Continuum 30 - Abril-Maio/2011

Page 1

O AMOR É VELHO E MENINA Novas cantoras mostram outros jeitos de ser romântico CASA QUE SE TRANSFORMA Em Museus do Mundo, a memória de um relacionamento às escondidas MARÇAL PLURAL O escritor Marçal Aquino fala, na Entrevista, de cinema, TV e literatura ANIMAIS EM FUGA Lourenço Mutarelli estreia HQ em seis capítulos

distribuição gratuita

EM BUSCA DE IDENTIDADE Seção Mirada revela o Paraguai que o brasileiro não conhece

SEM POUPAR

CORAÇÃO O amor foi a matéria-prima da arte de Leonilson

30 abril - maio 2011

revista . itaú cultural

{

}

nesta edição: FICHÁRIO – abordagens diferentes sobre um mesmo tema: amor


MUSEUS DO MUNDO

ilustração: fernando chamarelli


31 30

itaucultural.org.br/ CONTINUUM


UMA NOVA REVISTA Com três anos de estrada e um prêmio da Academia Brasileira de Crí-

romantismo, sobre por que nos identificamos com determinadas cidades

ticos de Arte no currículo, a CONTINUUM já passou por outras mudanças,

ou ainda sobre os barracos de alguns casais de artistas famosos.

mas não tão grandes quanto esta. Com a chegada da 30a edição, era o momento de se aproximar de pessoas que não leem a publicação. Claro,

As novidades continuam do lado de fora dessa seção. Lourenço Mutarelli

isso sem perder de vista o público que já é fiel às nossas páginas. Dessa

passa a ser o quadrinista da revista, estreando em grande estilo com a HQ

forma, acreditamos, a CONTINUUM contribui para uma das missões mais

Animais em Fuga, na página 39. Marçal Aquino, o escritor multimídia que

importantes do Itaú Cultural: fazer com que a arte e a cultura sejam um

sempre rende um bom papo, fala de sua arte na Entrevista; e a seção

direito de todos os brasileiros.

Mirada ganha mais destaque a partir deste número, em que mostramos uma reportagem especial feita no Paraguai.

A reforma começou com a escolha de um formato maior que o anterior e que permitisse dobrar a revista, facilitando seu manuseio. Um novo projeto

A Área Livre, que desde o começo da revista abre espaço para que os

gráfico foi elaborado, com a criação de logomarca, mudança de fonte e

leitores participem mostrando sua arte, vai mudar um pouco a sua cara.

mais espaço para “brincar” com fotos, ilustrações e recursos gráficos que

A partir da próxima edição, não será necessário se prender a um tema

enriquecem a leitura e alimentam o olhar. Seções foram criadas e outras

fixo. Contos, ensaios, poemas, reflexões, fotografias, pinturas digitalizadas,

renovadas. É o caso da novíssima Museus do Mundo, que a cada edição

ilustrações sobre qualquer assunto serão bem-aceitos. A redação analisará

vai enfocar uma instituição cuja atuação seja diferenciada, ou cuja concep-

todas as contribuições, mas apenas um trabalho será publicado a cada nú-

ção fuja do modelo tradicional.

mero. E para recompensar o profissional escolhido doaremos exemplares de produtos do Itaú Cultural que possam contribuir para o aprimoramento

Não se muda de verdade se não se faz uma aposta. Seguindo essa máxi-

do processo criativo do vencedor da ação. Então comece a pensar no seu

ma, a redação ousou e decidiu abandonar a linha editorial de um tema

trabalho. Envie quantos materiais desejar para o e-mail participe conti-

único a cada edição. Agora, a CONTINUUM é uma revista de arte e cultura

nuum@itaucultural.org.br. O espaço já está aberto à sua participação!

contemporânea antenada com o que acontece no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Mas nem por isso deixamos de lado as reflexões sobre de-

Se gostou da nova CONTINUUM, escreva para continuum@itaucultural.org.br:

terminados aspectos da vida: no Fichário, matérias vão tratar de um tema

queremos muito ler sua opinião, críticas e elogios. As mensagens, que po-

que aguça a curiosidade dos leitores. Para começar escolhemos o Amor,

derão ser editadas a critério da redação, serão publicadas sempre na edição

inspirados pelo grande artista brasileiro Leonilson, que em suas telas, de-

seguinte à do assunto comentado.

senhos e bordados mostrou todas as dores e alegrias de amar. O assunto rendeu reportagens sobre a forma como as novas cantoras interpretam o

Boa leitura!

