pelos pais de seguir adiante – para que pudesse completar o curso clássico no São Bento. O esforço dos pais, porém, se mostrou inútil. Já em 1955, quatro anos depois, ele se juntaria a um grupo de jovens amadores – Flávio Rangel, Antunes Filho e Cláudio Petraglia, entre outros – que, no futuro, se tornariam fundamentais para a evolução do teatro no Brasil. Ao lado deles, trabalhou na montagem de peças que eram apresentadas na casa de amigos e em outros espaços não oficiais. Com o desejo de sistematizar seu conhecimento e contribuir para a divulgação das


Os filmes que definiram a obra de Person

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Diante das câmeras: Person em cena nos filmes Casei-Me com um Xavante (acima) e Anuska, Manequim e Mulher

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artes, o jovem Luiz Sergio criou, em 1956, a revista Sequência, dedicada ao cinema e ao teatro. A publicação, no entanto, só teve um número: Person queria fazer, com recursos próprios, uma revista cultural de um homem só, e logo se deu conta de que a aventura era impossível. Então enveredou pela carreira de galã de teatro popular, entrando para a Companhia de Comédias Odilon Azevedo – com a qual se apresentou em Vamos Brincar de Amor, encenada no Teatro Municipal de Campinas. Um ano depois, em 1957, foi visto em dois filmes: A Doutora É Muito Viva, de Ferenc Fekete, e Casei-Me com um Xavante, de Alfredo Palácios – assumindo também, na segunda obra, o posto de assistente de direção. Mesmo com as glórias que, mais tarde, obteve como cineasta – e apesar de jurar que não passava de um péssimo ator –, Person nunca deixou de atuar. Ainda apareceu em longas como O Estranho Mundo de Zé do Caixão, de José Mojica Marins, O Quarto, de Rubem Biáfora, e Anuska, Manequim e Mulher, de Francisco Ramalho Jr., os três de 1968.


Person em Roma, durante as filmagens de Al Ladro, curta bastante influenciado pelos princípios do neorrealismo italiano – como o uso de atores amadores e de locações externas

São Paulo-Roma-São Paulo Em 1959, mais uma vez a família interveio e o artista foi trabalhar com o pai na fábrica de instrumentos abrasivos Person Bouquet S.A., fundada três anos antes. Exerceu o cargo de diretor comercial da empresa até 1961, quando se cansou das máquinas e fez as malas para se matricular no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma. E foi na Itália que Person – valendo-se, em grande medida, de sua experiência na fábrica do pai – redigiu o roteiro de São Paulo S.A.,

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Na página ao lado, Plínio Passos e Laerte Morrone em cena da peça Orquestra de Senhoritas – apresentada em 1974 no Auditório Augusta (à esquerda)

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inicialmente batizado de Agonia. Antes de voltar para o Brasil, ainda realizou três curtas-metragens por lá: o documentário Il Palazzo Doria Pamphili (1963) e as ficções L’Ottimista Sorridente (1963), como trabalho de conclusão de curso, e Al Ladro (1962). Baseada nos princípios de espontaneidade e improviso do neorrealismo italiano, esta última obra foi premiada nos festivais de Veneza e de Bilbao – o sucesso foi tamanho que o diretor Luigi Zampa convidou Person para ser seu assistente na realização do drama Gli Anni Ruggenti (1962), sobre como a visita de um líder fascista abala a ordem de um pequeno povoado italiano. Tão logo retornou à capital paulista, em 1964, o cineasta começou a produzir São Paulo S.A. Para tal, levantou fundos por meio de um regime de cotas, sistema inovador na época, sem o patrocínio do Estado – o que seria habitual entre 1969 e 1990, com a fundação da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme). Assim como O Caso dos Irmãos Naves, que viria em seguida, a obra amealhou vários prêmios e

logo o trabalho de Person passou a ser identificado com a corrente do cinema novo – identificação refutada pelo diretor. Person se filiava, isto sim, ao movimento cinematográfico paulista – ao lado de Walter Hugo Khouri, José Mojica Marins e Rubem Biáfora, entre outros –, que buscava um cinema menos intelectualizado do que o defendido pelos cinemanovistas, situados fundamentalmente no Rio de Janeiro. Desde os anos 1940, com a utopia da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que queria recriar Hollywood em São Bernardo do Campo (SP), os artistas paulistas desejavam estabelecer um mercado consumidor para o cinema nacional – com empreendimentos consistentes e filmes acessíveis a todos. Person sonhava com o cinema popular. No fim, as origens Em 1968, no auge da fama, Person começou a se preocupar com a distribuição deficiente dos filmes no Brasil e colaborou para a criação da Reunião de Produtores Independentes (RPI). No mesmo ano, com o apoio da cooperativa, ele


lançou Panca de Valente, seu maior fracasso de bilheteria, e dirigiu “Procissão dos Mortos”, episódio do longa Trilogia de Terror – que também contou com segmentos assinados por Ozualdo Candeias e José Mojica Marins. O quarto e derradeiro trabalho de Person no cinema, Cassy Jones – o Magnífico Sedutor (1972), foi lançado depois de um período em que o artista se dedicou à publicidade. Perguntado por que escolhera a nova carreira, ele ironizou: “Todo mundo sabe que não existe publicitário que não seja gênio”. Se não foi genial, em todo caso, foi bem-sucedido na área – dirigiu centenas de comerciais entre 1969 e 1971. Como que voltando às origens, enfim, Person focou suas últimas ações em benefício do teatro. Em sociedade com Glauco Mirko Laurelli, ele fundou em 1973 o Auditório Augusta, onde promoveu a difusão de dezenas de peças e não deixou de dirigir produções de impacto, como a que inaugurou o espaço: El Grande de Coca-Cola, com Armando Bogus, Laerte Morrone, Suely Franco e Ricardo Petraglia, entre outros, no elenco. Comédia musical escrita pelos norte-americanos Diane White e Ronald House, o espetáculo se passava em um cabaré hondurenho comandado por Don Pepe Hernandez (Felipe Carone), um sujeito que promete trazer grandes e internacionais atrações para o seu palco, mas – como as estrelas convidadas não aparecem – acaba colocando os membros de sua família para cantar, dançar e fazer mágicas e malabarismos para o público. O sucesso foi estrondoso e animou o diretor a encenar, em 1974, o drama Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, e a comédia Orquestra de Senhoritas, de Jean Anouilh. Essa última produção causou escândalo por trazer

atores – como Ney Latorraca e Paulo Goulart – travestidos de mulher, num desafio à censura do regime ditatorial vigente. Se atentarmos apenas aos seus dois filmes consagrados, a impressão que Person transmite é a do cineasta intelectual, vinculado ao neorrealismo italiano e com uma pitada de experimentalismo do cinema novo. No entanto, basta conhecer sua trajetória para descobrir um empreendedor em busca de um mercado cultural que só floresceria décadas depois de sua morte. As variações que Luiz Sergio Person criou giram em torno não de um tema único, mas de uma inquietação artística plural que continua a fascinar. Sua obra sugere variações sobre infinitos temas – variações das quais todos são convidados para participar.

