REVISTA
ITAÚ CULTURAL
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O que é isto?
O curador Paulo Sergio Duarte aponta formas de entender a arte contemporânea.
Leia também Invasão e estranhamento em ensaio fotográfico. Tadeu Chiarelli situa três obras no centro da produção contemporânea. De costas para o público: instituições e seus programas de educação para arte.
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itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias
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Continuum ItaĂş Cultural
A arte contemporânea invadiu a vida A arte contemporânea brasileira tem mais de 40 anos e ainda causa estranhamento. É comum ouvir frases de espanto, como O que é isso? ou Isso é arte?, quando se visita uma mostra ou um museu atualmente. A Continuum Itaú Cultural procurou entender a razão desse sentimento. Pistas foram dadas em reportagens, nas falas de críticos, historiadores e artistas. O curador Paulo Sergio Duarte, em entrevista especial, acredita que a dificuldade das pessoas venha da falta de experiência: “Quem vai a uma exposição uma vez por ano não entende de arte. A repetição é fundamental”. Outro curador, Tadeu Chiarelli, em resenha, pontua: “Muito daquilo que se observa não possui conexão com o que foi ensinado como arte”. Com mais páginas e novo visual, a revista se reformula e passa a ter periodicidade bimestral. Foram criadas seções fixas como Arena, com abordagens antagônicas para a mesma questão: o professor Norval Baitello Júnior e a crítica Angélica de Moraes debatem a morte da arte. Uma Fotorreportagem também integra as seções permanentes – a fotógrafa Luana Fischer mostra o estranhamento de várias pessoas ao ter sua casa invadida por obras contemporâneas. Ficção trará sempre textos inovadores na forma ou no conteúdo, como o conto do escritor gaúcho Paulo Scott sobre uma artista inexistente. A cena latina passa a ter atenção constante, com a seção Mirada, que apresenta artigo do crítico chileno Justo Pastor. O espaço do leitor também se amplia. Mande seus trabalhos artísticos, reflexivos e literários, que poderão ser publicados na Área Livre – veja as regras em Convocação e participe! A versão online da revista passa a disponibilizar a cada semana conteúdos exclusivos que revelam outras
ilustração: Gabriel Bitar
possibilidades para o tema – acesse itaucultural.org.br/continuum.
Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Angélica de Moraes, Augusto Paim, Carlos Costa, Cia de Foto, Frederico Ponzio, Gabriel Bitar, Justo Pastor, Laerth Motta, Liane Iwahashi, Luana Fischer, Luciana Veras, Lúcio Carvalho, Mariana Coan, Marcelo Moscheta, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Norval Baitello Júnior, Paulo Scott, Renato Izabela, Rodrigo Silveira, Tadeu Chiarelli, Tatiana Diniz On-line Coletivo Bijari, Guy Amado, Régine Debatty, Solange Monteiro Agradecimentos aos participantes da fotorreportagem, Marcelo Monzani, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Projeto Hélio Oiticica, Romulo Fialdini
capa O estranho na arte e na vida | imagem: Cia de Foto
ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007) Tiragem 15 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento continuum@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554 Participe com suas ideias Esta publicação segue as normas de Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009
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Entrevista 18. “A arte aponta aquilo que falta em você” O curador Paulo Sergio Duarte fala sobre a experiência da fruição da arte, necessária à sua compreensão, e do lugar da produção contemporânea brasileira no cenário globalizado.
Reportagem 6. Quem tem medo da arte contemporânea?
56. Um lugar para as velhas novas mídias
Do desconforto à perplexidade, da repulsa ao encanto: entenda os motivos por que essa arte é capaz de despertar os mais variados sentimentos no espectador.
Direto da Alemanha, saiba por que um dos mais famosos centros de pesquisa e tecnologia do mundo se preocupa em cultivar cactos.
48. A cidade como tela
60. DJs da modernidade em movimento
A arte de rua conferiu uma nova cara ao ambiente urbano. E tornou a discussão sobre a apropriação do espaço público mais atual do que nunca.
Nada se cria, tudo se recria. O artista contemporâneo é capaz de realizar obras que não sejam releituras do que já foi feito ou é apenas um editor de conteúdo?
64. (Quase) ao alcance de todos De costas para o mundo: a arte contemporânea ignorou seu público ou foi o público que a deixou de lado?
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Resenha
Fotorreportagem
12. Considerações sobre arte contemporânea e instituições O crítico e curador Tadeu Chiarelli analisa o porquê de três trabalhos serem fundamentais ao cenário contemporâneo brasileiro.
34. A invasão Imagens flagram reações de pessoas ao ter a casa invadida por obras contemporâneas.
On-Line
46. Prazeres contemporâneos Livros, filmes, música... As dicas de Continuum para pensar de forma atual.
24. Os sentidos e as palavras da contemporaneidade Confira matérias exclusivas.
Arena 32. Um dia irá acabar? O professor universitário Norval Baitello Jr. e a crítica Angélica de Moraes debatem se a arte está com seus dias contados.
Ficção 42. Distância e explicação Um artista inexistente é o centro da narrativa do escritor – existente – Paulo Scott.
Balaio
Mirada 54. Arte chilena, arte de falência O crítico chileno Justo Pastor analisa o estado da produção contemporânea em seu país.
Espaço do Leitor 26. Convocação Você também pode ser autor. 28. Área Livre A tradicional seção da revista agora é sua. Mande seus contos, ilustrações, poemas, fotos – sempre de acordo com o tema do mês.
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Obra de técnica mista Paisagem 1, de Álvaro Seixas, 2004 | foto: arquivo do artista
reportagem
Quem tem medo da arte contemporânea? Conceito, ideia, referência, hibridização, termos que entraram em definitivo no vocabulário da arte, pedem ao espectador outra forma de ver e pensar a produção atual. Por Luciana Veras Quem tem medo da arte contemporânea? Se por um lado essa pergunta remete a algo capaz de provocar pavor, por outro retrata um sentimento comum quando o assunto é arte. Não por acaso, tal indagação dá título a um livro publicado em 2007 pela Fundação Joaquim Nabuco, do Recife, com base em uma série de aulas ministradas pelo crítico de arte e curador Fernando Cocchiarale. E por que a arte contemporânea suscita temores? Porque, como descreve o autor, “habituamo-nos a pensar que a arte é uma coisa muito diferente da vida, dela separada pela moldura e pelo pedestal e, aliás, a arte foi mesmo isso durante a maior parte de sua história”. Assim foi no Renascimento, no século XVIII, e também até meados do século XX, antes de o planeta assistir ao ocaso de sua própria ideia de mundo com guerras e novas tecnologias de produção e comunicação. Dessa forma, continua Cocchiarale, “a ideia de uma arte que se confunda com a vida é difícil de assimilar porque os nosso repertório ainda é informado por muitos traços conservadores”. Uma primeira conclusão seria, portanto, que a arte contemporânea é a que se produz nos dias atuais, que é impossível dissociá-la das sensações e descobertas que torpedeiam o mundo ou mesmo da existência cotidiana de um cidadão. Mas é viável demarcar fronteiras cronológicas para seu surgimento. “De um ponto de vista consagrado em termos historiográficos, é a arte feita a partir do início da década de 1960, quando as certezas e utopias que definiam o projeto da arte moderna se esgotam, e outras possibilidades (arte pop, minimalismo, arte conceitual) se impõem como alternativas. É razoável, ainda, defini-la como a arte que se debruça sobre as questões de seu tempo e que problematiza o mundo em que vivemos”, sustenta o pesquisador, crítico e curador Moacir dos Anjos, responsável pela curadoria do Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2007. Pioneirismo e ambivalência Por “problematizar”, é saudável entender não uma postura de combate às instituições, mas um tipo de produção que busca na invenção formal uma maneira diferente de analisar tudo o que a cerca. A arte contemporânea mete medo porque, ao se deparar com algumas de suas obras, o público vê suas convenções embaralhadas. A fruição desses trabalhos pode ser frustrante porque o observador se põe em dúvida, ainda que em breves segundos, sobre o que está à sua frente.
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Foi assim em 1917, quando Marcel Duchamp submeteu Fonte a um concurso nos Estados Unidos. A obra consistia num urinol branco, com a assinatura R. Mutt, ou seja, um objeto trazido da esfera da vida cotidiana para o circuito de museus e galerias. Nascia o ready-
prenunciou uma época. O contemporâneo na arte não diz respeito a uma temporalidade específica, e sim a uma espécie de diálogo com o espírito de uma época. Nem tudo o que se faz hoje, por exemplo, é arte contemporânea. Trinta anos depois de Duchamp,
Contemporâneo é o diálogo com o espírito de uma época. Nem tudo o que se faz hoje é arte contemporânea. made, e a ousadia do artista causou furor e o colocou em um patamar de destaque em relação à arte que seria concebida e concretizada em seguida. “Era um visionário que
houve a bomba em Hiroshima e o mundo perdeu a inocência. Vieram a crise dos papéis sociais, dos lugares das coisas e uma insegurança na classificação das obras de arte. Duchamp antecipa isso ao assinar o mictório, dando ao artista o poder de decidir o
Objeto de madeirite Entre, de Amália Giacomini, 2006-2008 | foto: arquivo da artista
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sistema de legitimação”, observa a curadora e crítica Cristiana Tejo, ex-diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, do Recife, e coordenadora de capacitação e difusão científico-cultural da Fundação Joaquim Nabuco.
mances, a interação com novas mídias, as instalações – ou seja, algo que não se assemelha a ícones como os quadros de Van Gogh, ou mesmo a Mona Lisa, de Da Vinci, apenas para citar a arte ocidental. Ideias circulantes
Para ela, não se pode pensar em arte contemporânea sem o pioneirismo de Marcel Duchamp e a ambivalência de Andy Warhol. A pop art defendida pelo artista é essencial por transformar em matéria-prima o mundo de então. “Ele é cínico e crítico. Ao constatar que, no futuro, todos terão 15 minutos de fama, Warhol falava da vida, da velocidade com que as coisas mudam, do artista que faz do mundo seu ateliê. Na arte contemporânea, o que importa não é a linguagem, e sim a forma de operar”, pontua Cristiana. As obras passam a dispor de vários suportes, ganham espaço as perfor-
“A característica da arte contemporânea é a multiplicidade de expressões. Em uma Bienal de Veneza ou na Documenta de Kassel se encontram performances em vídeo, arte conceitual e instalações se confrontando numa sinergia. Há uma convergência. Se antes as coisas eram mais estanques, a contemporaneidade fez com que essas expressões interagissem em diálogos, interfaces, trocas. O cinema incorpora literatura,
Instalação e performance Série Rua do Futuro, de Kilian Glasner, 2008-2009 | foto: arquivo do artista
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Tal abertura é essencial para a apreciação da arte em todas as suas manifestações – cinema, literatura, tea-
acaso, a complexidade”. Na dança, Fabiana cita Merce Cunningham, Trisha Brown, Lucinda Childs, Steve Paxton, Jèrôme Bel e Meg Stuart, entre outros. No cinema, o radicalismo de Jean-Luc Godard e a poética de Pier Paolo Pasolini, por exemplo, nem sempre agradam; e, no teatro, Samuel Beckett enfrentou resistência com sua visão ácida, da mesma maneira que existem detratores das encenações de Zé Celso Martinez Corrêa. “A suposta ‘dificuldade’ em ‘entender’ a arte contemporânea está em querer medi-la e julgá-la a partir de parâmetros que não reconhecem as suas especificidades. Como qualquer outro campo de expressão e de conhecimento humano, as artes
“É preciso pensar se faz sentido ‘entender’ as artes visuais, já que não cobramos um ‘entendimento’ da música que escutamos no rádio.” (Moacir dos Anjos) tro, dança –, pois todas estão conectadas a uma noção de contemporâneo. “Desde que se entenda essa noção não como um estilo, mas como um modo de pensar, de organizar os pensamentos que ajudam a formular as proposições artísticas sobre o mundo”, salienta a pesquisadora e coordenadora do programa de pós-graduação em dança da Universidade Federal da Bahia Fabiana Dultra Britto. Ela defende que “as modificações históricas nos modos de pensar e produzir arte” advêm menos de “gênios iluminados” e mais de um “processo contínuo de contaminação das ideias circulantes em cada contexto”. Podese, contudo, rastrear os artistas que catalisaram “certo modo de pensamento artístico e procedimento compositivo fortemente identificado com princípios lógicos contemporâneos, como a não-linearidade, o
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visuais possuem uma história que continuamente (re)constrói convenções sobre as quais operam. É preciso pensar se faz realmente sentido a ideia de ‘entender’ a produção contemporânea em artes visuais, já que não cobramos um ‘entendimento’, por exemplo, da música que escutamos no rádio”, pondera Moacir dos Anjos. A arte contemporânea, portanto, não deve ser enquadrada em conceitos anacrônicos, e sim sentida como eco de um mundo voraz, múltiplo e vasto. Esse mundo é representado não pela verossimilhança, e sim pela liberdade. A produção atual se dirige a espectadores/ fruidores/consumidores que acolhem a pluralidade e exercitam a generosidade no olhar, e oferece a quem se aproxima de uma pintura, uma instalação, um filme ou uma performance um caminho no qual os significados estão abertos e ainda em construção.
Instalação com desenhos A Sala dos Procurados, de Alan Campos, 2008 | foto: arquivo do artista
pintura, dramaturgia, e o teatro incorpora o cinema. Há uma circularidade dos formatos e das ideias estéticas”, argumenta o crítico, professor e doutor em cinema pela Universidade de Sorbonne – Paris 3 Alexandre Figueirôa. Na produção cinematográfica, por exemplo, é possível distinguir os autores que romperam as estruturas tradicionais. “F. W. Murnau, Luis Buñuel, Dziga Vertov, Jean Rouch, Sergei Eisenstein quebraram paradigmas. Aos poucos o fazer artístico passou a exigir um olhar mais atento e uma abertura por parte do espectador”, pontua Figueirôa.