ilustração: fernando chamarelli

na web: itaucultural.org/continuum

COMPARTILHE SUA CONTINUUM Leia e passe adiante! Pratique o desapego. Assim, você fará com que mais pessoas tenham acesso a este conteúdo, sem que seja necessária a impressão de mais exemplares. Estamos organizando os pontos de distribuição da revista. Assim que eles estiverem fechados, a gente conta onde é possível pegar o seu exemplar. Por enquanto, eles estão disponíveis gratuitamente na sede do Itaú Cultural, na Avenida Paulista, 149, metrô Brigadeiro. Mas lembre-se, assim que acabar de ler, compartilhe sua CONTINUUM!


andré penteado

andré seiti

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Ana de Fátima Sousa EDIÇÃO EXECUTIVA

Marco Aurélio Fiochi ASSISTÊNCIA À EDIÇÃO

Carlos Costa PROJETO GRÁFICO E DESIGN

Marina Chevrand CONSELHO EDITORIAL

Ana de Fátima Sousa Claudiney Ferreira Eduardo Saron Guilherme Kujawski Jader Rosa Marco Aurélio Fiochi

10 14

06

REPORTAGEM E REDAÇÃO

André Seiti Roberta Dezan

10 14 F

I

C

H

Á

R

I

O

EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA

André Seiti MIRADA |

PRODUÇÃO EDITORIAL

Isabella Protta Lara Daniela Gebrim Maria Clara Matos COLABORARAM NESTA EDIÇÃO

No cinema, na TV e nas estantes, Marçal Aquino não para.

Adriana Lisboa Adrienne Myrtes André Penteado Andréa del Fuego Antonio Prata Augusto Paim Bia Abramo Caio Kauffmann Cristina Ortega Daniel Galera Daniela Arrais Dea Lellis Estevan Pelli Estúdio Ludens Fernanda Castello Branco Fernando Chamarelli Ferréz Giulia Moon Guilherme Castoldi Ivana Arruda Leite João Silvério Trevisan Luiz Ruffato Lourenço Mutarelli Mariana Lacerda Mariana Sgarioni Maurício Pereira Micheliny Verunschk Pedro Henrique França Reinaldo Pamponet Rodrigo Levino Tatiana Diniz Zé Otávio Zéu Britto

londres tropical A dupla brasileira Tetine agita a cena musical da capital inglesa com seu tropical mutante punk funk.

REPORTAGEM |

A

M

O

R

espelho, espelho meu Amar determinadas cidades do mundo tem estreita ligação com a formação de nossa personalidade. sexo, mentiras e posts Na Ficção, minicontos mostram jeitos nem sempre românticos de amar. o amor é velho e menina Jovens cantoras ainda têm o amor como tema de suas canções, mas agora de uma forma diferente. casa que se transforma Na seção Museus do Mundo, a história da Casa Rietveld Schröder, marco da arquitetura.

16

18 23

24 26 30

AGRADECIMENTO

Rodrigo Lacerda (consultoria) ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007) Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento continuum@itaucultural.org.br Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

33

entre tapas e beijos Uniões afetivas entre artistas podem gerar grandes histórias de amor, ou grandes problemas.

capa: leonilson foto: ronaldo miranda tratamento: fujocka arquivo projeto leonilson

na vida e na arte Dicas que ampliam os assuntos da revista. Veja também sugestões de sites. BALAIO |

O AMOR É VELHO E MENINA Novas cantoras mostram outros jeitos de ser romântico CASA QUE SE TRANSFORMA Em Museus do Mundo, a memória de um relacionamento às escondidas MARÇAL PLURAL O escritor Marçal Aquino fala, na Entrevista, de cinema, TV e literatura

R E P O R T A G E M | cultura, uma nova moeda

ANIMAIS EM FUGA Lourenço Mutarelli estreia HQ em seis capítulos

distribuição gratuita

EM BUSCA DE IDENTIDADE Seção Mirada revela o Paraguai que o brasileiro não conhece

A economia criativa ganha força e passa a ser prioridade na política cultural.

SEM POUPAR

CORAÇÃO O amor foi a matéria-prima da arte de Leonilson

A R T I G O | economia para todos

O empreendedor Reinaldo Pamponet analisa como as indústrias criativas reinventaram o trabalho.

30 abril - maio 2011

animais em fuga Lourenço Mutarelli cria HQ em formato de folhetim. QUADRINHOS |

{

}

nesta edição: FICHÁRIO – abordagens diferentes sobre um mesmo tema: amor

revista . itaú cultural

capa-leonilsonok.indd 1

4/6/11 12:05 PM

CONTINUUM

04

05

39

Polyana Lima

E N T R E V I S T A | marçal plural

ouro de artista é amar bastante Um dos principais artistas visuais brasileiros, Leonilson criou obras sobre todas as formas de amor.