Luís Antônio Giron é jornalista e escritor. Publicou, entre outros livros, o romance Ensaio de Ponto (1995) e a biografia Mario Reis – o Fino do Samba (2001).

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POR INÁCIO ARAUJO Quando pensamos em São Paulo Sociedade Anônima (1965), a primeira coisa que vem à lembrança não são as pessoas, mas as paisagens: a via Anchieta e suas fábricas, a Praça da República e seu jardim, a rua residencial e suas casas, os grandes prédios e suas janelas ostensivas. Afinal, esses são os ambientes que acolhem as pessoas com quem vamos conviver ao longo do filme. A principal marca do primeiro longametragem de Luiz Sergio Person é a exatidão. Antes de mais nada, ele registra fotograficamente a passagem da São Paulo provinciana – que vemos, por exemplo, em O Grande Momento (1958), de Roberto Santos – à potência industrial em que a cidade se transformou. A consolidação da indústria automobilística paulista abre espaço para o surgimento da indústria de autopeças. E é essa situação que nos leva ao personagem de Otelo Zeloni, Arturo. Arturo e seu chapéu: parecem inseparáveis, como se o primeiro decorresse do segundo, e não o inverso. O chapéu representa o seu caráter – otimista, empreendedor, pouco honesto. É um homem feito para o sucesso. Já

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Um homem perdido numa cidade em transformação: Walmor Chagas (e Ana Esmeralda, na imagem de baixo) em cenas de São Paulo S.A.


Carlos (Walmor Chagas), o protagonista do longa, é o avesso de seu futuro sócio. Versado em mecânica, será primeiro o funcionário-chave da nova indústria. E ascender socialmente significa, em boa medida, corromper alguém na montadora a fim de vender peças de segunda categoria ou fazer vista grossa às barbaridades trabalhistas que se passam na fábrica. É como se Carlos fosse, de certa forma, o simpático Zeca de O Grande Momento, agora engolido pela engrenagem industrial já em movimento. A incapacidade de absorver a cidade Talvez não seja inexato dizer que desse cenário decorre a permanente insatisfação do personagem: Carlos vive para a crítica, para uma espécie de crítica que inevitavelmente se volta contra ele mesmo. Nada lhe serve porque ele mesmo não se aceita. E não se aceita na medida em que sua crítica se exerce sobre um mundo – ou uma cidade – em transformação rápida e decisiva, que o engolfa. Sua crise parece ligada a essa circunstância. Novamente é a cidade que vem à frente. “Recomeçar, recomeçar...” – essa é sua frase insistente. Mas, ao ver Carlos, logo nos perguntamos: recomeçar para quê? Por quê? Para onde? Ele fala em recomeçar, mas não sabe o quê nem como. Mais tarde, seu périplo para fora da cidade nos esclarecerá sobre a inconsistência de sua crise. Ele não é mais do que um homem perdido, sem eira nem beira. Seu casamento com Luciana (Eva Wilma) é a expressão dessas contradições. Ela representa a mulher do passado, digamos. Na década de 1960, é uma moça que se prepara para o casamento, para ser “dona de casa”, como se

dizia então. Carlos pressente a mudança dos tempos, mas corre atrás de Luciana como quem persegue a própria desgraça. Em algum nível, as três mulheres de sua vida são inatingíveis, pois também Hilda (Ana Esmeralda), a intelectual, a mulher livre, está fora de seu alcance, assim como a fútil Ana (Darlene Glória). O impasse de Carlos é material, digamos assim, antes de ser existencial: é a incapacidade de absorver a cidade – com suas decorrências, sua transformação incessante, sua pujança econômica, sua corrupção etc. – que o assombra. Situação bem diferente da experimentada pelos personagens de, por exemplo, Noite Vazia (1964), de Walter Hugo Khouri, a quem o aspecto metropolitano de São Paulo não incomoda: seus problemas são mais interiores, psicológicos. Sempre que revejo a obra, fico impressionado com sua atualidade. Em vez de torná-la anacrônica, as mudanças pelas quais passaram as paisagens ali retratadas parecem atualizá-la. O Centro deixou de ser um centro, os jardins da República são vigiados por policiais, a via Anchieta é hoje uma “estrada velha”, os bairros residenciais estão tomados por escritórios e suas ruas estão abarrotadas de carros. No entanto, essas paisagens ainda são fundadoras: elas definem, até hoje, o caráter da cidade – não só sua dinâmica, mas, sobretudo, seu caráter mutante. Esse é o aspecto fundador de São Paulo S.A., um ponto de inflexão do cinema urbano paulista. Um filme que nos olha É bem o inverso o que se dá com O Caso dos Irmãos Naves (1967). A primeira coisa que me vem à mente, quando penso nele, são os

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A injustiça que se revela nos rostos dos irmãos Naves, interpretados por Raul Cortez e Juca de Oliveira

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rostos: o de Raul Cortez e o de Juca de Oliveira, sobretudo. Em São Paulo S.A. a paisagem me parece essencial e a intriga circunstancial – os personagens poderiam ser outros sem que isso alterasse a substância do filme. Em O Caso dos Irmãos Naves, ao contrário, a história poderia se passar em qualquer outro lugar. O que mais importa, aqui, é a evolução dos rostos: a prisão, a tortura, o progressivo desânimo que toma conta da expressão dos irmãos. Quando foi lançada, a obra me pareceu mais interessante do que São Paulo S.A., mas hoje tenho a impressão de que isso se dava apenas por uma conjunção entre um assunto e um tema. Falava-se, na época, da falência da Justiça, das atitudes arbitrárias, das confissões obtidas por métodos torpes. Em suma, falava-se da ditadura iniciada em 1964. Não que o filme tenha perdido atualidade – os procedimentos policiais no Brasil

continuam, em linhas gerais, os mesmos. E este é o ponto que, hoje, mais importa no filme, o que faz sua atualidade: não é como olhamos para ele, mas como ele nos olha – como esse olhar dos irmãos Naves nos toca e nos provoca. Desejo de imagens Dos últimos filmes de Person, eu diria que vale a pena passar ao largo do constrangedor Panca de Valente (1968). Cassy Jones – o Magnífico Sedutor (1972), ao contrário, é uma interessante investida no cinema de grande público. Se São Paulo S.A. é um filme de paisagens e O Caso dos Irmãos Naves é um filme de rostos, Cassy Jones é um filme em que o mais memorável são os corpos: é a agilidade de Paulo José, acompanhada pela leveza da câmera e pela paisagem encantadora do Rio de Janeiro, o que mais se deixa lembrar.