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Considerações sobre arte contemporânea e instituições Três obras que mudaram a forma de ver e entender a arte brasileira atual. Por Tadeu Chiarelli Ao sair de algumas exposições em museus, galerias e bienais, muitas pessoas experimentam certo amargor relacionado à sensação de que não são cultas. A razão desse sentimento reside no fato de que muito daquilo que observaram não possui conexão com aquilo que, durante anos, foram ensinadas a entender como arte. Afinal, onde estão as pinturas e as esculturas que aprenderam a apreciar? Muitas vezes, inclusive, o amargor inicial é substituído por um sentimento de desprezo perante aquelas proposições “exóticas”, agora vistas como empulhações, não merecedoras de nenhuma atenção. Está aí a razão para que muitos deixem de frequentar exposições de arte contemporânea. Essa situação é lastimosa porque muito da produção recente possui conexões com questões atuais que afligem a todos, de uma forma ou de outra. Aqui, portanto, a pergunta: por que esse divórcio entre a produção atual e o grande público? Dentre as várias respostas possíveis, creio que existam duas que podem auxiliar a, pelo menos, adentrar no problema: a primeira diz respeito a uma mudança na arte, ocorrida no século passado; a outra se refere a como as instituições culturais negligenciam essa mudança, quase sempre apresentando duas concepções distintas de arte como se fossem a mesma. *** Desde, sobretudo, o fim da Segunda Guerra Mundial, muitos artistas deixaram em segundo plano a relação que se fazia entre arte e objeto estético concebido dentro de padrões estabelecidos (pintura, escultura etc.). Eles passaram a desenvolver propostas em que o artista não mais operava dentro da necessidade de produção de objetos únicos e concebidos para realçar sua “genialidade” e competência, com base em parâmetros estabelecidos pela tradição (mesmo a moderna). A partir daquele período nota-se o avolumar de propostas em que o trabalho do artista, em vez de continuar circunscrito ao universo do “belo” (mesmo que esse último conceito já houvesse se expandido em suas significações), passa a operar em relação a outras demandas socioculturais. Tão ou mais importante do que seguir as preocupações inerentes às vertentes estéticas anteriores, começa a surgir o imperativo de posicionar-se claramente em relação às diversas instâncias sociais, usando objetos e procedimentos que até então não faziam parte do universo artístico estabelecido.
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Parangolé P 25 Capa 21 (1968); Parangolé P5 Capa 2 (1964); e Parangolé P32 Capa 25 (1972), de Hélio Oiticica | foto: Andreas Valentin
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Inserções em Circuitos Ideológicos – 2. Projeto Coca-Cola, de Cildo Meireles, 1971 | foto: Romulo Fialdini/Itaú Cultural
A partir desse paulatino abandono das estéticas tradicionais (e, por conseguinte, das modalidades já citadas), surgirão inúmeras possibilidades de propostas, o que só aumentaria, é verdade, a sensação de não entendimento do público. Para diminuir esse fosso, talvez fosse necessário buscar os primeiros sinais dessas transformações. Assim seria resgatada, mesmo que de forma breve, a passagem da produção artística de uma circunscrição a questões puramente estéticas para um campo de experiências em que o observador é chamado a participar não apenas com o olhar, mas com outras ferramentas de percepção. Se tomarmos o caso brasileiro e, dentro dele, três artistas, serão demarcados pontos notáveis dessa passagem que ainda se processa. São eles Hélio Oiticica, Nelson Leirner e Cildo Meireles. Por mais distantes que aparentem ser – e o são –, Oiticica, com seus
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Parangolés (fim da década de 1960), e Leirner, com seu O Porco (1966), propõem duas possibilidades para a arte, fora dos parâmetros das modalidades artísticas tradicionais. Oiticica desenvolveu uma trajetória que, iniciada no âmbito da pintura, passou por questionamentos que problematizavam a separação entre os territórios da arte e da vida. Tradicionalmente, a arte ocupou durante longo tempo um lugar apartado da vida das pessoas. A serviço do poder instituído, ela sempre se pretendeu pedagógica, exemplar e, portanto, afastada do cotidiano. Oiticica, voltado para a transformação desse fato, rompe com os limites daqueles dois territórios e propõe que o espectador deixe seu estado passivo diante da obra de arte para tornar-se parte dela.
Os Parangolés (desenvolvimento de suas pesquisas no campo da cor no tempo e no espaço – uma questão pictórica, fundamentalmente) não foram concebidos para ser admirados a uma certa distância respeitosa (como hoje insistem os espaços em que são exibidos), mas para ser utilizados. Vestir uma obra e com ela caminhar e sambar é dessacralizar o objeto de
É claro que Leirner poderia ter pintado uma tela representando a oposição entre natureza e cultura. Se assim o fizesse, no entanto, toda a gravidade do problema para o qual chamava atenção corria o risco de ver seu conteúdo reduzido devido às regras pictóricas que ele teria sido obrigado a obedecer. Juntando “simplesmente” um porco empalhado a um pernil, a proposta
Meireles apropria-se de objetos comuns (garrafas de Coca-Cola, notas de dinheiro), imprime neles palavras de ordem e os devolve ao circuito original. arte tradicional, transformando-o em uma proposição para a ampliação sensorial nos campos do espaço e do tempo reais. Oiticica quebrou barreiras dentro do campo da arte e parte da produção que se desenvolveu após tal experiência é marcada pelo contínuo afastamento dos artistas das proposições convencionais. Oposição entre natureza e cultura Se Oiticica cravou uma fissura no entendimento tradicional que separava arte e vida, a contribuição de Leirner com O Porco determinou uma série de curtoscircuitos no sistema artístico estabelecido. É importante lembrar um dado fundamental: a um porco empalhado o artista originalmente agregara um pernil do animal defumado, preso a um engradado por uma corrente. Loucura do artista? Creio que não. Proposta complexa, O Porco fazia uma referência incisiva às transformações que a sociedade ocidental passava. Numa operação que ainda guardava muito da noção de arte como representação do real (não apenas aparente), para Leirner o porco empalhado representava a natureza, e o pernil essa mesma natureza já instrumentalizada pela cultura. Em um momento em que a sociedade brasileira passava por grave crise econômica e institucional (vivíamos o início da ditadura militar), são óbvias as possibilidades alegóricas de sua proposta.
do artista ficava clara: havia um circuito que unia aqueles dois objetos e que ninguém se dava conta. A transformação da natureza em cultura, do porco em pernil, estava calcada numa série de etapas, de exploração da natureza e, também, do trabalho humano. Utilizando conceitos de representação (o porco empalhado representando a natureza) e apresentação/ representação (o pernil, como tal e como símbolo da cultura), O Porco, por si, já demonstrava ser outra importante contribuição para uma arte que estava surgindo, não mais preocupada em valorizar apenas o estético. No entanto, o efeito O Porco não terminaria aí. Ao enviálo para o IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, em 1967, o trabalho perdeu o pernil que dele fazia parte durante o trajeto São Paulo-Brasília. Mesmo assim, a obra mutilada participou da seleção e foi uma das escolhidas para integrar o salão, cujo júri era composto de alguns dos críticos mais respeitáveis do país. Ao saber que o trabalho mutilado havia sido aceito no salão, Leirner, em carta aberta ao júri, indagou aos membros quais teriam sido os critérios utilizados para o aceite. Constrangido, o júri, por meio de artigos individuais, viu-se obrigado a responder ao questionamento do artista.
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O sumiço do pernil não foi premeditado. No entanto, é notável como Leirner, partindo de um irônico cuidado com a “integridade” da obra, ao interpelar o júri, na verdade, a entendia como um processo que ia além de sua materialidade, levando em conta a sua inserção no tecido cultural que a sustentava. Se o envio do porco empalhado com o pernil pode ser entendido como uma crítica ao conceito de “belas-artes” e ao processo de “naturalização” da exploração da natureza, a interpelação ao júri caía em cheio sobre os complexos critérios que envolvem o circuito de arte. Leirner, antes do episódio, já estava ciente do alto grau de arbitrariedade reinante no circuito ideológico da arte (sua série Você Faz Parte testemunha a afirmação). Com o aceite do júri ele colocou a nu a si-
tégia: apropria-se de objetos comuns, que integram diversos circuitos dentro da sociedade (garrafas de Coca-Cola, notas de dinheiro), imprime neles palavras de ordem e os devolve ao circuito original. Colocados de novo em circulação, os objetos com as inscrições desnaturalizam o cotidiano dos cidadãos, tornando-os atentos para as sérias questões do momento histórico em que viviam. Tanto os Parangolés quanto O Porco e as “garrafas” de Meireles, quando expostos, funcionam mais como documentos de uma ação do que como objetos estéticos “em si”. O público, ao encontrar esses objetos, muitas vezes sem nenhuma intermediação que dê conta de sua contextualização, tende, ao compará-los com outros trabalhos na mesma exposição (pinturas,
Para Leirner, o porco empalhado representava a natureza e o pernil, essa mesma natureza já instrumentalizada pela cultura. tuação, inaugurando uma prática artística mais tarde tornada comum: a crítica à instituição arte. Palavras de ordem O Porco e o episódio com o júri do Salão de Brasília antecipam ou anunciam, dez anos antes, uma das séries mais significativas da arte brasileira dos anos 1970: Inserções em Circuitos Ideológicos (1971), de Cildo Meireles. Ao entender que a ação do artista não deve ou não precisa mais ser canalizada para os meios artísticos tradicionais, e conscientizar-se de que as pressões vividas pelo país no estado de exceção daqueles anos faziam com que não se comportasse mais a produção de obras que, no limite, seriam rapidamente institucionalizadas, Meireles muda de estra-
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esculturas, desenhos etc.), a não entender a razão da presença deles naquele espaço. E isso porque, ao compará-los com base em parâmetros que se utilizam para decodificar as obras ao redor, eles não correspondem, não se entregam. Partindo do fato de que essas obras são exibidas como obras de arte tradicionais no meio de outras que de fato o são (e isso, a princípio, não desqualifica essas últimas), não é de se estranhar a razão de o público não as compreender. A responsabilidade por esse não entendimento não está no artista ou no público e sim nas instituições artísticas que negligenciam os pressupostos dessas obras e as exibem com base em padrões definidos pelo lugar-comum que afirma: “Toda obra de arte fala por si”. Sabemos que essa é uma afirmação equivocada, que a obra de arte, seja ela uma pintura do Renascimento, seja uma escultura neoclássica, uma gravura de Goya etc., são complexos culturais que, para ser
O Porco, de Nelson Leirner, 1966 | foto: Romulo Fialdini
absorvidos em sua integridade, necessitam de estudo e reflexão. Como as proposições de Oiticica, Leirner, Meireles e outros. Negligenciar as diferenças entre formas distintas de expressão artística, não assumir efetivamente o papel de intermediador entre a proposição do artista e a capacidade de intelecção do público é abdicar de um objetivo que toda instituição, sobretudo no Brasil, não poderia esquecer: o pedagógico. Hoje em dia, percebe-se o crescimento do número de artistas que se distanciam das questões estéticas tradicionais, aprofundando-se em problemas mais conectados com a política, a antropologia e outras áreas. Isso não significa que antes os artistas não se preocupassem com essas questões. Seria ingênuo, por exemplo, pensar em Van Gogh ou Lasar Segall como apenas preocupados com as especificidades da pintura. O que ocorre hoje, no entanto, é que os artistas, para continuar a debater sobre as grandes questões culturais e políticas, tendem, como mencionado, a abandonar os meios convencionais, apropriando-se de procedimentos de construção e percepção desligados das vertentes estéticas tradicionais.
A essa tendência, no entanto, não corresponde uma nova postura das instituições que exibem arte. Encasteladas, na maioria das vezes, em uma compreensão elitista e equivocada do que deveria ser o papel da arte em uma sociedade como a brasileira, continuam a aprofundar o fosso entre o público e a produção contemporânea. Somente com base em um modelo museológico e museográfico atento não apenas a essas novas proposições artísticas, mas sobretudo ao público que não as compreende, é que a situação poderá começar a mudar. Tadeu Chiarelli é crítico de arte, curador e professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Conheça mais sobre as obras citadas e a trajetória de seus criadores visitando a Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, itaucultural.org.br/enciclopedias. Participe com suas ideias
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entrevista
“A arte aponta aquilo que falta em você” Por Mariana Sgarioni | Fotos Cia de Foto Como é possível classificar uma obra de arte? De que maneira essa obra se torna reconhecida? E, afinal de contas, o que pode ser chamado de arte? Por mais que estejam presentes em várias discussões sobre cultura, essas questões dificilmente são respondidas de forma objetiva. “Não espere uma resposta certeira e matemática”, brinca Paulo Sergio Duarte, curador da exposição Rumos Artes Visuais – Trilhas do Desejo, que apresenta, até maio, no Itaú Cultural, em São Paulo, os artistas premiados na edição 2008-2009 do programa. Além de curador, Duarte é crítico, professor de história da arte e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Desde 1973, vem se debruçando em leituras e estudos sobre a produção contemporânea. Na época estava radicado em Paris por causa do regime militar brasileiro e escreveu seu primeiro artigo sobre o artista Antonio Dias. A partir daí, publicou livros, deu aulas, e é hoje uma referência no que diz respeito à arte brasileira. Neste mês, lança seu livro, Arte Brasileira Contemporânea – Um Prelúdio (Silvia Roesler Edições de Arte e Plajap), que virá acompanhado de CD-ROM e DVD dirigido por Murilo Salles. “Resolvi explicar a arte para meus amigos engenheiros, advogados e médicos”, diverte-se este bem-humorado paraibano que mora no Rio de Janeiro, referindo-se ao didatismo de sua obra. Com o mesmo bom humor e um caldeirão de referências históricas, Duarte pontua esta entrevista com observações como “a arte deve nos mobilizar, mostrar que somos incompletos, que nos falta alguma coisa. Isso sim é arte”.