37 38

REVISÃO

Paraguai prepara-se para comemorar 200 anos de independência.

mente e coração Saiba por que todo ser humano está biologicamente programado para amar.

34

em busca de identidade


paraguai MIRADA |

Arquitetura colonial, como nas demais capitais de antigas colônias ibéricas

EM BUSCA DE IDENTIDADE A seção Mirada, que trará, a cada edição, reportagens sobre a América Latina, volta os olhos para o Paraguai neste número. Prestes a comemorar o Bicentenário da Independência, o país investe na nova geração para reforçar sua herança cultural.

TEXTO augusto paim

FOTOS caio kauffmann


O INVESTIMENTO DO GOVERNO PARAGUAIO EM CULTURA É RECENTE E TEM LIGAÇÃO COM A PROXIMIDADE DO ANIVERSÁRIO DE 200 ANOS DA INDEPENDÊNCIA, A SER COMEMORADO EM MAIO DE 2011.

Em 2010, durante a Copa do Mundo, o canal de TV a cabo SporTV veiculou uma matéria que ridicularizava a cultura do Paraguai. Embora em tom de humor, o conteúdo teve repercussão negativa. Pouco tempo depois, a emissora se retratou com outra matéria que mostrava o respeito que antes faltara. Os ânimos se acalmaram, mas ficou no ar uma pergunta: o que de fato sabe o brasileiro sobre o seu vizinho?

tros países de língua espanhola onde há editoras de grande porte.

equilíbrio e destreza”, conta. Em apresentações de gala, no entanto, usam-se mais garrafas.

Na direção contrária à hegemonia dessa cultura estrangeira, os paraguaios estão lentamente retomando sua identidade, e o estímulo ao resgate da autoestima cresce a reboque das comemorações do Bicentenário da Independência do país, a ser celebrado em maio de 2011.

MÚSICA

Uma visita a uma livraria da capital, Assunção, foi a forma escolhida por esta reportagem para começar a conhecer a cultura do país. As obras, de modo geral, carecem de um acabamento gráfico cuidadoso e é difícil identificar os grandes nomes das letras nacionais. Depois de pesquisar mais, fica-se sabendo que Augusto Roa Bastos (1917-2005), autor de mais de 20 livros, é o grande escritor local. Seguem-no Helio Vera, Elvio Romero, Moncho Azuaga, Gabriel Casaccia e Rubén Bareiro Saguier. A literatura em guarani, segundo idioma oficial do país, também tem destaque, inclusive com obras sobre temas contemporâneos. No entanto, os livros que chamam mais atenção nas livrarias são importados de ou-

Como a maior parte da população é jovem, as ações do governo para a data têm se voltado especialmente para as crianças. É o caso da revista 1811, uma história em quadrinhos infantil. Outra iniciativa ufanista esteve no palco do Teatro Municipal de Assunção: Lizza Bogado y Cía, espetáculo criado pela cantora Lizza Bogado. A encenação traz músicas e danças tradicionais que festejam a “paraguayidad”. Acompanham a cantora mais de 30 profissionais, entre músicos, corpo de baile e um coro de crianças. Em um dos números, as dançarinas equilibram garrafas e vasos. Jessica Fernandes, a coreógrafa, explica que essas são danças folclóricas do país. “Normalmente a dança é com uma só garrafa e o objetivo é mostrar

O investimento público no setor cultural é recente. Existe um fundo nacional, o Fondec, mas, na opinião de Sergio Ferreira, essa verba “não atende à demanda dos artistas paraguaios”. O editor do caderno de artes e espetáculos do Diário ABC, maior jornal do país, observa que os projetos mais caros, como os de cinema, só vingam com investimentos privados.

CONTINUUM

06

07

A Orquestra Sinfônica Nacional do Paraguai ensaia em um prédio antigo de Assunção. São 75 músicos contratados, a maioria jovem. O grupo existe há pouco tempo, desde 2008, e é baseado em outra formação, de 2004. O maestro e diretor da orquestra, Juan Carlos dos Santos, conta que no país há duas faculdades de música. Interrogado sobre a existência de uma música clássica paraguaia, opina: “Temos déficit, mas há compositores, que desenvolvem uma produção mais nacionalista”. O governo, inclusive, pede peças específicas a jovens criadores, estimulando o surgimento de talentos.


