Na capa, um desenho de Abdias Nascimento: Opachorô de Oxalá, tinta nanquim sobre papel, 20 x 15 cm, 1979. No candomblé, o opachorô é o bastão cerimonial do orixá Obatalá. A folha de rosto traz o símbolo do quilombismo, criado por Abdias Nascimento em 1980 com inspiração nos orixás Exu e Ogum. O desenho une os princípios da comunicação, da contradição e da dialética (Exu) com os da inovação tecnológica e do compromisso de luta (Ogum).
São Paulo, 2016
Nos materiais desta Ocupação, grafamos “Abdias Nascimento” – e não, como é também usado, “Abdias do Nascimento” –, seguindo a uniformização realizada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos AfroBrasileiros (Ipeafro) de acordo com o pedido do autor. Para fechar os textos desta publicação, usamos o adinkra Mate Masie. Esse ideograma de origem africana é símbolo de sabedoria, conhecimento e prudência. Pode ser traduzido por: “O que escuto eu guardo”.
Sumário
6 10 15 18 24 32 42 52 58 72 94
Sustentar-se no Sonho Olhar Forte Cheio de Ternura, Elisa Larkin Nascimento Semente Abdias, Iara Rosa Dilemas de uma Intelectualidade Afro-Brasileira: Caso Abdias Nascimento, Tulio Custódio O Negro, Sujeito e Herói do Teatro Abdias Nascimento e Sua Pintura da Escola do Inominável, Renata Felinto Abdias Nascimento, um Poeta em Movimento, Lindinalva Barbosa O Brasil de Pele Preta no Congresso, Conceição Freitas A Beleza da Identidade, Roger Cipó Cartografia Abdias Nascimento: um Olhar sobre o Pensamento, Maurinete Lima e Eugênio Lima Coração Calejado por uma Longa Luta, Abdias Nascimento
Sustentar-se no Sonho E
xu, segundo a tradição, abre os caminhos; abre também este
texto sobre Abdias Nascimento, dramaturgo, escritor, artista visual e ativista que é o homenageado da 32ª edição da Ocupação, programa dedicado a discutir artistas que mudaram os rumos de sua área de expressão. Abdias fala ao orixá em uma poesia-prece: ao “senhor dos caminhos da libertação” do povo negro ele pede que lhe restitua a língua que lhe foi roubada, que exorcize a domesticação do gesto. Avisa: em cada coração de negro há um quilombo pulsando; em cada barraco, outro Palmares crepita. Esses versos delineiam toda a atividade de Abdias, seja na arte, seja na política. Sua vida – ele nasceu em 1914 e morreu em 2011 – foi atravessada por uma luta contra o racismo. Combateu em várias frentes para valorizar a cultura africana e recuperar a autoestima do negro, assim como desmentir a ideia de que, no Brasil, se vivia em uma “democracia racial”. Articulou grupos de pressão política, ações educativas, espaços de debate intelectual; produziu poemas, telas, peças, livros. É tão surpreendente a extensão de suas atividades quanto o fato de que, em tantas delas, precisava ser pioneiro. “Quem já não sentiu”, pergunta ele, “a atmosfera de solidão e pessimismo que rodeia o gesto inaugural quando se tem a sustentá-lo unicamente o poder de um sonho?”. Abdias soube resistir a essas debilidades de todos os princípios e criar coisas novas, “axés de sangue e de esperança”. A Ocupação Abdias Nascimento procura dar a conhecer as várias facetas desse trabalho. É fruto de uma parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), que resguarda a herança do homenageado e que abriu suas portas por dois anos para as pesquisas necessárias, além de elaborar os conteúdos com o Itaú
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Cultural. A curadoria da mostra é compartilhada entre o instituto, Elisa Larkin Nascimento, responsável pelo Ipeafro e viúva de Abdias, e Vinícius Simões, que também assina a cenografia. Nesta publicação, apresentamos a trajetória política e artística de Abdias a partir dos arquivos do Ipeafro, de artigos sobre as áreas de atuação do homenageado, de um ensaio fotográfico inspirado em um de seus projetos e de um mapa dos principais conceitos que trabalhava. Os debates sobre o legado de Abdias têm ainda um espaço no site da Ocupação – itaucultural.org.br/ocupacao –, que reúne artigos sobre como ele compreendia a diáspora (a saída forçada do povo negro do continente africano) e sobre as comunidades quilombolas do Brasil contemporâneo. Além disso, há entrevistas com artistas e ativistas marcados por seu trabalho. Também no site, alguns textos falam da relevância de Abdias nos dias de hoje. Quanto a isso, é possível dizer que as temáticas que ele pôs em evidência continuam, infelizmente, atuais. Para discutir o que mudou e o que persiste nesse cenário, convidamos ativistas e grupos políticos que prosseguem o embate pela igualdade no Brasil contemporâneo para nos contar sua experiência. Em “Padê de Exu Libertador”, o poema a que nos referimos anteriormente, Abdias lembra os nomes “daqueles que empunharam teus ferros em brasa contra a injustiça e a opressão”: o abolicionista Luiz Gama; os comandantes de revolta Luísa Mahin, Cosme Bento das Chagas e João Cândido; alguns quilombolas sagrados, como Isidoro e Zumbi. É entre essas figuras – indomáveis, desabusadas – que quer estar. “Cresça-me à tua linhagem”, reclama a Exu. Isso lhe foi concedido. Itaú Cultural
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Abdias e a esposa, a pesquisadora Elisa Larkin Nascimento, em 1991 | imagem: Š Chester Higgins/ chesterhiggins.com
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Olhar Forte Cheio de Ternura A convivência com Abdias foi um privilégio, pela riqueza e pelo vigor da sua postura Elisa Larkin Nascimento
P
ara refletir sobre Abdias, peço licença para usar como título e ponto de partida uma frase emprestada de Iara Rosa. Poetisa, escritora e
artista plástica, Iara participou do projeto Museu de Arte Negra (MAN), fruto de resolução do I Congresso do Negro Brasileiro, realizado em 1950 pelo Teatro Experimental do Negro (TEN). Com curadoria de Abdias, o projeto MAN deixou um acervo de mais de 500 obras, hoje sob a guarda do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro). Fazia tempo que não víamos a amiga Iara. Poucos dias após o falecimento de Abdias, chegou-me a bela memória tecida por ela em palavras, tão colorida e bem desenhada quanto o casaco de tapeçaria que criara para ele se aquecer em Nova York quando para lá partiu em 1968. Iara recorda em Abdias o “olhar forte cheio de ternura”. Mais que seu semblante, a frase resume a qualidade essencial da personalidade e da atuação artística e política de Abdias. O combate ao racismo era o eixo central de sua vida e ação. O olhar forte traduzia sua firmeza e determinação nas posições que defendia, seu discurso inflamado de convicção e indignação perante a injustiça, sua irredutível coerência diante das propostas teóricas e práticas despistadoras que constantemente lhe eram oferecidas. Por tudo isso, ele ganhou a reputação de ativista radical e intransigente. Incontáveis vezes, tal reputação se expressou nos epítetos “racista” e “criador de caso”, que lhe eram aplicados por pessoas insensíveis à injustiça racial ou que pensavam deter o monopólio da análise e do discurso corretos sobre ela.
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Mas a veemência de Abdias
Janeiro lhe trouxera a convivência
O projeto MAN buscava
no discurso e na atuação política
com o samba, o choro e o culto
a inclusão e a valorização de
era movida pela ternura, por
aos orixás. Dessa confluência
artistas negros e do legado
sua profunda sensibilidade à
resultou a primeira iniciativa de
africano; sua marca era a
condição humana e ao sofrimento
resistência à discriminação racial
convivência. Colaboraram nos
alheio. Seu foco era o povo
a adotar como pauta a defesa
cenários das peças do TEN
negro, porque ele testemunhou,
e a valorização da cultura de
artistas como Tomás Santa Rosa
desde criança, a discriminação
origem africana – o TEN. Artista
e Enrico Bianco. Com eles e
impactando sua própria família.
por natureza, Abdias abriu sua
outros artistas Abdias discutia
A injustiça racial era para ele
frente de luta na seara da cultura,
a arte africana como referência
– e é em sua essência – uma
que para ele não se separava
fundamental da arte moderna.
injustiça contra o ser humano. E
do mundo da política. Além de
A coleção de obras doadas
o combate ao racismo, uma luta
uma extensa atuação artística,
por artistas de todas as cores
solidária por direitos humanos.
o TEN organizou convenções
apresenta um panorama da
O TEN, fundado em
e congressos para combater o
arte brasileira da época, sendo
1944, foi fruto maduro dessa
racismo na academia e na política.
complementada mais tarde por
sensibilidade solidária. Aos 30
Publicou o jornal Quilombo, que
peças de artistas africanos e
anos, Abdias já havia sido duas
aprofundava o debate e a reflexão
caribenhos adquiridas por Abdias
vezes preso político; viajado
sobre arte negra, negritude e
durante seu tempo de exílio.
pela América do Sul, a partir do
a questão racial, abrindo suas
Amazonas, com os poetas da
páginas a candidatos negros de
desafio do irmão orquídea Efraín
Santa Hermandad Orquídea;
todos os partidos.
Tomás Bó e iniciou seu próprio
Em 1968, Abdias aceitou o
passado um ano no Teatro del Pueblo, em Buenos Aires; e criado dentro do Carandiru o Teatro do Sentenciado. Na prisão, ele escreveu o romance Zé Capetinha e o livro Submundo, este baseado em entrevistas de condenados, como Gino Meneghetti e o “Homem da Mala”, entre outros colegas presos. Ambos os textos testemunham a aguda sensibilidade humana de Abdias, expressa na ternura de seu olhar.
O combate ao racismo
era o eixo central de sua vida e ação. O olhar forte traduzia sua firmeza e determinação nas posições que defendia
Uma temporada anterior no Rio de 11
fazer artístico, com o apoio de dois jovens artistas mineiros do MAN: o pintor Sebastião Januário, de Dores de Guanhães, e o escultor José Heitor da Silva, de Além Paraíba. Perseguido pelo regime militar, Abdias partiu para os Estados Unidos e lá desenvolveu sua pintura em meio à intensa militância pan-africanista que o levou à África e ao Caribe. O olhar forte do ativismo político continuava repleto da ternura expressa na criação artística. A evolução de sua sensibilidade sobre a questão de gênero se revelava mais nítida na poesia, na pintura, na militância e na reelaboração de sua peça Sortilégio. Voltando ao Brasil, Abdias retomou o ativismo com uma nova geração do movimento negro e ajudou a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT), com Leonel Brizola; assumiu como deputado federal ao lado do indígena Mário Juruna; atuou como senador e secretário do
Acima, os pais de Abdias, Georgina e José Ferreira Nascimento, em registro de 1911; no meio, Abdias aos 4 anos, em 1918; abaixo, foto da formatura do bacharelado em economia, pela Universidade do Rio de Janeiro, em 1938 | imagem: Acervo Ipeafro
Abdias é Semente.
Criou muitas árvores em vários cantos do planeta
governo do estado do Rio de
Bissau; passamos um ano
função do trabalho a quatro
Janeiro. Continuou pintando e
na Universidade de Ile-Ife, no
mãos nas diversas frentes dessa
publicou peça e poesias ao lado
coração da Nigéria. Ao traduzir
luta, movidos por um amor que
de obras como O Quilombismo,
e ajudar na pesquisa de seus
só crescia a cada obstáculo
O Genocídio do Negro Brasileiro
textos e discursos, eu me
erguido pelo preconceito ou
e Sitiado em Lagos. Participou do
engajava em sua causa. Era uma
pelas convenções hipócritas
movimento negro até se juntar
continuidade de meu ativismo
da sociedade ao redor. A
aos ancestrais, ali ao lado do
anterior contra a Guerra do
convivência com Abdias foi um
Cais do Valongo.
Vietnã e em defesa dos presos da
privilégio pela riqueza e pelo vigor
Eu tive o privilégio de
penitenciária de Ática, acusados
de sua postura diante da vida
compartilhar com Abdias parte
das mortes ocorridas na rebelião
e da causa. Postura de amor a
dessa trajetória a partir do
de 1971 – quando todas essas
todos os seres. A unicidade das
momento em que o conheci em
mortes haviam sido causadas
coisas aparentemente diversas,
Buffalo (Estados Unidos), minha
pela repressão. A atuação de
como força e sensibilidade, arte e
cidade natal, onde ele atuava
Abdias em teatro, poesia e
militância política, era sua práxis
como professor da Universidade
pintura, artes que eu amava,
diária e a mensagem de seu
do Estado de Nova York. O
trazia ao ativismo uma dimensão
trabalho artístico. Essa unicidade
racismo já era um tema que
apaixonante que me reforçou
remete à essência humana
me mobilizava, e eu conhecia o
convicções e renovou energias,
comum a todas as pessoas,
Brasil de um intercâmbio feito
unindo aspectos essenciais de
motivo tanto do olhar forte como
anos antes. Logo me vi ao lado
minha vida, porém até então
da ternura de Abdias.
de Abdias como intérprete em
vividos separadamente.
Dacar, no Senegal, no encontro
Embarquei com ele em
em que foi fundada a União de
uma nova etapa de luta por
Escritores Africanos. Visitamos
direitos humanos e contra o
a recém-independente Guiné-
racismo. Passamos a viver em
Elisa Larkin Nascimento é diretorapresidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), instituição fundada em 1981, com ajuda sua, por Abdias, seu marido.
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Abdias com os filhos Henrique Cristรณvรฃo e Abdias Nascimento Filho, o Bida | imagem: Acervo Ipeafro
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SEMENTE ABDIAS
U
ma irmã de meu pai era muito parecida com Abdias, tinha o olhar forte cheio de ternura, rosto leve, bonito e gentil,
onde vagava suave um jeito de poesia. Minha tia trabalhava como cozinheira. Ganhava muito pouco e gastava quase todos os seus ganhos comprando passarinhos em gaiolas que eram vendidos nas feiras livres da cidade. Ela carregava suas gaiolas até uma mata próxima de sua casa e ali, com grande alegria, soltava seus pássaros, observando os voos. Um dia minha tia Maria ficou doente. Minha mãe dizia que ela não se tratava, gastando seu dinheiro com passarinhos. Que iria morrer em algum hospital como indigente. Meu pai dizia: — Este negócio de morte não é com Maria. Minha mãe, irritada, dizia: — Quer dizer que sua irmã vai virar semente? E meu pai respondia orgulhoso: — Ela já é semente. Semente Maria. Abdias é semente. Criou muitas árvores em vários cantos do planeta. Nos olhos fortes havia uma ternura grandiosa. Em seu rosto leve, a poesia de todos os poetas. Esse negócio de morte nunca foi para Abdias. Semente Abdias.
Iara Rosa é poeta e artista plástica. Este texto foi escrito em Armação dos Búzios, no Rio de Janeiro, em outubro de 2011, após o falecimento de Abdias.
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imagem: Š Chester Higgins/chesterhiggins.com
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Dilemas de uma Intelectualidade Afro-Brasileira: Caso abdias Nascimento O confronto de Abdias com a invisibilidade de artistas, militantes e pensadores negros é uma luta que continua ainda hoje Tulio Custódio
E
m 1903, o sociólogo e historiador afro-americano W. E. B. Du Bois (1868-1963) definiu, de maneira inspiradora, dois aspectos
que guiariam a questão racial nos anos subsequentes: a existência de uma dupla consciência na vida dos negros e a necessidade do “treinamento” de líderes e pessoas que trabalhassem em prol do desenvolvimento do povo negro. Esses elementos, diagnosticados na madrugada do século XX, permitem tratar de um dos dilemas mais difíceis enfrentados por intelectuais negros: sua invisibilidade. O intelectual negro sofre constantemente o desafio de superar a dupla consciência – que é o resultado de dois olhares operando na vida de um negro: o olhar externo, dirigido ao negro pelo branco, e o olhar do negro a si próprio, determinado pelo anterior. O olhar externo se impõe à sua forma de se ver e se representar no mundo. Além dessa barreira, de esfera mais íntima, precisa se engajar em uma luta simbólica pelo direito de falar de si por si e, ao se expressar e produzir reflexões sobre sua condição, ter legitimidade para tal. Uma batalha constante para ter sua voz ouvida, seja em ambientes formais, como a academia (na qual são tão poucos os expoentes), seja em atividades de militância (portanto, políticas), na cultura, no ramo das artes, da literatura ou do teatro. Dois desafios, um da ordem de representação de si, outro da representação sobre
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si. A mente que vê e o ser que
ele, no auge de seus 54 anos,
O Imperador Jones, de Eugene
fala por si no mundo.
uma mudança complementar
O’Neill, experiência que, de grande
de carreira e atividades, pois
maneira, inspirou a criação do TEN.