Curador independente, Duarte é coordenador do Rumos Artes Visuais Participe com suas ideias
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O que é ser contemporâneo? Qual é o limite da modernidade? Há fatores que indicam que certos limites foram alcançados na modernidade. Do ponto de vista moral e ético, há o limite dado por dois fenômenos históricos marcantes: o holocausto e as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. O holocausto porque nunca antes uma máquina do Estado havia sido colocada a serviço de uma ideologia que pretendia a pureza étnica e que sacrificou 6 milhões de pessoas. O outro limite (o das bombas) é dado quando os Estados Unidos, a maior democracia do mundo, a mais avançada estrutura política e econômica, decidem matar dezenas de milhares de civis em poucos segundos para acabar com a Segunda Guerra. No campo da arte, a maturidade da modernidade se dá logo no início do século XX. Vemos três aspectos completamente diferentes. O primeiro é dado por um sujeito da razão. Ele atua na arte acreditando fortemente nas conquistas da ciência e da técnica e pensa que isso pode resultar num universo mais harmonioso, numa vida melhor. Esse horizonte é marcado pelo movimento construtivista. Um segundo ponto é o sujeito da vontade, que critica esse universo da razão, aponta para a sociedade e mostra que toda a ciência e a técnica não melhoraram
a vida. É uma forma de romantismo que se manifesta com muita clareza no predomínio dos valores da existência humana sobre os puramente racionais, e que é muito forte no expressionismo alemão. Essa linha é bastante clara em todo o século XX. Um terceiro aspecto, que tem grande força até hoje, é o sujeito da crítica radical da cultura. Ele aparece na Primeira Guerra, no dadaísmo, que se desdobra no surrealismo. Trata-se de uma clara negação de que os valores racionais governam o ser humano. Para essa corrente, somos governados por forças interiores às quais não temos acesso. É o inconsciente, impregnado pela descoberta freudiana. A questão trazida por Duchamp é tão importante que merece um capítulo à parte. Embora ele atue na crítica radical da cultura, também coloca problemas do ponto de vista cognitivo e até epistemológico da arte. Sua contribuição tem sido subestimada por diversos críticos, mas seu valor é o de colocar limites no que é arte, onde ela termina e onde começa o que não é arte. É preciso uma leitura mais detalhada de Duchamp do que essa que vem sendo feita hoje – colocam-se as conquistas desse artista de uma forma prosaica, quando não, leviana.
“[A tecnologia] não muda o que temos que exigir de uma obra de arte.”
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Como é possível estabelecer parâmetros de avaliação para a arte? Toda avaliação estética foi e vai ser um juízo de valor. Se assim é, ela será sempre de natureza subjetiva. Não existem critérios objetivos, nem houve, nem nunca vai haver, para avaliar uma obra de arte, seja ela qual for. O que existem são consensos, que são es-
terminadas obras. Essa experiência da arte só se faz pela repetição. Quem vai a uma exposição uma vez por ano não entende de arte. Quem lê um livro de poesia por ano e diz que gosta de poesia não entende desse gênero. Quem gosta de música e não a escuta todo dia por falta de tempo não tem a experiência da música. Pode até gostar, mas não tem a experiência. A repetição é fundamental. Os conceitos se formam
“Quem vai a uma exposição uma vez por ano não entende de arte. Pode gostar daquilo, mas não tem a experiência. A repetição é fundamental.” tabelecidos por uma coletividade que está de acordo com certos valores. Um exemplo: a Nona [sinfonia] de Beethoven. Pode-se tocar essa música no Japão, na África do Sul, no Marrocos, nos Estados Unidos ou no Brasil que sempre vai haver um consenso. Ou seja: grande quantidade de pessoas estará de acordo que aquela música tem valor, agrada, é importante. Antes de escutar aquilo, a pessoa era uma. E, depois de escutar, ela virou outra, percebendo ou não essa mudança. O critério de avaliação é dado, também, pela experiência da arte. Não há outra forma de acesso à arte que não seja fluindo a sua experiência. Posso ter a experiência da queda de um corpo sem me jogar da janela. Mas não posso “fazer” a experiência de uma música, um poema, um romance, uma pintura, uma instalação sem ter fluido aquela experiência. A descrição de um poema não é o poema. A fotografia de uma pintura não é a pintura. A escrita da pauta da música não é a música. Com base na experiência da arte se chega aos consensos. Grande quantidade de pessoas percebe que aquela experiência é importante, que determinada obra é melhor que outra. Existe a possibilidade de demonstrar isso como uma equação matemática? Não. Mas temos valores históricos estabelecidos em padrões que dizem que uma obra é melhor que outra. São critérios subjetivos armazenados numa experiência coletiva. Então, para estabelecer que um trabalho artístico é melhor ou pior que outro, em primeiro lugar é preciso ver a experiência coletiva de um consenso que se reúne em torno de de-
pela repetição da experiência. Portanto: não existe critério objetivo, mas existe a possibilidade de reunir consensos em torno de certas questões. Como o senhor avalia o cenário da arte contemporânea brasileira e como o país se insere no contexto mundial? A arte contemporânea tem uma história e é um processo que vem desde cinco décadas. A arte brasileira é uma das que têm mais vitalidade no mundo contemporâneo. Ela tem o poder de compreender claramente o seu tempo. Isso se dá numa experiência radical de passagem da modernidade à contemporaneidade, materializada na obra de dois artistas: Lygia Clark e Hélio Oiticica. Há outros desdobramentos positivos nos anos 1970, com obras de Antonio Dias, Waltercio Caldas, Cildo Meireles, Tunga, José Resende e Carmela Gross. São configurações muito poderosas do mundo presente. Isso veio alimentando as gerações mais jovens, sempre estimuladas por eles, que foram elaborando suas próprias questões. O que dificulta uma maior clareza da força da arte contemporânea brasileira é o vazio institucional que o país vive. A produção contemporânea tem presença rarefeita nos principais museus do Brasil. Coisas estão acontecendo, como o Centro de Arte Contemporânea de Inhotim (MG), mas ainda falta um peso, uma densidade. No contexto mundial, está começando a haver um reconhecimento, artistas brasileiros estão sendo citados em bibliografias internacionais do universo acadêmico. Hoje já existe um importante acervo brasileiro lá fora. A aquisição da
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coleção Adolpho Leirner [pelo Museum of Fine Arts, Houston, Estados Unidos] é significativa, e um artista vivo e atuante como Cildo Meireles ter uma exposição retrospectiva na Tate Modern, Londres [encerrada em janeiro], é um reconhecimento da contribuição dessa arte contemporânea. Duas obras que estão entre as melhores de arte contemporânea que vi nos últimos tempos são de artistas brasileiros: a instalação de Tunga A Luz de Dois Mundos, no Louvre, Paris, em 2005, e Babel, de Meireles, na Tate. São obras que representam o melhor que existe em arte e política nos dias de hoje: não são panfletárias, são indiretas, com uma crítica contundente à situação do mundo atual.
somente uma produção de conhecimento que não se podia ter por meio da ciência nem da religião. Quando passa a ser um símbolo de vigor e poder de um tipo de sociedade, ela vira a mercadoria maior. Em segundo lugar, há uma entrada muito forte do universo da arte na indústria do lazer e do entretenimento, coisa que não existia antes. Os museus não eram projetados como são agora: a Tate Modern esperava no primeiro ano de funcionamentos 1 milhão de visitantes. Teve 5 milhões. Quando se chega a esses números, evidentemente a arte passa a ocupar um lugar diferente do que ocupava antes. Isso traz coisas muito positivas e muito negativas. Uma das positivas é a dessacralização: vai-se a uma ex-
“A capacidade de improvisar não é bem brasileira, é de todo o terceiro mundo. Os grandes artistas nacionais não se caracterizam por essa improvisação.” É possível identificar alguma particularidade da arte contemporânea brasileira no plano global? Tenho certa dificuldade de indicar traços tipicamente brasileiros na arte mais atual. Existe até um esforço, há gente rastreando isso. Uma das recentes teorias seria a da improvisação, a capacidade de improvisar. Mas isso não é bem brasileiro, é de todo o terceiro mundo. Ocorre em todo lugar, não é uma exclusividade nossa. A “arte da gambiarra”, como se diz, é apontada como uma característica nacional. Eu não acho. Os grandes artistas brasileiros, aliás, não se caracterizam por essa improvisação. Há muito cálculo, estudo. Creio que é brasileiro porque é feito aqui, só por isso. Qual o caminho que essa arte aponta? Não tenho capacidade para apontar nenhum horizonte. Mas acredito que haja alguns fenômenos negativos, entre eles a questão do mercado. Quando a arte se torna uma commodity, ela é exemplo da mercadoria por excelência, passa a se constituir como um atrativo diferente do que era antes, quando era
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posição como quem liga o rádio em casa. O lado negativo é que essa massificação não implica a realização da experiência da arte, que falei anteriormente. O fato de passar em frente da Mona Lisa não quer dizer que você a viu. É preciso uma retomada da arte como um conhecimento que só ela pode nos dar. Não sei onde vai dar isso. Sinto-me tão perdido quanto qualquer leigo diante do horizonte contemporâneo do mundo. Mas existem tendências... Sim, claro. O que vemos agora, por exemplo, é o império da imagem. Seja fixa ou em movimento. Daí o peso enorme da fotografia e do vídeo na arte contemporânea. São veículos imagéticos que a pessoa olha e se identifica imediatamente. Esse império herdado do mundo da publicidade, da indústria da comunicação, é uma tendência evidente. Outra coisa que é muito clara é a vocação para o espetáculo, para o espetacular. Não há como deixar de ver certas coisas. O artista cria uma escultura de 15 metros de altura, o público se mobiliza para vê-la, lógico. Uma queda-d’água numa cabaninha, que se tem de olhar através de um orifício, é uma coisa. Mas uma cachoeira inteira no Rio Hudson, que custou 20 milhões de dólares, faz com que seja inevitável que vejam aqui-
lo, vai chamar atenção. Há, ainda, uma inteligência cromática característica. O Brasil é herdeiro de uma tradição recente, mas muito rica, materializada nas obras de Volpi, uma grande inteligência cromática. As paletas de hoje são mais decididas, cores que vacilam menos. Em compensação, perdem em sutilezas e nuances. São cores afirmativas, vêm da experiência cotidiana, do monitor da televisão, do outdoor publicitário. Isso gera outra percepção. E a tecnologia, também não é uma tendência? É inevitável que um garoto formado no universo digital, que jogue videogame diariamente, ao se tornar artista, transporte essa experiência perceptiva para a obra. São experiências acústicas, sonoras e visuais que
ele teve na infância. Isso não muda em nada o que temos que exigir de uma obra de arte: de que maneira aquele objeto altera a minha experiência depois que eu o experimento. O que aquilo me mobiliza, o que anuncia, o que me falta. Muitas vezes o papel da obra de arte é apontar algo que falta em mim mesmo. A obra não vai me preencher, mas apontar que não estou completo, pois sequer eu imaginava que essa experiência seria possível. Ou seja, não sou completo como pensava que era. Estou cheio de vazios e a obra está lá para mostrá-los. A graça da arte é apontar para nossas incompletudes e isso independe do meio: pode ser uma estátua de mármore grega ou um jogo de videogame. Se tiver força poética, a obra vai permitir essa experiência.
“O que dificulta a clareza da força da arte contemporânea brasileira é o vazio institucional que o país vive.”
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on-line
Os sentidos e as palavras da contemporaneidade Na Continuum On-Line (www.itaucultural.org.br/continuum), você encontra matérias exclusivas, fotos, vídeos e dicas de links sobre o assunto tratado em cada edição. Os leitores também podem participar, escrevendo textos (artigos, contos, poemas, crônicas etc.) e enviando fotografias, ilustrações e outros trabalhos artísticos por meio do canal Leitor-Autor. Assim, a discussão iniciada na revista impressa continua na rede. Participe! *** “A expressão é muito precária, não resiste a uma análise.” “Um conceito-arte que usamos vagamente para sinalizar que nas produções atuais vemos algo de arte.”“Ela fica no meio-fio entre o que é permitido e o que é possível e quem são os executores práticos dessas idéias.” A pergunta “O que é arte contemporânea?”, proposta a profissionais de diversas áreas, gerou respostas bastante distintas. Confira o que disseram o ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna, a doutora em filosofia Márcia Tiburi e a artista Sônia Alves Dias, entre outros, na Continuum On-Line. Aproveite e responda você também à enquete!
ilustração Ricardo Cammarota
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Espetáculo Sin Sangre, da chilena Compañía Teatrocinema, em março no Brasil | foto: divulgação
Instalação, happening, performance, site-specific. A arte contemporânea criou palavras e deu novo sentido a outras. Entendê-las é compreender esse movimento e suas mais variadas vertentes. O crítico, curador e pesquisador Guy Amado destrincha alguns desses termos no primeiro Glossário da Continuum On-Line, que trará, além do significado de palavras relacionadas ao tema da edição, indicações no meio virtual é fora dele. *** Uma criança na corda bamba equilibra-se entre a discussão de seus pais. Um halterofilista executa sua rotina de força elevando um imenso cartão de crédito. Pouco realista? Essas são imagens criadas pelo grupo chileno Colectivo Artístico La Patogallina. Já a Compañía Teatrocinema, outro grupo local, tenta transcender o mero uso de recursos da tela nos palcos para fundir as duas artes em uma só. Conheça, em reportagem realizada na capital Santiago, um pouco da criação teatral contemporânea do país. *** Acesse a Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, lançada em 2001, que conta com mais de 3 mil verbetes e 12 mil imagens e apresenta biografias e depoimentos de artistas, imagens de obras, dados sobre instituições e análises sobre eventos, movimentos e grupos. Há também definições de termos e conceitos empregados no universo das artes visuais.