paraguai MIRADA |

1

A situação da música está melhorando graças a projetos como o Sonidos de la Tierra, dirigido pelo maestro Luis Szarán, que tem aberto conservatórios e formado orquestras em todo o país. Já alcançou milhares de jovens, e os primeiros frutos começam a aparecer e inspirar iniciativas similares na Argentina e no Uruguai. O sucesso deve-se a incentivos públicos e privados e a ações voluntárias, como a da sul-coreana Angela Jung-Eun, codinome Chae, de 29 anos, que está no Paraguai há cerca de dois anos ensinando música clássica a crianças e adultos. A polca e a guarânia são os ritmos mais conhecidos da música popular, mas há espaço para outros estilos. É o caso do grupo de metal alternativo Flou e dos movimentos musicais de protesto, como o Nuevo Cancionero Paraguayo, com composições contra a ditadura feitas na década de 1970, e o mais recente Canción Social Urbana. Nesse grupo, destaca-se o trabalho de Víctor Riveros, que canta em guarani. Outros nomes de destaque são Félix Pérez Cardozo (“El Padre del Arpa Paraguaya”), Luis Alberto del Parana y Los Paraguayos e José Asunción Flores, criador da guarânia. Dessa lista poderia ainda constar Agustín Pío Barrios, também conhecido como Mangoré. Famoso violonista clássico do século XIX, ele foi homenageado, em meados dos anos 1990, pelo australiano John Williams, com o disco The Great Paraguayan – From the Jungles of Paraguay. ARTES VISUAIS, CINEMA E MEMÓRIA

Assunção possui muitos prédios que preservam a memória cultural, histórica e artística, como o Museo Juan Sinforiano Bogarín, o Centro Cultural de la Ciudad, o Museo Memoria de La Ciudad, a Casa de la Independencia e o Panteón de los Héroes. Outras instituições, como o Centro Paraguaio Japonês, o Centro Cultural Paraguaio Americano e o Centro Cultural de España Juan de Salazar, também contribuem para a cena artística da capital. O Centro Cultural de la República el Cabildo, principal reduto da história da cultura paraguaia, foi criado há seis anos, no antigo prédio

do Congresso Nacional. Uma pequena sala dessa instituição reúne parte da história do cinema local, desde as produções audiovisuais mais recentes até filmes antigos. O cinema ainda é incipiente, embora seja a área que mais cresce no país. O filme Hamaca Paraguaya, da diretora Paz Encina, é um exemplo de sucesso: foi premiado em Cannes, em 2006. Em outro lado da cidade, no bairro San Jorge, está localizado o Centro de Artes Visuales Museo del Barro. Criado em 1979, é dividido em três espaços: um destinado à arte indígena, outro à arte sacra e o último à arte contemporânea. Atualmente, destacam-se no circuito artistas visuais como Osvaldo Salerno, Carlos Colombino e Olga Blinder. Colombino tornouse internacionalmente conhecido por ter criado uma técnica chamada xilopintura – em que se pinta sobre a madeira talhada, no lugar de usá-la como molde. O prédio dessa instituição também é dividido com a Fundação Migliorisi, responsável por expor a obra de Ricardo Migliorisi, artista contemporâneo do país com destaque internacional. ARTES CÊNICAS

O Paraguai tem larga tradição teatral, com ênfase para o El Ateneo Paraguayo, curso para atores fundado em 1883, de onde saíram nomes como o da atriz María Elena Sachero, diva dos palcos nacionais com peças como Tartufo, de Molière, no currículo. Em meados do século XX, um importante núcleo de formação foi criado: a Escola Municipal de Artes Cênicas. Mais recente é a Fundação Arlequín Teatro, de 1982. Mas existem várias outras escolas de teatro no país. Uma particularidade das artes cênicas é o teatro em guarani. Surgido na década de 1930, tem como criador o diretor Julio Correa. Hoje há um bom número de diretores que seguem essa vertente, qualificada por Angel Franco, funcionário do Teatro Municipal de Assunção, como “muito difícil”. Franco tem 55 anos e há 14 é o responsável por tudo que envolve cenário e palco em cada apresentação na casa.