Vejamos como isso se dá no caso de um dos maiores
começou a atuar como professor
pensadores e ativistas negros
e artista visual naquele país, além
do Negro Brasileiro, os artistas
brasileiros, Abdias Nascimento.
de ter tido a oportunidade de
e pensadores negros do TEN
Abdias foi, sem dúvida,
Em 1950, no Congresso
frequentar diversos congressos
tiveram seu lugar de fala e
grande. Grande pelo tempo de
internacionais, levando sempre o
pensamento questionados
atuação, que começa no final
tema do racismo brasileiro a todos
pelos chamados “intelectuais
dos anos 1930, em um flerte com
os cantos pelos quais passava.
e estudiosos da academia”
a Frente Negra Brasileira, e vai
Abdias foi grande. Mas não
(ligados aos estudos culturalistas
até o início da segunda década
escapou do dilema da invisibilidade.
sobre questão racial no Brasil),
do século XXI, quando, mesmo
Ele foi uma das pessoas
segundo os quais os membros
cansado pela idade (97 anos),
que introduziram, nos anos 1940,
do TEN – como Guerreiro Ramos,
frequentou eventos e palestrou
a discussão e a crítica contra o
Aguinaldo de Oliveira Camargo
para gerações mais novas.
blackface, discussão tão viva e
e Sebastião Rodrigues Alves
Grande pelo leque de atuações:
centro de um debate em 2015,
– não tinham legitimidade para
economista de formação, foi
quando uma companhia de teatro
falar da questão racial como
teatrólogo, diretor, ativista,
se utilizaria desse recurso (que
intelectuais, mas apenas como
professor universitário, político
consiste em pintar de preto o
“ativistas”. Questionamento não
(deputado e senador), artista
rosto de um ator branco, com a
muito diferente daquele que,
plástico. Grande.
intenção de que ele represente
hoje, as feministas negras sofrem
Abdias atravessou o século
um personagem negro), mas
quando publicam seus textos
XX e protagonizou as expressões
foi questionada por diversos
reflexivos e analíticos acerca
mais importantes da presença
militantes negros. A pergunta
da intersecção opressora entre
política e cultural negra, como a
que uma das pessoas mais ativas
raça e gênero. Ou ainda quando
já citada Frente Negra Brasileira,
nesse protesto, Stephanie Ribeiro,
o rico e vastíssimo acervo criado
o Teatro Experimental do Negro
fez – “Por que não um ator negro
pela produção pictórica e poética
(TEN), que fundou em 1944, e o
para representar o papel? Por
de Abdias – seus quadros, suas
Movimento Negro Unificado, nos
que a escolha de um padrão
poesias e peças teatrais – não é
anos 1970. Além disso, teve sua
historicamente datado e marcado
exibido, não é explicitado como
passagem (e que passagem!)
pelo racismo e pela agressão à
um grande legado.
pelos Estados Unidos, período
representação do povo negro?”
em que se exilou e foi exilado
– é a mesma feita por Abdias
isso tem reflexos diretos nos
(sim, isso aconteceu com
em 1941, quando passava por
problemas com que os jovens
ele!). O exílio significou para
Lima, no Peru, e assistiu à peça
ativistas lidam no contexto atual
O que Abdias enfrentou – e
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– é a constante invisibilidade do
escritos para diversos congressos
negro brasileiro historicamente.
intelectual negro como legítimo
internacionais entre os anos
E, infelizmente, muito do legado de
produtor de conhecimento e
1960 e 1980 – incluindo uma
Abdias está sob esse silenciamento.
reflexão, seja sobre sua vivência,
passagem de um ano na Nigéria,
Abdias é o exemplo da
seja sobre outros assuntos que
pela Universidade de Ile-Ife. Essa
intelectualidade negra brasileira,
o interessem, e a negação da
abordagem identitária e contrária
e o esforço do Itaú Cultural em
importância que sua produção
aos processos encampados pelo
organizar uma exposição em seu
e seu legado podem ter para
racismo à brasileira – expressão
nome é uma forte contribuição
outras gerações.
que Abdias preferia mencionar
para acender a importância de
como “genocídio do negro
seu legado intelectual, político e
questão da dupla consciência?
brasileiro” – é importante e rica, e
artístico para o povo brasileiro.
Incorporando de modo enérgico
não pode ser subestimada.
Sim, porque a pior perda que
Como confrontou Abdias a
e amplo em seu pensamento as
advém da invisibilidade dos
culturas negras brasileiras como
conhecer o produto das lutas
intelectuais negros é a de um
parte de um legado mais amplo,
das gerações anteriores, de
legado para todo o povo de
de origem africana, diante da
modo a formar novos quadros
riqueza cultural, intelectual,
diáspora forçada pelo escravismo
de referência, criar a partir
artística. A perda de vozes que
colonial. A visão deturpada
do realizado, superá-lo, ir
nos ensinaram ontem, dão base
do negro sobre si se dava por
além. O racismo brasileiro,
ao hoje e nos ajudam a lutar pelo
um processo sistemático de
em suas especificidades e na
amanhã. Resgatar essa riqueza é
embranquecimento físico (por
eficácia mortífera simbólica,
superar o dilema.
meio do genocídio, da eliminação
executa – como Abdias já
e da ideologia da democracia
apontava nos anos 1960 – com
racial) e cultural (ao negar
perfeição o embranquecimento
a conexão da cultura negra
epistemológico da população
brasileira com a África e ao não
brasileira. Isso significa não
reconhecer a importância do
evidenciar pensadores negros.
legado africano como potência
Isso significa não retomar sua
inteira, mas só como “um pedaço
produção e ressaltar seu legado.
de cultura”).
Isso significa ignorar toda a
Abdias enfrentou, com
20
As novas gerações precisam
potência de impacto que a
muito afinco e perseverança, a
presença e a memória de líderes
invisibilidade do intelectual negro
e intelectuais negros possuem
ao propor ações e congressos no
no sentido de confrontar o
TEN, ao levar sua reflexão e seus
racismo que acomete o povo
Tulio Custódio é sociólogo, curador de conhecimento, criador do site Pitacodemia e membro do Coletivo Sistema Negro. Escreveu a dissertação de mestrado Construindo o (Auto) Exílio: Trajetória de Abdias do Nascimento nos Estados Unidos, 1968-1981.
Sankofa – representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda – faz parte do conjunto de ideogramas africanos chamados adinkra. Sankofa significa “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”
Abdias em Sortilégio: Mistério Negro, peça escrita por ele em 1950 e retida pela censura até 1957, quando estreou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em produção do TEN | imagem: Acervo Ipeafro
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O Negro, Sujeito e Herói do Teatro Em fotografias, a história do TEN, “um organismo teatral aberto ao protagonismo do negro”, com ações de formação, apoio psicológico e mobilização política
O
Teatro Experimental do Negro (TEN) surgiu do espanto de Abdias Nascimento depois de assistir à peça O Imperador Jones, de
Eugene O’Neill (1888-1953), no ano de 1941, em Lima, no Peru. O protagonista era um ator maquiado com blackface. “Por que um branco brochado de negro?”, Abdias se indignou, “pela inexistência de um intérprete dessa raça?”. Seu pensamento não parou aí: “[...] em meu país, onde mais de 20 milhões de negros somavam a quase metade de sua população de 60 milhões de habitantes, na época, jamais assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse sido representado por um artista da minha cor. [...] na minha pátria, tão orgulhosa de haver resolvido exemplarmente a convivência entre pretos e brancos, deveria ser normal a presença do negro em cena, não só em papéis secundários e grotescos, conforme acontecia, mas encarnando qualquer personagem – Hamlet ou Antígona –, desde que possuísse o talento requerido. Ocorria de fato o inverso [...]. Intérprete negro só se utilizava para imprimir certa cor local ao cenário, em papéis ridículos, brejeiros e de conotações pejorativas.” Abdias decidiu reagir: “Ao fim do espetáculo, tinha chegado a uma determinação: no meu regresso ao Brasil, criaria um organismo teatral aberto ao protagonismo do negro, onde ele ascendesse da condição adjetiva e folclórica para a de sujeito e herói das histórias que representasse”. O TEN surgiria em 1944 e duraria até 1968. Realizou cursos de alfabetização e de formação em teatro; ofereceu apoio psicológico a pessoas negras para combater o “dilaceramento” de sua consciência
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em um mundo branco; produziu
Afonso Arinos, que definiu certos
colaboração de artistas como
um jornal, o Quilombo, para
casos de discriminação racial
José Medeiros, Enrico Bianco,
discutir as temáticas da
como contravenções penais.
Loio Pérsio e Tomás Santa Rosa.
população negra; promoveu
Isso tudo além de montar
Os destaques da história cênica
congressos e outros espaços
textos nacionais e internacionais,
do TEN são contados nesta seção
de discussão; e se mobilizou
levando os conflitos e a cultura
por meio de imagens históricas do
como ente político – atuação que
negra aos palcos – tendo, na
acervo do Instituto de Pesquisas e
influenciou a aprovação da Lei
construção desse trabalho, a
Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).
Palmares
Abdias na peça O Imperador Jones, em 1953, no Teatro São Paulo, em São Paulo | imagem: G. Lorca Foto Studio
O Teatro Experimental do Negro existia havia alguns meses quando, em dezembro de 1944, fez uma participação especial em uma cena da peça Palmares, da poetisa Stella Leonardos (1923). O TEN ATUOU EM CONJUNTO COM UM elenco formado por integrantes do Teatro do Estudante do Brasil (TEB).
O Imperador Jones Foi vendo a encenação desta peça em Lima, no Peru – cujo elenco era formado por atores brancos com o rosto pintado de preto –, que Abdias Nascimento começou a pensar no que viria a ser o Teatro Experimental do Negro. Escrito por Eugene O’Neill (1888-1953), o texto foi encenado na estreia do TEN, em 1945, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com direção de Abdias.
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Othello O clássico do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) foi montado como esquete em dezembro de 1946, integrando a programação do Festival do Segundo Aniversário do TEN. Os protagonistas foram Abdias (Othello) e Cacilda Becker (Desdêmona).
O Moleque Sonhador como parte da programação do Festival do Segundo Aniversário do TEN, a peça O Moleque Sonhador, escrita por Eugene O’Neill (1888-1953), teve Abdias no papel principal. Também integraram o elenco as atrizes Ruth de Souza, Marina Gonçalves e Ilena Teixeira. A direção foi de Willy Keller.
Abdias em O Moleque Sonhador, em 1946, no Teatro Regina, no Rio de Janeiro | imagem: Acervo Ipeafro Todos os Filhos de Deus Têm Asas, em 1946, no Teatro Fênix, no Rio de Janeiro | imagem: Acervo Ipeafro
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Todos os Filhos de Deus Têm Asas Devido ao sucesso da primeira montagem de um texto de Eugene O’Neill (1888-1953), o TEN resolveu apostar em outra peça do autor e, em julho de 1946, estreou Todos os Filhos de Deus Têm Asas, com direção de Aguinaldo Camargo (1918-1952).
O Filho Pródigo Primeiro texto criado especialmente para o TEN, O Filho Pródigo, assinado por Lúcio Cardoso (1913-1968), era uma livre adaptação da parábola bíblica homônima. Foi a primeira peça de um dramaturgo brasileiro levada ao palco pelo TEN, tendo sido encenada em dezembro de 1947 (com cenários de tomás Santa Rosa e figurino de Nadir de Andrade), maio de 1953 e julho de 1955 (com cenários e figurino de Anízio Medeiros).
Abdias em O Filho Pródigo, em 1947, no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro | imagem: Acervo Ipeafro
Recital Castro Alves
Terras do Sem Fim
Realizado em 31 de março de 1947, no Teatro Fênix, no Rio de Janeiro, o recital teve direção de Abdias Nascimento, cenografia de Tomás Santa Rosa e colaboração musical de Gentil Puget e Abgail Moura. Entre os artistas que se apresentaram, em números variados, estavam Ruth de Souza, Marina Gonçalves, Aguinaldo Camargo e Neusa Paladino.
Em agosto de 1947, o TEN encenou Terras do sem Fim, em colaboração com o grupo Os Comediantes. Escrita por Jorge Amado (1912-2001), a peça foi adaptada pelo ator Graça Mello (1914-1979) e contou com direção do polonês Zygmunt Turkov (1896-1970) e cenários de Tomás Santa Rosa.
Aruanda Em cartaz de 23 de dezembro de 1948 a 2 de janeiro de 1949, Aruanda, de Joaquim Ribeiro, misturava dança, poesia e canto para falar sobre a convivência dos deuses afro-brasileiros com os mortais. A montagem deu origem ao grupo Brasiliana, que, formado por dançarinos, cantores e percussionistas, excursionou pela Europa por quase dez anos. Ruth de Souza em Aruanda, no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro. A foto foi registrada entre 1948 e 1949 | imagem: Acervo Ipeafro
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A Família e a Festa na Roça
Ruth de Souza e Abdias em leitura dramatizada de Calígula, no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro, em 1949 | imagem: Acervo Ipeafro
Em parceria com o Serviço Nacional do Teatro, o TEN encenou, em dezembro de 1948, o espetáculo A Família e a Festa na Roça, de Martins Pena. Com direção de Dulcina de Moraes, que também atuava na montagem, e cenografia e figurino assinados por Tomás Santa Rosa, a peça tinha no elenco Abdias, Ruth de Souza, Bibi Ferreira e Jardel Filho, entre outros nomes.
Filhos de Santo Encenada em março e abril de 1949, em dois teatros – o Ginástico e o Regina, no Rio de Janeiro –, com texto de José Morais de Pinheiro e direção de Abdias, a peça conta a história de trabalhadores do Recife, em Pernambuco, entre o candomblé e a perseguição policial. a cenografia foi de Tomás Santa Rosa.
Rapsódia Negra
Calígula Montagem do texto do filósofo argelino Albert Camus (1913-1960), o espetáculo não conseguiu os recursos para ser encenado, tendo sido feita apenas uma apresentação do primeiro ato ao autor, no Teatro Ginástico, em 1949, seguida de algumas músicas da Orquestra AfroBrasileira e da exibição de danças por Mercedes Batista. A direção era de Abdias; figurino e cenografia, de Tomás Santa Rosa.
28
Com texto e direção de Abdias, a peça montada em 1952 “lançou duas artistas de grande destaque”, segundo o diretor: a dançarina Mercedes Batista e a atriz Léa Garcia. O espetáculo foi encenado em julho, outubro e novembro daquele ano, com coreógrafos e compositores diferentes a cada edição.
Léa Garcia em Rapsódia Negra, peça escrita por Abdias. A apresentação ocorreu no Teatro Cultura Artística, em São Paulo, no ano de 1952 | imagem: Acervo Ipeafro
Festival O’Neill Realizado em 1954 no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, trata-se da exibição de cenas das peças de Eugene O’Neill (1888-1953). Foram encenados trechos de Todos os Filhos de Deus Têm Asas, Onde Está Marcada a Cruz e O Imperador Jones – essa última, texto com que O TEN ESTREOU, Abdias dirigiu e atuou.
Orfeu da Conceição Com texto de Vinicius de Moraes, música de Tom Jobim (sendo esta a primeira colaboração entre os dois), cenografia de Oscar Niemeyer e elenco formado por Abdias e outros atores do TEN, a peça – que mescla a mitologia grega e o imaginário das favelas cariocas – foi apresentada em 1956.
Perdoa-me por Me Traíres Escrita pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, a peça foi exibida em 1957, com atuação de Abdias e do próprio Rodrigues.