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Comédia que mistura elementos do burlesco, do musical e do romântico, o trabalho pode ser visto como o marco de uma suposta conversão de Person – de “autor sério” a “cineasta comercial”. Que ele estava desiludido com o cinema era voz corrente. Que tenha buscado contato com um público ainda mais amplo – seguindo o caminho de seu assistente em São Paulo S.A., Pedro Carlos Rovai – é possível. É improvável, no entanto, que se pense em termos de “degradação”. Não se pode esquecer que Person deve boa parte de sua formação à Companhia Cinematográfica Maristela – produtora criada no início dos anos 1950, em São Paulo – e, depois, ao Centro Sperimentale di Cinematografia, na Itália. Não era alguém predisposto, por esses parâmetros, a renegar a natureza popular do cinema. É difícil imaginar que caminhos trilharia sua obra cinematográfica caso ela não tivesse sido interrompida prematuramente pelo acidente que vitimou o artista. Seu caráter até certo ponto heterogêneo não permite distinguir com clareza o tipo de cineasta que Person teria gostado de seguir sendo. Talvez se possa intuir, apenas, que continuaria agindo como um cineasta de cinema: seja na comédia, seja no drama, o que Person deixou transparecer em todos os seus filmes foi um imenso desejo de imagens.

Inácio Araujo é crítico de cinema. Autor de Hitchcock – o Mestre do Medo (1982) e Cinema – o Mundo em Movimento (1990), também publicou o romance Casa de Meninas (1987) e o livro de contos Urgentes Preparativos para o Fim do Mundo (2014). 22


O corpo é a alma em Cassy Jones: acima, Sandra Bréa em cena como Clara, a moça que abala as estruturas do sedutor Cassy, vivido por Paulo José (ao lado)

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POR JULIANO BARRETO Em 1957, aos 20 anos, Luiz Sergio Person escalou o cômico Ronald Golias para protagonizar um filme que se chamaria Um Marido para Três Mulheres e retomaria fórmulas clássicas das chanchadas das décadas anteriores. A grande sacada era a aposta no carisma e na espontaneidade de um ator cujo sucesso, naquele momento, se limitava aos picadeiros e aos teatros populares – Golias só receberia a consagração maior do público uma década mais tarde, ao integrar o elenco do programa de televisão Família Trapo. Ironicamente, o projeto também teve de esperar exatos dez anos para chegar às telas – com outro nome, Marido Barra Limpa, e outro diretor nos créditos, o produtor Renato Grecchi, que acabara de encontrar e comprar o material há tanto tempo filmado e abandonado. Foi nesse intervalo que Person viajou à Itália para estudar no Centro Sperimentale di Cinematografia e, de volta para o Brasil, lançou São Paulo Sociedade Anônima (1965), marcando com um fenômeno sua estreia nas salas de cinema. Grecchi até tentou convencê-lo a concluir a comédia, mas Person não se animou muito com o convite. Nem quis entrar como

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Person, ao lado do humorista Ronald Golias, em Marido Barra Limpa

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codiretor da obra – o que faria dela, e não de São Paulo S.A., seu primeiro longa-metragem. Por que abrir mão de uma estreia que já se mostrou tão bem-sucedida?, talvez ele tenha pensado. Em todo caso, Um Marido para Três Mulheres/Marido Barra Limpa foi um dos poucos projetos – quem sabe o único – aos quais o artista renunciou por vontade própria. Ideias não formavam filas retas e pacíficas na cabeça de Person. Ao longo de sua carreira, ele deu uma série de passos para trás visando dar saltos para a frente no futuro: antes de desistir de um trabalho, tentava driblar as dificuldades momentâneas criando um segundo projeto que financiaria ou alavancaria o primeiro. Mas nem sempre essa estratégia deu certo...

“Você sabe quem é Roberto Carlos?” O sucesso de São Paulo S.A. impulsionou a realização do segundo longa assinado pelo diretor: O Caso dos Irmãos Naves (1967). O que poucos sabem é que, entre o lançamento das duas obras, Person enveredou por uma iniciativa que em nada combinava com a temática política e com a estética impactante do filme que reproduziu as injustiças sofridas pelos Naves. “Um belo dia, enquanto eu fazia a pesquisa para escrever o roteiro de O Caso dos Irmãos Naves, Person apareceu empolgadíssimo e me perguntou: ‘Você sabe quem é Roberto Carlos?’ ”, recorda JeanClaude Bernardet, teórico e crítico de cinema então convertido por Person em roteirista.


Sem entender nada, Bernardet respondeu negativamente à pergunta do diretor e foi apresentado a um projeto completamente diferente daquele que eles estavam elaborando. Atento à crescente popularidade dos cantores de iê-iê-iê – ritmo brasileiro que imitava a primeira geração do rock’n’roll norte-americano –, Person decidiu registrar em película uma aventura adolescente focada na exuberância de Erasmo, Roberto e Wanderléa. O objetivo, além de explorar o fenômeno musical brasileiro da mesma forma como os ingleses fizeram com os Beatles, era lucrar o suficiente para financiar O Caso dos Irmãos Naves.

 Para ajudá-lo na produção do roteiro, Person chamou, além de Bernardet, outro amigo que também trazia o contraste de muito talento artístico e pouca experiência no cinema: Jô Soares. E dessa união surgiu o argumento de SSS contra a Jovem Guarda, filme que giraria em torno das tentativas da retrógrada Sociedade Secreta Sigilosa de sequestrar Roberto Carlos e sabotar a voz do cantor. Só assim, pensavam os vilões carecas, a tradicional família brasileira ficaria livre da má influência do iê-iê-iê. Independentemente do enredo, antes mesmo de ter uma data de lançamento o filme já começava a fazer barulho por significar a primeira aparição do jovem “rei” nos cinemas.

 Por um lado, a imprensa previa a enorme bilheteria gerada pelos fãs da jovem guarda às salas de projeção; por outro, não faltava quem estranhasse o interesse do elogiadíssimo cineasta em um projeto para adolescentes, sem maiores pretensões artísticas. “O artista que quer considerar-se atual e contemporâneo não pode ficar alheio ao movimento popular”, respondeu Person ao questionamento da reportagem da

revista Manchete, em 1966. “Precisamos acabar com a ideia romântica do artista ser um eterno divulgador de suas experiências e frustrações pessoais. Sem a comunicação entre o intérprete e o público, a arte se deforma e deixa uma porta aberta para a mediocridade. Eu não poderia, portanto, ficar alheio ao iê-iê-iê, gênero que atinge noventa por cento do gosto popular.”

 Mas a incredulidade da imprensa acabou não sendo o maior obstáculo para a produção do filme. “As reuniões para o desenvolvimento do roteiro eram feitas não só com os artistas”, conta Bernardet. “Toda semana, quando íamos para a agência que cuidava da carreira dos astros da jovem guarda, dividíamos espaço na mesa com vários empresários, produtores, assessores.” Assim, as conversas sobre o filme eram constantemente interrompidas para que Roberto Carlos aprovasse uma infinidade de produtos. Enquanto Person, Bernardet e Jô tentavam decidir como seria uma cena, designers interrompiam a reunião para mostrar projetos de cintos, de sapatos ou de uma revista em quadrinhos feita por Mauricio de Sousa. “Para piorar a situação”, diz Bernardet, “a escolha de Roberto como protagonista irritava Erasmo e Wanderléa”. Com muita diplomacia, paciência e insistência, Person e seus corroteiristas deram um jeito de apaziguar o ânimo dos músicos e de seguir à fase de filmagem da obra – ignorando o fato de que maiores dificuldades viriam pela frente.