Questionado sobre as grandes peças do teatro paraguaio, ele recorda uma versão do diretor Agustín Núñez para Yo el Supremo, novela de Augusto Roa Bastos. “Foi uma aposta espetacular, tiraram-se as cortinas e todo o cenário era a biblioteca do ditador.” O ditador era Gaspar Rodríguez de Francia, o “Supremo”. A peça foi encenada nos anos 1990, logo após o fim da ditadura. O Teatro Municipal de Assunção é o palco mais importante das artes cênicas paraguaias. O prédio foi construído em 1844, mas só em 1855 foi inaugurado. Nos anos 2000, houve uma reforma geral e o edifício foi reaberto, depois de 13 anos sem atividades. No teatro, há 54 anos, vive o octogenário Ciriaco Lambaré Blanco, mais conhecido como Chiquitín. Funcionário da prefeitura de Assunção há cerca de 70 anos, ele foi morar no teatro para garantir a segurança do local, no final da década de 1940. Chiquitín controlou a bilheteria do Municipal durante muito tempo, e isso fez dele uma figura muito conhecida. Ele está sempre lá, todas as noites, recebendo o público, quando o teatro abre as portas. Quando acabam os espetáculos, vai dormir na sua casa improvisada atrás do palco, no lugar onde antigamente ficavam os camarins. O BICENTENÁRIO

As comemorações do Bicentenário estão mexendo com o povo paraguaio. Depois de dois conflitos bélicos que dizimaram o país, segundo Luiz Vera, chefe de imprensa do Centro Cultural de la República el Cabildo, há um esforço comum de buscar uma identidade e assumi-la. O maestro Santos concorda: “Ainda se está construindo a identidade cultural do país”. E como poderá ser definida, daqui a alguns anos, a cultura paraguaia? O que terá a memória das guerras e da ditadura a ver com a construção dessa identidade? De que forma o legado guarani fará parte disso? São perguntas que o brasileiro não tem como responder. E, por ora, nem mesmo o paraguaio.


2

3

4

5

6

7

1. Na fachada da casa, as marcas do tempo e da intervenção da população 2. O tapete carcomido não atrapalha o ensaio da Orquestra Sinfônica Nacional 3. Carpilla Sixtina, 1990, obra de Ricardo Migliorisi feita de acrílico e técnica mista sobre tela, que mede 500 x 400 cm. Coleção Centro de Artes Visuales/Museo del Barro 4. Chiquitín em sua casa improvisada nas coxias do Teatro Municipal de Assunção 5. Espetáculo de Lizza Bogado sobre o bicentenário, no mesmo teatro 6. O transporte público em ônibus antigo 7. Conciliábulo II, 2010, obra de Carlos Colombino feita com a técnica da xilopintura. Coleção Centro de Artes Visuales/Museo del Barro

PARAGUAI EM SEGUNDOS O Paraguai tem área de 400 mil metros quadrados e 6 milhões de habitantes. Faz fronteira com a Argentina, a Bolívia e o Brasil, sem saída para o mar. Possui dois idiomas oficiais: o espanhol e o guarani – falado mais no interior do país. Fala-se também o jopará, mistura coloquial de espanhol, guarani e português. Sua história é marcada por conflitos bélicos: a Guerra do Paraguai, em que enfrentou, na segunda metade do século XIX, a Tríplice Aliança, formada pelo Brasil, pelo Uruguai e pela Argentina; e a Guerra del Chaco, na década de 1930, contra a Bolívia. As consequências dessas guerras, agravadas pelas ditaduras que governaram até 1989, podem ser sentidas no país até hoje.

CONTINUUM

08

09

Na Rádio Itaú Cultural (itaucultural.org.br), ouça o programa Rumos 2007-2009 sobre a música paraguaia contemporânea.


marçal aquino ENTREVISTA |

Marçal Aquino: “A minha literatura é artesanal, não é uma produção industrial”

MARÇAL PLURAL TEXTO micheliny verunschk

FOTOS andré seiti

Uma das vozes mais contundentes de sua geração, Marçal Aquino revela a contemporaneidade em tudo o que ela traz de violência, amor e perturbação da ordem estabelecida. A literatura é o caminho que baliza as trilhas que segue, numa vida que bem daria um livro ou um filme. Tradutor, revisor, ex-repórter policial, jornalista freelancer, é também roteirista de cinema e televisão, tendo no currículo os bem-sucedidos Os Matadores (1997), Ação entre Amigos (1998), O Invasor (2001), Nina (2004), Crime Delicado (2005), Cão sem Dono (2007) e o premiado Cheiro do Ralo (2007). Apesar de não ser espectador de TV, é um dos roteiristas do seriado policial Força-Tarefa, exibido na Rede Globo. Autor, entre outros, do romance Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (Cia. das Letras, 2005) – que renderá um longa, com direção de Beto Brant e Renato Ciasca, cuja estreia está prevista para este semestre –, nesta entrevista ele fala de seus processos de criação, do trabalho em cinema e da literatura brasileira hoje.