Sortilégio – Mistério Negro Este texto de Abdias discute a busca de identidade por meio do percurso de um homem negro que se vê distante tanto da cultura europeia quanto da africana. Foi montado em 1957, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Abdias interpreta Jubileu de Almeida, personagem da peça Perdoa-Me por Me Traíres, de Nelson Rodrigues | imagem: Acervo Ipeafro Abdias em Sortilégio: Mistério Negro, peça escrita por ele em 1950 e retida pela censura até 1957, quando estreou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em produção do TEN | imagem: Acervo Ipeafro
29
Teogonia Afro-Brasileira (Iansã, Obatalá, Onipotente e Imortal, Nº 4: Oxum, Adinkra Oxossi, Yemanjá, Ogum, de Ossaim, Asante (1992), Abdias Xangô,Nascimento, Exu) (1972), acrílico acrílicosobre sobretela tela |
30
reprodução: RCS Digital
31
Abdias Nascimento e sua pintura da escola do inominável Como o projeto artístico-político de Abdias que visa resgatar a ancestralidade africana desemboca nas artes visuais Renata Felinto
P
oucos seres humanos passaram pela terra envolvendo-se em tantos fazeres e pensares como Abdias Nascimento. Esse homem
compreendeu e praticou a arte como ato criativo e estético nunca separado de uma importante dimensão política e social com fins à conscientização e à humanização. Como dizia Mário de Andrade (1893-1945): “Arte é uma expressão interessada na sociedade”. Fato é que poucos artistas conseguiram abarcar essa assertiva como Abdias, tanto em sua produção no teatro quanto nas artes visuais. Desenvolveu amplo trabalho como ator, diretor e dramaturgo, profundamente comprometido com a iniciativa revolucionária de fazer teatro enegrecendo os palcos com atrizes e atores provenientes dos estratos marginalizados da sociedade. A partir dessa ação – formando e fortalecendo uma consciência política por meio do exercício artístico, revelando grandes nomes da dramaturgia brasileira, como as atrizes Ruth de Souza (1921-) e Léa Garcia (1933-), e criando concomitantemente uma dramaturgia negra –, Abdias envolveu-se mais e mais com processos que fazem com que a arte também seja identificada e utilizada como instrumento transformador, mobilizador e constituidor de mentalidades e seres políticos. Fundou e dirigiu o Teatro Experimental do Negro (TEN), no qual configurou sua arte como “estratégica-estética-criativa-provocadora-política”. Essa ação-missão-intuição extrapolou os limites das artes cênicas e adentrou o território das artes visuais. Isso se deu a partir
32
do questionamento levantado por
Braque e Picasso; todavia, lhe
criativos e pictóricos que os
Mário Barata (1921-2007) acerca
era negado o status de obra de
artistas europeus desconheciam
da inexpressiva incorporação das
arte autônoma proveniente do
até então.
ricas características estéticas da
exercício estético e criativo de
obra escultórica do continente
artistas africanos. Seria fetiche
textos de O Quilombismo: “[...]
negro na produção de artes
criado por incivilizados selvagens.
um dos objetivos do Museu de
visuais do Brasil. Havia ainda outra
Lembremos que, proveniente da
Arte Negra era o de proceder a
ausência flagrante: onde estavam
língua francesa, o termo pode ser
um levantamento dos africanos
os artistas visuais negros no
traduzido como “feitiço”.
e de suas criações no Brasil.
panteão da história das artes do
Bem, se não fosse esse
Assim, diz Abdias em um dos
Isto necessita ser feito com
país? Afinal, sendo esse segmento
feitiço que tomou conta dos
urgência”. Vários críticos, artistas
populacional fundamental
europeus em fins do século XIX,
e historiadores da arte apoiaram
aos alicerces da construção
num contexto de subjugação,
essa iniciativa; entretanto, Abdias
da sociedade brasileira e tão
destruição e dominação,
identificou obstáculos a ser
significativo para a formação
certamente não teria sido
transpostos para a efetivação
de nossa cultura, como é que
empreendida por Picasso e pelo
do MAN, como a incompreensão
estava afastado desse lugar de
movimento cubista a revolução
e a falta de apoio dos poderes
visibilidade e de reconhecimento?
no modo de representação e de
oficiais e da classe hegemônica.
Se essa herança negro-
desconstrução da representação
Até mesmo os mais progressistas
africana se fazia e se faz presente
do mundo visível, da figuração, da
estavam, de alguma forma,
e possante em várias frentes,
relação entre figura e fundo rumo
contaminados pela “mentalidade
como não aparecia demarcada
a uma abstração e, portanto, a
escravocrata” – expressão
nitidamente nas artes visuais do
uma liberdade nos processos
empregada por Abdias ao se
Brasil e do mundo? Em 1950, o I Congresso Negro Brasileiro, promovido pelo TEN, decidiu criar o Museu de Arte Negra (MAN). Além das considerações de Barata, uma questão que colaborou para a criação do MAN foi o tratamento paradoxal dado à produção escultórica negroafricana: servia de referência criativa e subversiva aos artistas europeus do início do século XX, como Vlaminck, Matisse, Derain,
Sua produção não se vincula a nenhuma escola ou movimento artístico. É preciso aceitar que há quem seja inclassificável e Abdias é um deles 33
referir à elite dita simpática às
de saberes de africanos, forjando
ações de reparação junto ao
assim uma nova identidade negra.
segmento negro-brasileiro – que estruturava a nação. Em 1955, foi realizado um
Museu da Imagem e do Som do
concurso de artes plásticas
Rio de Janeiro (MIS/RJ) a coleção
com o tema do Cristo negro
de obras artísticas e documentos
– tanto como forma de
reunidos durante os 18 anos de
promover a reflexão sobre essa
esforços para a concretização do
representação quanto para
MAN [material atualmente sob
ampliar a coleção do MAN.
tutela do Instituto de Pesquisas e
Em 1966, na ocasião do I
Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro)].
Festival Mundial de Arte e Cultura
Era uma forma de comemorar
Negra (Festac), promovido pelo
os 80 anos da abolição da
então presidente do Senegal, o
escravidão no Brasil, mas também
poeta Léopold Sédar Senghor
de denunciar os grilhões políticos
(1906-2001), a escolha da
e sociais que limitavam o acesso
delegação brasileira excluiu
do negro à área das artes visuais.
artistas negros, expondo ao
No mesmo ano, cresceram
mundo a falácia da democracia
as dificuldades para a
racial. Também demonstrou a
manutenção do projeto do
ignorância do governo e da classe
MAN, assim como a vigilância e
dominante em relação ao conceito
o cerceamento das atividades
de negritude, desenvolvido a
artísticas por parte do Estado.
partir de um movimento literário
Diante desse contexto, Abdias
francófono afro-caribenho de
Nascimento exilou-se nos
mesmo nome e que procurava
Estados Unidos.
revalorizar o negro cultural, política
34
Como resposta, em 1968 foi exposta pela primeira vez no
A partir disso, o “artivista” –
e artisticamente. O Festac foi,
termo que identifica a conjunção
de certa forma, a concretização
de artista e ativista, cunhado
dessas aspirações: reuniu o que
pelo artista visual e historiador
povos afrodiaspóricos criavam
Nelson Fernando Inocêncio –
pelo mundo considerando a
aventurou-se nas artes visuais.
convergência dos conhecimentos
À semelhança de outros artistas
impostos pelos europeus com as
visuais brasileiros, que se voltaram
heranças e as ressignificações
à sua identidade quando levados
Ao lado, Padê de Exu (1988), de Abdias Nascimento, acrílico sobre tela | reprodução: RCS Digital
ao estrangeiro – é o caso do
simétricas. Se passarmos uma
pintor paulistano Almeida Júnior
linha vertical ao centro das obras,
(1850-1899), que retratou o caipira
observaremos equilíbrio entre
de São Paulo, homem da labuta e
os elementos distribuídos pelo
da terra, enquanto em residência
espaço. Abdias também não se
artística na França –, assim que
restringiu a seguir rigidamente
exilado, Abdias também teve um
as cores que correspondem a
alumbramento de suas origens.
cada orixá. Aliás, a exploração
Talvez esse tenha sido um
despudorada da paleta é uma
modo de Abdias não se afastar
das características de suas obras
de si mesmo, conectando-se
que nos remetem ao imaginário
ao que os brasileiros guardam
de uma África colorida, como
de mais poético e profundo
a dos mercados com mulheres
em termos de ancestralidade.
comerciantes carregando suas
Para os estadunidenses, o
crias em capulanas estampadas.
panteão iorubano era novidade, especialmente aliado à pauta pan-
metade do ano homem, metade
africanista – ideologia do início
do ano mulher – é representado
do século XX, concebida por W.
como um “sereio” com braços-
E. B. Du Bois (1868-1963), que
serpentes pintados em cores
propõe a irmandade entre povos
luminosas, assim como o arco-íris,
africanos e afrodescendentes
seu meio de se fazer presente
em todo o mundo. Ao adotar
na terra. Xangô, deus da justiça,
a temática afrorreligiosa com
é representado por um céu
menção aos orixás, Abdias
vermelho. Oxóssi, perspicaz
informava que o primor estético
caçador, tem seus arcos e flechas
não era o centro de seu fazer,
mesclados a folhas, síntese de
mas, sim, o reconhecimento dessa
sua morada, a floresta. Para Exu,
espiritualidade como fundação
primeiro a ser homenageado,
resistente do povo negro. Afirmava
pinta os padês, nome dado às
que tais divindades estavam vivas
oferendas destinadas a esse deus.
naquele momento e hoje. Suas pinturas são marcadas Ao lado, Borboletas de Franca (1973), de Abdias Nascimento, acrílico sobre tela | reprodução: RCS Digital
Dessa maneira, Oxumaré –
Durante os 13 anos em que permaneceu no autoexílio,
pela simplicidade e pela
dedicando-se a seus trabalhos
liberdade. As composições
em pintura, ao ativismo e à
geralmente são frontais e
docência, Abdias conquistou 37
prestígio e expôs em vários
quem seja inclassificável, e
locais. Permitiu-se conhecer
Abdias é um deles. Ele não era
A construção da identidade
vários países, como Nigéria, Gana
iniciado no candomblé, porém foi
afrodescendente por meio das
e África do Sul, entre outros que
o maior baba – “pai”, em iorubá
artes visuais contemporâneas. Tese
se inserem na diáspora africana.
– do ativismo negro no país. No
(Doutorado) – Instituto de Artes da
Dessa experiência, foram
contexto da diáspora africana,
Unesp, São Paulo, 2016.
incorporadas às suas pinturas
ele faz do continente a fonte que
a escrita da região de Gana, os
potencializa sua ação criadora
adinkra – símbolos visuais que
em todas as áreas em que
trazem, cada um, um ensinamento
atuou. Empresta do continente-
–, elementos visuais originários
mãe a vitalidade, a força e a
do potente Reino do Congo e o
ancestralidade e as deposita em
vodu haitiano, que seria próximo
cores e formas em suas pinturas,
do candomblé.
manifestos visuais que dignificam
Essa busca por elementos
SANTOS, Renata A. F.
Renata Felinto é artista plástica e professora de teoria da arte na Universidade Regional do Cariri (Urca), no Ceará Mestra e doutora em artes, trata, em sua dissertação e em sua tese, da representação do negro na arte contemporânea brasileira.
a pujança de homens e mulheres
visuais com forte conexão
que lutam ao longo dos séculos.
sobrenatural com a África e que
Como o adinkra ancestral, a
tornassem visíveis a sagacidade
pintura de Abdias é ensinamento.
dos afrodescendentes na missão de se manterem espiritualmente ligados às suas raízes
Referências bibliográficas
transparece nas cores e nas
CLEVELAND, Kimberly L. Black
formas presentes nas pinturas de
art in Brazil: expressions of
Abdias Nascimento.
identity. Florida: University Press
Seria leviano categorizar sua produção. Ela não se
FERREIRA, Ligia F.
vincula a nenhuma escola ou
“Negritude”, “negridade”,
movimento artístico. Tampouco
“negrícia”: história e sentidos
pode ser nomeada ingênua, naïf
de três conceitos viajantes. In:
ou primitiva, como fazem os que
ARAÚJO, Emanoel (Org.). Textos
colocam no balaio da arte popular
de negros e sobre negros. São
tudo aquilo que não conseguem
Paulo: Museu Afro Brasil, 2011.
aproximar e identificar dos
INOCÊNCIO, Nelson.
registros da história geral ou
Emanoel Araújo: o mestre
universal da arte.
das obras. Rio de Janeiro:
É preciso aceitar que há 38
of Florida, 2013.
Garamond, 2010.
Ao lado, Oxum em Êxtase (1975), de Abdias Nascimento, acrílico sobre tela | reprodução: RCS Digital
Abdias discursa na Serra da Barriga, em Alagoas, no dia 20 de novembro de 1983 | imagem: Elisa Larkin Nascimento Abdias, no 3Âş Congresso de Cultura
40
Negra das AmĂŠricas, em 1982
41
Abdias Nascimento, um Poeta em Movimento Para Abdias, a poesia “é exatamente a busca permanente da liberdade. Quando a poesia não está atrás da liberdade, ela deixa de ser poesia...” Lindinalva Barbosa
A
bdias Nascimento, embora não se considerasse poeta, nos deixou um valioso legado de composição em versos. Tudo isso reunido
em um único livro, publicado em 1983 e intitulado Axés do Sangue e da Esperança: Orikis, com 22 poemas que abordam desde aspectos autobiográficos, memórias e personagens familiares até a relevância da história e da cultura africana e afro-brasileira, a denúncia do racismo e a resistência negra diaspórica. O livro também traz desenhos do autor e fotos pessoais e de familiares. Abdias sempre afirmou que sua arte (incluindo sua produção poética) consistia muito mais em uma ferramenta de luta antirracista e pan-africanista – compromisso político que norteou toda a sua vida desde a adolescência – do que propriamente em uma afiliação a uma estética literária e a recursos estilísticos canônicos. Em entrevista concedida a mim em 2006, presente na minha dissertação de mestrado, o autor afirma: “A minha literatura – se é que eu faço literatura – qualquer negra, qualquer negro entende. [...] É porque, em tudo que eu faço, eu tô falando do sofrimento da raça, eu tô falando na opressão que nós sofremos. […] É porque todo negro e toda negra é parte disso, é protagonista da poesia...”. A poesia de Abdias é parte constitutiva da literatura negra – um conceito em movimento que subscreve a produção literária de autoras e autores negros brasileiros, sobretudo a partir da década de 1970 –, que é fortemente marcada pela articulação com outras formas de
42
luta por liberdade. Dessa forma,
dos ancestrais honoráveis,
a literatura negra incorpora
de indivíduos ilustres e das
no qual é refletido objetivamente
discursos de contraposição ao
grandes linhagens. Funcionam
o ego do autor, os versos são
racismo e à discriminação racial;
como documentos da memória
constantemente ritmados, enquanto
a valorização de signos africanos
coletiva de determinado
desfiam sutilmente aspectos da
e afro-brasileiros; a solidariedade
grupo, cidade ou família. Assim
vida familiar na adolescência vivida
aos povos africanos oprimidos; a
também os poemas de Abdias
na cidade de Franca, em São Paulo.
consciência negra e a afirmação
redesenham cartografias sobre
Fragmentos da memória recente da
identitária. Todos esses
a vivência e a resistência negra
escravidão marcam intensamente
elementos estão presentes na
na diáspora chamada Brasil.
os versos do sujeito poético:
Em “Autobiografia”, poema
poética de Abdias, para quem a literatura negra – ainda de acordo com a entrevista de 2006 – revela “o negro com suas experiências, seus dons, suas dúvidas diante do universo, dentro dessa coisa
EITO que ressoa no meu sangue
tão obscura que é o futuro da
sangue do meu bisavô pinga de tua foice
gente”. Para o autor, a poesia “é
foice da tua violação
exatamente a busca permanente da liberdade. Quando a poesia não está atrás da liberdade, ela deixa de ser poesia”. O poeta Abdias nomeia seus poemas como oriki, associando sua criação literária ao modelo de composição poética africana dos iorubás, cujo nome pode ser traduzido como “canto de louvor, saudação a alguém”. Os oriki são parte da tradição oral iorubá e têm por principal finalidade evocar, saudar, louvar e lembrar os feitos históricos da comunidade, sobretudo
ainda corta o grito de minha vó [...]
PRECONCEITO esmagado no feito destruído no conceito/eito ardente desfeito
ao leite do amor perfeito
sem pleito eleito ao peito
da teimosa esperança
em que me deito. 43
[...]
Invocando essas leis
imploro-te Exu
plantares na minha boca/
o teu axé verbal [...]
Teu punho sou
Exu-Pelintra quando desdenhando a polícia
defendes os indefesos
vítimas dos crimes do esquadrão da morte
44
punhal traiçoeiro da mão branca
somos assassinados porque nos julgam órfãos desrespeitam nossa humanidade “Padê de Exu Libertador”
[...]
é provavelmente o poema
Exu
constantemente recitado em
tu que és o senhor do teu povo sabes daqueles que empunharam
teus ferros em brasa contra a injustiça e a opressão
mais conhecido de Abdias, momentos de posicionamento político importante. Exu, o mensageiro cósmico e senhor da comunicação, o dono da palavra e do primeiro ebó, é o predileto do poeta entre todas as divindades iorubanas. A Exu são dedicados os versos que falam da indignação diante de todas as violências e
Zumbi Luiza Mahin Luiz Gama
também a súplica pelo poder
Cosme Isidoro João Cândido [...]
no ato de defesa do povo negro
da palavra exata a ser proferida oprimido pelo racismo.