 Não faltaria dinheiro. O problema era que o protagonista da trama estava no auge de sua popularidade e muitas vezes nem sequer conseguia aparecer no set. Seduzido com a chance de decolar em carreira internacional, Roberto chegou a abandonar as gravações para

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28 Trecho do roteiro de SSS contra a Jovem Guarda


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fazer uma turnê em Portugal. E, depois de romper seu contrato com a agência que gerenciava a jovem guarda, o astro desistiu de vez do filme de Person. Apenas dois anos mais tarde, em 1968, estrelou o longa Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, dirigido por Roberto Farias.

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Mãos à ruminação Na perspectiva de Person, o fracasso de SSS contra a Jovem Guarda trouxe alívio e foco para a realização de O Caso dos Irmãos Naves, até porque o produtor Mario Civelli havia entrado em cena e garantido a viabilidade do filme – que conquistou uma boa bilheteria e uma ótima resposta da crítica. A parceria de Person e Civelli funcionou tão bem que o produtor deu sinal verde para um próximo trabalho do cineasta. Person então encomendou ideias ao parceiro Bernardet, que fez uma visita à livraria e lhe trouxe um recém-publicado romance do escritor goiano José J. Veiga, A Hora dos Ruminantes (1966). Ambientada em uma pequena cidade que é pega de surpresa por uma série de acontecimentos estranhos – como a invasão de misteriosos forasteiros e, depois, de dezenas de cães e centenas de bois –, a narrativa foi lida por Person como um retrato preciso de alguns dos males que assolam a alma brasileira, como a ganância, o preconceito e a incompetência das autoridades. E sua adaptação para o cinema seria uma continuação espiritual de O Caso dos Irmãos Naves. “Vivíamos uma época de forte repressão, com vários amigos sendo presos e torturados”, lembra a cineasta Regina Jehá, viúva do diretor. “O filme seria uma forma de crítica às pequenas violências que sofremos no dia a dia.”

 A empolgação com o projeto era enorme. Civelli o aprovou de primeira e os direitos de adaptação foram comprados. E, enquanto Bernardet

desenvolvia o roteiro em ritmo acelerado, Person já pensava em como filmar cenas tecnicamente complicadas, como a da invasão da cidade pelas cabeças de gado. A dupla combinou que a montagem do filme seguiria a fórmula usada pelo japonês Tadashi Imai em Juramento de Obediência (1963). Ou seja, a obra traria uma sequência de histórias diferentes, cada uma com o seu núcleo de personagens, mas ligadas por um denominador comum – uma situação que se repete com intensidade crescente e ilustra a “mensagem central” do trabalho, sem que para isso seja necessário lançar mão de uma reflexão teórica explícita ou de diálogos explicativos. O tom “pesado” do projeto dividiu as opiniões dos amigos que leram as primeiras versões do roteiro. O autor Lauro César Muniz, por exemplo, achou a ideia “toda errada”. Mas Person não dava o braço a torcer – pelo contrário: o uso de alegorias para criticar o governo totalitarista instalado no Brasil, recurso que liga O Caso dos Irmãos Naves a A Hora dos Ruminantes, seria defendido ainda em um terceiro filme, baseado no levante comunista que ocorreu em Natal em 1935 e durou apenas três dias. Os sonhos do cineasta com o que chamava de “trilogia da violência”, no entanto, foram interrompidos bruscamente pela notícia de que Civelli, por problemas de saúde, não poderia mais trabalhar na captação de recursos para A Hora dos Ruminantes. O que era certo ficou nebuloso. Com o roteiro da obra já finalizado, Person se despediu da certeza de rodar o filme nos próximos meses. Só tinha em mãos alguns metros de negativos coloridos doados por Civelli como uma forma de indenização pelo tempo e pelo trabalho gastos com o projeto que havia sido apalavrado. Segundo familiares e amigos próximos, esse foi o grande desapontamento de sua vida.


Fica a interrogação Em 1968, Person vendeu os tais negativos para financiar uma produção mais barata e, assim acreditava ele, de retorno mais certeiro: o banguebangue cômico Panca de Valente. “Ele tinha a ideia de fazer sete, oito filmes acompanhando toda a trajetória do protagonista – primeiro no interior, depois viajando para a cidade e se adaptando à vida urbana”, explica Regina. “Dessa forma, haveria uma fonte de recursos para fazer outros projetos.” O plano só não previa o fracasso – de público e de crítica – do longa. “Foi a produção mais decepcionante de Person. Não apenas pela temática, mas também pela simplicidade da produção”, comenta Amir Labaki, crítico de cinema e organizador do livro Person por Person (2002). Essa nova decepção acabou afastando temporariamente Person do cinema. Depois de se dedicar à publicidade, ele só voltou a lançar um longa em 1972, com Cassy Jones – o Magnífico Sedutor. A comédia erótica não era o projeto dos seus sonhos, mas era um filme possível, tanto por ter um orçamento mais modesto do que o de A Hora dos Ruminantes quanto por tratar de temas menos provocadores. Mesmo assim, a vontade de adaptar o romance de José J. Veiga não foi deixada de lado. Em 1973 – seis anos após a conclusão do roteiro da obra –, durante uma entrevista ao jornal O Pasquim, Person desabafou: “Esse filme chama-se aquilo que ou eu faço ou eu nunca mais vou fazer cinema. Esse é o meu maior filme, é uma coisa que eu tento realizar...”. “Cassy Jones?”, interrompeu Zélio Alves Pinto, que integrava o grupo de

Panca de Valente: o projeto que caiu do cavalo...

entrevistadores. “Não”, respondeu Person, “A Hora dos Ruminantes. E, depois disso, fim”. Apostando na boa repercussão que O Caso dos Irmãos Naves teve nos Estados Unidos e contando com uma conexão dos tempos de Centro Sperimentale di Cinematografia, Person tentou viabilizar The Plague of the Ruminants, versão em inglês da obra. Viajou para Nova York e passou dois meses batendo à porta de grandes nomes da indústria cinematográfica norte-americana – chegou até a enviar uma cópia do roteiro para Marlon Brando. Mas os resultados, mais uma vez, foram frustrantes. O cenário da Hollywood do começo dos anos 1970 era de crise, com pouco espaço para apostas em diretores estrangeiros e projetos arriscados. A resposta de Brando veio negativa e seca – apenas uma carta datilografada pela secretária do ator, dizendo que ele tinha agenda cheia pelos próximos dois anos e que roteiros não solicitados não eram lidos. Além disso, os produtores norte-americanos deixavam clara a sua preferência por temáticas mais coloridas e alegres, por filmes que mostrassem um Brasil mais “Carmen Miranda” do que “Vidas Secas”.