Como foi o início de tudo? Como a literatura aconteceu na sua vida? Eu sou de Amparo, interior de São Paulo. Interior do interior, porque nasci numa fazenda. Então, para ter uma ideia, não sou cria da televisão. A primeira televisão entrou na minha casa quando eu tinha 14 anos. Fui criado ouvindo as pessoas contar histórias e isso sempre me fascinou; elas narram um acontecimento e semana que vem o mesmo fato. Por uma habilidade do contador, não há nenhum estudo para isso, ele percebe que mudando um pouquinho aqui e ali a narrativa melhora e vai se tornando primorosa. Assim, a minha primeira vontade de contar histórias está ligada à infância. Na minha casa não havia livros e eu não venho de uma família que tenha uma tradição livresca. Mas eu descobri os quadrinhos e me apaixonei perdidamente pelos gibis. Os gibis alfabetizaram toda uma geração, não? Para mim foi exatamente isso, mas eles eram malvistos pelos professores, pelas famílias. No entanto, foram tão importantes para meu desenvolvimento. Vem deles também meu desejo de contar histórias. E, finalmente, do cinema. Muito antes de sonhar em trabalhar com cinema, fui levado a um e fiquei completamente apaixonado, siderado. Imagine o impacto para uma pessoa que não assistia a TV ver uma tela daquelas numa sala escura. Foi uma experiência fundamental. E quando surgiram os livros nesse processo de formação? Por volta dos 10 anos de idade fiz a transição, larguei os gibis e fui ler um livro e descobri que eles eram muito mais interessantes que as histórias em quadrinhos. Encontrei a obra de Monteiro Lobato, os livros de aventura e os de uma coleção chamada Terra, Mar e Ar. Descobri esse mundo de modo autodidata, pois nunca tive uma orientação para a leitura, ou melhor, só fui ter algo nesse sentido mais tarde, com 16, 17 anos. Antes disso, fui lendo tudo de forma voraz, era onívoro. Li Nietzsche com 13 anos e não entendi nada, ao mesmo tempo que li Moby Dick.

Talvez isso aconteça porque o tempo da literatura é outro, não é o tempo acelerado da máquina... Sim, literatura é cachaça, precisa ficar curtindo. Não é uma produção industrial, é artesanal. A minha literatura é artesanal. Veja você, eu tenho tudo isso em cadernos que foram rabiscados e passo depois tudo para o computador. Então o importante para mim é que a literatura impõe o tempo dela. Não adianta dizer que vou terminar um livro até sexta-feira, por exemplo. Todos os outros trabalhos, sim; faço roteiros para televisão e isso tem prazos absurdos, daí sento em frente do computador e mando ver. Já a literatura, é como se exigisse uma liturgia diferente. Para mim o grande momento, o grande prazer é, como dizia [o escritor argentino Adolfo] Bioy Casares, la hora de escribir, o momento da criação. Eu entro naquele mundo como convidado e vou vendo aquilo se passar diante de mim, vou registrando. Esse seria, mais ou menos, o meu processo de criação literária. Você falou rapidamente sobre seu trabalho como roteirista. Como foi, para aquele menino de Amparo, sem uma, digamos, educação televisiva, começar a fazer cinema e televisão? Não é louco isso? E penso que não escolhemos mesmo o que vai acontecer com a gente. Sempre gostei de cinema, mas nunca pensei em trabalhar com cinema, nunca fiz nenhum esforço nessa direção. Não fui estudar cinema, não fui atrás. Vários filmes foram feitos na minha cidade; se eu quisesse trabalhar com isso teria ao menos visitado um set de filmagens, tentado me aproximar de alguém. Isso não me interessava. Nunca me interessou. O cinema veio a mim. Acidentalmente um diretor quis filmar uma história minha, teve problemas na hora de fazer o roteiro e me chamou para ajudar, e eu virei roteirista de cinema. A mesma coisa com a televisão. Fui convidado a desenvolver um seriado policial. Gosto do tema, pois o registro policial me interessa muito. Assim comecei a trabalhar com televisão.

O público leitor hoje no Brasil é muito pequeno. Temos uma seita de leitores. Cada livro aqui tem a tiragem de 3 mil exemplares, então são 3 mil leitores. Destes, 1.500 são escritores. Sobram uns 500 jornalistas. Então temos mil leitores que leem verdadeiramente por prazer.”