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convocação
Você também pode ser autor Suas ideias têm espaço reservado nas páginas da revista. Fique de olho nos temas dos próximos meses e envie reportagens, artigos ou obras artísticas (contos, poemas, fotos, ilustrações, vídeos etc.) para o e-mail participecontinuum@itaucultural.org.br. Confira as regras do jogo em itaucultural.org.br/continuum. Fique atento, o tema do próximo mês é Língua. Mande seus trabalhos. Sua história daria um filme? Com essa pergunta, a Continuum de novembro convidou seus leitores a narrar situações reais que renderiam bons enredos ou cenas de cinema. Foram enviados 224 relatos e o escolhido foi Amor, Substantivo Feminino, de Jesuane Salvador, de Poços de Caldas, Minas Gerais. Leia a história: Amor, substantivo feminino Mariana ouvia Nana Caymmi, a voz que tornava tudo justificável. E, então, Canção da Manhã Feliz misturouse a vozes femininas e, olhando sobre os ombros, ela avistou as outras mulheres que chegavam e tomavam seus lugares no fim da fila. Tapou o sol com as mãos sobre os olhos e, enxugando o suor da testa, pensou: “Já deve passar das 14”. Desde as 11 ela esperava os portões se abrirem e, apesar da fome, não tocou na sacola de comida que levava para Daniel. “Abre isso logo, gente! Pelo amor de Deus! Ô, desgraça!” – ouviu a mulher muito magra, de blusa de alças frouxas que deixava à mostra uma tatuagem malfeita, gritar com um cigarro preso no canto da boca. Nana cantava agora No Analices e Mariana voltou os olhos para a frente, no portão, onde os policiais gritavam os números: 26, 27 e 28. Mais três mulheres entraram para a revista. No papel amassado entre seus dedos, 44. Ainda demoraria mais de meia hora. Mariana sentou-se no meio-fio e refez, em pensamentos, o trajeto que em alguns minutos enfrentaria. Provavelmente entraria com a velha à sua frente e a mocinha que, logo atrás dela, lia baixinho trechos da Bíblia. Visualizou por um segundo a cena tórrida e silenciosa − três mulheres que caminhariam de cabeça baixa pelos corredores da carceragem enquanto portões bateriam, em som grave, atrás delas. Elas entregariam as vasilhas com comida aos policiais, que esmigalhariam pães e, com uma colher, remexeriam com força as panelas transformando a comida em uma pasta homogênea. Mariana, a velha e a jovem moça que rezava seguiriam, então, para a sala da revista. Entregariam, em gestos sonâmbulos, toda a roupa, sutiãs e calcinhas. Nuas, agachariam três vezes sem se entreolhar e, por recompensa, poderiam seguir para as celas e abraçar filhos, maridos, amásios e irmãos.
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Continuum Itaú Cultural
ilustração João Pinheiro
Um relâmpago chamou Mariana à realidade, anunciando uma chuva de verão. Todas as mulheres correram para perto do muro para evitar os pingos grossos que já começavam a cair e uma delas passou à frente e conseguiu entrar sem ter que ficar na fila. Enfurecida, Mariana correu para o portão: “O que é isso, por que ela entrou? Ela chegou muito depois de mim”, disse com a voz trêmula pelo cansaço. “Como é que é? Tá com pressa? Vai agora para o fim da fila”, mandou o policial. Mariana sabia perfeitamente o que aconteceria se respondesse a ele o que realmente desejava e seguiu resignada para o fim da fila enquanto gotas grossas lhe lavavam de novo o cabelo. Nana então cantava Meu Silêncio. *** Agora, começa a segunda etapa da ação História de Cinema. Com uma filmadora, um celular, um software de animação ou qualquer outro dispositivo, interprete “cinematograficamente” a história contada pela leitora. Os melhores trabalhos serão publicados na edição on-line da revista e seus autores ganharão o livro Ensaios e Reflexões e os catálogos da exposição Cinema Sim e da mostra O Visível e o Invisível. O autor do melhor vídeo também será premiado com uma bolsa em uma oficina de adaptação na Academia Internacional de Cinema (www.aicinema.com.br). Os vídeos podem ser enviados ao e-mail participecontinuum@itaucultural.org.br ou ao endereço Avenida Paulista, 149, 5º andar, CEP 01311-000, São Paulo até 31 de março de 2009 e devem ter, no máximo, cinco minutos de duração.
Confira o regulamento em itaucultural.org.br/continnum. Participe com suas ideias
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área livre
As ideias, os versos, os traços, a arte dos leitores têm espaço reservado nas páginas impressas e virtuais da Continuum Itaú Cultural. Tendo como base o tema da edição, produza textos reflexivos ou trabalhos artísticos (fotografias, ilustrações, contos, poemas etc.) e mande para nós. Confira, a seguir, como os leitores/criadores Frederico Ponzio, Laerth Motta, Lúcio Carvalho, Marcelo Moscheta e Renato Izabela veem – ou traduzem com imagens – a arte contemporânea. Os demais trabalhos – adequados à temática da edição – podem ser conferidos na versão on-line da revista (www.itaucultural.org.br/continnum).
Comunicar É Preciso, de Frederico Ponzio
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Boom, de LĂşcio Carvalho
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Continuum ItaĂş Cultural
Bomb, de Marcelo Moscheta
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fotos de Renato Izabela
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fotos da sĂŠrie AtrĂĄs do Buraco dos Olhos, de Laerth Motta
arena
A arte, tal como a conhecemos hoje, poderá morrer? E o que a substituirá? O debate sobre a arte na pósmodernidade é marcado por proposições como essas. Convidados a responder a esse questionamento, o coordenador da área de Comunicação e Ciências da Informação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Norval Baitello Júnior, e a crítica de artes visuais e curadora independente Angélica de Moraes expõem seus pontos de vista – antagônicos, porém complementares.
A arte está morta! Por Norval Baitello Júnior Nas ciências da cultura aprendemos sempre a temer não a morte, mas o seu conceito, e que ela é o princípio e o fim da própria cultura: foi o que disseram Theodosius Dobzhanski, Edgar Morin, Ivan Bystrina. Dizer que a arte está morta é dizer que ela mudou de status, passou para outro nível. No mundo da cultura a morte não é fim de linha. Ao contrário, é aí que entram em jogo as tramas da memória, uma nova vida por si só. Também entram em cena as criaturas da noosfera, aquelas que nós criamos para que elas nos criassem. São seres de fantasia, mas com onipotência e independência em relação aos de carne e osso. Pode parecer um paradoxo, e só não o é porque os humanos também passaram a viver na noosfera que criaram. Nada mais pode ser obstáculo para reconhecer que a arte já morreu, e muitas mortes. Georg Hegel e outros já o disseram de distintas formas. Walter Benjamin dá as pistas para uma nova morte. A reprodutibilidade técnica introduz o valor de exposição (em substituição ao de culto). Tal valor não sobrevive se não for alimentado por apelo e repetição. Para manter a exposição há que se adequar aos mecanismos da insistente repetição. Há que se fazer concessões ao tempo breve e à vida na superfície. Pois é esse o reinado da mídia. Aby Warburg, antes mesmo de Benjamin, já estava atento para a importância da imagem midiática (ao estudar o selo postal e as ilustrações de jornais e revistas). Ao render-se à mídia, a arte anuncia no século XX sua própria morte. O que surge depois? Ora, reverberações, imagens alimentadas pelos arautos da reprodutibilidade, ou seja, pela “mídia”. O uso da imagem permanece intocado, apenas se transfere de um universo a outro. Se um dia a imagem serviu ao sagrado e ao divino, com a função de transcender (durante uma ampla época de produção que hoje indevidamente se chama de arte), emergiu depois um novo uso da imagem, imanente, estético, adequadamente conhecido como era da arte. Hoje vivemos uma nova transcendência nas imagens da mídia, que nos querem transportar a viagens múltiplas fora de nosso tempo, espaço e corpo. Tal nova transcendência continua sendo chamada arte, mas indevidamente, pois se a olhamos com mais cuidado veremos que seus fins e suas metas se encontram numa divindade difusa, onipresente e de imenso poder chamada mercado. Morreu ou não morreu a arte? Claro que sim! Vivam os seus fantasmas que sobrevivem animando a mídia!
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A eterna obsessão Por Angélica de Moraes Como resultado da compulsão fin de siècle de balanço, no apagar das luzes do século XX frutificaram teorias de fim dos tempos. Nas artes visuais, o cavaleiro do apocalipse seria o filósofo e crítico de arte norteamericano Arthur Danto e sua tese sobre o fim da arte. Se a Brillo Box (1964), de Andy Warhol, é arte, observou ele, qualquer coisa pode ser. Porque nada a diferencia das caixas comuns de detergente. Assim, não haveria nenhum modo especial de ser da obra de arte. Mas é bom atentar para o desdobramento dessa tese, que coloca as coisas em seus devidos lugares. Em Após o Fim da Arte: Arte Contemporânea e os Limites da História (Edusp, 2006), Danto esclarece que o fim da arte consiste na tomada de consciência de sua verdadeira natureza filosófica. Ao invés de cancelar a validade do exercício da arte, ele a amplia e distende para abranger um campo ainda mais vasto. Em entrevista1, Danto frisa que “vivemos uma liberdade inédita, transitamos indefinidamente pela memória da arte, embora prisioneiros do presente”. Com tamanho repertório de signos, a arte contemporânea pode abranger espectro jamais exercitado. Se somarmos a isso os recursos de expressão e circulação trazidos pelos meios eletrônicos e a imagem digital, estamos longe de precisar assumir atitudes soturnas ou crepusculares ao falarmos de arte.
ilustração Liane Iwahashi
Em posfácio à edição brasileira de Após o Fim da Arte, Virginia Aita expõe o cerne da questão: “O ‘fim da arte em Danto não significa a morte da arte mas o fim das restrições históricas à criação artística e mais especificamente o fim de uma era da arte: a era da estética’ ”. Essa tese de Danto (Bollin Series, Princeton University Press, 1997) amplia o campo de atuação da crítica de arte, frisando seu papel de crítica da produção simbólica. Porque toda obra de arte está imersa na rede de signos vigentes em sua época. Daí decorre que nem toda arte pode ser arte o tempo todo. Há arte que não ultrapassa sua época porque os elementos para analisá-la não conseguem nos alcançar na atualidade. Isso não significa que não tenha sido arte, e sim que não temos as ferramentas para identificá-la atualmente como arte. Quanto do que está sendo produzido irá sobreviver ao nosso tempo? Isso jamais saberemos. Mas é fato que, se há crise na análise da arte, não há crise na criação artística. A arte do século XXI vai muito bem. A paradoxal eternidade da arte está exatamente em sua natureza mutável. Ela não morreu nem jamais vai morrer enquanto existir a humanidade e essa fatia que a redime: os artistas. 1. portal.filosofia.pro.br/fotos/File/arthur_danto_entrevista.pdf
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fotorreportagem
A invasão Fotos Luana Fischer [www.luanafischer.com] Produção Fernando Cachaldora Teixeira O público, ao visitar uma exposição de arte contemporânea, está, de uma forma ou de outra, preparado para o que o espera no museu ou na galeria. Mas qual é a reação das pessoas quando é a obra de arte que resolve fazer uma “visita” a suas casas? Indivíduos de diferentes idades, classes e profissões têm suas reações flagradas ao se deparar com uma obra de arte contemporânea.