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Carta da secretária de Marlon Brando para Person: Estamos devolvendo o seu manuscrito de A Hora dos Ruminantes. O roteiro não foi lido, já que, a pedido do sr. Brando, não aceitamos materiais não solicitados. Além disso, a agenda do sr. Brando para os próximos dois anos está cheia e ele não estaria disponível para participar do projeto. Com os melhores votos, obrigada pela sua consideração.

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A sequência final – e pressagiadora? – do roteiro de A Hora dos Ruminantes

Em uma reunião com um desses produtores, o diretor juntou vários clichês que vieram à sua mente e, num instante, criou um projeto de mentirinha, com tudo de mais tropical, no estilo “para inglês ver”. O sujeito ficou animado com o negócio, mas jamais viu Person em sua frente de novo. 
 De acordo com o roteiro do filme, A Hora dos Ruminantes terminaria com um ponto de interrogação. Rabiscado por um personagem que, com um sorriso questionador, encara a plateia, o sinal acabou se encaixando melancolicamente na própria história do projeto – que o diretor ruminou e, sem sucesso, tentou filmar até a sua morte, em 1976. “Infelizmente”, assim Bernardet e Person concluíram o texto, “não entra a palavra FIM”.

Juliano Barreto é jornalista. Autor da biografia Mussum Forévis – Samba, Mé e Trapalhões (2014), mantém desde 2006, com a colaboração de amigos, o blog Resenha em 6 (resenhaem6.com.br).

No teatro Person também deixou algumas ideias pelo caminho. Uma delas foi a de adaptar a peça Trotsky no Exílio, do alemão Peter Weiss. Depois de traduzir o texto – que, por meio de flashbacks, acompanha a trajetória de Leon Trotsky desde a sua participação na Revolução Russa de 1917 até o seu assassinato, em 1940, no México –, o diretor se viu proibido de encenálo pelos censores da ditadura militar. Levando em conta que, nos anos 1970, a obra transformou Weiss em persona non grata na Alemanha Oriental, não é de admirar que a Divisão de Censura de Diversões Públicas tenha barrado a exibição do trabalho no Brasil. O episódio, porém, não bastou para que Person desistisse de falar de política. Num domingo de 1975, ao ler um artigo em que o jornalista Ricardo Kotscho comentava os tempos de Getulio Vargas, o artista pensou em criar uma comédia musical ambientada nesse período – e que não deixasse de ser uma crítica ao atual momento político do Brasil. Person convidou o jornalista – que nunca havia produzido nada para teatro ou cinema – para coescrever a peça, intitulada Pegando Fogo. A dupla redigiu o primeiro ato, mas Person morreu antes de concluir os demais.

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POR FERNANDA CASTELLO BRANCO São Paulo, 2016. Às vésperas de completar 80 anos, Luiz Sergio Person está irritado. Não consegue anexar à mensagem do e-mail a sua foto favorita – uma em que exibe sorridente a barba branca bem cheia, no terraço de seu sítio em Itapecerica da Serra (SP). Precisa mandar a imagem, com certa urgência, para o jornal que quer noticiar a lista dos 20 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Seu longa-metragem de estreia, São Paulo Sociedade Anônima (1965), está lá na tal lista. Cinquenta anos depois de lançado, o trabalho continua sendo o mais aclamado de toda a sua extensa obra no cinema. Mas isso não o irrita – Person tem grande estima pelo filme. “Ainda é muito atual”, costuma dizer aos amigos. Para tentar resolver o problema do e-mail que não consegue mandar, ele pede ajuda a Marina, sua filha mais velha. Sorridente, ela diz: “Calma, papai. Eu mesma fico confusa com a internet”. Person muda de assunto e pergunta se percebemos que, em Califórnia, primeiro longa de ficção de Marina, lançado em 2015, Caio Blat se chama Carlos, exatamente como Walmor Chagas no seu São Paulo S.A. Tem o maior orgulho de ser

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uma grande referência para as filhas, a verdade é essa. Esquece completamente de que precisa mandar a foto para o jornal e abre os braços, gargalhando: Domingas, a sua caçula, chegou com os dois filhos para o almoço de domingo. Sobre o acidente de carro sofrido em 1976, que quase o levou à morte, Person fala pouco. Mas diz que, depois dele, a “frase-mantra” de Carlos passou a fazer mais sentido em sua vida. Recomeçar, recomeçar, recomeçar...

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[Corta para a vida real] Person ao dobro São Paulo, 2016. O tempo realmente não para. A morte de Person “empata” com a vida. Há 40 anos, o país perdia um dos seus mais importantes cineastas, a um mês de completar 40 anos de idade. Apesar de o tempo ser remédio para todos os males, praticamente não há quem tenha convivido com Person que não solte, às vezes meio sem perceber, uma frase ou uma história que o situe no tempo atual. “Nem imaginava que já faz 40 anos da morte do Person. Para mim, parece que foi ontem”, conta o ator Sergio Mamberti, amigo que chegou a ser convidado para trabalhar com o diretor no teatro, mas, por questões de agenda, nunca conseguiu realizar esse sonho de ambos. “Sempre que me encontro com as meninas, as filhas dele, e com a Regina, a viúva, falo dele como se ele ainda estivesse por aqui. Person estava sempre com uma coisa a ser realizada, e não apenas em um campo. Ele é muito um homem do nosso tempo”, completa. Eva Wilma, que deu vida à Luciana de São Paulo S.A., concorda. “Ele estaria realizando mil coisas ao mesmo tempo”, diz ela. Estaria exatamente como sempre foi, “só que ao dobro”. Na mesma trincheira Se a atuação no cinema e no teatro foi algo que dividiu Person ao longo da vida, essa dualidade o acompanha também na morte. Na verdade, cada um dos amigos imagina Person ativo aos 80 anos na expressão artística da qual faz parte. Já que é para imaginar, por que não aumentar as chances de convivência com essa figura tão inesquecível?

“Acho que para o cinema ele não voltaria. Para a publicidade também não!”, especula Mauro Giorgetti, autor da trilha sonora da peça Orquestra de Senhoritas (1974). “Acho que ele estaria no teatro ou talvez também escrevendo. Naturalmente teria diminuído a intensidade. Ele estaria na produção de alguma peça, mas fazendo coisas mais espaçadas. Difícil projetar o Person, uma personalidade tão complexa”, explica. Voltando para o cinema – meio pelo qual o trabalho de Person ficou mesmo mais conhecido –, Renato Magalhães Gouvêia, produtor de São Paulo S.A., não tem dúvida: “Ele seria um dos maiores diretores de cinema atualmente. Com seu filme de estreia ele já rompeu com o cinema que existia naquela época. Hoje estaria na crista da onda, afinal era um sujeito com muitas ideias”. No ano de 1986, em depoimento para o Museu da Imagem e do Som (MIS), Claudio Petraglia, músico, compositor, maestro, roteirista e produtor, foi ainda mais específico na sua previsão. “Vejo Person fazendo um filme de ficção científica. Tenho certeza de que ele ia botar um robô em um filme.” No livro Radiografia de um Filme: São Paulo S.A. (2010), Ninho Moraes também arrisca um palpite: “Ao completar a primeira década dos anos 2000, a batalha do cinema brasileiro continua a mesma de sempre. Person, se vivo fosse, provavelmente estaria na mesma trincheira: na busca de comunicação com o público”.