45
[...]
Navego teu leite
A forte ligação de Abdias
perfume de flor de laranjeira
constantemente assinalada pelo
mergulho teu seio materno
poeta, e a ela são creditadas as
que me devolve à boca
no enfrentamento do racismo e
o leite primal de Ísis
irmãe
primeiras lições de determinação na preservação da autoestima e da dignidade. Essa profunda admiração inspirou longos e
amantesposa
belíssimos versos de exaltação à
Ísis que me pariu
como no poema “Mãe”.
em seus negros seios leite negro me nutriu [...]
e de materna valentia
perdido vim eu navegador sem bússola
da mesma gota tua fertilizante dos óvulos
da maninha Ismênia frágil mãe adolescendo nos doces olhos contritos [...]
46
com sua mãe, dona Josina, é
mulher negra, representada pela figura materna de dona Josina,
[...]
Como posso Oxum continuar
O mesmo fio que tece a teia
se até a língua me arrancaram?
em “Prece a Oxum”, poema de
[...]
fertilidade, a mãe da água doce,
sou o vosso filho-peixe peixe-filho nadando vim
poética em “Mãe” reaparece exaltação à orixá do amor e da rainha da beleza e do ouro. Nestes versos, o sujeito poético apresenta Oxum como orixámãe, portadora de fecundidade e detentora da capacidade de
ekodidê trançado a meus cabelos
proteção comunitária. Coloca aos
flutuando às águas fecundantes do vosso
suas súplicas e queixas.
pés da maternal e amorosa Oxum
ventre genitor e provedor
das crianças deste mundo milhões de crianças deste mundo
milhões de crianças negras [...]
Senhora mãe Oxum perdão
chego e parto vou partir agora o coração parto ao odor das violetas do meu campo santo de amor [...] 47
Eis aqui o chão ancestral debaixo dos meus pés seu coração pulsa
o vibrante tan-tan subterrâneo
trepida a matriz da terra negra
grávida de tanta lágrima tanta vida tanta esperança [...]
Meus passos ecoam o resgate da esperança
pelo caminho antecedente (nem largo nem estreito) [...]
Serra serrote serra da vingança
serra o mal de barriga da serra serra bem serrada a gorda pança/
do latifúndio da desesperança [...]
Zambi Zumbi Zambiapungo Zumbi Zenith 48
O protesto negro, as histórias de luta e resistência negras e as proposições políticas do movimento negro são os temas prioritários da poética de Abdias Nascimento. Assim, o Quilombo dos Palmares, símbolo maior disso tudo, é evocado em “Escalando a Serra da Barriga” como um emblema territorial da batalha anticolonial e escravista.
A literatura é a própria vida se manifestando e se reproduzindo por meio das palavras, do sentir, do fazer e do existir dos indivíduos. Assim, Abdias Nascimento, em seus poemas, nos informa de sua própria trajetória como negro. Principalmente, ele nos informa também de seus pares, homens e mulheres negras, com quem partilha uma história e uma experiência civilizatória como povo. É esse composto de relações e vivências que atribui o adjetivo final ao gênero: literatura negra.
Lindinalva Barbosa é licenciada em letras, educadora para relações étnico-raciais e de gênero e mestra em estudo de linguagens, com a dissertação As Encruzilhadas, o Ferro e o Espelho – a Poética Negra de Abdias Nascimento.
49
Campanha de Abdias para deputado federal pelo Partido Democrรกtico Trabalhista (PDT), em 1982 | imagem: Elisa Larkin Nascimento
50
51
O Brasil de Pele Preta no Congresso Abdias e seu papel no Legislativo e no Executivo: um boi de piranha na política institucional
O NEG Conceição Freitas
Q
uatro dias depois de completar 69 anos, em 18 de março de
1983, Abdias Nascimento subiu pela primeira vez à tribuna como
deputado eleito pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) do Rio
de Janeiro para um extraordinário chamamento: “Invoco o nome de
Olorum, criador de todas as coisas: dos seres humanos e do universo. Invoco as forças telúricas da nossa pátria ancestral – a mãe África”. Destemido, foi além: “Invoco Exu, senhor de todos os caminhos da existência humana, senhor das encruzilhadas onde a contradição dialética vem ocorrendo desde os tempos imemoriais presididos pelos mitos”. E encerrou o sagrado clamor: “Evoco e suplico a
proteção da mãe ancestral de todos nós, Nossa Senhora Oxum, doadora do amor, da compaixão e da esperança”.
A oposição comemorava a primeira grande vitória desde o golpe
de 1964. Com Abdias, assumiam a 47ª Legislatura nomes como Ulysses Guimarães, Mário Covas, Miguel Arraes, Eduardo Suplicy e Alencar
Furtado. Companheiro dos caciques da luta pela redemocratização do país, Abdias tingiu o plenário da Câmara, pela primeira vez na história, com a cor da luta pela igualdade racial. Outros negros já haviam sido
eleitos, mas até então nenhum havia se declarado preto e dedicado o mandato ao combate à discriminação étnica.
Embora o panorama pudesse parecer favorável, dada a presença de líderes emblemáticos para a retomada da democracia no país, Abdias não encontrou ambiente confortável ou, pelo menos, solidário a seus propósitos: “Ainda prevalecia, nas esquerdas daquela época, a ideia de que as questões sociais específicas, como a racial e a de gênero, eram inoportunas e politicamente equivocadas porque dividiriam 52
e enfraqueceriam a luta do
o preto, o negro é tão nobre e tão
proletariado contra a exploração
digno que o povo brasileiro o traz
econômica e de classes”, disse.
para a tribuna do Congresso”.
Nunca foi fácil para Abdias,
Em troca, o incansável
mas ele assumiu uma cadeira
Abdias deu uma aula de
na Câmara e mais tarde, por
realidade racial brasileira:
duas vezes, foi eleito no Senado,
“V. Ex.a vê o racismo como
disposto a continuar sendo “boi
consequência do capitalismo.
de piranha”, expressão que usava
O acúmulo do capital que
para afirmar a dimensão de seu
permitiu à Europa desenvolver
compromisso com a defesa dos
o capitalismo industrial é o
direitos humanos e civis de sua
resultado do racismo e da
gente. E também para deixar claro
exploração escravagista. [...] Ao
que sabia das dificuldades que
afirmar que não há racismo no
viriam. Boi de piranha é o animal
Brasil por existir um deputado
de sacrifício entregue às piranhas
negro no Congresso Nacional, V.
para que a boiada possa passar
Ex.a está exatamente provando
pelo rio. Ou seja, ele se dispunha a
que ele existe. A maioria do
ser atacado para abrir caminhos.
povo brasileiro é de origem
GRO Nos anos 1980 e nos
africana, e só um deputado
seguintes, ainda se enaltecia a
negro vem aqui falar a respeito
democracia racial brasileira. Tome-
do seu povo. Esse é o exemplo
se como exemplo a sessão, em 21
mais clamoroso de racismo”.
de março de 1985, na qual Abdias
Diante de um plenário que
voltou à tribuna para marcar o
desconhecia e negligenciava a
Dia Internacional pela Eliminação
questão racial, Abdias dedicava-
da Discriminação Racial. O então
se a longas e pedagógicas
deputado Gerson Peres, do Partido
preleções sobre a história que
Democrático Social (PDS) do
o Brasil escondia de si mesmo.
Paraná, interpelou o orador: “V. Ex.a
“Não me deixavam falar, queriam
violenta uma das maiores tradições
cortar a minha palavra, achavam
aqui existentes, pois o que aqui
que eu falava inverdades
existe, deputado, são preconceitos
absurdas”, disse em depoimento
sociais, provenientes, talvez, do
ao Arquivo Nacional, já aos 96
sistema capitalista vigente. Mas
anos. Ele tinha a resiliência dos
não há discriminação racial. Aqui,
que suportaram a escravidão. 53
ESTÁ ACORDA deu poderes quase absolutos à
ditadura militar. Se antes de deixar o país Abdias já vinha sendo
convocado pela polícia política
por suas posições de esquerda,
com o AI-5 percebe que não havia condições de voltar ao Brasil.
O exílio negro, porém, se
diferenciava dos demais. Abdias se considerava como todos
os pretos apartados da África:
Não Vote em Branco, Vote no Preto Abdias Nascimento
alguém “em situação de exílio
Havia duas décadas que Abdias
denunciava a falsa democracia
vinha forçando a porta de
racial brasileira. Até que, no final
entrada do Parlamento à causa
dos anos 1970, teve um encontro
da igualdade racial. Pouco antes
delimitador de fronteiras. Exilado
do início da campanha eleitoral
em Lisboa, Leonel Brizola
de 1954, o Rio de Janeiro viu um
articulava a criação do PDT. Como
santinho com a foto de um negro
toda a esquerda brasileira, o líder
e o slogan: ‘’Não vote em branco,
gaúcho não via sentido na luta
vote no preto Abdias Nascimento,
pela igualdade racial, até que
criador do teatro negro no Brasil”.
ouviu, durante uma noite inteira
Mas sua candidatura pelo Partido
em Nova York, Abdias contar a
Social Trabalhista (PST) no então
história do Brasil de dentro da
Distrito Federal foi negada.
pele preta. “Acendeu uma luz na
Deixe estar.
cabeça do Brizola”, lembra-se o
Depois da conflagração
cientista político Clóvis Brigagão.
política que resultou no golpe de
54
permanente”. Nessa condição,
Daí em diante, com o retorno
1964, Abdias ganhou uma bolsa de
dos exilados ao país, Abdias se
estudos de uma fundação norte-
candidatou a deputado federal
americana destinada a entidades
pelo PDT de Brizola. Do criador
culturais negras. Deixou o Brasil
do Teatro Experimental do Negro,
em outubro de 1968, dois meses
artista plástico, ativista e professor
antes de ser decretado o Ato
surge o parlamentar, e é nessa
Institucional no 5 (AI-5), o ato que
condição que ele “abre as portas
para a aprovação de leis que hoje
acabou se consolidando
o Projeto de Lei no 1.661/83,
são realizadas”, no dizer de Paulo
como um princípio de
que dispunha sobre o crime de
Paim, do Partido dos Trabalhadores
diversidade generalizado. Ação
lesa-humanidade a qualquer
(PT) do Rio Grande do Sul, um dos
compensatória não pretendia
discriminação em razão de cor
dois senadores negros da atual
apagar o passado, mas trazê-lo
da pele, raça ou etnia, “como
legislatura [o outro é Magno Malta,
como fonte límpida para o futuro.
anteriormente foram definidos o
do Partido da República (PR) do
O PL n 1.332/83 previa a inclusão
antijudaísmo nazista e o apartheid
Espírito Santo]. A fonte de onde
do ensino de história e cultura
da África do Sul”, argumentou.
brotou o Estatuto da Igualdade
de matriz africana nos currículos
Com essa iniciativa, Abdias
Racial está em Abdias, reconhece
escolares e acadêmicos, em
pretendia a revogação da Lei
Paim, autor do Projeto de Lei n
todos os níveis. O projeto
Afonso Arinos, de 1951, e “sua
12.288, de 20 de julho de 2010.
propunha “o princípio da isonomia
substituição por um dispositivo
social do negro em relação aos
legal que realmente puna,
demais segmentos étnicos da
como determina o artigo 153 da
A Pressa de Impor Cores Novas
população brasileira, conforme
Constituição Brasileira”.
Três meses depois de assumir
direito assegurado pelo artigo 153
o mandato de deputado federal,
da Constituição da República”.
o
ADO, o
Abdias apresentou o Projeto de
Abdias também apresentou,
Nem bem chegara e Abdias já impunha à pauta branca do Congresso Nacional as cores da
Lei n 1.332/83, que propunha
no mesmo dia, proposta de
realidade racial brasileira. Todo
a implementação de políticas
criação de um memorial ao
e qualquer gesto seu era de um
públicas de igualdade racial,
escravo desconhecido na
ativista da causa negra. Indignado
no que ele chamava de “ação
Praça dos Três Poderes e de
com o fato de o então presidente
compensatória”, e não “ação
estabelecimento do 20 de
da Câmara, Nelson Marchezan,
afirmativa”, termo que acabou se
novembro como Dia Nacional
ter impedido o deputado eleito
impondo no vocabulário das lutas
da Consciência Negra. Quase
Mário Juruna de tomar posse com
por igualdade racial.
40 anos haviam se passado
a vestimenta indígena, Abdias
o
desde a Convenção Nacional
encaminhou à mesa um ofício
action) é uma expressão de
do Negro, em 1946, quando
solicitando mudança no Regimento
origem norte-americana cunhada
foram apresentadas ao país as
Interno “capaz de incluir, entre os
em 1961 para designar as
primeiras reivindicações da causa
padrões de vestuário adequado ao
medidas positivas de combate
negra. Lá estava Abdias.
comparecimento de parlamentares
Ação afirmativa (affirmative
à discriminação racial. Ação
O deputado tinha pressa.
em plenário, não somente a roupa
compensatória é um termo que
Vinte e oito dias depois de
formal européia, mas também o
nasceu no movimento negro
apresentar o projeto de ação
traje originário da África”. Malvista
brasileiro na primeira metade
compensatória, submeteu à
e mal-entendida pela mídia, a
do século XX. Ação afirmativa
apreciação da Câmara Federal
proposta caiu no esquecimento. 55
Quando Tancredo Neves adoeceu e deixou o país em estado de suspensão, Abdias foi à tribuna para, depois de se pronunciar sobre o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, invocar os orixás: “Imploro compaixão de Obaluaiyê para curar o mais rapidamente possível a enfermidade do nosso presidente Tancredo Neves. Atôtô!”. Era o Brasil negro clamando pela vida do primeiro presidente civil pósditadura. Eram os brasileiros das religiões de matriz africana clamando pela saúde do presidente da República. Findo o mandato de deputado federal, Abdias fez
PDT, em 1991 Abdias deixou a
verdadeiramente preto nas
Sedepron para assumir a vaga
eleições. Chegaram à Câmara,
de Darcy Ribeiro, que deixava
naquele ano, Paulo Paim, Benedita
o Senado com a missão de
da Silva e Carlos Alberto de
criar os Centros Integrados de
Oliveira Caó. Já não era apenas
Educação Pública (Ciep) de
um, mas três bois de piranha.
Brizola. Saudado como “primeiro
Fora do Parlamento, Abdias
senador negro”, Abdias voltou
seguia espalhando a causa da
mais provocador ainda. “Após
igualdade racial às instituições
uma viagem pela história desta
governamentais. Desde que
Casa, um olhar perquiridor sobre
varou a noite contando a Brizola
as origens raciais dos milhares
como a escravidão está fincada
de brasileiros que ocuparam
na história da alma brasileira,
estas cadeiras no Império e na
Abdias ficou guardado na
República, consegui concluir
lembrança e nos projetos do líder
que, antes de mim, mais de duas
pedetista. Eleito governador do
dezenas de filhos de africanos
Rio de Janeiro em 1990, o gaúcho
– aí incluídos pretos, mulatos,
criou uma inédita Secretaria
pardos, filhos de primeira e
Extraordinária de Defesa e
segunda geração – cumpriram
Promoção das Populações Afro-
mandatos no Senado.” Abdias
Brasileiras (Sedepron, depois
cotejou informações e fotos
momento, confirmou a disposição
renomeada Seafro) e convidou
para chegar a esse número, isso
para boi de piranha. Suas
Abdias para ser o secretário.
porque “aqueles 22 senadores
Na posse, diante de um Palácio
não assumiram etnicamente a sua
da Guanabara lotado, o titular
condição de afro-brasileiros”.
um balanço que, num primeiro
principais proposições foram rejeitadas pelo Congresso, que
da Sedepron evocou as rainhas
Na volta ao Senado, em
Nzinga e Yaa Asantewaa, Zumbi
1997, Abdias percebeu que já não
dos Palmares, Luiz Gama e Luísa
era um boi de piranha apenas.
foi rejeitado, como muitos outros,
Mahin: Axé Babá! E personificou
Quinze anos haviam se passado
por causa da entrada em vigor da
mais uma vez o orador, o ativista,
desde que chegara ao Congresso
Constituição de 1988.
o professor e o historiador em
Nacional pela primeira vez. A
um discurso pleno de informação,
expressão simbólica da mudança
constituinte”, Abdias lançou-se
evocação da herança africana e
foi a inscrição do nome de Zumbi
à campanha de 1986 para um
convocação para a luta.
dos Palmares no livro dos heróis
de negro só tem o imponente salão principal. É fato que o projeto de ação compensatória
Com o codinome “negro
segundo mandato. Não se elegeu, 56
E CON mas já não era o único candidato
Suplente de senador pelo
nacionais do Panteão da Pátria,
monumento de Oscar Niemeyer na
Requião, observou que a ação
Praça dos Três Poderes. A proposta
afirmativa tem o propósito
tinha sido apresentada pela
de “reparar grave injustiça
senadora Benedita da Silva (PT/RJ).
sedimentada no passado e
Velhos caciques da política
que ainda se verifica no mundo
brasileira se alternavam na tribuna:
atual”. Mesmo assim, o projeto
Antônio Carlos Magalhães, José
foi arquivado.