Arthur Bispo do Rosário invade Luciana 34
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Bill Viola invade Carlinhos Participe com suas ideias
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Santiago Sierra invade Tristan 36
Continuum ItaĂş Cultural
Joseph Beuys invade Miche e Sabin Participe com suas ideias
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Pina Bausch invade Lola 38
Continuum ItaĂş Cultural
Theo Jansen invade Julia e Gabriela Participe com suas ideias
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Beatriz Milhazes invade Jime 40
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John Cage invade David Participe com suas ideias
Veja mais imagens de A Invas達o na Continuum On-Line
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ficção
Distância e explicação O trabalho de Rocha Lange, jovem artista brasileira que vem ganhando admiradores e detratores pelo mundo. Por Paulo Scott | Foto Cia de Foto No vídeo, a primeira coisa notável foi o pé-direito absurdo do galpão, na verdade uma torre de quatro paredes, algo próximo a nove andares, elevando-se do piso plano de cimento queimado de 1.300 metros quadrados, é o que informa a homepage do projeto, até o forro, onde há 26 holofotes de estádio de futebol e também os braços articulados de três guindastes que completam um conjunto de sete com os outros mais pesados apoiados no chão. Uma estrutura única, dispendiosa e possivelmente capaz de levar ao limite o significado do termo excentricidade, principalmente por ter sido concebida apenas para ser utilizada na obra Redução e Queda, nome do projeto recém-concluído por Rocha Lange, esta artista brasileira de 24 anos que vem acumulando admiradores no mundo todo. Em sua nova experiência, ela decidiu interagir com a sua obra. Sem dar importância às restrições físicas impostas por sua paraplegia, submete-se a uma arquitetura exótica e cheia de interfaces que ganha dinâmica no momento em que a artista é presa a um molde de poliéster rígido ligado aos cabos de quatro guindastes, recebe pequenos eletrodos que são conectados à sua cabeça e em seguida é hipnotizada para que (sem perder o discernimento por completo) fique emocionalmente suscetível ao depoimento da modelo-dançarina de um programa da TV aberta que, não coincidentemente, tem sua idade. Por meio de um par de fones de ouvido, a artista escuta a modelo narrando
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aleatoriamente fatos acontecidos no seu dia anterior.
uma conver-
Os eletrodos ficam ligados a um computador que en-
sa de uma hora e meia
via as ondas cerebrais para ser interpretadas por um
que, para minha surpresa, não
programa que, segundo seu criador, o professor Reck
aconteceria em São Paulo, mas no Rio de
Miranda, aprende sozinho e jamais repete os coman-
Janeiro, na primeira semana de fevereiro em
dos repassados aos sete guindastes. Só depois de es-
um restaurante da Rua Dias Ferreira, uma das
sas coisas todas serem postas em ordem, entra um
mais badaladas do Leblon. A escolha do local não
único observador, que será preso aos guindastes res-
me pareceu nada compatível com a mística que se
tantes (igualmente controlados pelo computador), a
criara em torno do seu nome, da sua pose introspec-
quem se destina a tarefa de filmar a movimentação da
tiva, da sua dicção e linguagem extremamente corre-
artista pelos meridianos e latitudes do galpão. A filma-
tas (beirando a afetação), porém foi suficiente para
gem dura 11 minutos ininterruptos; e, enquanto ocor-
me deixar ainda mais instigado. No dia em que com-
re, só a artista e o observador com a câmera ficam no
binamos, cheguei vinte minutos antes ao tal restau-
interior do prédio (o ocorrido será o que ficar registra-
rante, que estava mal iluminado e sem freguês à
do pela câmera). Para acentuar as idiossincrasias do
mesa. Tive tempo de pedir uma limonada suíça e me
projeto, há trilhas sonoras compostas na hora por um
refrescar. O calor, impregnado de uma umidade sufo-
segundo computador, também programado por Reck
cante, estava além do aceitável. Nas poucas vezes em
Miranda, que, se opondo às soluções da outra máqui-
que choveu, foi precipitação rala que sequer serviu
na, edita a trilha única; e há, com o mesmo destaque,
para refrescar, eram gotas mornas que mais pareciam
essa mórbida seleção do observador dentre pessoas
respingos de chá, água de chimarrão. Rocha Lange
com 24 anos que estejam desenganadas por diagnós-
chegou pontualmente às 4 da tarde, toda sorridente,
tico médico conclusivo. Admito que tenho uma parti-
sem perder, contudo, o ar formal que a faz parecer
cular dificuldade com esse detalhe. Sei que estou lon-
pelo menos cinco anos mais velha. Veio na minha di-
“Arte contemporânea é um ambiente não primordialmente destinado à excelência ou à genialidade, e sim ao experimento, à criação de linguagens.” ge de estabelecer um diálogo pleno e cheio de empa-
reção dirigindo sua cadeira de rodas elétrica e, como
tia instantânea com alguém quase 15 anos mais nova
se tivesse lido meus pensamentos, pedindo descul-
que eu, sei que, no fundo, minha intenção é descobrir
pas por ter escolhido logo um restaurante para nossa
o que de consistente há por trás de tanta badalação,
entrevista. Fez questão de esclarecer que ali era um
testá-la para saber se, como diz um de seus detratores,
dos raros espaços no Leblon onde existe rampa de
cujo nome prefiro ocultar, não passa de um clássico
acesso para cadeirantes. “Uma vez balneário, sempre
“muito barulho por nada”. Depois que liguei para sua
balneário”, foi a expressão que usou para rotular a ci-
agente, tive de esperar três semanas até receber um
dade onde nascera. Sem aguardar manifestação da
retorno, isso foi às vésperas do Natal, e acertarmos
minha parte, adiantou-se dizendo que tirou 15 dias
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para descansar, que seu médico a alertara com vee-
cionismo prático semelhante, pelo menos na preten-
mência sobre a possibilidade real de chegar a uma
são [risos], ao praticado pelos renascentistas. Investi-
estafa. Contou que se instalara no apartamento que
gar em função de um processo de crítica, de autocríti-
fôra dos seus avós, imóvel que a família resolveu
ca, é provocar, precipitar, emparedar novos elementos
manter por razões afetivas. Aproveitei o ensejo, per-
para a reflexão. Tenho consciência de que isso tudo
guntei se o boato de que desmaiara duas vezes du-
fica ainda mais estrambótico quando agrego à minha
rante a montagem da instalação Número Telescópico
obra a experiência de um pesquisador importante,
Não Próprio tem algo de verídico. Sem confirmar dire-
como é o caso do Reck Miranda, e torno a manifesta-
tamente, disse que costuma se agarrar à própria in-
ção cibernética um componente essencial do traba-
tuição, que isso lhe provoca uma espécie de ânsia
lho.” O propósito da máquina, nesse trabalho de mani-
pelo resultado final, não que isso tenha qualquer rela-
pulação completa de uma pessoa por outra, deixada à
ção com a interpretação que fazem dos seus traba-
percepção e à sorte de uma terceira que conduz a
lhos. “Compreendo que seja plausível a crítica ter le-
captura visual, ela explicou, é fracionar o livre-arbítrio,
vado um tempo para assimilar os rumos do meu pro-
a racionalidade e as conveniências que orientam o
jeto artístico.” Inquietou-me seu tom professoral. “Sei
principal agente/paciente da instalação, no caso ela
que, à primeira vista, não é nada fácil deixar de alinhar
mesma, na medida em que conjuga resgate narrativo
meu trabalho a eventuais charlatanices artísticas.
e propensão criativa. Pergunto se os seus trabalhos
“Jogar-me admitindo alguma coerência nos argumentos que expõem a repulsa em relação ao que faço é a forma que encontrei de caminhar em direção à originalidade.”
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Mas, sinceramente, apesar de intuitiva, afinal sou uma
podem ser rotulados como arte contemporânea. Ela
brasileira [risos], procuro não embarcar no que o ve-
dá uma olhada no seu relógio de pulso (deixa bem
lho e bom Hans-Georg Gadamer chamou de a ingê-
claro que está controlando o tempo de nossa entre-
nua autoestima da atualidade.” Naquele momento
vista) e diz, com sisudez acadêmica de quem concluiu
percebi que poderia deixar o gravador ligado e ape-
o doutorado tão cedo: “Arte contemporânea é um es-
nas deixá-la falar. “Ir ao extremo das faculdades
pectro imenso de manifestações e impulsos sem ava-
mentais para criar este negócio que venho cha-
lista, um ambiente não primordialmente destinado à
mando de experiências terrenas de céu, a
excelência ou à genialidade, e sim ao experimento, à
partir da crença de que é preciso refun-
criação de linguagens”. Dá uma pausa longa e me olha
dar, reformular o mito do céu, não
de um jeito quase inverossímil, como se quisesse me
deixa de ser um redu-
esganar, como aqueles professores mais exacerbados
Continuum Itaú Cultural
fazem com os alunos menos preparados nas aulas da
lecidas. Essa re-
graduação. Então, fica em silêncio e, depois de outra
leitura, acho que prefiro
pausa longa, procura o garçom com os olhos e pede
chamar assim, será o primeiro passo
uma água de coco gelada. “Peço uma pra você?”, diz
para o novo trabalho, cuja exposição acon-
com elegância barroca, sugerindo que talvez eu te-
tecerá em papel digital cobrindo paredes e 11
nha esquecido algo. Limito-me a dizer que gostaria de
modelos em desfile... Bem, não quero me empol-
um suco de laranja. O garçom anota os pedidos e sai.
gar”, e prossegue, “jogar-me sem ser presunçosa e,
Fico sem saber o que dizer a seguir, talvez porque pre-
pelo contrário, admitindo a presença de alguma co-
fira mesmo aguardá-la. E ela não me decepciona. “O
erência nos argumentos que expõem a repulsa em
novo sempre chama muita atenção”, diz, reflexiva,
relação ao que faço é a forma que encontrei de cami-
“acho que este é o momento de brincar com a intui-
nhar em direção à originalidade. Quando fiquei para-
ção coletiva, com o seu imediato, como nunca se con-
plégica, minha família sugeriu que eu me submetes-
seguiu fazer antes na história do Ocidente por razões
se a sessões de hipnose para ajudar na superação do
tecnológicas óbvias”. Termina de falar e fica me olhan-
trauma da imobilidade, que, naqueles meses seguin-
do, com um sorriso petulante no rosto. É quando per-
tes ao acidente, acreditavam ser psicológica. O des-
cebo que em sua cadeira motorizada há duas micro-
prezo que tive pela ideia foi tão grande que, anos
câmeras, uma de cada lado (e talvez haja microfones).
depois, passei a querer entender a rejeição em si”.
Ela percebe que finalmente descobri sua pequena
Noto um tom de preleção de auditório lotado na sua
provocação, mas não diz nada, talvez esperando que
fala, reparo que já não sou o seu interlocutor, talvez
eu a interpele ou diga algo a respeito. Não digo. O gar-
sejam os críticos que a atacam, talvez seja ela própria
çom traz as bebidas. “Você já se deixou hipnotizar,
tentando se convencer de que sabe aonde exata-
Paulo Scott?”, pergunta, recebendo o coco, envolto
mente quer chegar e não pode dispensar a austerida-
em um pano que parece linho, das mãos do atenden-
de. Então me sorri com a beleza natural que deveria
te e se esforçando para segurá-lo com capricho, como
ser o status de qualquer pessoa com 24 anos; e aceito
se pesasse mais de 20 quilos. Acho que a surpreendi
a oportunidade de intervalo, e ficamos ali, enquanto
quando disse que sim, expliquei que no começo da
ela me filma e eu a deixo na estranheza a qual se ha-
adolescência fiz terapia tentando curar a gagueira
bituara e que, espero, sua obra tão promissora con-
que me assalta, embora em proporção muitíssimo
siga um dia explicar.
menor, até hoje. Então ela me perguntou se não me incomoda a superexcitação de nosso tempo, essa
Paulo Scott é escritor, autor do romance Voláteis
pressa de entretenimento capaz de dar importância a
(Objetiva, 2005). Mantém o blog Habitante Irreal:
uma deficiente física obsessiva como ela. Retruco que
www.pauloscott.wordpress.com
é o seu público quem pode de fato responder a essa pergunta. “Quer saber de uma coisa, daqui a um tempo editarei os vídeos em uma peça de 22 minutos e me sentarei para uma sessão solitária, que se repetirá até eu saber a medida das ligações que foram estabe-
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balaio
Prazeres contemporâneos Veja dicas de obras que fazem pensar de forma atual. INTERNET Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro (www.itaucultural.org.br/enciclopedias) Criação coletiva, teatro de grupo, teatro do oprimido, teatro universitário. Esses e outros conceitos e marcos da produção cênica moderna e contemporânea brasileira estão na Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro, disponível no site do instituto. Lançada em 2004, a obra de referência traz 800 verbetes, divididos em Personalidades; Companhias e Grupos; e Espetáculos, e tem como recorte as criações realizadas em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, em Porto Alegre e no Recife. Além das informações organizadas em verbetes, ordenados alfabeticamente, a Enciclopédia possibilita a consulta a dados resumidos sobre aproximadamente 15 mil personalidades e cerca de 8 mil espetáculos que integram as bases de dados do Itaú Cultural. ARTES CÊNICAS Coletivo As Rutes Por meio de contações de história, performances com clowns e outras facetas, o grupo de artistas realiza intervenções urbanas que procuram discutir as relações estabelecidas entre os homens e o espaço da cidade. Exemplos curiosos dessa relação podem ser conferidos na instalação O Diário Aberto do Viajante, de 2008, em que, entre outras ações, o coletivo divulga o valor de princípios éticos e morais diante da bolsa de valores. Criado em 2007 pela dupla Bê Carvalho e Cristiana Ceschi, o As Rutes desenvolve trabalhos em diversas cidades do mundo, demonstrando o potencial de qualquer centro urbano para construir as mais instigantes histórias provenientes da banalidade do dia a dia. Para conferir as intervenções e saber mais sobre o coletivo, acesse www.coletivoasrutes.blogspot.com.