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Person com as filhas , Marina (ao lado) e Domingas

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Texto do cartunista Jaguar, escrito em 1976 para o jornal O Pasquim

Para sempre do presente Marina Person, a filha mais velha do artista, prefere se apegar à realidade, sem fazer suposições sobre o que não pôde vivenciar. “Não tenho essa imagem do meu pai com 80 anos”, conta ela. “Para conseguir superar uma morte, acho que você tem de parar de pensar. Já passei muito tempo da minha vida pensando como seria se meu pai estivesse vivo. Mas isso não funciona porque não foi assim. Acho que para me proteger eu não faço esse exercício. A vida é o que ela é. Temos de viver com as coisas que a gente tem.” Mesmo voltando os olhos para o real, Marina confessa: “Claro que às vezes eu me pego pensando como ele iria se virar com a internet, por exemplo. Quando eu mesma fico confusa com a internet, sempre penso como seria para ele. O mundo é confuso para mim, imagina para uma pessoa que nem viveu os anos 1980! Ele não viu a abertura política, a Aids, as Diretas Já. Tudo isso são coisas que ele não viveu”.

Para Domingas Person, o pai provavelmente estaria fazendo algo muito diferente. “E assim ele nos surpreenderia mais uma vez. Como atriz, gosto de pensar que ele teria continuado a fazer obras instigantes, no cinema e no teatro – e eu teria a oportunidade de ser dirigida por ele”, diz. Mas toda essa elaboração, segundo Domingas, é um “exercício de imaginação”. “Eu o vejo, como numa transgressão do tempo, com a mesma idade e o mesmo espírito daquela época”, completa. A verdade é que Person é um homem que se foi mas ainda está aqui. É um homem do presente. Um homem do presente para sempre. E não apenas porque sua obra é eterna. Talvez, no imaginário de quem conviveu com ele, sua presença seja vista da mesma forma como ele via o cinema: “É assim mesmo que vejo o cinema. Um cinema cujo tempo presente seja a sua matéria e o seu fim”.

Fernanda Castello Branco é jornalista e trabalha como editora do site do Itaú Cultural.

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O roteiro de A Hora dos Ruminantes é tudo o que temos daquele que, nas palavras de Luiz Sergio Person, seria o seu maior filme. Mesmo se mantendo fiel ao projeto durante os seus últimos nove anos de vida, o cineasta não conseguiu transformar o texto – adaptado do romance homônimo de José J. Veiga e escrito em parceria com Jean-Claude Bernardet – em imagens. É alguma coisa, mas está longe de ser o suficiente para que possamos saber como a obra de fato ficaria. Afinal, Person era adepto da ideia de que o roteiro de um filme não é um filme por escrito: para ele, um roteirista deveria se concentrar sobretudo na organização dramática de sequências e cenas e na descrição de ações e diálogos; e os enquadramentos, os movimentos de câmera, a duração dos planos e outras questões ligadas à maneira como determinada história é narrada – e não à história em si – seriam definidas posteriormente, no decorrer das filmagens. Além disso, decisões relativas ao elenco e à equipe técnica que trabalhariam no longa-metragem nunca foram tomadas. Pensar nesse projeto interrompido, assim, é se lançar numa série de dúvidas, num mistério que remete àquele que assola os habitantes da pequena e fictícia Manarairema – a cidade em que se passa a narrativa e que se vê ocupada por forasteiros de origem indefinida e intenções obscuras, por cães endiabrados e bois que lotam as ruas e enclausuram as pessoas em suas casas. Mas é sempre possível imaginar. Com base no tal roteiro, os escritores Lourenço Mutarelli e Noemi Jaffe “assistiram” ao filme. Nas páginas a seguir, eles comentam suas impressões – e fazem com que, pelo menos na realidade que a ficção encerra, Person tenha a chance de concluir a sua tão ruminada obra.

Os cartazes criados para esta seção são de autoria de Thiago Lacaz (ao lado), Indio San (p. 42) e Daniel Bueno (p. 46).

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RUMINANDO Por Lourenço Mutarelli

A Hora dos Ruminantes é para mim um dos maiores filmes da cinematografia brasileira. Não apenas isso, é muito mais. É um daqueles filmes que transformam. Está entre os dez que mais me marcaram. A intrigante história que parte do romance de José J. Veiga ganha materialidade alucinatória e perturbadora nas mãos de Luiz Sergio Person. É uma obra, monumento, que se apossou de meu imaginário como uma lembrança ancestral. Uma noite de febre e pesadelos. É o ápice da genialidade de Person. Ele, que já havia me assombrado outras vezes, especialmente em O Caso dos Irmãos Naves, agora me provoca aquilo que deve ser experimentado na hora da morte. O momento em que o ceticismo dá lugar à possibilidade da transcendência mística. O momento em que podemos vislumbrar a essência do Mal no social, no que parece corriqueiro. É impressionante a transliteração que Person e Jean-Claude Bernardet fizeram do livro ao roteiro. Embora saibamos que o roteiro é apenas o mapa, já estava quase tudo ali. O que não estava se fez tempo em imagem. Desde a onírica cena de abertura – quando, de forma mágica, a câmera sobrevoa e revela aos poucos a geografia mítica da alegórica Manarairema, pairando sobre a ponte e suavemente mergulhando na campina até se aproximar do casario e invadi-lo por uma janela fechada, sequência digna de Orson Welles, desvendando a cidade no claro-escuro cortante da fotografia granulada de Dib Lutfi – até o enigmático garrancho final – o ponto de interrogação que um dos personagens desenha antes de, encarando o espectador, sair de cena. Homem ou ruminante? A tarde cai e no lusco-fusco avistamos os primeiros vultos dos estranhos que se avizinham. João Ninguém (Geraldo Del Rey) conversa com dois outros sobre a ponte. Ainda que em silhuetas borradas, logo de pronto vemos os homens que chegaram à cidade e iniciam sua misteriosa construção. O contato inicial entre os habitantes de Manarairema e os forasteiros, porém, se dá após 15 minutos de filme. Uma cartela o anuncia: “Primeiro encontro – de como o vigário e seu assistente conhecem os homens”. São os representantes da igreja – padre Prudente e seu auxiliar, Balduíno – que primeiro se deparam com os “alienígenas” – acompanhados, nesse momento, por um cão. E o que dizer de padre Prudente? Que melhor nome teria? Afinal, não