Sarney, Romero Jucá, Renan
Quando terminou o período
NTINUA Calheiros, José Serra. Havia um
legislativo no Senado, em 1999,
que tinha muitas afinidades com
Abdias estava com 85 anos.
Abdias, Eduardo Suplicy, como
Nove anos depois, em longa
ele mesmo diz. De todo modo,
entrevista ao Arquivo Nacional,
no Senado havia mais respeito e
ele concluiu: “O negro neste
reverência ao representante da
país está acordado, alerta, e vai
causa negra. “Embora pudessem
continuar sua luta sempre. Isto é
discordar de Abdias, todos o
um processo irreversível! Espero
tratavam com a consideração que
que o Brasil tenha a sensatez de
merecia”, lembra-se Suplicy. No
ouvir-lhe os gritos em vez de se
Senado, “depois de anos passados
fazer de surdo. O negro no Brasil
fazendo a minha pregação,
é maioria, e democraticamente
juntaram-se outras vozes à minha
no futuro deve assumir a direção
e até recebia o aval dos senadores
do país! É só uma questão de
aos meus projetos de lei. A
tempo e de aprimoramento das
sociedade vem mudando, à medida
instituições democráticas”.
que a gente bate, bate na mesma
tecla. É assim aos pouquinhos, mas é um processo irreversível”.
Outra demonstração de que
os tempos haviam mudado, e
para melhor, foi quando Abdias apresentou o projeto de ação
Conceição Freitas é jornalista, foi repórter em jornais de Goiânia e Brasília e escreveu crônicas no Correio Braziliense durante 12 anos. Ganhou dez prêmios de jornalismo, entre eles o Abdias Nascimento.
compensatória, aquele de 1983 arquivado na Câmara. A recepção foi outra. O parecer do relator da Comissão de Constituição e Justiça, Roberto 57
Renan Alves, da periferia de Diadema, em São Paulo, para o mundo. Conhecido também como Tutuco, o atleta é destaque nas rodas de capoeira de São Paulo e tem se dedicado à atividade de personal training, à musculação e ao body building | imagem: Roger Cipó
58
59
A Beleza da Identidade Um ensaio fotográfico de Roger Cipó a partir de uma inspiração vinda de Abdias
U
m pioneiro da capoeira na Noruega. Um economista sacerdote do candomblé. Uma cantora que é deputada. Uma criança com nome
de guerreira de Palmares. Um pai e uma mãe do samba de São Paulo. Vivências múltiplas de negros e negras que, pelas lentes do fotógrafo Roger Cipó, são reunidas aqui. Pedimos a Roger este ensaio provocados por um dos projetos de Abdias. O ativista – por meio do Teatro Experimental do Negro (TEN) e do jornal Quilombo – promoveu os concursos Rainha das Mulatas e Boneca de Pixe entre 1947 e 1950. Segundo ele, a missão era “pôr um ponto final na tradição brasileira de só ver na mulher negra e mulata um objeto erótico”. Julgavam aparência e “qualidades morais”. Além disso, pretendia-se romper com um padrão notado nos concursos de misses: a participação reduzida ou nula de mulheres negras. Para a pesquisadora Elisa Larkin Nascimento, essas ações visavam à “construção de alicerces de autoestima para a população negra” e apontavam as “implicações racistas dos padrões de estética vigentes”. Lutas que, hoje, prosseguem. As fotos a seguir expandem o escopo das atividades originais – não se trata mais só da boniteza ou da postura de uma miss –, mas seguem sua essência: o esforço de ressaltar a variedade de belezas e identidades.
Roger Cipó é fotógrafo, educador, pesquisador e militante pelos direitos e pela liberdade dos povos de terreiro. Gere o grupo Olhar de um Cipó, voltado para a preservação da identidade e da estética religiosa afro-brasileira.
Tia Cida é uma das fundadoras do Berço do Samba de São Mateus, terreiro de samba na zona leste de São Paulo. Cantora, gravou seu primeiro disco aos 73 anos de idade, com produção do Quinteto em Branco e Preto, grupo que ela viu nascer no seu quintal. Na foto, Tia Cida é acariciada por um de seus filhos, o músico Tocão.
60
61
Ryan Lucas, estudante, é um dos muitos garotos de periferia que mantêm o sonho de se tornar jogador de futebol e atuar nos grandes clubes do mundo. Seu time do coração é o Santos Futebol Clube.
62
Dandara Guimarães, de 2 anos, é a princesa da mãe, a professora Geisa,, e do pai, o vendedor Sidnei.
63
Erika Vicentina é arte-educadora e atriz. É também militante pelos direitos da população negra e pela diversidade de gênero, atuando em coletivos artísticos que pautam as questões de diferentes lutas sociais.
Babá Mojé é o nome sagrado de Maurício Almeida, profissional da economia que, fora da rotina corporativa, assume a função de asogbá – importante cargo do culto a Omolu, orixá dono da terra e da cura – no terreiro de candomblé Egbé Iya G’unté, em Juquitiba, São Paulo.
Raissa Teixeira é uma jovem blogueira, feminista ativista pelos direitos da mulher e pelo empoderamento feminino. Escreve em seu blog, Toda Melanina, além de palestrar em encontros temáticos que abordem as questões do feminismo e a cultura do candomblé, religião seguida por ela no tradicional terreiro Kupapa Unsaba, no Rio de Janeiro.
67
Professor Poca é capoeirista desde 1996 e já resgatou da violência centenas de crianças pobres nas comunidades de Diadema, em São Paulo, por meio do esporte. Tornou-se um dos precursores dessa forma de combate no norte da Europa, tendo estabelecido o grupo de capoeira Beija-Flor na cidade de Bergen, na Noruega. Leci Brandão, deputada estadual em São Paulo em seu segundo mandato. A carioca, que completou 72 anos em 2016, é compositora e uma das principais cantoras brasileiras, conhecida mundialmente por suas interpretações e por uma longa carreira destacada por letras afirmativas e românticas.
68
A professora de controle de qualidade Geisa Guimarães e sua princesa Dandara, nome inspirado na histórica guerreira Dandara de Palmares. Seu Dadinho do Camisa, ou Eduardo Joaquim, tem uma vida inteira dedicada ao samba e transformada por ele. Seu grande amor é a Camisa Verde e Branco, uma das mais tradicionais escolas de samba de São Paulo.
69
ilustração: Robinho Santana
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71
CARTOGRAFIA ABDIAS NASCIMENTO: Um olhar sobre o pensamento Maurinete Lima e Eugênio Lima | ilustração Robinho Santana
“Resgatar nossa memória significa resgatarmos a nós mesmos do esquecimento, do nada e da negação, e reafirmarmos a nossa presença ativa na história pan-africana e na realidade universal dos seres humanos.” (NASCIMENTO, 2009, p. 11)
E
sta cartografia sobre o pensamento de Abdias pede para ser compreendida a partir do ponto de vista da desterritorialização, em
que a multiplicidade de períodos históricos conflui para o pensamento do autor, criando outras possibilidades de acesso aos ramos de um conhecimento influenciado pelos conceitos e movimentos que construíram uma narrativa da gente negra brasileira. Como toda visão cartográfica, ela não pretende ser um caminho único e linear para o material: ela se localiza na imensidão da diáspora negra, com seus fluxos, contrafluxos, suas derivas e, sobretudo, seus encontros. Nesta publicação, o material se guia pelo eixo Dia Nacional da Consciência Negra, que está dividido em partes; cada uma das partes é uma porta. São elas: Negritude, Pan-Africanismo, Consciência
72
Negra, Brasil, Quilombismo, Racismo como Dispositivo de Controle e Antigamente Quilombos, Hoje Periferia. Uma versão ampliada deste conteúdo cartográfico pode ser vista em itaucultural.org.br/ ocupacao – por exemplo, com material sobre o feminismo negro e o genocídio do negro brasileiro. Dia Nacional da Consciência Negra foi organizado na contramão da história oficial, constituindo-se em um portal de entrada para outra história possível, que se utiliza das impossibilidades para criar a narrativa de um povo negro – “estes seres-capturados-pelos-outros” –, que, contrariamente a todas as circunstâncias adversas, conseguiu “articular uma linguagem para si, reivindicando o estatuto de sujeitos completos do mundo vivo...” (MBEMBE, 2014). Uma malha que conecta as partes umas às outras, mas também que existe em si, como um espaço aberto onde tempo histórico, território, língua ou nacionalidade têm suas fronteiras suprimidas, pois o mapa nunca se fecha, ele sempre aponta para outro lugar, que não está contido nele próprio. Aqui, cada parte é um mosaico e, quando unida a outras, forma um novo desenho, uma nova cartografia. Uma cartografia da diáspora do pensamento de Abdias Nascimento. Sejam bem-vindos(as)!
“Como uma alternativa à metafísica da ‘raça’, da nação e de uma cultura territorial fechada, codificada no corpo, a diáspora é um conceito que ativamente perturba a mecânica cultural e histórica do pertencimento. Uma vez que a simples sequência dos laços explicativos entre lugar, posição e consciência é rompida, o poder fundamental do território para determinar a identidade pode também ser rompido.” (GILROY, 2001, p. 18)
73
Eixo Dia Nacional da ConsciĂŞncia Negra
Negri 74
“
A negritude, aos meus olhos, não é uma filosofia. A negritude não é uma metafísica. A negritude não é uma pretensiosa
“
A materialidade da negritude é produto de uma realidade histórica. A negritude
concepção do universo.
seria, para os negros, uma estratégia
É uma maneira de viver a história dentro
da afirmação e reafirmação de si. Um
da história; a história de uma comunidade
‘si’ grupal; oposto àquele estilhaçado e
cuja experiência parece em verdade
grotesco ‘negro’ – convertido na figura
singular, com suas deportações de
historicamente emblemática do Outro pelo
populações, seus deslocamentos de
racismo – que povoa o imaginário de um
homens de um continente a outro, suas
todo mundo racializado.
lembranças distantes, seus restos de culturas assassinadas. (CÉSAIRE , 2010) 1
“
Raça existia; era uma construção social concreta, um incontornável legado perverso da história. Havia que desmitificá-la e torná-la inoperante
1 Poeta e homem público martiniquense. Um dos grandes teóricos e ativistas do movimento da negritude. Seu poema “Cahier d’un Retour au Pays Natal” é uma espécie de hino da diáspora africana em todo o mundo (LOPES, 2004, p. 182-183).
mediante um pensamento e uma práxis. Para isso, faz-se necessário apelar para uma consciência identitária especificamente negra e, consequentemente, estruturar organizações sociais, também negras, para se contrapor em todos os planos quando o negro fora negado e esmagado. A negritude situa-se no terreno de um movimento de ideias e práticas
tude
que, assumindo a noção de raça, para desmitificá-la, visa derrotar o racismo. (MOORE2,1 2010, p. 18-19)
“
2 Cientista político, etnólogo e sociólogo nascido em Cuba em 1942. Militante do pan-africanismo, coordenou, entre outros, o colóquio Negritude e Culturas Africanas nas Américas (Miami, 1987) (LOPES, 2004, p. 448).
“
Crítica ao Marxismo O que eu quero é que o marxismo e o comunismo sejam colocados a serviço dos povos negros, e não os povos negros a serviço do marxismo e do comunismo. Que a doutrina e o movimento sejam feitos para os homens, não os homens para a doutrina ou para o movimento. E compreenda-se bem que isso não vale unicamente para os comunistas. Se eu fosse cristão ou muçulmano, diria a mesma coisa.
“
76
“
(CÉSAIRE, 2010)
Negritude – Afrorismo 1 A negritude transformou a identidade
ocidental, até então considerado um
sociocultural dos povos negros numa
critério universal de referência. Ela
arma de emancipação e num projeto
contribuiu para voltar a ligá-los à sua
de renascimento. Ela lutou contra o
história, às suas tradições culturais,
eurocentrismo, o racismo, os preconceitos
às suas línguas. Por consequência,
e a incompreensão e a arrogância das
permitiu consolidar as consciências
potências coloniais triunfantes; ela
dos povos negros e mobilizá-los para
rejeitou a aculturação e a assimilação
as lutas anticoloniais e libertadoras.
e dessacralizou o paradigma cultural
(SOW, 1977, p. 15-16)
“
consciência negra Panafricanismo A
“
Em nosso manifesto político, definimos os negros como aqueles que, por lei ou tradição, são discriminados política, econômica e socialmente como um grupo na sociedade sul-africana e que
se identificam como uma unidade na luta pela realização de suas aspirações. Tal definição manifesta para nós alguns pontos: 1. ser negro não é uma questão de
ideologia pan-africanista surgiu como
pigmentação, mas o reflexo de uma
um sentimento solidário e como
atitude mental;
consciência de origem comum entre
2. pela mera descrição de si mesmo
negros de todo o mundo.
como negro, já se começa a trilhar o
Expoentes importantes: W. E. B. Du Bois
caminho rumo à emancipação, já se está
(Estados Unidos, 1868-Gana, 1963), Marcus
comprometido com a luta contra todas as
Garvey (Jamaica, 1887-Inglaterra, 1940),
forças que procuram usar a negritude como
Amílcar Cabral (Guiné-Bissau, 1924-Guiné-
um rótulo que determina a subserviência.
Conacri, 1973), Stokely Carmichael (Trinidade,
Os negros – os negros verdadeiros
1941-Guiné-Conacri, 1998), Angela Davis
– são os que conseguem manter a
(Estados Unidos, 1944) e demais membros
cabeça erguida em desafio, em vez de
do Partido dos Panteras Negras, fundado em
entregar voluntariamente sua alma ao
1966 nos Estados Unidos.
branco. Assim, numa breve definição, 77
consciência negra é essencialmente a percepção do homem negro sobre a necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação – a negritude de sua pele – e agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que os prendem a uma servidão perpétua. A consciência negra procura provar que é um equívoco considerar o negro uma aberração do ‘normal’, que é ser branco. Procura infundir na comunidade negra um novo orgulho de si mesma, seus esforços, seus sistemas de valores, sua cultura, sua religião e sua maneira de viver a vida. A inter-relação entre a consciência do ser e o programa de emancipação é de importância primordial. A libertação tem importância básica no conceito de consciência negra, pois não podemos ter consciência do que somos e ao mesmo tempo permanecer em cativeiro. Queremos atingir o ser almejado, um ser livre. (BIKO, 1990, p. 65-66)
78
“
brasil
Embranquecimento
“
O embranquecimento é uma ideologia que visa ao branqueamento cultural e biológico. Quanto mais branco melhor. A alusão ao embranquecimento como ‘uma bênção’ é significativa até os dias de hoje. O tema cor tem prevalecido desde que o Brazil é Brasil, ou melhor, desde quando éramos América Portuguesa. Vejamos a descrição dos primeiros viajantes, que destacavam a existência de uma paradisíaca, mas, lamentavelmente, estranheza de nossa gente. É de autoria do português Gândavo (1540-1580) uma máxima que definiria com ênfase não tanto a natureza do Brasil, mas seus naturais: povos sem F (fé), sem
L (lei) e sem R (rei); naturais esses que foram caracterizados a partir da noção da falta ou da ausência de algo. Começa a ser posta em prática então a noção de laboratório racial brasileiro: é no século XIX que teóricos do darwinismo racial tornam atributos externos e fenotípicos os elementos essenciais definidores das moralidades e do devir dos povos. Raça, no Brasil, jamais foi um termo neutro; ao contrário, associou-se com frequência a uma imagem particular do país. Muitas vezes, na vertente mais negativa do final
79
do século XIX, a mestiçagem existente no país parecia atestar a própria falência da nação. Nina Rodrigues é o grande defensor dessa premissa. Adepto do darwinismo racial e dos modelos do poligenismo – que defendiam que as raças
“
Mestiçagem A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social
humanas correspondiam a realidades
que doutro modo se teria conservado
diversas, fixas e essenciais, e, portanto,
entre a casa-grande e a mata tropical;
não passíveis de cruzamento –, ele
entre a casa-grande e a senzala. A índia e
acreditava que a miscigenação extremada
a negra-mina, a princípio, depois a mulata,
era sinal de degenerescência.
a cabrocha, a quadrarona, a oitavona,
Também o antropólogo Roquette-Pinto
tornando-se caseiras, concubinas e até
previa, anos depois e a despeito de sua crítica
esposas legítimas dos senhores brancos,
às posições racistas, um país cada vez mais
agiram poderosamente no sentido de
branco: em 2012, teríamos uma população
democratização social no Brasil.
composta de 80% de brancos e 20% de
(FREYRE, 1966)
mestiços; nenhum negro, nenhum índio. (SCHWARCZ, Lilia, 2012)
“
“
Democracia Racial Pare e olhe para a base. Nós somos um cadinho de raças? Nós somos uma democracia racial? Como pode a democracia racial aparecer num país que não tem tradição de democracia política? O ideário de democracia racial não aparece historicamente no século XIX para acomodar estrangeiros? O ideário de democracia racial traz algum avanço em relação à questão do negro? O negro está realmente em questão quando se fala em democracia racial? Onde estão os negros? Onde está a história? Onde estão os negros na história? Quem acredita em democracia racial? Muita gente... Os negros acreditam... Acreditam? (FRENTE 3 DE FEVEREIRO, 2005)
80
“
“
“
movimento negro no brasil Os movimentos negros são uma série
Os movimentos negros no Brasil
de movimentos sociais organizados em
costumam ser divididos, grosso modo,
torno da luta antirracista. Organizam-se de
em quatro períodos principais: República
maneiras diversas, com estrutura filosófica,
Velha (1889-1930); da Revolução de
social e ideológica próprias, realizados
1930 ao Estado Novo de Getúlio Vargas
a partir de uma perspectiva de gênero,
(1930-1937); da democratização ao Golpe
raça e etnia por pessoas que lutam contra
Militar (1945-1964); da abertura política
o racismo naturalizado na sociedade
(1978/79) ao contexto atual.
brasileira e a marcas da escravidão.