Ação Caça-Fantasma – Coleta de Histórias de Assombração, de As Rutes, no Parque da Luz, São Paulo, 2008 | foto: divulgação
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MÚSICA The Noise Made by People, de Broadcast (Warp, 2000) Há quem acredite que toda produção artística atual não passa de mera releitura do que já foi feito. Sendo assim, o álbum de estreia deste quarteto britânico, formado há 12 anos em Birmingham, é a prova de que a inovação ainda é possível mesmo com um olho no passado. Misturando o que há de melhor do psicodelismo dos anos 1960 (o grupo, inclusive, utiliza instrumentos dessa década) e do experimentalismo da música eletrônica atual, a banda apresenta canções ora radiantes ora soturnas. O clima retrô-futurista toma conta de canções como Papercuts e Come On Let’s Go, demonstrando que, apesar do tom nostálgico, o trabalho do Broadcast é uma boa definição de contemporâneo. Composição Interativa, de Cristiano Figo (Trama, 2005) Músico de formação acadêmica, Cristiano Severo Figueiró, ou simplesmente Cristiano Figo, produziu quatro músicas eletroacústicas para seu trabalho de mestrado, na Universidade Federal de Goiás, lançadas pela gravadora Trama. Fruto de uma pesquisa de dois anos, as canções englobam texto, som e software, resultando em uma mistura sonora computadorizada com o toque de alguns instrumentos familiares, como violão, clarinete e marimba. Da interação homem-máquina e máquina-máquina, surgem algumas sonoridades peculiares como as das músicas Pequi e Caminho Largo, Caminho Estreito, essa última criada por meio do Csound, programa que sintetiza sons. Composição Interativa pode ser baixada gratuitamente em www.tramavirtual.com.br. CINEMA Eraserhead, de David Lynch (Estados Unidos, 1977, Lume) Para quem já se perguntou de onde vem tanta bizarrice ao assistir aos filmes de David Lynch aqui talvez esteja a resposta, ou parte dela. Longa-metragem de estreia do diretor norte-americano, Eraserhead conta a história de Henry (Jack Nance), rapaz com um penteado peculiar que vive em uma cidade industrial de aparência pós-apocalíptica. Durante um jantar na casa da namorada, Mary X (Charlotte Stewart), descobre ter tido um filho com ela. A criança, no entanto, é literalmente um monstro que chora incessantemente. Forçado a se casar, ele logo é abandonado pela mulher, que o deixa com o bebê-aberração. Somam-se a isso algumas esquisitices, como a cantora no aquecedor e a vizinha sedutora. Com estrutura nada convencional e narrativa fragmentada, Eraserhead lembra muito os trabalhos de videoarte do início de carreira de Lynch, provando que as excentricidades vistas em Cidade dos Sonhos (2001) e Império dos Sonhos (2006), filmes mais recentes do diretor, vêm de longa data. LITERATURA Arte Contemporânea – Uma Introdução, de Anne Cauquelin (Martins Fontes, 2005,170 p.) Que arte moderna é uma coisa e arte contemporânea é outra parece ser uma afirmação óbvia. Mas o que as diferencia de fato? O livro, ideal para um público não-iniciado, discorre sobre a transição do moderno ao contemporâneo, evidenciando as principais mudanças e procurando compreender as características do novo modelo. Das redes de criação à velocidade de transmissão de informações e da queda do espaço expositivo convencional à sociedade da comunicação, tudo é mapeado pela autora com uma visão crítica sobre a arte contemporânea e suas consequências para o pós-modernismo.
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O dinossauro e a caligrafia infantil que caracterizam a obra de Iaco | foto [detalhe]: arquivo do artista
reportagem
A cidade como tela Artistas de rua discutem sua arte enquanto dão rosto, cor e caligrafia aos espaços urbanos. Por Micheliny Verunschk Não há nada de novo debaixo do sol, diz uma das mais conhecidas passagens da Bíblia que reflete sobre a capacidade humana de reinventar a roda. Assim, não deve ser espantoso para ninguém saber que de egípcios a romanos e entre gregos e troianos, para falar apenas de alguns povos da Antiguidade, as inscrições em paredes das cidades, que hoje classificamos como arte de rua (e alguns classificam simplesmente como vandalismo), já eram bem comuns. Desenhos, insultos, protestos, citações, tudo isso fazia parte do repertório daqueles precursores anônimos revelados pelas pás e pinças dos arqueólogos. A arte de rua como a conhecemos, expressão pop coletiva e individual, é mais recente. Foi o artista americano Andy Warhol quem primeiro usou a expressão street art para definir a “algaravia visual” das ruas dos grandes centros urbanos, isso ainda na década de 1950. Em fins dos loucos, únicos e criativos anos 1960, um jovem carteiro de Nova York chamado Demetrius entrou para a história do grafite ao espalhar, nos pontos da cidade pelos quais fazia entrega de correspondência, sua tag (ou marca individual): Taki 183. Entrevistado em 1971 pelo jornal The New York Times, virou lenda e referência para grafiteiros e artistas de rua dos quatro cantos do mundo.
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Mesmo não sendo exatamente uma novidade, a arte de rua ainda é alvo de muita polêmica, oscilando entre aqueles que a defendem como expressão ímpar da contemporaneidade e aqueles que não a veem senão como expressão do vazio em que anda metida a nossa sociedade. Outras questões, como as relações com o poder público e com o mercado institucional, também fazem parte da pauta do dia e ninguém melhor que os próprios artistas para discutir os rumos e as especificidades daquilo que fazem. Percursos de uma caligrafia Talvez não haja quem, andando pelas ruas de São Paulo, nunca tenha notado a tag de Iaco Viana escrita em caligrafia quase infantil. A referência visual é também dada pela letra i, marcada sempre por três traços acima do pingo, ou por um simpático dinossauro que, vez por outra, acompanha a assinatura. Não raro mensagens coladas ao nome despertam a atenção do transeunte, coisas como iacodiscreto, iacosó ou iacofalso.
Segundo Viana, que fez escola técnica e faculdade de arte, a qualidade lúdica do seu trabalho tem duas intenções: primeiro, o diferencia da pichação e, depois, desperta o olhar do espectador, fazendo com que ele se aproprie da cidade de outra forma. “Meu trabalho se define sozinho. Para cada um que vê iaco por aí, a interpretação é feita de maneira pessoal, adequada ao momento da cidade. Mas não deixa de ser uma mistura de publicidade com tipografia lúdica. Acho importante esse apelo devido ao fato de São Paulo ser uma das maiores cidades do mundo e meu trabalho fazer com que as pessoas a observem, fujam um pouco do seu cotidiano para reparar nos muros e nas transformações por que ela passa.”
Intervenção urbana seguida de registro fotográfico Metabiótica 16, de Alexandre Orion, 2004 | foto: arquivo do artista
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Embora não veja restrições na exposição visual do artista de rua, afirmando que o que importa é a ideia e o jogo de palavras com os quais lida, Viana opta por não mostrar o rosto. Mas arte de rua é arte? Offend. Emprolde. Stok. Onesto. Esses são alguns dos 72 nomes com que Alex Hornest (também um pseudônimo) assina seus trabalhos pelos muros de São Paulo, do Brasil e do mundo afora. Hornest, para quem a cidade ideal seria aquela sempre limpa para que ele a pudesse utilizar, afirma que a diferenciação entre o que é arte e o que é vandalismo nas ruas é subjetiva: “Quem define isso é o olhar de cada um, que é particular.
“Para estar na rua, uma obra depende somente da intenção do autor, por isso rompe com o espaço institucional da arte.” (Alexandre Orion)
Alexandre Orion, conhecido, sobretudo, pelo seu trabalho Ossário, uma série de crânios pintados na poluída passagem subterrânea entre as avenidas Europa e Cidade Jardim, na capital paulista, em 2006, concorda: “O parâmetro para definir quando a arte institucionalizada ‘é ou não é’ arte é ‘estar ou não estar’ em uma instituição, o que implica uma aprovação curatorial que usa parâmetros subjetivos, quando não duvidosos. Para a arte de rua ‘ser’ é ‘estar’ em um sentido mais
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Mutirão, de Alex Hornest | foto: arquivo do artista
Depende do potencial que ‘eu’ vejo naquilo. No caso da pichação, por exemplo, vejo uma caligrafia muito autêntica, que sem ser baseada em qualquer forma ou estética dá outra identidade a uma parede, a um prédio”.
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objetivo. Para estar na rua, uma obra depende somente da intenção do autor e é por isso que essa linguagem rompe não apenas com o espaço institucional da arte, mas também com os parâmetros que a definem”. Para Orion, a polêmica em torno da pichação, aproveitando o eco da prisão de Carolina Pivetta que, com um grupo de 40 pessoas, invadiu e pichou o pavilhão da Bienal de Arte de São Paulo, no segundo semestre de 2008, passa por questões políticas, econômicas e sociais: “�������������������������������������������� A discussão não se trata de arte versus vandalismo, mas, sim, do que o sistema considera ou não suportável. Tanto o grafite quanto os stickers têm, em sua maioria, explícita influência estrangeira, já a pichação tem uma estética única no mundo que caracteriza a cidade de São Paulo e é um dos maiores fenômenos sociais do século”.
Galeria de Adesivos, Salvador | foto: divulgação
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Museus, galerias e até o mercado publicitário andam de olho nas ruas e em seus artistas. Casos como o do artista britânico Bansky, cuja marca é o engajamento sociopolítico em questões contemporâneas, e o dos brasileiros Osgemeos, cujas obras são altamente cotadas pelo mercado, não são raros. Hornest, por exemplo, começa a frequentar, com sua arte, esse tipo de espaço. Expondo em lugares como a Jonatham Levine Gallery, de Nova York, e participando de individuais e coletivas em Lisboa, Firenze e São Francisco, o artista é incisivo ao separar os dois universos. “Venho de uma época em que ninguém entendia a arte de rua, ninguém se interessava. Hoje, ela se consolida como um movimento artístico. Mas veja bem, na galeria eu sou um pintor, um escultor. Na rua, eu sou um artista do grafite. Não dá para fazer grafite num espaço fechado, porque além da técnica tem todo um contexto que a rua dá. O grafite é o
“Vejo na pichação uma caligrafia muito autêntica, que dá outra identidade a uma parede, a um prédio.” (Alex Hornest)
resultado da técnica com a performance, que são os meios que o cara tem para conseguir pintar a parede, que vão desde burlar as leis até conseguir a autorização do proprietário.” Orion, que também transita entre a rua e o cubo branco, complementa: “A aceitação institucional não enfraquece a arte de rua. Em alguns casos, é a aceitação do artista à instituição que enfraquece sua própria obra. Quando se altera o espaço/suporte também se altera o conceito, e cabe ao artista sustentar seu discurso dentro ou fora da instituição”.
ticiparam da sua criação. O projeto se desenvolveu de forma muito fluida, contando com a coletividade e o altíssimo nível artístico de nomes fundamentais na técnica dos stickers. O processo foi rápido, pois havia um espaço ocioso e cheio de boas intenções para movimentos contemporâneos em Salvador. Logo, por meio da internet, foi feita a divulgação e choveram envelopes e arquivos, daí rolou uma produção no local (pintura, iluminação, sinalização) e um evento de abertura. A notícia se espalhou e os olhos dos artistas urbanos brilharam ainda mais, numa fase em que se iniciava a verdadeira contemplação ou valorização desse movimento nacionalmente”.
O exemplo de Salvador Nem toda instituição precisa, necessariamente, seguir os moldes tradicionais. Da ideia de uma artista de Salvador, nasceu a primeira galeria especializada em arte de rua da América Latina. Trata-se da Galeria de Adesivos, cujo principal produto de exposição são os stickers, aqueles adesivos que, por sua repetição em muros, postes, caixas de energia elétrica e orelhões, parecem nos seguir ao longo dos nossos trajetos pela cidade. Andrea May, idealizadora do espaço, fala como se deu a criação da galeria e sua marcante qualidade de rompimento das formalidades: “A Galeria de Adesivos foi uma das melhores coisas que já me propus a fazer, porque foi divertido e estimulante para todos que par-
Embora esteja afastada das ruas, Andrea continua, segundo suas palavras, “maquinando ações para elas”. Ela ressalta que a mudança de cenário em relação ao crescente interesse de instituições e órgãos governamentais pela arte de rua nem sempre encontra eco entre os artistas na cidade. “Ainda considero fraca a representatividade por parte dos crews (comunidade de artistas de rua que engloba grafiteiros e stickers, entre outros). Talvez por questões financeiras ou culturais, temos poucos e bons artistas de rua atuantes.” Todas essas questões servem para alertar que as demandas da arte de rua não passam apenas pelos conflitos com as autoridades e, eventualmente, com os proprietários de imóveis. Para além do seu caráter atuante, é uma arte que pensa e que, sobretudo, se pensa. Talvez seu diferencial seja o fato de que isso acontece enquanto a cidade é usada como tela.
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mirada
Arte chilena, arte de falência O caminhar da contemporaneidade no Chile. Por Justo Pastor | Tradução Josely Vianna Baptista | Ilustração Rodrigo Silveira Em meados de 2008, uma revista feminina chilena convidou-me a participar de seu número de aniversário, pedindo-me que respondesse com 700 palavras a uma questão formulada por sua editora. A pergunta procurava saber qual era, presentemente, a obsessão dos artistas chilenos. Na mídia, o termo “obsessão” acabou por tornar-se um sinônimo da busca daqueles grandes motivos que mobilizam os artistas. Com isso, revelou sua eficácia para tratar das dificuldades de construção de um olhar sobre o cenário atual da arte chilena. O que faltava e o que sobrava aos “nossos” artistas para serem felizes? Confrontei-me primeiramente com o fato de que aquilo que lhes fazia falta e o que supostamente lhes sobrava não agiam no mesmo registro simbólico. A falta, entendida como ausência de algo, transformava-se numa falha geológica determinante. Ao repensar os termos da resposta que sustentei naquela ocasião e reelaborar meus argumentos para agora adequá-los ao espaço brasileiro, não pude deixar de pensar numa associação com uma locução da língua portuguesa que acaba sendo de uma exatidão abissal: curador de massas falidas. Ou seja, aquilo que em espanhol jurídico seria um síndico de quiebras. E que, numa transposição precária, seria um “editor de falta”, no sentido de falha simbólica básica. De maneira que, para escrever sobre a cena artística chilena, é preciso concebê-la como uma cena originária em que a falha-de-ser organiza sua possibilidade de ser. Assim, as obras não conseguem nem mesmo projetar as so(m)bras que poderiam antecipar seu vazio. Utilizo esse jogo de palavras, sugerido recentemente por meu amigo e colega Miguel Ángel Hernández-Navarro, pesquisador do Centro de Documentação e Estudos Avançados de Arte Contemporânea (Cendeac, Múrcia, Espanha), num colóquio na República Dominicana. As obras de arte projetam sua sombra institucional como (s)obras de sua forma de inscrição. Por meio dessa sequência em que os termos podem ser intercambiáveis, tento responder ao falso dilema exposto inicialmente, sobre o que falta e o que sobra aos artistas chilenos; como se fosse possível distinguir entre aquilo que necessitam e aquilo que desejam; principalmente quando as exigências para satisfazer o primeiro estão institucionalmente impedidas de completar-se, e a figuração fantasmal do segundo não pode nem mesmo se estabelecer como representação. Arte de professores A organização desse sistema de existência da arte chilena não é uma situação que se deva lamentar. Ao contrário, é uma construção na qual gerações investiram grandes esforços. Por certo, a origem da organização da retenção está no domínio que a universidade exerce no desenvolvimento do ensino de arte, de 1932 em diante, ao encaminhar-se para o nascimento da maior arte de professores de que se tem notícia. De fato, David Siqueiros, o muralista mexicano que em 1941 realizou um extraordinário mural na Escuela México, em
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Chillán, cidade situada ao Sul do Chile, a quase 500 quilômetros da capital, afirmou num texto explosivo de 1943 que o principal obstáculo para a inscrição da arte chilena na contemporaneidade era sua dependência dessa arte de professores que, como se não bastasse, declarava com orgulho ter impedido a instalação no país daquilo que ela denominava “modernismo à outrance” e da arte da propaganda. O autor referia-se, certamente, ao afogamento, no academismo pós-cézanniano, da “influência” tanto das vanguardas históricas quanto do muralismo mexicano.