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é a igreja parceira ou cúmplice das inquisições e dos holocaustos? Não é na igreja que são comungados os praticantes dessas atrocidades? Essa máxima parece esculpida no rosto que Jofre Soares empresta ao clérigo. Quando Balduíno (Ricardo Blat) encara o homem estranho, como esse homem retribui o olhar? Com uma careta – mostrando a língua numa careta. Quando o povo corre às autoridades, pedindo socorro ao delegado, ao prefeito e ao juiz, ninguém o socorre. Ninguém o orienta. Os poderes se mostram muito mais fracos e perdidos do que o povo humilde da pequena Manarairema. Mais adiante no filme um bando de cães toma as ruas e a igreja e as casas. Os cães tomam a cidade. E o que se faz? O que fazem as autoridades? Nada. Esperam que os animais se acalmem e façam o que quiserem até decidirem partir. Como já foi dito, o inferno é o lugar onde não se diferencia o homem do animal. Como o próprio cartaz do filme já adianta: “Você é homem ou ruminante?”. Sólido demais O segundo encontro ocorre quando um dos homens estranhos tenta comprar a carroça de Geminiano (Grande Otelo), coagindo-o. “Um homem é um homem.” Geminiano pensa em reagir, mas o padre o acalma, e então o carroceiro se faz escravo da força secreta que corrompe a cada um dos personagens. E um grupo festeja em trajes folclóricos enquanto ele leva outra carga de areia para a entrada do terceiro capítulo: “Um homem comerciante é mais homem”. Aqui quem se destaca é Lima Duarte, o dono da venda e valentão Amâncio – o primeiro a se associar ao grupo forasteiro, do qual se torna uma espécie de porta-voz. O primeiro a compactuar. Aí o próximo capítulo: “Um homem, não se sabe o que é, apenas para que serve”. Como todos, justifica o nome. É nesse ponto da narrativa que os cães invadem a cidade. Que Geminiano quase desfalece de desilusão e fraqueza. A mulher que reage à janela é Myriam Muniz. Aliás, o elenco do filme é brilhante – o delegado é Wilson Grey; Walmor Chagas interpreta o prefeito; e José Lewgoy, o juiz. E vemos as mãos de Person: por vezes agem feito as de um titereiro, comandando atuações naturalistas. Tudo é tão verdadeiro, mergulho profundo que reforça o suspense da trama e gera um clima de terror psicológico sufocante. São cenas inesquecíveis as dos cães tomando a cidade. O que dizer do velho que tira a comida da boca e a entrega ao vira-lata que rosna com o focinho colado em sua cara? E cada vez mais nos perguntamos: quem são esses que vestem uniforme e comandam as bestas? E por que todos se rendem a seu poder? O que constroem do outro lado da ponte? Como corrompem cada um dos que com eles vão ter? Seja o que for, pouco a pouco todos se dobram. Seja lá o que for que constroem, é sólido. Sólido demais. 46


Nossa esperança segue com o carpinteiro Florêncio (Leonardo Villar), mas ninguém pode com os forasteiros. Por fim nos resta aquele que julgamos ser o nosso herói, o ferreiro Apolinário (Othon Bastos); Sebastiana, sua esposa, é interpretada por Eva Wilma. Talvez nossa última chance. Aquele que é livre e desprendido. Mas ele também se dobra. Os bois tomam a cena. É o golpe final. Pelo roteiro, o filme teria uma hora e 20 minutos de duração, mas na montagem final, feita como se fosse a punhal, em cortes secos, a obra ganha uma hora a mais – em imagens contemplativas, na mais pura afiguração do expressionismo alemão, acompanhadas da trilha narrativa, que a princípio seria feita à moda de viola, mas foi substituída pela rabeca e pelo canto irônico e aflito de Zé Coco do Riachão. A Hora dos Ruminantes não é um filme para assistir – esse filme é preciso encarar.

Lourenço Mutarelli é escritor, desenhista, roteirista e ator. Publicou, entre outros títulos, a HQ Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente (2011) e os romances O Cheiro do Ralo (2002), O Natimorto (2004), A Arte de Produzir Efeito sem Causa (2008) – os três adaptados para o cinema – e O Grifo de Abdera (2015).

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CRIADOS DO MEDO Por Noemi Jaffe

“Você é homem ou ruminante?” Essa é a pergunta que dá início ao mais recente filme de Luiz Sergio Person, A Hora dos Ruminantes, adaptado do romance homônimo de José J. Veiga. No poema “Um Boi Vê os Homens”, de Carlos Drummond de Andrade, pode-se dizer que subsiste a mesma dúvida – porém não do ponto de vista de um homem, mas justamente do de seu “espelho invertido”, uma cabeça de gado:

Poema originalmente publicado no livro Claro Enigma (Cia. das Letras), de 1951; Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente, falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves, até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno, como também parecem não enxergar o que é visível e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes e no rastro da tristeza chegam à crueldade. Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra. Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias. Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem perdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme (que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo como pedras aflitas e queimam a erva e a água, e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

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Entendida no seu sentido literal – o de mastigação repetida de um alimento –, a ruminação denota contemplação, extensão do tempo, meditação. A sensação, enfim, que têm os humanos ao deparar com as vacas no pasto: a de que o tempo parou e de que ali habita uma sabedoria perdida, pela qual ansiamos em nosso frenesi de conter o tempo. Mas, quando entendida metaforicamente, a ruminação pode adquirir, como o boi do poema, sentidos diversos. Por um lado, um pensamento maquiavélico e malicioso, como o dos “homens estranhos” da obra de Person; por outro, a atitude de alguém incapaz de se impor como agente da própria história, caso dos tristes habitantes de Manarairema, a cidade fictícia em que se passa o longa-metragem. Nesse caso, fica mesmo difícil distinguir quem são os ruminantes do filme: os homens – tanto os misteriosos invasores quanto os moradores originais de Manarairema – ou os cachorros e os bois que, enigmaticamente, tomam conta da cidade? De que serve a nossa capacidade de engolir sem ruminar? Os “homens estranhos”, estrangeiros que ocupam a cidade pacata – representante alegórica de tantas cidades do interior do país –, não dizem nada. Chegam, assentam-se e, como que por mágica, tornam-se proprietários de tudo e de todos. Algo em seu silêncio e em sua ruminação escraviza os antigos moradores, que, subservientes, se adaptam a tudo, inclusive a inaceitáveis invasões de animais. O filme é pautado, do início ao fim, por tabuletas típicas do interior onde se leem as seguintes inscrições: “Um homem é um homem”; “Um homem comerciante é mais homem”; “Um homem, não se sabe o que é, apenas para que serve”; “O cachorro é o melhor amigo do homem”; “O que será da espinha do homem que não dobra?” e “Ai dos não violentos”. São afirmações, perguntas e lamentos que, no conjunto, questionam o significado do humano. Afinal, os humanos, em sua suposta superioridade evolutiva, são mesmo melhores do que os outros animais? De que servem a razão e a linguagem e a nossa capacidade de engolir sem ruminar? Nós, que fazemos dos animais nossos escravos, que os utilizamos para nossos fins, somos menos propensos a nos tornarmos servos e a sermos meros meios para fins alheios? Uma nação estrangeira Como na Macondo do recente Cem Anos de Solidão (1967), de Gabriel García Márquez, também na Manarairema concebida por Veiga e filmada por Person se reconhecem aspectos do “realismo mágico”, preponderante na literatura da América Latina. Os leitores e os espectadores podem se perguntar sobre as razões desse predomínio da linguagem alegórica e fantástica no nosso continente. Mas, ao mesmo tempo, filmes como A Hora dos Ruminantes também lançam a pergunta: “Como poderia ser diferente?”, ou “Que outra linguagem poderia persistir num continente em que toda linguagem direta é interdita?”. 50