CONTINUUM

10

11

Juntando essas formas de linguagem, como é que se dá o seu processo de escrita? Costumo dizer que, quando escrevo, a linguagem não é minha primeira preocupação. Conscientemente, eu me interesso mais por aquilo que vai ser contado. Tanto que quando escrevo um livro não sei o que vai acontecer. Nunca tenho o livro pronto. Conheço pessoas que planejam e dizem que no primeiro capítulo vai acontecer isso, no segundo capítulo vai acontecer aquilo. Têm uma espécie de esquema, um roteiro. Eu não. Não posso fazer isso. Se souber o que acontece no livro, mesmo em linhas gerais, fatalmente não vou escrever. Prefiro colocar uma frase numa página e ir atrás para descobrir o que é que aquilo significa. Naturalmente, sou um escritor que parte do real, mas evidentemente aquilo que faço no livro é o real transfigurado pela ficção. Então, por que é importante que eu não saiba o que vai acontecer? Porque naquele primeiro momento eu sou o meu primeiro leitor e se eu não ficar satisfeito com aquilo não será publicado.

Toda boa literatura é uma criação de mundos. Como você cria os seus mundos, já que dispensa um planejamento prévio? Tem uma coisa que não era para ter importância, mas vem ao caso. Eu escrevo a mão, em cadernos. Pode parecer uma idiossincrasia, e de fato talvez seja, mas está ligado ao ato da criação. Para todo o resto, roteiro, jornalismo, eu uso o computador, mas para a literatura é como se eu reservasse um lugar sagrado, precisasse pôr uma roupa especial.


marçal aquino ENTREVISTA |

SE SOUBER O QUE ACONTECE NO LIVRO, MESMO EM LINHAS GERAIS, FATALMENTE NÃO VOU ESCREVER. PREFIRO COLOCAR UMA FRASE NUMA PÁGINA E IR ATRÁS PARA DESCOBRIR O QUE É QUE AQUILO SIGNIFICA.”

Você foi repórter policial, não é? Sim, do Jornal da Tarde. E isso é outra coisa importante sobre escrita, pois diz a lenda que o jornalismo é uma péssima profissão para escritores. Tem até uma frase do [escritor americano Ernest] Hemingway, que é muito boa: “O jornalismo é uma excelente profissão desde que abandonada a tempo”. Para mim foi o contrário, a experiência como repórter de rua foi fundamental para que eu pudesse treinar o olhar, saber olhar para uma cidade como São Paulo, por exemplo, e entender que nela acontecem mil mundos. Você assiste a TV? Não. Digo que sou o cara ideal para fazer seriado porque não trago vícios, mas posso cometer a inocência de fazer algo achando que estou inovando, por desconhecimento. Gosto mesmo é de cinema. Como é a relação com os seus filmes? Você os vê? Sim. É muito mais que escrever um roteiro e mandar filmar. Normalmente estou muito próximo, trabalho com diretores que são parceiros, inclusive na escolha do elenco, ou pelo menos trocamos opiniões, compartilhamos decisões. Até porque, embora tenha adaptado obras de outros autores, acabo trabalhando muito com minha própria literatura.

Os livros de Marçal nascem de anotações a mão em cadernos guardados a sete chaves pelo escritor

E existe a crise da adaptação? Não. Eu nunca tive. O lugar para que me cobrem alguma coisa é o livro, lá estou sozinho com os meus fantasmas. Quando falamos de adaptação estamos falando de um coletivo, estou a serviço de um coletivo de criadores e tenho um desprendimento total. Não existe cinema de uma pessoa só e eu costumo dizer que cinema é como suruba, não dá para fazer sozinho. Que tipo de cinema você prefere? Que diretores destaca? O cinema de que eu gosto hoje, que eu sempre gostei, mas hoje mais do que nunca, é o cinema onde não entra o computador. Onde tudo o que você vê efetivamente está dentro da câmera e onde se conta a história de pessoas. A pirotecnia nunca me atraiu. Aqui no Brasil, os diretores com os quais trabalho são grandes diretores. Não é porque eu trabalho com ele, mas o Beto Brant é um grande cineasta. O Heitor Dhalia, realizador pernambucano com quem trabalhei em dois filmes, é um dos quais gosto muito. O Karin Aïnouz é um diretor fascinante. Dos estrangeiros eu gosto muito do Michael Haneke, o cinema dele é um dos que mais me interessam. Existe um franco-argentino chamado Gaspar Noé que faz um cinema ao contrário daquele de que falei, não diria de pirotecnia, mas um cinema em que a forma está a serviço do que é narrado. Curiosamente, também me interessa.