seria José Balmes, quando pinta a série intitulada Santo Domingo, como uma indicação crítico-pictórica à intervenção dos marines na República Dominicana, em abril de 1965. Então ocorre o segundo momento de transferência forte, nos últimos anos da década de 1970, em torno da obra de Eugenio Dittborn, num processo que qualificarei como “artes da escavação”, dominado pelos procedimentos de recuperação arqueológico-policial da imagem, numa conjuntura política fortemente marcada pela subtração e pela produção do de-
...para escrever sobre a cena artística chilena é preciso concebê-la como uma cena originária em que a falha-deser organiza sua possibilidade de ser. O que relato anteriormente ocorre entre 1932 e 1962, período no qual o espaço universitário começa a experimentar o princípio de uma reforma que em 1965 vai redimensionar, antecipadamente, o espaço político do país. Nesse momento sobrevém a queda do sistema pós-cézanniano, substituído pela contemporaneidade de uma pintura de filiação informal. Nesse ano acelera-se a transferência de informação contemporânea, num cenário que entre 1932 e 1965 passara por um processo organizado de postergação de referentes modernos. Enquanto no Chile os setores universitários se empenham em atrasar a modernidade, no Brasil Oswald de Andrade, em 1944, publica Marco Zero II – Chão (Globo, 2008), no qual retoma e amplia um debate em torno da relação arte e política. Se no início dos anos 1960 a arte brasileira é marcada pela discussão entre concretos e neoconcretos, o discurso plástico da arte chilena se organiza – por sua vez – em torno das “artes de la huella”. Do meu ponto de vista, esse será o primeiro momento de transferência forte da contemporaneidade chilena. Se fosse preciso pensar num artista como figura central desse momento, esse
saparecimento de corpos declarados punitivamente exemplares pelos agentes do Estado. Desse modo, como uma declinação das “artes da escavação”, surgem, no final dos anos 1990, as “artes da disposição”, em que a aparição de objetos-pensamento define o momento mais transicional de cena plástica chilena. Mario Navarro, Ivan Navarro, Patrick Hamilton e Pablo Rivera estão entre os artistas cujas obras sustentam essa última estratégia de produção de cena. Em termos estritos, é esse modo de distinguir dois momentos de transferência forte e três complexos processuais de organização das (s)obras residuais de um campo – no qual essas obras críticas antecipam a sombra de seus conceitos projetados corrosivamente no imaginário político – que permite à arte chilena ser pensada como o reverso da crise de falência a que me referi no início desta exposição. Justo Pastor, crítico de arte, realizou curadorias de representações chilenas nas bienais de São Paulo, de Lima, do Mercosul e de Veneza.
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reportagem
Um lugar para as velhas novas mídias Na Alemanha, um centro inovador mostra que a palavra conservação pode (e deve) ser usada também com a arte contemporânea e a arte eletrônica. Por Augusto Paim, de Karlsruhe, Alemanha (texto e fotos) Quando o visitante chega ao balcão para pedir informações, uma luz circular o encontra. Vai-se para o lado, a luz vai junto. Não há como fugir dela. O visitante foi pego. Logo, uma voz fala. As pessoas ao redor não estão prestando atenção. Sim, só ele a ouve. A cena se passa na cidade de Karlsruhe, na Alemanha, mais especificamente no saguão de entrada do Zentrum für Kunst und Medientechnologie – ZKM (Centro de Arte e Mídia), e a iluminação que sai do teto é apenas a primeira instalação do Medienmuseum, o Museu de Mídia, um dos inúmeros espaços de produção, exposição, conservação e pesquisa de arte contemporânea e eletrônica existentes no prédio. A luz, só para esclarecer, obedece a um sensor de movimento. No teto, a dezenas de metros de altura, uma caixa de som direcional faz com que só a pessoa focada escute a voz em alemão. Não é magia. É ciência. E arte. Segundo um folheto de divulgação do museu, o lugar foi pensado para proporcionar “uma interação entre homem e obra de arte” e o visitante “não consumirá passivamente os trabalhos expostos”. Durante horas, é possível entrar em contato com obras de arte eletrônica apertando botões, mexendo o corpo para ser detectado por um sensor, interagindo com (e não apenas recebendo) áudios e vídeos. Tudo em clima de brincadeira, pois o museu, que conta com uma área de 6.344 metros quadrados, pretende mesmo ser lúdico.
Centro desenvolve formas de preservação de acervos de arte tecnológica
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Obras expostas no Museu de Arte Contemporânea do ZKM
Perambulando pelo local, o público pode parar na sala onde está a obra The Interactive Plant Growing, de Christa Sommerer e Laurent Mignonneau������������ . Lá há cinco vasos com plantas, entre elas um cacto. Ao se encostar nas folhas, uma planta virtual começa a crescer numa tela projetada na parede. Caso alguém resolva arrancar um pedaço do vegetal, por acreditar que ele não seja de fato real, verá que está enganado. Mas de que jeito essas plantas podem sobreviver nessa sala escura? O que há por trás disso tudo?
nosso tempo. O Museu de Mídia do ZKM é um desses media centers do mundo, mas não só isso. Ele é um farol para os demais, pois lá se trabalha com um conceito até então associado a coisas velhas, o conceito da “preservação”. Afinal, a arte eletrônica não nasce pensando que um dia vai se tornar velha. “Qualquer pessoa, olhando para obras de arte eletrônica, tecnicamente perfeitas, provavelmente não gaste muito tempo pensando como as futuras gerações poderão compartilhar a mesma experiência”, comen-
...as novas tecnologias ficam velhas muito rápido. Como manter a memória de um momento artístico em meio a tanta velocidade? Tecnologia em preservação Com o desenvolvimento da arte eletrônica, surgiu a necessidade da existência de media centers, lugares para exposição de obras que utilizam as mídias mais modernas do
ta Christiane Fricke, jornalista especializada em arte, em artigo sobre o problema da conservação da arte eletrônica. ”A opinião popular parece dizer que tudo que vai para um museu e é reconhecido como uma conquista cultural merecedora de preservação e de acesso público deve ter certa durabilidade.“ Acontece que as novas tecnologias ficam velhas muito rápido. O que fazer com elas?
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Interação faz parte do propósito da instituição
Em uma sala do museu, estão reunidas dezenas de aparelhos de vídeo de todas as épocas. Em outra, a coleção é de videogames. Também há muitas outras mídias, que foram altas tecnologias em determinado período e hoje se tornaram lixo. Mas não para o ZKM, que treina continuamente técnicos para operar esses equipamentos, não importa quão arcaicos sejam. Obras de arte que usam mídias ou software que já caíram em desuso são decodificadas para outro formato, mas paralelamente a isso os equipamentos do formato antigo são mantidos. Uma história dos bastidores do Museu de Mídia conta a situação de um videoartista que usava um projetor antigo em seu trabalho. O uso de um equipamento novo alterava o esquema de cores da obra. A solução foi treinar alguém para consertá-lo e mexer no aparelho. O ZKM faz isso para cada obra nova que chega, conforme a necessidade. De plantas e de munição A artista Lenara Verle, doutoranda em arte eletrônica na Universidade de Frankfurt, fez residência por três meses no ZKM, em 2005. Nesse período, teve acesso a todos os setores do centro. Numa sala 58
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de convivência, notou diversos vasos de plantas. Algumas estavam um pouco deterioradas, com folhas arrancadas; outras estavam em pleno vigor; outras, ainda, eram apenas brotos. Alguém explicou a Lenara que ali repousavam as plantas usadas em uma obra do Museu de Mídia. Elas descansavam do “trabalho” exaustivo, pois salas escuras não são lugares para vegetais. Outras eram preparadas para substituir as que estavam atualmente na exposição. O que acontece nessa sala do ZKM é uma metáfora para todas as atividades do centro: nada é jogado fora, nada é descartável, e as atividades de sustentação ocupam um vasto espaço físico e exigem muita energia. Além disso, como se já não bastasse o esforço dispensado em conservação e exposição, o ZKM produz, e muito. Em 1986, um grupo de políticos e representantes do meio acadêmico e cultural da cidade de Karlsruhe se reuniu com a intenção de fundar um centro de novas mídias. O projeto pensava o centro na forma de três círculos de atuações interconectados: pesquisa e desenvolvimento; evento e disseminação; e educação e suporte. Fundado sob lei pública, a inauguração foi em 1989, com atividades mantidas por verba municipal e estadual e também por terceiros.
Em 1997, o ZKM foi reunido em uma antiga fábrica de munição da Segunda Guerra Mundial. É lá que ele permanece até hoje, com dois museus (o de Mídia e o de Arte Contemporânea), quatro institutos de pesquisa e produção e outras atividades de sustentação e conservação. No prédio também estão a Galeria Municipal e a Faculdade de Design, Mídia e Artes, que não pertencem ao ZKM mas são parceiras em muitos projetos. Hoje, o tripé de valores mudou um pouco, embora siga o espírito inicial: pesquisa e produção; exibições e eventos; e coleções e arquivos. Um centro descentralizado O ZKM possui coleções de terceiros, mas também produz por meio dos institutos. O Instituto de Mídias Visuais foi fundado em 1991 e trabalha com o que há de mais moderno em tecnologias de vídeo. Projetos com ambientes imersivos e novas tecnologias de edição são desenvolvidos lá. O Instituto de Cinema produz filmes, preferencialmente documentários e obras filosóficas, em parcerias internacionais. O Instituto de Mídia e Economia realiza eventos para refletir sobre o processo da arte contemporânea em geral. Por meio dele, o ZKM conseguiu trazer filósofos como Guy Debord, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jean Baudrillard e Paul Virilio para discutir arte, mídia e sociedade. O Instituto de Música e Acústica é responsável por uma construção moderna do lado de fora da antiga fábrica de munição. Nesse espaço, conhecido como
Cubo, são feitas apresentações e performances com vídeo e música eletroacústica. Os limites dos espaços tradicionais de execução musical são expandidos por meio de um sistema diferenciado de som: 47 altofalantes estão dispostos na forma de um globo, de modo que a música chega ao público de várias direções, criando, assim, um ambiente imersivo. “É como se numa orquestra os músicos não ficassem parados, mas, sim, rodando pela sala com seus instrumentos”, explica Ludger Brümmer, diretor do instituto. O ZKM é chamado de centro porque reúne uma série de atividades, não apenas a museologia. Como diz Brümmer: “A maioria dos museus se preocupa apenas com a parte de exposição. Nós também produzimos, conservamos e pesquisamos”. Atualmente, o centro desenvolve o AmaZoneWar. Trata-se de um projeto de videoarte que envolve artistas de várias partes do mundo, inclusive do Brasil. A colaboração é interinstitucional (em parceria com a Bienal de Munique e instituições como Goethe-Institut São Paulo, Ministério da Cultura do Brasil, Petrobras/Cenpes, Sesc-SP e Hutukara Associação Yanomami, de Boa Vista) e também multimídia: o CD do projeto é resultado do trabalho conjunto do Instituto de Música e Acústica e do Instituto de Mídias Visuais. Sem falar que é interdisciplinar, pois a obra se preocupa com o problema da devastação da Amazônia. Afinal, o ZKM nunca vai deixar as plantas serem jogadas fora.
Saguão de entrada do media center
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reportagem
DJs da modernidade em movimento A referência e a edição seguem como procedimentos estéticos, seja no passado, seja na contemporaneidade. Por Carlos Costa (com colaboração de Roberta Martinho) | Ilustração Mariana Coan
Arte (rubrica: estética) Produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana. Derivações: por extensão de sentido: 1 – O talento, a contribuição própria da inteligência e da sensibilidade de um artista, 2 – A tendência geral e/ou a totalidade das manifestações artísticas em determinada época, fase, lugar etc. (excertos do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)
A avalanche do modernismo e do pós-modernismo destruiu os conceitos estabelecidos sobre a arte. O caráter, o suporte e até o significado do vocábulo foram questionados e reorganizados. No meio da confusão, o papel do artista também foi interpelado e o exercício do fazer artístico buscou novos parâmetros. Para parte da crítica especializada o artista passou a ser classificado como editor de conteúdos. Um exemplo vem do crítico de arte e curador francês Nicolas Bourriaud, que escreveu o ensaio Postproduction: Culture as Screenplay: How Art Reprograms the World (em livre tradução, Pós-Produção: Cultura como um Roteiro: Como a Arte Reprograma o Mundo), editado em 2002 (Sternberg Press, Estados Unidos). Para ele, a atividade de um disc jockey (o DJ) é comparada ao trabalho do artista contemporâneo. Em linhas gerais, o texto de Bourriaud analisa a produção das artes visuais pós-1990 no contexto da cultura globalizada da era da informação, e ressalta a interpretação, a reprodução e a reexibição, cada vez mais frequentes, de outras obras nos trabalhos artísticos atuais.