(DOMINGUES, 2007, p. 100-122)
“
81
Quilombismo
3 1
Quilombo Palmares Zumbi dos Palmares Quilombismo segundo Abdias Nascimento Dia Nacional da Consciência Negra 3 Sugestão de leitura: Quilombismo e Quilombolas: Experiências Históricas e Culturais Negras.
quilombismo
“
Quilombo Quilombo era ‘toda habitação de negros fugidos que passassem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles’, segundo resposta do rei de Portugal a consulta do Conselho Ultramarino datada de 2 de dezembro de 1740. De acordo com essa definição da metrópole, o Brasil praticamente se converteu em um conjunto de quilombos, uns maiores, outros menores, mas todos significativos para a compreensão da nossa história social. Os pequenos quilombos possuíam uma estrutura muito simples: eram grupos armados. As lideranças, por isso, surgiam no próprio ato da fuga e da sua
Palmares
organização. Os grandes, porém, já eram muito mais complexos. O de Palmares chegou a ter cerca de 20 mil habitantes e o de Campo Grande, em Minas Gerais, cerca de 10 mil ou mais, assim como o de Ambrósio, no mesmo estado. Convém notar, porém, que o quilombo, além de não ser completamente defensivo, nunca foi uma organização isolada. Para seu núcleo convergiam elementos igualmente oprimidos na sociedade escravista: fugitivos do serviço militar, criminosos, índios, mulatos e negros marginalizados. (MOURA, 1981, p. 16-18)
“
“
Confederação de quilombos, sendo os principais: mocambo de Zumbi; de Acotirene; de Dambrabanga; de Osenga; de Andalaquituche, irmão de Zumbi; de Alquatune e mãe de Zumbi, além de muitos outros menores. Desses quilombos, o mais importante era a Cerca Real do Macaco, situado na atual cidade de União dos Palmares, em Alagoas. Em cada mocambo, o chefe era senhor absoluto, mas, nas ocasiões de guerra, reuniam-se para deliberar conjuntamente na Casa do Conselho do Macaco, sob as ordens de Zumbi ou de outro chefe da república. (MOURA, 1981, p. 36-37)
“ 83
“
Zumbi dos Palmares Primeiro militante do pan-africanismo e da luta por liberdade em terras brasileiras, Zumbi dos Palmares nasceu em 1655, no estado de Alagoas. Ícone da resistência negra à
“
Definição de Quilombismo O quilombismo é um conceito científico históricosocial. Quilombo não significa escravo fugido.
escravidão, liderou o Quilombo dos Palmares.
Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre,
Embora tenha nascido livre, foi capturado
solidariedade, convivência, comunhão existencial.
aos sete anos de idade e entregue a um
A sociedade quilombola representa uma etapa
padre católico, do qual recebeu o batismo e
no progresso humano e sociopolítico em termos
foi nomeado Francisco. Aprendeu a língua
de igualitarismo econômico. Como sistema
portuguesa e a religião católica. Porém, aos
econômico, o quilombismo tem sido a adequação
15 anos, voltou a viver no quilombo, pelo
ao meio brasileiro do comunitarismo ou do
qual lutou até a morte, em 1695. Símbolo
ujamaaísmo1 da tradição africana. Em tal sistema,
da luta contra a escravidão, Zumbi lutou
as relações de produção diferem daquelas
também pela liberdade de culto religioso e
prevalecentes na economia espoliativa do
pela prática de culturas africanas no país.
trabalho, chamada capitalismo, em que se busca
(PERSONALIDADES NEGRAS, 2016)
“
o lucro a qualquer custo. Compasso e ritmo do quilombismo se conjugam aos mecanismos operativos, articulando os diversos níveis de uma vida coletiva cuja dialética interação propõe e assegura a realização completa do ser humano. Todos os fatores e elementos básicos são de propriedade e uso coletivo. A revolução quilombista é fundamentalmente antirracista, anticapitalista, antilatifundiária, antiimperialista e antineocolonialista. (NASCIMENTO, 2009)
“
4 Ujamaa – palavra suaíli para “comunidade familiar” – foi uma política social e econômica desenvolvida por Julius Kambarage Nyerere, presidente da Tanzânia de 1964 a 1985, centrada na agricultura coletiva, na nacionalização dos bancos e da indústria e no aumento da autossuficiência em níveis individuais e nacionais.
84
“
Dia Nacional da Consciência Negra O Dia da Consciência Negra deve
território onde houve o infame cativeiro. Na
resumir tudo o que tiver ocorrido nos
celebração de encerramento da Semana
dias anteriores. Ênfase à figura de Zumbi,
da Memória Negra, deve-se dar todo o
consolidador da luta palmarista, que
destaque aos programas e projetos das
selou com sua morte em plena batalha a
entidades e da comunidade, tendo em vista
determinação libertária do povo negro-
um futuro melhor para os afro-brasileiros.
africano escravizado. Ele é o fundador, na
O último evento da Semana deve, de
prática, do conceito científico histórico-
preferência, acontecer ao ar livre, numa
cultural de quilombismo. Quilombismo
concentração da comunidade negra e das
continuado por outros heróis da história
pessoas de qualquer origem interessadas
negra: Luísa Mahin e seu filho Luís Gama,
em nossas atividades. Durante todo o
Chico-Rei, os enforcados da Revolta dos
decorrer da Semana, deverá ser evitada
Alfaiates, dos levantes dos Malês, da
toda a retórica acadêmica e ideológica
Balaiada, o Dragão do Mar, Karocango,
incapaz de apresentar conteúdos ou
João Cândido e os milhões de quilombolas
propostas úteis.
assassinados em todas as partes do nosso
(NASCIMENTO, 2009)
“
Racismo como Dispositivo de Controle
“
86
Desvalorização Continuada da Natureza Feminina Negra
o mito da inexistência do racismo em nosso país (GONZALEZ, Lélia, 1988). A sistemática desvalorização da natureza feminina negra não foi simplesmente uma consequência direta do ódio pela raça; foi um método calculado de controle social.
No racismo disfarçado, prevalecem as
Durante os anos da reconstrução, o povo
teorias da miscigenação, da assimilação
negro emancipado demonstrou que, sendo-
e da democracia racial e essa forma
lhes dadas as mesmas oportunidades
de se manifestar impede a consciência
que aos brancos, podia se sobressair em
objetiva desse racismo sem disfarces e
todas as áreas. O seu feito era um desafio
o conhecimento direto de suas práticas
direto às noções racistas sobre a inerente
cruéis, pois a crença historicamente
inferioridade das raças de pele escura.
construída sobre a miscigenação criou
(HOOKS, 2014)
“
Genocídio Negro – Casa-Grande Moderna O Medo Branco
Entrevista no vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) sobre por que a Federação
“
das Indústrias do Estado de São Paulo
Crítica da Razão Negra – O Devir Negro do Mundo
(Fiesp) é a Casa-Grande Moderna. Como você responderia à pergunta escrita no cartaz que ergueu: “Abolição é golpe?”?
O negro é, na ordem da modernidade, o
O teatro tem sido um dos espaços
único de todos os humanos cuja carne
mais criativos (e contundentes) no
foi transformada em coisa e o espírito em
questionamento do racismo que atravessa
mercadoria – a cripta viva do capitalismo.
a sociedade brasileira. Nos últimos anos,
Em muitos países, assevera-se agora um
tornou-se também um espaço de irrupção
‘racismo sem raça’. No intuito de aprimorar
das tensões raciais que por décadas
a prática da discriminação, tornando a
foram encobertas por mitos como o da
raça conceptualmente impensável, faz-
“democracia racial”.
se com que cultura e religião tomem o lugar da ‘biologia’. Além disso, se no meio
E hoje, você acha que a abolição
dessa tormenta o negro conseguir de fato
já aconteceu?
sobreviver àqueles que o inventaram, e se,
A abolição é um projeto incompleto. Os
numa reviravolta de que a história guarda
efeitos desse projeto incompleto estão
segredo, toda a humanidade subalterna se
no extermínio da juventude negra, e
tornar negra, que riscos acarretaria um tal
esse é um projeto muito nítido. É o eixo
devir-negro do mundo a respeito da universal
fundamental de uma política de controle
promessa de liberdade e de igualdade
populacional, criada em simbiose com
de que o nome negro terá sido o signo
um aparato jurídico-policial que está
manifesto no decorrer do período moderno? (MBEMBE, 2014, p. 19-21)
“
fundamentado em dois pontos centrais. Um deles é o encarceramento em massa:
87
no comportamento social, que, de maneira geral, tenta negar a existência de racismo. Isso é o que a socióloga Vera Malaguti Batista define como medo branco: a ideia dessa conflitividade óbvia, de que um dia o país, que é majoritariamente negro, vai se insurgir, de que um dia haverá um grande o Brasil tem a quarta maior população
conflito social se “o morro descer”. E
carcerária do mundo e a única entre as
isso só pode ser evitado com uma dura e
quatro primeiras que continua a crescer.
mortífera política de controle. Daí a nitidez
Isso está baseado numa espécie de
do projeto de extermínio da juventude negra.
naturalização do racismo, seja na ideia de
O genocídio da juventude negra é real, mas
“suspeito cor padrão”, seja na ideia de que
é tratado como uma exceção, uma anomalia
negro/homem/pobre é igual a ser bandido.
– e não uma política (LIMA, 2016).
Essas são justificativas para uma atuação diferenciada tanto da polícia quanto da justiça no que diz respeito a negros e brancos no Brasil. Negros têm geralmente penas mais duras do que os brancos, pelos mesmos crimes cometidos. E o segundo ponto central? É o da “vida matável”. A polícia vive a lógica de uma guerra, seja contra o crime, seja contra as classes consideradas perigosas. Ou seja, a polícia combate um inimigo comum, com táticas de guerra e aparatos de segurança importados de outros países, principalmente dos que vivem guerras contra populações determinadas, como o estado de Israel. Uma vida matável é uma vida dispensável. Mas, como o racismo internalizado nas corporações policiais é sistêmico, é como se ser negro(a) fosse ser uma “espécie de sujeito a ser combatido”. E isso tem lastro 88
Epílogo
Antigamente
Quilombos,
“
Antigamente quilombos, hoje periferia O esquadrão zumbizando as origens, ‘z’africania’ Somos filhos de uma terra sagrada Qualquer periferia, qualquer quebrada é um pedaço d’África [...] E nos antigos mistérios da quilombologia, toda quebrada é quebrada na grande periafricania. Somos todos Zumbi. (MC GASPAR, 2007)
“
Hoje Periferia
Referências bibliográficas BIKO, S. Escrevo o que eu quero. São Paulo: Ática, 1990. CÉSAIRE, Aimé. Discursos sobre a negritude. Tradução Ana Maria Gini Madeira. Belo Horizonte: Nandyala, 2010. DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, n. 23, p. 100-122, 2007. FRENTE 3 DE FEVEREIRO. Futebol. Disponível em: <http://site. videobrasil.org.br/acervo/obras/obra/279750>. Acesso em: 3 out. 2016. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Recife: Imprensa Oficial, 1966. GILROY, Paul. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34, 2001. GONZALEZ, Lélia. A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social. Jornal Raça e Classe, Brasília, ano 2, n. 5, p. 2, nov./dez. 1988. HOOKS, Bel. Não sou eu uma Mulher: mulheres negras e feminismo. Tradução livre. Lisboa: Plataforma Gueto, 2014. Disponível em: <https://plataformagueto.files.wordpress.com/2014/12/nc3a3osou-eu-uma-mulher_traduzido.pdf>. Acesso em: 3 out. 2016. LIMA, Eugênio. Entrevista: Eugênio Lima. El País, 18 maio 2016. Entrevista concedida a Eliane Brum. Disponível em: <http://brasil. elpais.com/brasil/2016/05/16/opinion/1463408268_288480.html>. Acesso em: 3 out. 2016. LOPES, Nei. Enciclopédia da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
90
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014. MC Gaspar. Periafricania-brasileiroz. In: FRENTE 3 DE FEVEREIRO. Zumbi somos nós: diáspora afronética. São Paulo: Frente 3 de Fevereiro, 2007. Faixa 8. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=y__MJJifvFA>. Acesso em: 3 out. 2016. MOORE, Carlos. Prefácio. In: CÉSAIRE, Aimé. Discursos sobre a negritude. Belo Horizonte: Nandyala, 2010. MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebelião negra. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. NASCIMENTO, Abdias. Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da população afro-brasileira. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. PERSONALIDADES NEGRAS. Zumbi dos Palmares. Brasília: Fundação Cultural Palmares, s.d. Disponível em: <http://www. palmares.gov.br/?page_id=8192>. Acesso em: 2 out. 2016. SCHWARCZ, Lilia M. Nem preto nem branco: muito pelo contrário, cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012. SOW, Alpha et al. Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, 1977.
Eugênio Lima é ator, diretor de teatro, coreógrafo, DJ e pesquisador. É membro fundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, da Frente 3 de Fevereiro e da Banda Cora.
Maurinete Lima é poeta, doutoranda em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em sociologia e ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É membrofundadora da Frente 3 de Fevereiro.
Robson Santana da Silva, o Robinho Santana, é ilustrador, designer 3D e animador. Publica seus trabalhos em robinhosantana.tumblr.com
91
Abdias fala após a Marcha Zumbi Vive, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, em 1983 | imagem: Elisa Larkin Nascimento
92
93
Coração calejado por uma longa luta Abdias Nascimento (Discurso proferido em 20 de março de 1997. O texto foi extraído do site do Congresso Nacional. O título foi acrescido por nós.)