Mesmo os personagens mais teimosos e intransigentes da obra, como Apolinário e Amâncio – o que pensa e o que amansa –, acabam por ceder à pressão tácita dos homens estranhos e se tornam, como todos, criados do medo. Sendo assim, se todos, do mais humilde ao mais renitente, estamos condenados a nos adaptarmos ao medo, de que serve o humano senão para servir, para dobrar a espinha como um animal? Se os habitantes de Manarairema não podem contar nem com o padre, com o prefeito ou com o delegado da cidade, todos perseverantes em sua demagogia, com quem poderão contar se sua vida diária é só na lida do ofício que cada um foi obrigado a desenvolver e se sua única diversão é a bebida? A pergunta repetida ao longo do filme – “O que a gente fez para merecer isso?” – talvez diga, em uma frase, mais do que esta resenha seja capaz de dizer. É a visão resignada de uma população que, vendo-se como vítima de uma situação, não encontra recursos materiais ou até psicológicos para revertê-la e, por isso, acaba por aceitá-la. Em determinada cena, Amâncio, um dos primeiros a ceder aos homens estranhos, diz: “Se todo mundo aqui fosse como eles, Manarairema seria um pedaço do céu – uma nação estrangeira”. “Estrangeiro” e “estranho” têm a mesma origem – aquele que não pertence, o de fora. É uma forma de compreender esses homens que surgem do nada e que, do nada, tomam conta da cidade que sonha em ser estrangeira. Como se, à falta de identidade própria, cada um precisasse assumir a identidade alheia. Sim, talvez seja preferível ser mesmo um cachorro ou um boi. Desta vez, no sentido literal.

Noemi Jaffe é escritora, professora de literatura e crítica literária. Escreveu O que os Cegos Estão Sonhando? (2012), A Verdadeira História do Alfabeto (2012) e Írisz: as Orquídeas (2015), entre outros. Mantém o blog Quando Nada Está Acontecendo (nadaestaacontecendo.blogspot.com.br).

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OCUPAÇÃO PERSON Concepção e realização Itaú Cultural Curadoria Família Person e Itaú Cultural Projeto expográfico Valdy Lopes Jn. e Carolina Montoia (assistente) Pesquisa Isabela Mota ITAÚ CULTURAL Presidente Milú Villela Diretor-superintendente Eduardo Saron Superintendente administrativo Sérgio Miyazaki NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA Gerência Claudiney Ferreira Coordenação Kety Fernandes Nassar Produção-executiva Ana Paula Fiorotto e Camila Fink Edição de vídeo Karina Fogaça NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação de conteúdo Carlos Costa Produção e edição de conteúdo Fernanda Castello Branco e Thiago Rosenberg Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão de texto Rachel Reis (terceirizada) Produção editorial Luciana Araripe (terceirizada) Redes sociais Renato Corch Coordenação de design Jader Rosa Identidade visual Liane Iwahashi Comunicação visual Guilherme Ferreira e Yoshiharu Arakaki Produção e edição de fotografia André Seiti Eventos e comunicação estratégica Melissa Contessoto e Simoni Barbiellini NÚCLEO DE PRODUÇÃO DE EVENTOS Gerência Henrique Idoeta Soares Coordenação Edvaldo Inácio Silva e Vinícius Ramos Produção Carmen Fajardo, Cristiane Zago, Daniel Suares (terceirizado), Érica Pedrosa, Fernanda Carnaúba (terceirizada) e Wanderley Bispo

NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Valéria Toloi
 Coordenação de atendimento educativo Tatiana Prado Equipe Amanda Freitas, Caroline Faro, Danilo Fox, Thays Heleno, Victor Soriano e Vinicius Magnun Estagiários Alan Ximendes, Bianca Ferreira, Breno Gomes, Daiana Terra, Edson Bismark, Giovani Monaco, Giovanna Nardini, Graziele de Almeida, Leandro Lima, Lennin de Almeida, Lidiany Shuede, Liticia Sato, Lucas Albuquerque, Lucas Balioes, Marcus Ecclissi, Maria Luiza Kazi, Marina Moço, Mayra Rocha, Paloma Rodrigues, Pamela Mezadi, Rafael Freire, Renan Ortega, Renata Sterchele, Samara Pavlova Fantin, Sara Barbosa, Sidnei Santos, Silas de Almeida, Thomas Angelo, Victoria Pinheiro, Vitor Rosa e William Miranda Coordenação de programas de formação Samara Ferreira Educadores Carla Léllis, Claudia Malaco, Edinho Santos, Josiane Cavalcanti, Lucas Takahaschi, Luísa Saavedra, Malu Ramirez, Raphael Giannini, Thiago Borazanian e Viny Rodrigues AGRADECIMENTOS Amir Labaki, Cinemateca Brasileira/SAv/MinC, Domingas Person, Eva Wilma, Francisco Ramalho, Jean-Claude Bernardet, Jorge Bodanzky, Marina Person, Mauro Giorgetti, Máximo Barro, Museu da Imagem e do Som (São Paulo), Oswaldo Mendes, Regina Jehá, Renato Magalhães Gouvêia e Sergio Mamberti O Itaú Cultural realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens/obras fotográficas aqui publicadas, além das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br.



Centro de Memória, Documentação e Referência Itaú Cultural | Itaú Cultural Ocupação Person / organização Itaú Cultural. - São Paulo : Itaú Cultural, 2016. 52 p. : il. ISBN 978-85-7979-081-2 1. Luiz Sergio Person. 2. Teatro brasileiro. 3. Diretor. 4. Cinema brasileiro. 5. Publicidade. 6. Exposição de arte – catálogo I. Instituto Itaú Cultural. II. Título. CDD 791.43092



OCUPAÇÃO

sábado 20 fevereiro a domingo 3 abril 2016 L terça a sexta 9h às 20h [permanência até as 20h30] sábado, domingo e feriado 11h às 20h

Realização

entrada gratuita itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 atendimento@itaucultural.org.br avenida paulista 149 são paulo sp [estação brigadeiro do metrô] Alvará de Funcionamento de Local de Reunião – Protocolo: 2012.0.267.202 – Lotação: 742 pessoas

Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB) – Número: 121335 – Vencimento: 1/9/2017


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