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Editores, não criadores A ideia ecoa no Brasil. O crítico e pesquisador de arte contemporânea Guy Amado, quando questionado sobre a classificação do artista como editor, cita o trabalho de Bourriaud e completa, “apropriação, reciclagem, colecionismo, reordenação de conteúdos; métodos e procedimentos se confundem e alargam a acepção mais clássica da noção de edição, permitindo um leque de práticas em que o artista passa, às vezes, a ser associado à figura de um DJ esquizofrênico” [leia na versão on-line o Glossário de arte contemporânea criado por Amado].
Agnaldo Farias, professor, crítico de arte e curador, valida a comparação. “Hoje, como sempre, o artista segue mais como um editor de conteúdos do que como um criador.” Farias recorda que criar é um verbo empregado pelos românticos com o propósito de mistificar a arte. ”Produz-se olhando para a história. É assim em qualquer campo – da odontologia à navegação; da medicina à astronomia −, por que na arte haveria de ser diferente?”, questiona. Seguindo a mesma linha de pensamento, o crítico de música e de arte e professor Lorenzo Mammi acrescenta: “Os artistas sempre trabalharam a partir de conteúdos ou códigos. A dificuldade da arte atual, creio, consiste em não haver mais um terreno em comum que garanta a comunicação das obras entre si“.
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Feitos de referências E os artistas contemporâneos, o que acrescentam ao debate? Leya Mira Brander, gravurista e desenhista selecionada em 2002 pelo programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais e participante da última Bienal de São Paulo, opina: “Não sei como seria criar algo do nada. Somos feitos de referências e isso acontece em qualquer área, não só no campo da arte”.
Ponto de vista similar apresenta o pintor, desenhista e professor Dudi Maia Rosa. “É preciso experiência, calma e abrir mão dos preconceitos para que as coisas se aclarem e mostrem seu valor ou inconsistência. Já errei muito me precipitando. Prefiro deixar o trabalho existir e ir me entendendo com ele.”
“O artista segue mais como um editor de conteúdos do que como um criador.” (Agnaldo Farias) Nelson Leirner, renomado artista multimídia na produção contemporânea brasileira, rebate a comparação entre edição e criação, afirmando que é tudo uma questão de significado e interpretação, e prefere responder com seu trabalho. “Vocês decidam e eu sigo meu caminho”, opta.
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Arte rupestre Leirner e outros artistas, como Lourival “Cuquinha” Batista, também selecionado pelo Rumos Itaú Cultural Artes Visuais, na edição de 2007, comentam que a arte rupestre é a referência inicial de toda a produção humana. “A arte pré-histórica vai ser sempre uma referência, apenas mudam os objetivos”, afirma Leirner. “Desenhar vai ser sempre uma releitura dos primeiros desenhos rupestres”, reforça Cuquinha.
Modernidade em mudança Outro indício de que a produção artística não cessa e a subjetividade humana não cala é a trienal de artes visuais da Tate Britain, Altermodern, que Bourriaud organizou neste ano, em Londres. Iniciada em fevereiro e com eventos programados até 26 de abril, a trienal está baseada na tese de que o pós-modernismo morreu. Vivemos agora o que poderá se chamar de altermodern, neologismo forjado pelo crítico para dar nome ao estilo de arte da década de 1990 em diante. Altermodern une as palavras de origem latina alter e modern, e poderia ser traduzida como modernidade alterada, modernidade em mudança. Ao explicar o termo, o crítico ressalta o significado de mobilidade da palavra alter: o movimento inerente a uma alteração, a uma mudança. Esse aspecto é reforçado pelos
“Desenhar vai ser sempre uma releitura dos primeiros desenhos rupestres.” (Cuquinha) O crítico, curador e professor Tadeu Chiarelli [leia a resenha do autor na página 12] entra no coro e ressalta que a presença das referências na produção artística é normal, recordando gênios renascentistas e modernos. “Pegue qualquer artista considerado ‘gênio’ – Da Vinci, Pontormo, Rubens – e tente encontrar obras deles que não sejam citações, reinterpretações de obras passadas. Picasso, Cézanne e tantos outros modernos também pautaram muitas de suas obras em referências do passado e em releituras.” Para o escultor Luiz Hermano, a arte vive em expansão e retração, assim como o universo. “Julgamentos sobre seu valor são sempre reacionários”, arremata.
títulos dos prólogos (blocos temáticos compostos de colóquios, happenings e exibições) que ocorrem na trienal, para fomentar a discussão sobre essa arte atual. O primeiro é homônimo à mostra. Os demais, em português, seriam Exílio, Viagens e Fronteiras. Assim, Bourriaud amarra a discussão à questão da imigração em seus múltiplos significados no mundo globalizado que habitamos. E o grande desafio atual do artista, nessa perspectiva, seria estar inserido no contexto globalizado, mantendo com vida e sotaque próprios sua produção. A conclusão sobre arte contemporânea, seu valor e seu legado caberá ao tempo. Ou, no dizer de Dudi Maia Rosa, “vamos ver quem tem pernas para ir mais longe”.
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reportagem
(Quase) ao alcance de todos Acusada de dar as costas ao público, a arte contemporânea envolve artistas e instituições no desafio de erguer mais pontes para o “mundo lá fora”. Por Tatiana Diniz | Fotos Cia de Foto Uma sala vazia onde o que está exposto e à venda é o ar. Um falso crânio humano cravejado de diamantes. Um vídeo de 32 minutos nos quais meio tomate é lentamente esfregado sobre um corpo nu. De um lado, o resultado do processo criativo do artista contemporâneo, acompanhado de suas devidas explicações conceituais. De outro, o olhar do espectador, muitas vezes seguido de uma interrogação evasiva. No meio, o esforço criativo das equipes de instituições de arte, que tentam unir as duas pontas e fomentar mais diálogo sobre a relação. O desafio não é simples, assim como a distância entre arte e público não é novidade. Mas se torna ainda mais complexo no caso da produção contemporânea, em que a reduzida popularidade de muitas mostras acirra discussões. “Indagações como ‘para que serve?’ ou afirmações de que ‘isso não é arte’ são reações comuns das pessoas. Em comparação a outras manifestações humanas, a arte sofre uma falta de reconhecimento por parte do público em geral”, observa Mila Chiovatto, coordenadora de ação educativa da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Embora o hábito de frequentar exposições tenha aumentado e os espaços destinados a elas tenham se multiplicado, pouco se observa de real aproximação entre público e arte, dizem os especialistas. “O que há hoje é uma proliferação de galerias e museus, inclusive algumas vezes o próprio prédio é a grande atração. O hábito de frequentar esses lugares cresceu, mas isso não é sinônimo de uma aproximação da arte contemporânea com o público. Há, sim, uma dificuldade nessa relação”, observa Marisa Mokarzel, professora de história da arte da Universidade da Amazônia e membro do conselho curador do Museu da Universidade Federal do Pará. Em um dos mais famosos desses prédios-atração, a Tate Modern, de Londres, a meta de alargar as portas de entrada diversificando o perfil dos visitantes e facilitando a interação do público com a produção artística é perseguida há nove anos pela equipe de Projetos Públicos (Public Programmes), setor do departamento educativo da instituição. “Nosso papel é desenvolver iniciativas que possam envolver o público adulto por meio de um diálogo participativo sobre todos os aspectos da cultura visual. Com mais de cem eventos por ano, de palestras e seminários a oficinas e cursos, o objetivo é atingir mais audiência”, explica Sandra Sykorova, documentarista, mestre em antropologia visual pela escola de arte londrina Goldsmith College e curadora assistente do departamento. Anualmente, 200 mil pessoas participam de atividades baseadas na Tate e outras 500 mil fora dela, via website e projetos externos. Mas certeza de sucesso não há. “A pergunta permanece: estamos conseguindo? Mesmo com estatísticas dizendo que somos uma das mais populares
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galerias de arte moderna e contemporânea do mundo, a dificuldade de dialogar com aqueles que vivem no nosso entorno ainda existe”, admite Sandra. A barreira experimentada na Tate se reproduz em diferentes escalas e aponta para uma relação ainda marcada pela distância do público, em que a produção artística segue ocupando um lugar de isolamento na sociedade. Em outras palavras, a arte contemporânea continua sendo assunto “para poucos”. Apesar disso,
denador da graduação em produção cultural da Universidade Federal Fluminense, para quem o momento é de “mudanças de paradigmas em relação à ressignificação das instituições com base nas práticas e nos processos artísticos contemporâneos”.
“Jovens carentes são muitas vezes mais aparelhados para um engajamento na arte contemporânea do que os da classe média.” (Guilherme Vergara) mais e mais investimentos são destinados à visibilidade dela, como ressalta Mila: “Há hoje nítido interesse em mostrá-la, verificável pelas grandes exposições, pelos maciços investimentos e pela manutenção e proliferação de exibições internacionais”, descreve. Microgeografias de esperança Essa contradição vem alimentando um questionamento sobre a função das instituições públicas, “responsáveis pela circulação e formação de novos valores artísticos”, como descreve Luiz Guilherme Vergara, coor-
De acordo com Vergara, pistas sobre possíveis rumos dessa ressignificação estariam latentes nos princípios de resistência estética presentes na própria produção contemporânea, em movimentos que ele chama de “microgeografias de esperança”. Ele explica que o panorama atual não concentra mais “propostas artísticas monumentais ou revoluções estéticas formalistas, mas princípios éticos de construção coletiva de experiência, narrativa e memória. As teorias e os processos de criação artística propõem princípios híbridos – para atuação das instituições e dos artistas”, define.
Mediação é a palavra-chave para o entendimento
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Menos pode significar mais Em meio ao fogo cruzado, um inegável potencial inclusivo tem permitido à arte contemporânea exercitar novas maneiras de encarar o público e se esquivar da recorrente acusação de dar as costas ao “mundo lá fora”. Isso derruba o argumento de ser essa uma arte difícil ou presunçosa por seu excesso de conceitos e abstrações. “A natureza conceitual e abstrata da arte não é por si uma barreira, já que uma experiência está presente. Por exemplo, o trabalho de Cildo Meireles contém múltiplas referências intelectuais e um refinamento conceitual preciso, mas é capaz de dialogar com diversos tipos de pessoas, independentemente de idade, educação, classe e bagagem cultural. Isso porque a obra se manifesta como uma experiência, um momento de reconhecimento com o qual a humanidade pode se relacionar, criando uma relação sensorial e perceptiva”, afirma Gabriela Salgado, curadora do departamento educativo da Tate Modern. Some-se a isso o fato de que interações e respostas vindas de camadas sociais que não são fre-
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quentadoras de espaços expositivos também surpreendem e se inserem como característica crescente nos circuitos. Na complicada equação da receptividade ao discurso artístico contemporâneo, menos pode significar mais: “Jovens de camadas sociais carentes, excluídos, são muitas vezes mais aparelhados ou disponíveis existencialmente para um engajamento multissensorial/polissêmico na arte contemporânea do que muitos jovens bem-alimentados e nutridos das benesses e dos confortos da classe média”, diz Vergara. Na busca por mais pontes, espaços expositivos têm investido em fórmulas que destranquem prédios fechados e enfatizem mais contato entre visitantes e obras, deixando para trás os “iniciados” como sua principal audiência. Na Tate Modern, Gabriela assina a curadoria de eventos como The Fight (2007) e Meshes of Freedom (2008), que envolvem diferentes comunidades de Londres para que a arte vá às pessoas e vice-versa. No MAM/RJ, o preparo para receber visitantes tem se diversificado: deficientes auditivos já contam com monitorias pensadas para eles, e universidades e empresas figuram como parceiros na intenção de alargar o circuito. Na Casa das Onze Janelas, no Pará, uma combinação de análises quantitativas e qualitativas mapeou a relação do visitante com o acervo. O esforço resultou na criação de caixas multissensoriais com réplicas de determinada obra e uma gaveta com instrumentos e fragmentos do procedimento de sua feitura, para que o visitante possa sentir o processo. Iniciativas como essas não apenas revelam possibilidades de mais diálogo entre arte e sociedade. Também evidenciam que o fomento desse diálogo pode enriquecer a abordagem das instituições na sua acrobática missão de atrair mais público sem cair na tentação de achatar a originalidade da produção artística a fim de torná-la meramente digerível. Afinal, é clara a necessidade de maior democratização de uma linguagem reconhecida como exercício de liberdade, mas ainda pouco empregada como artifício de libertação.
A arte contemporânea vem exercitando novas maneiras de encarar o público
Mediação pode ser a palavra-chave, embora igualmente não sejam poucas as críticas à função do mediador. Maria Tornaghi, ex-coordenadora do departamento educativo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ) e do Núcleo de Crianças e Jovens da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, comenta que, desde que foi separada do artesanato no século XVIII, a arte ganhou autonomia, mas, simultaneamente, afastou-se do cotidiano. “Esse talvez seja um fator responsável pela dificuldade de comunicação com o público. Isso teria fortalecido o papel de um mediador: um crítico, um educador, um curador. No entanto, há quem diga que nada pode substituir a experiência do contato direto com a obra.” Para ela, o não reconhecimento por parte do público também reflete traços da proposta contemporânea: “Pode ser que arte e vida tenham ficado tão parecidas que arte não seja mais reconhecida como tal”.
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