E
xmª Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio o meu pronunciamento. Numa bela tarde de sol, ao pisar na praça onde meninas e
meninos negros de Soweto haviam sido assassinados em 1976 por terem organizado pacificamente uma manifestação contra o sistema de ensino racista do apartheid, a emoção que me acometeu foi a mesma que sinto em cada dia 21 de março, Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. Acompanhado do ilustre jornalista e hoje Deputado Neiva Moreira, da jornalista Beatriz Bissio e da escritora Elisa Larkin Nascimento, visitamos, em 1994, o monumento erguido a essas vítimas, por ocasião da nossa estada em Johannesburg, representando nosso Partido, o PDT, na primeira reunião da Internacional Socialista em terras africanas. Pudemos testemunhar a mobilização febril e entusiasta de uma sociedade ao se livrar dos grilhões seculares do racismo e organizar-se para o exercício da democracia. Entretanto, para mim foi aquele o momento mais significante, pois a homenagem ao martírio daqueles meninos, no próprio instante da ascensão de Nelson Mandela ao Poder, simbolizou o protagonismo e a esperança dos negros, em todo o mundo, na sua justa resistência à opressão racista. Resistência a que, no Brasil e no exterior, dediquei a minha vida e as minhas energias. Hoje, subo a esta tribuna para dar continuidade a esta luta em defesa dos direitos dos afro-brasileiros, vitimizados de forma cruel e inquestionável pelo racismo, fonte maior das desigualdades neste país. Solto esta minha voz rouca para manter vivo e em estado de alerta o espírito de justiça desta Casa diante de um dos problemas mais graves a ameaçar hoje a construção de uma verdadeira 94
democracia em nosso País: a
Entretanto, muito mais
apenas um chegava ao porto
exclusão, no rol da cidadania, de
terrível que o holocausto do
de destino. Alguns morriam
uma maioria da nossa população.
povo judeu, perpetrado pelos
ainda nas longas caminhadas
nazistas alemães durante a
no território africano. Outros,
é o aniversário do massacre de
Segunda Guerra Mundial, e
nos postos de embarque. Um
Sharpeville, ocorrido há 27 anos
de proporções muito maiores,
número considerável era atirado
na África do Sul: tragédia tão
foi aquele que os europeus
ao mar devido a enfermidades,
hedionda que se transformou em
protagonizaram, desde o século
mortos de sede. Por fim, nos
símbolo da luta contra a opressão
XVI, na África e nas Américas.
mercados de escravos, já no
racial. Naquele dia, foram mortas
Nesse episódio, aniquilaram
Brasil, outros não resistiam
69 pessoas e feridas centenas
povos inteiros e submeteram
aos sofrimentos da travessia
de outras que protestavam
os remanescentes à condição
atlântica e descansavam nos
pacificamente contra a infame Lei
de objetos ou mercadorias
braços da morte. Somem-se
do Passe, pela qual os africanos
destituídos de sua condição
a isso milhões de habitantes
eram impedidos de circular
humana. Estimativas falam
das Américas exterminados
livremente em sua própria terra.
em 200 milhões de homens,
pelos conquistadores europeus,
O que nos traz aqui neste dia
Se hoje a África do Sul é
mulheres e crianças capturados
ibéricos sobretudo, configurando
um Estado democrático dirigido
e transformados em escravos.
um quadro aterrador,
por um homem extraordinário,
Sob grilhões, foram obrigados
freqüentemente mascarado sob
o grande Presidente Nelson
a atravessar o Atlântico, na
o idílico título de colonização
Mandela, encarcerado durante 27
maior migração forçada de
humanitária ou benevolente.
longos e angustiantes anos por
que se tem notícia. Para cada
se manter sempre fiel aos ideais
dez africanos aprisionados,
O racismo, Sr. Presidente e Srs. Senadores, não é um
de liberdade, justiça e igualdade, muito tempo ainda há de passar para que aquele país se recupere plenamente dos traumas causados por séculos de opressão racial e por décadas de apartheid. Esse foi o sistema de segregação racial mais hediondo de que se tem notícia, responsável pela produção de um Estado étnico comparável apenas à Alemanha hitlerista e definido pela ONU como crime
O dominador pretendia reduzir sua identidade à cor
de pele, feita sinônimo de condenação à inferioridade e
à condição de escravo
contra a humanidade. 95
problema apenas de cor da pele.
faziam cirurgias para a remoção
dessa imagem, às custas da
de cataratas oculares e a
na tentativa de desarticular um
falsificação da história africana, é
extração de tumores cerebrais?
grupo humano pela negação de
a história do eurocentrismo, que
A se fazer justiça, aliás, o título
sua identidade coletiva. Assim,
conseguiu erguê-la à condição de
de Pai da Medicina não deveria
ao rotular de “negros”, “kaffirs”,
verdade dita científica.
caber a Hipócrates, mas ao
“ladinos”, “pretos” ou “crioulos” os
Tempos atrás, ninguém
cientista e clínico egípcio
africanos e seus descendentes, o
duvidava que os africanos
Imhotep, que quase três mil
dominador pretendia arrancar-lhes
construíram as bases da própria
anos antes de Cristo praticava
a referência básica à sua condição
civilização ocidental. Heródoto,
virtualmente todas as técnicas
humana, simbolizada na referência
o Pai da História, descreveu
básicas da Medicina, com
à sua vida soberana na terra de
os egípcios como “negros de
profundo conhecimento de
origem; reduzir sua identidade
cabelos lanudos”. Eram eles os
assepsia, anestesia, hemostasia e
à cor da pele, feita sinônimo de
responsáveis por grande parte
cauterização, além de vacinação
condenação à inferioridade e à
do legado creditado à cultura
e farmacologia. Junte-se o
condição de escravo.
grega: das Artes e da Literatura à
domínio egípcio da Arquitetura,
Filosofia, Medicina e Matemática,
da Metalurgia, da Astronomia, a
de origem africana nas Américas
sem esquecer a invenção da
engenhosidade dos sistemas de
sofrem a falta de uma referência
escrita, por eles atribuída ao
irrigação, e se terá a razão do
histórica que lhes permita
deus Toth. A influência egípcia é
interesse dos gregos por esse
construir uma auto-imagem digna
assinalada pelos próprios gregos,
povo africano: aprender.
de respeito e auto-estima. A
seja com seu reconhecimento
identidade “negra” fica confinada
explícito, seja pelo interesse
século passado foram obrigados
às surradas categorias do
que sempre manifestaram em
a se lançar a uma árdua e infame
ritmo, do esporte, do vestuário
atravessar o Mediterrâneo para
tarefa “intelectual”: reduzir
e da culinária, e parece que a
estudar no Egito. Pitágoras e
a importância das matrizes
atividade intelectual, política,
Euclides, por exemplo, passaram
egípcias na formação da
econômica, técnica e tecnológica
décadas aprendendo Matemática
cultura grega e descaracterizar
não está a seu alcance. Assim,
no Egito, enquanto a famosa
a africanidade dos egípcios,
a criança de origem africana
República de Platão - que odiava
valendo-se de interpretações
tende a não identificá-las como
a democracia ateniense - nada
que beiram o grotesco em
áreas de profissionalização ou
mais é que uma idealização da
seu afã de desmentir o óbvio.
de aspiração, reproduzindo ela
hierarquizada sociedade egípcia.
Criou-se, desse modo, a raça
Até hoje as comunidades
própria a imagem excludente
96
A crônica da construção
Sua natureza mais profunda reside
Como divorciar a identidade
Os ideólogos arianistas do
vermelho-amarronzada, ou
implícita na versão da história que
africana da tecnologia, se, há
marrom-avermelhada, como
lhe é passada.
4.600 anos, médicos egípcios
se construções terminológicas
O linchamento físico que sofriam os afroamericanos nos Estados Unidos foi substituído no Brasil por um linchamento cívico, mais sutil e eficaz
quintos de existência do Brasil constituiu mais de dois terços de sua população, e que ainda hoje compõe uma maioria minorizada. Até hoje, nossos livros didáticos contam balelas como aquela de que o africano aceitava a condição escrava. Ora, a história da escravidão no Brasil é a crônica da constante e multifacetada resistência dos africanos. Individual ou coletiva,
fossem capazes de mascarar
rotas comerciais, de intercâmbio
essa recusa incluía tudo, desde o
para sempre a natureza das
e comunicação internacional, a
suicídio até a luta organizada nos
verdades históricas.
África jamais se reduziu ao viveiro
quilombos ou em insurreições
de povos isolados, perdidos
como as Revoltas dos Malês.
A civilização egípcia teve suas origens na África Central
na selva e ocupados somente
e estendeu sua influência aos
com a caça e a pesca, retratado
como “valhacouto de negros
quatro cantos do Continente.
pelo eurocentrismo. No século
fugidos”. Mais que equívoco, é
Todas as regiões da África
XII, por exemplo, Estados da
uma agressão à verdade, pois
foram bafejadas, em algum
África Oriental exportavam
o quilombo foi uma singular
momento da sua história, pelos
ouro e elefantes para a China,
experiência societária e humana,
ventos autóctones da civilização,
utilizando embarcações bem mais
reconstruindo no Novo Mundo
produzindo uma variedade
sofisticadas do que as caravelas
a vida soberana dos africanos
imensa de culturas dotadas de
que, mais tarde, transportariam
em sua terra de origem. O maior
variados graus de conhecimento
os portugueses em suas jornadas
quilombo do Brasil, a República
e sofisticação tecnológica.
de “descobrimento”.
de Palmares, foi o primeiro
Historiadores e antropólogos
Sr. Presidente, Srªs e Srs.
O Aurélio nos dá quilombo
Estado livre nas Américas após a
honestos foram obrigados
Senadores, quando as nossas
a admitir o desenvolvimento
escolas ensinam apenas que
Início do verdadeiro
intelectual dos africanos em
o negro veio da África como
movimento abolicionista neste
diversas áreas.
escravo, cometem e perpetuam
país, Palmares durou mais de um
o crime de roubar de nossas
século, resistindo à repressão
Srs. Senadores, palco de uma
crianças a sua própria história,
das forças militares e praticando
movimentação constante em
pois a história da África é o retrato
uma agricultura mais sofisticada
busca de novos espaços, de
do povo que durante quatro
que as fazendas da região, cujos
Sr. Presidente, Srªs e
invasão colonial.
97
proprietários desafiavam as leis
Palmares existiu, tem sido local
reforma agrária para garantir
da Colônia para trocar armas por
de repetidas peregrinações, para
aos recém-libertos condições
seus produtos agrícolas.
render homenagens a Zumbi
de sobrevivência. O espectro
e a seus comandados. Graças
da cidadania afro-brasileira
maior exército reunido no
ao esforço e à persistência dos
assustou tanto as elites, que
Brasil antes da Independência,
irmãos e irmãs afro-brasileiros,
essas aboliram também o voto
Palmares legou-nos aquele que
Palmares começa a emergir
do analfabeto, até então exercido
não é apenas o maior herói negro,
como fonte inspiradora de todos
por iletrados donos de posses
mas o maior herói brasileiro:
os brasileiros envolvidos com a
coloniais.
Zumbi, o general e líder político
causa da justiça, da igualdade
que soube conduzir seu povo
e da liberdade. Esperamos
14 de maio, os afro-brasileiros
na mais bela e inspiradora
agora que o Estado brasileiro,
acordaram para uma realidade
jornada pela liberdade jamais
representado pela Fundação
de discriminação, injustiça,
empreendida neste País.
Cultural Palmares, assuma sua
humilhação e opressão que
devida responsabilidade no
se tem mantido, sem muita
de Palmares que ele se espalhou
projeto de desapropriação e
alteração, nos quase 110 anos
por todos os cantos desta
reflorestamento da Serra da
que nos separam da Abolição.
terra que um dia seria o Brasil.
Barriga, e na concretização do
Longe de encontrar uma
Quilombos surgiram em toda parte,
Pólo de Libertação e Monumento
sociedade receptiva à sua
assustando os escravocratas,
a Zumbi naquele local, projetado
mão-de-obra, agora livre, os
alimentando o sonho libertário
no convênio já firmado com o
descendentes de africanos
dos africanos escravizados e seus
Memorial Zumbi.
tiveram de enfrentar barreiras de
Destruído em 1694 pelo
Tão inspirador foi o exemplo
descendentes, e contribuindo de
toda ordem às suas perspectivas
forma decisiva para a derrocada
de 1888, a chamada Lei Áurea,
de uma vida digna no País de
final da instituição escravista. A
a Princesa Isabel cumpria um
que foram seus antepassados os
força da mulher negra sintetiza-
cronograma que visava colocar o
principais construtores.
se na figura de heroínas como
Brasil em condições de participar
Dandara ou Luísa Mahin, lideranças
do sistema econômico mundial
eram vítimas os afro-americanos
femininas que demonstram a
transformado pela Revolução
no sul dos Estados Unidos foi
determinação da mulher africana
Industrial. O principal objetivo
substituído no Brasil por um
em sua luta pela liberdade.
não foi absolutamente beneficiar
linchamento cívico, muito mais
os negros, o que explica ter sido
sutil e eficaz como instrumento
de paradigma aos afro-brasileiros
rejeitado o projeto do eminente
de dominação. Mas o espírito de
identificados na luta contra a
engenheiro negro André
resistência dos afro-brasileiros
discriminação racial. Desde
Rebouças, que previa realizar-
continuava vivo. Organizavam-
1980, a Serra da Barriga, onde
se, junto com a Abolição, uma
se em torno das tradicionais
Ainda hoje Palmares serve
98
Ao assinar, a 13 de maio
Após a imensa ressaca do
O linchamento físico de que
irmandades religiosas e de
Essa teoria fazia parte de
como crime de lesa-humanidade.
associações e clubes voltados
uma vertente ideológica que
Ao lado do protagonismo artístico
para a diversão e o lazer. Nasce,
compreende José Vasconcellos
teatral, a atuação do Teatro
em 1915, a imprensa negra de
e sua raza cósmica, no México,
Experimental, nesse campo
São Paulo e, no início da década
a teoria do café con leche,
sociopolítico, continuou ao longo
de 30, a Frente Negra Brasileira,
na Venezuela, e as idéias do
de toda a sua trajetória.
organização em que praticamente herói cubano José Martí. Em
Os anos 50 e 60 foram
iniciei minha militância. A Frente
todas elas, a ênfase está,
sacudidos por lutas travadas
Negra transformou-se em partido
declaradamente ou não, na
na África, pela independência
político e foi extinta pelo golpe do
assimilação dos negros e índios à
dos regimes coloniais, e, nos
Estado Novo, em 1937.
cultura branca européia e no seu
Estados Unidos, pela garantia dos
desaparecimento físico por meio
direitos civis. Lutas sangrentas
retornaria à cena política com a
da miscigenação, aqui encarada
revelaram a face altiva de um
redemocratização de 1945, que
sob fortes tinturas eugênicas.
povo que não aceita a condição
A Frente Negra não
propiciou a volta dos antigos
Finda a Segunda Guerra,
de inferioridade.
partidos políticos, porque
em 1945, surgem com a
a década de 30 assistira à
abertura política no Brasil novas
Senadores, geradora de uma
elaboração do mais sofisticado
organizações e iniciativas com
profusão de heróis militares
mecanismo de dominação racial
vistas a combater a discriminação
e intelectuais engajados, e
que o mundo já conheceu,
racial. Em 1944, fundei, no Rio de
de gente que unia as duas
mais terrível que a segregação
Janeiro, o Teatro Experimental
qualidades, como Agostinho
oficial do apartheid na África
do Negro, cujo marco histórico
Neto, Samora Machel ou Amilcar
do Sul, ou do Jim Crow no sul
foi o casamento da militância
Cabral, a luta de libertação
dos Estados Unidos. Refiro-me
no campo artístico com o
africana revitalizava no Brasil
ao mito da “democracia racial”,
compromisso na luta política. Até
as tradições de resistência que
segundo o qual as relações
aquele momento, as organizações
aqui se implantaram desde a
raciais no Brasil teriam uma
negras propunham um combate à
chegada dos primeiros africanos
dinâmica diferente daquela
discriminação racial sem vinculá-
escravizados. Assim, assistimos,
vigente em outros países. Aqui,
lo ao resgate da identidade e dos
no início dos anos 70, à
negros e brancos conviveriam
valores culturais específicos dos
reorganização dessa resistência,
em quase total harmonia,
afro-brasileiros. O TEN reuniu
com o surgimento do Movimento
havendo pouco espaço para o
os dois elencos de objetivos,
Negro contemporâneo, que hoje
racismo e a discriminação, que,
propondo, já em 1946, que a
se faz presente em todas as
por sinal, desapareceriam de
Assembléia Nacional Constituinte
regiões e cidades importantes
morte natural, com o tempo, em
aprovasse um dispositivo
do País, constituindo-se numa
decorrência da miscigenação.
constitucional definindo o racismo
verdadeira malha nacional
Sr. Presidente, Srªs e Srs.
99
No papel somos cidadãos. De fato, a escravidão para nós
não terminou
agora nos surpreende a inédita decisão do Tribunal Superior do Trabalho, concedendo ganho de causa a um funcionário negro da Eletrosul que havia sido demitido por racismo. Os homens brancos ganham o dobro da renda dos negros e quase quatro vezes o que ganha a mulher negra. Essa mesma mulher negra, que ocupa o último
de combate ao racismo e à
de seleção, quando, nos anúncios
escalão da pirâmide social, é
discriminação racial.
de jornais e nas exigências
chefe de família em muito maior
de emprego, as empresas se
número, configurando um quadro
agora começa a reconhecer
ocultam na famigerada exigência
de absoluta destituição.
a existência do racismo e da
da “boa aparência”, senha ou
discriminação, o Movimento
código da política racista de
o acesso dos afro-brasileiros é
tem desempenhado um papel
rejeição. Quando um afro-
muito inferior ao dos brancos.
fundamental: pressionar o
brasileiro consegue furar muralha,
Da população brasileira, 18% são
Estado e a sociedade civil a
entra em jogo outro processo
analfabetos, mas entre os afro-
responderem ao clamor da
discriminatório: desempenhando
brasileiros essa porcentagem
população afro-brasileira. Ao
as mesmas funções que um
sobe a trinta. No outro extremo,
mesmo tempo, discute e propõe
trabalhador branco, receberá
4,2% dos brancos alcançam o
medidas e políticas públicas para
quase sempre remuneração
ensino superior, contra apenas
as relações raciais em plano
bastante inferior. Se, ainda
1,4% dos afro-brasileiros.
nacional e internacional. Nesse
assim, esse negro permanecer
último campo, propõe, cobra e
no mercado de trabalho, terá
estabelece que a saúde é direito
monitora as ações do Governo
de conviver com mecanismos
de todos e dever do Estado. Para
brasileiro em suas relações com
de avaliação de desempenho e
a comunidade afro-brasileira,
os países africanos, denunciando
critérios de promoção utilizados
sobretudo suas mulheres, essa
as tentativas de nossos
freqüentemente para barrar-
é uma questão de vida ou morte.
colonialistas de segunda mão.
lhe a ascensão funcional e
Sua expectativa de vida é inferior
Numa Nação que só
No mercado de trabalho
100
Em todos os níveis do ensino,
Nossa Constituição
salarial. Após um século de
em 7,5 anos à do branco, e sua
nacional, a discriminação impera
vigência desse quadro no País da
taxa de mortalidade infantil é
nos setores da produção e de
“democracia racial” com toda a
de 105 em cada mil crianças
serviços. Começa no processo
sua legislação dita anti-racista, só
nascidas, contra 77 em cada
mil crianças brancas nascidas.
meninas afro-brasileiras estão
reivindicações, a qual solicito,
Até o útero da mulher negra
sendo objeto de uma espécie
Sr. Presidente, seja transcrita na
é considerado descartável: a
de “marketing da cor” que as
íntegra como parte deste meu
elevada taxa de histerectomias e
considera “meninas de sangue
discurso. Nela, afirmam: “A terra
esterilizações entre elas retrata
quente”, preferidas pelo nefasto
que temos hoje foi conquistada
uma verdadeira mutilação em
negócio da prostituição infantil e
por nossos antepassados
massa. A anemia falciforme,
do turismo sexual.
com muito sacrifício e luta. E,
doença geneticamente específica
Na Constituição de 1988,
passados 107 anos do fim oficial
à população de origem africana,
o art. 68 das Disposições
da escravidão, essas terras
clama por uma efetiva atenção
Transitórias estabelece como
continuam sem o reconhecimento
das autoridades da saúde.
dever do Estado a demarcação
legal do Estado. Estamos, assim,
das terras remanescentes
expostos à sanha criminosa da
problemas do Brasil, incide em
de quilombos. Em fase de
grilagem dos brancos, que são,
dobro sobre a população de
implementação e enfrentando
na atualidade, os novos senhores
origem africana. Nossos meninos
os obstáculos interpostos pelos
de tão triste memória. No papel
e meninas de rua, covardemente
inúmeros interesses em jogo,
somos cidadãos. De fato, a
assassinados, são na grande
o art. 68 é objeto de especial
escravidão para nós não terminou.
maioria negros. Ainda vale ao pé
atenção do Movimento Negro.
E nenhum governante da Colônia,
da letra o ditado: “Negro parado
Envolvidos nesse processo
do Império e da República
é suspeito, negro correndo é
de demarcação se alinham o
reconheceu nossos direitos”.
ladrão”. Em 1988, quase 11%
Ministério da Justiça, o Ministério
dos afro-brasileiros sofreram
da Reforma Agrária e, sobretudo,
autênticos quilombolas
agressão policial, contra 3,9% da
o Ministério da Cultura, por
contemporâneos representa
população branca. Nas prisões, o
intermédio da Fundação Cultural
um fato histórico de grande
número de negros encarcerados
Palmares. Tais ministérios têm a
significação, comparável
é sempre maior que o dos
responsabilidade, por mandato
ao Movimento dos Sem-
brancos, não por praticarem
constitucional, de implementar a
Terra, porém destituído de
crimes em maior proporção, mas
demarcação dessas terras.
semelhante repercussão
A violência, um dos grandes
por serem vitimados por uma
As comunidades
A organização desses
nacional e internacional junto
justiça racista e pela falta de
remanescentes de quilombos
aos setores que defendem os
meios para uma defesa jurídica
estão organizadas e, no seu
direitos humanos. Por que esse
capaz de encurtar ou encerrar
primeiro Encontro Nacional,
silêncio? A situação dessas
suas penas.
realizado em Brasília, em 20 de
comunidades clama por uma
novembro de 1995, dirigiram ao
atenção imediata, respaldada em
era o “melhor produto de
Presidente Fernando Henrique
dispositivo constitucional, mas
exportação” brasileiro; hoje, as
Cardoso uma carta com suas
cai nos ouvidos ensurdecidos de
Há poucos anos, a mulata
101
uma opinião pública insensível
a rede democrática nacional
criada no Brasil, objetivando
às demandas coletivas do povo
contra o racismo em nosso
a formulação de políticas
afro-descendente.
País. Relevante e exemplar
públicas capazes de atender às
A evasão escolar entre
nesse contexto é o inédito
necessidades específicas dos
crianças negras, a agressão
reconhecimento oficial do
descendentes de africanos neste
às religiões afro-brasileiras
racismo por um Presidente da
País. Vêm surgindo também, em
por grupos autodenominados
República, e a instalação de um
vários Estados e Municípios,
cristãos, a criminalização da
Grupo de Trabalho Interministerial
assessorias e órgãos de caráter
cor negra pela polícia e pelos
destinado a propor políticas
consultivo, a começar pelo
tribunais, a perseguição social
públicas de combate ao racismo
Conselho de Participação e
e policial à juventude negra
e de valorização da população
Desenvolvimento da Comunidade
em seus espaços de lazer, a
afro-brasileira. A criação em
Negra de São Paulo, criado em
constante depreciação pela
1988 da Fundação Cultural
1984 pelo então Governador
mídia de nossa identidade, de
Palmares, órgão do Ministério da
Franco Montoro.
nossas tradições e de nossa
Cultura, e a inscrição amanhã,
Srªs Senadoras e Srs.
imagem, o veto tácito aos afro-
no próprio dia 21 de março, de
Senadores, vem ganhando
brasileiros em certas posições
Zumbi dos Palmares no Panteão
força, nos últimos anos, a
de prestígio, poder e visibilidade:
dos Heróis Nacionais são
reivindicação de medidas
eis alguns dos problemas
também frutos dessa mesma
destinadas a reduzir a enorme
enfrentados cotidianamente pela intervenção esclarecida. Esses três fatos somam-se ao processo população afro-brasileira e que
e brancos nesta sociedade,
compõem a extensa agenda de
cumulativo de conquista de
matéria sobre a qual pretendo
luta do Movimento Negro, cuja
órgãos específicos de gestão
apresentar projeto específico.
capacidade de mobilização foi
administrativa e de assessoria
Tais medidas têm sido adotadas
testada e aprovada na Marcha
em diferentes contextos
em países tão diversos como
Zumbi dos Palmares contra o
governamentais. Em nível
Índia, China, Canadá, Nigéria,
Racismo, pela Cidadania e a
estadual, destaca-se a iniciativa
Indonésia, Israel e as antigas
Vida, realizada em Brasília, no
pioneira do então Governador
Iugoslávia e União Soviética.
dia 20 de novembro de 1995,
Leonel Brizola, criando, em 1991,
No caso norte-americano, vêm
com a participação de trinta mil
a Secretaria Extraordinária
sendo consideradas um dos
militantes e simpatizantes.
de Defesa e Promoção das
fatores que mais contribuíram
Populações Afro-brasileiras
para a sensível melhoria das
Diversos são os indícios de
mudança na sociedade brasileira, (Seafro), da qual tive a honra de decorrentes da intervenção das ser titular. centenas de organizações e personalidades que compõem 102
distância que separa negros
Trata-se da única agência de primeiro escalão até hoje
condições de vida da população afro-americana, observada nas três últimas décadas, sem falar nos benefícios proporcionados
às mulheres de maneira geral.
da Unesco, promete constituir
Fundação Cultural Palmares,
As medidas adotadas não se
mais uma instância de afirmação
Angela da Silva; do Professor
restringem a cotas, embora,
da magnitude do crime
Eduardo de Oliveira, Presidente
em alguns casos, essas sejam
perpetrado contra a África e
do Congresso Nacional Afro-
necessárias. Abrangem desde
seus filhos na forma do tráfico
brasileiro; e da nossa querida
ações legislativas em âmbito
mercantil escravista, bem como
amiga e dirigente do movimento
federal, estadual e municipal até a
da contribuição africana à
do Rio Grande do Sul, Vera
política de pessoal das empresas
civilização universal.
Triunfo, que sempre triunfa nas
privadas, que as vêm adotando
Todos esses fatos novos têm
por terem descoberto que fazê-
realimentado de esperança meu
lo é lucrativo, pois aumenta a
coração calejado pelos rigores
sua flexibilidade diante de um
de uma longa luta sem quartel.
mercado globalizado.
Conclamo todos os verdadeiros
No Brasil, algumas
21 de março, o desafio de fazer
Negro já vêm implementando
valer os princípios constitucionais
ações dessa natureza na área
de justiça e cidadania,
da educação, com a criação de
indispensáveis para que o Brasil,
cursos pré-vestibulares para
maior país negro fora da África
alunos negros e carentes, como
e maior beneficiário da riqueza
tem acontecido na Baixada
humana da diáspora forçada do
Fluminense, em São Paulo e na
povo desse continente, rompa o
Bahia. Ao mesmo tempo, alguns
Terceiro Milênio tendo ao menos
setores do aparelho de Estado
encaminhado a solução de sua
e do mundo empresarial têm-se
questão racial. A resolução
mostrado mais abertos a uma
dessa questão é o nó górdio
discussão séria a respeito desse
a ser cortado, isto é, o fator
tema, o que nos leva a crer que
indispensável para que este País
novos projetos a esse respeito
venha a ocupar o lugar que de
venham a ter melhor destino
direito lhe cabe no concerto das
do que aquele que apresentei à
nações civilizadas. quero agradecer a presença do
pelo Plenário.
representante da Embaixada de
o Projeto Rota dos Escravos,
Muito obrigado, Sr. Presidente.
Sr. Presidente, ao terminar,
jamais chegou a ser apreciado Em âmbito internacional,
negros no Rio Grande do Sul.
democratas a assumir, neste
organizações do Movimento
Câmara Federal em 1983, e que
causas que esposa em favor dos
Angola, Conselheiro Quintino Faria; do representante da 103
EXPEDIENTE coordenação editorial Carlos Costa edição Duanne Ribeiro conselho editorial Ana de Fátima Sousa, Ana Estaregui, Claudiney Ferreira, Elisa Larkin Nascimento, Fernanda Castello Branco, Icaro Mello, Kety Fernandes Nassar, Paula Bertola, Roberta Roque, Valéria Toloi e Vinícius Rodrigues coordenação de design e projeto gráfico Jader Rosa diagramação Liane Iwahashi produção editorial Luciana Araripe supervisão de revisão Polyana Lima revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas) colaboraram nesta publicação Conceição Freitas, Elisa Larkin Nascimento, Eugênio Lima, Iara Rosa, Lindinalva Barbosa, Maurinete Lima, Renata Felinto, Robinho Santana, Roger Cipó e Tulio Custódio FICHA TÉCNICA Pesquisa, concepção, curadoria e realização Itaú Cultural, Ipeafro, Elisa Larkin Nascimento e Vinícius Simões Projeto expográfico Vinícius Simões (terceirizado) Pesquisa Marcos Florence Martins Santos (terceirizado) ITAÚ CULTURAL Presidente Milú Villela Diretor-superintendente Eduardo Saron Superintendente administrativo Sérgio M. Miyazaki NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA Gerência Claudiney Ferreira Coordenação de conteúdo audiovisual Kety Fernandes Nassar Pesquisa e produção-executiva Paula Bertola e Roberta Roque Produção audiovisual Paula Bertola Captação de imagem Richner Allan e Gabriela Barreto (terceirizada) Edição Richner Allan Som direto Tomás Franco (terceirizado) Paisagem sonora Renato Gama NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Valéria Toloi Coordenação de projetos especiais Tayná Menezes
Pesquisa e produção-executiva Ana Estaregui Coordenação de atendimento educativo Tatiana Prado Equipe Amanda Freitas, Caroline Faro, Danilo Fox, Thays Heleno, Victor Soriano e Vinicius Magnun Estagiários Alan Ximendes, Aline Rocha, Bianca Ferreira, Bruna Caroline Ferreira, Bruna de Oliveira, Danielle de Oliveira, Edson Bismark, Gabriela Lima, Giovani Monaco, Giovanna Nardini, Guilherme Wichert, Juliane Lima, Kaliane Miranda, Letícia Sato, Lidiany Shuede, Luan Lima Silva, Lucas Balioes, Marcus Ecclissi, Maria Luiza Kazi, Marina Moço, Mario Rezende, Paloma Xavier, Pamela Camargo, Pamela Mezadi, Renan Ortega, Sidnei Santos, Silas de Almeida, Thais Gonçalves, Vinicius Escócia, Vitor Augusto da Cruz, Wellington Rodrigues e William Miranda NÚCLEO DE ENCICLOPÉDIA Gerência Tânia Rodrigues Pesquisa e produção-executiva Icaro Mello NÚCLEO DE PRODUÇÃO DE EVENTOS Gerência Henrique Idoeta Soares Coordenação Edvaldo Inácio Silva e Vinícius Ramos Produção Carmen Fajardo, Daniel Suares (terceirizado), Érica Pedrosa, Maria Zelada (terceirizada), Samara Fantin e Wanderley Bispo NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação de conteúdo Carlos Costa Produção e edição de conteúdo Duanne Ribeiro e Fernanda Castello Branco Redes sociais Renato Corch Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão de texto Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas) Coordenação de design Jader Rosa Produção editorial Luciana Araripe Comunicação visual Jader Rosa e Estúdio Claraboia (terceirizado) Edição de fotografia André Seiti Coordenação de eventos e comunicação estratégica Melissa Contessoto Produção e relacionamento Simoni Barbiellini e Vanessa Golau Olvera
NÚCLEO CENTRO DE MEMÓRIA, DOCUMENTAÇÃO E REFERÊNCIA Gerência Fernando Araujo Coordenação Eneida Labaki Digitalização de fotos e documentos Laerte Fernandes Agradecimentos Abdias do Nascimento Filho (Bida), Aline de Oliveira Costa, Anani Dzidzienyo, Ângelo Flávio, Arany Santana, Carlos Henrique Bemfica, Carlos Moore, Carmen Luz, Chester Higgins, Jr., Clícea Maria Augusto de Miranda, Daniel I. Larkin, Djalma Corrêa, Domício Proença, Douglas Belchior, Elisa Larkin Nascimento, Empresa Brasil de Comunicação (EBC/RJ), Evelyn Beatriz Lucena Machado, Genésio Rodrigues Nogueira, Giba Jet, Haroldo Costa, Iara Rosa, Ipeafro, Iza Costa, Jhony Guima, João Jorge Rodrigues dos Santos, Jorge Lucas Maia, Kwesi Dzidzienyo, Léa Garcia, Luiz Carlos Gá, Luiz Carlos Semog, Luiz Paulo Lima, Mãe Beata de Yemonjá, Márcio Macedo (Kibe), Margaret J. Larkin, Maria Amanda Emiliano de Freitas, Marina Santos de Miranda, Michelle Tito, Nadia Prestes, Nelson Maca, Olympio Serra, Paulo Rogério Nunes, Renan Ferreira da Silva, Renato Cecílio, Romolo Mazzoccante (TV Senado), Ruth de Souza, Ruth Pinheiro, Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial (SMPIR), em especial Mauricio Pestana e Marister Santos, Sergio Oliveira, Solange Santos, Tatiane de Oliveira Lima, Tita Reis e Tulio Custódio --O Itaú Cultural realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens/obras fotográficas aqui publicadas, além das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br.
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quinta 17 de novembro a domingo 15 de janeiro terça a sexta 9h às 20h [permanência até as 20h30] sábado, domingo e feriado 11h às 20h piso 1 #ocupacaoabdias
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