No romance Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, o amor (ou talvez a teoria do amor) ganha voz nas citações do personagem Benjamin Schianberg. É impossível viver o amor sem teorizá-lo, sem enquadrá-lo em conceitos e estatísticas? A nossa invencível tentação de racionalizar tudo explica, em parte, por que teorizamos tanto sobre o amor. Ainda bem que as explicações nunca satisfazem. E seguimos tentando, esquecidos, muitas vezes, de que amor é muito melhor de ser vivido do que de ser explicado. Esse livro foi adaptado para o cinema e deve ser lançado em breve. Outro filme, O Amor Segundo B. Schianberg, também é um produto saído do mesmo livro. Você participou do processo de feitura de ambos? O livro rendeu o longa homônimo, dirigido pelo Beto Brant e com estreia prevista para o fim do primeiro semestre, do qual escrevi o roteiro. O texto literário inspirou ainda a série O Amor Segundo B. Schianberg, que Beto rodou para a TV Cultura e depois transformou num longa, mas não participei desse processo como roteirista. Por fim, a obra também rendeu a peça Amor de Servidão, que escrevi em parceria com a Marília Toledo e que ganhou o Prêmio Shell de Dramaturgia em 2009.

Como você vê o panorama literário brasileiro hoje? A literatura mudou muito. Tenho a sensação de que é mais fácil publicar. Eu atravessei dez anos para lançar meu primeiro livro. Hoje as tecnologias estão muito mais disponíveis ao escritor. Um autor de Manaus não precisa mais de uma resenha do eixo RioSão Paulo para existir. Ele pode chegar ao mundo inteiro de uma forma muito louca. Você fala da internet... Também. Mudou a tecnologia e com as festas literárias também mudou muito a relação do escritor com a mídia e com seus leitores. Outra coisa importante: há muitas mulheres publicando. Nunca na história da literatura brasileira, nunca em tempo nenhum houve tantas mulheres escrevendo prosa e poesia. Se for olhar retrospectivamente, houve uma época em que havia a Rachel de Queiroz, a Lygia Fagundes Telles, a Clarice Lispector, uma poeta aqui, outra ali. A Hilda Hilst e pronto. Hoje não. Há variedade de assuntos, variedade de vozes. Antigamente a mulher tinha muita dificuldade em publicar, era oprimida até nisso. O universo masculino é muito cruel. Ou ela era Clarice ou ela era Carolina de Jesus, a coisa exótica, uma favelada escrevendo. Não se tinha a média, falta-nos o registro disso na história da nossa literatura.

“A pirotecnia no cinema nunca me atraiu. Gosto mais daquele onde não entra o computador”

Você acredita em oficinas de criação literária? Acredito que não se forma escritor em lugar nenhum fora dos livros. No entanto, as oficinas têm o poder de juntar gente com as mesmas ideias e isso é altamente subversivo, pode gerar coisas porque é quase uma sociedade secreta. O público leitor hoje no Brasil é muito pequeno. Temos uma seita de leitores. Cada livro aqui tem a tiragem de 3 mil exemplares, então são 3 mil leitores. Destes, 1.500 são escritores. Sobram uns 500 jornalistas. Então temos mil leitores que leem verdadeiramente por prazer. As oficinas acabam se tornando um caldo de cultura muito importante. Vem por aí um livro novo, não? O que pode dizer dele? O livro está atrasado, mas espero publicar até o final do ano. Chama-se Como se o Mundo Fosse um Bom Lugar e trata de uma história de amor que causa uma derrocada familiar. É o que posso dizer, o que sei do livro.

CONTINUUM

12

13

O AMOR É UM FATOR DE REDENÇÃO E DE TRANSCENDÊNCIA. É ISSO QUE MEUS PERSONAGENS BUSCAM, AINDA QUE PELOS CAMINHOS MAIS TORTOS E ÁSPEROS. E JÁ SABENDO QUE SEMPRE SERÁ INCOMPLETO, POSTO QUE HUMANO.”


tetine REPORTAGEM |

LONDRES TROPICAL Como os brasileiros Eliete Mejorado e Bruno Verner, que formam a dupla Tetine, conquistaram a cidade onde nasceu o punk

TEXTO tatiana diniz

FOTO andrĂŠ penteado

Tudo vira performance no trabalho musical do Tetine


Eliete Mejorado TRABALHOS SÃO COMO FILHOS, VOCÊ GOSTA IGUAL DE TODOS.”

A paulistana Eliete Mejorado e o mineiro Bruno Verner se conheceram, e se conquistaram, no Teatro Oficina, em São Paulo, em janeiro de 1995. No ensaio de uma cena de cabaré, ela interpretava um travesti, e ele improvisava ao piano e com a voz. Eliete nunca se esqueceu desse encontro: “foi amor à primeira nota”. Não se separaram mais. Pouco depois, nascia a dupla Tetine (chupeta em francês), e a música se espalhou pela vida dos dois. Intensamente. Em 1999, foram aceitos em uma residência artística oferecida pela Queen Mary University, em Londres. Com a mudança, deram continuidade ao trabalho da dupla e conquistaram a cidade que inventou o punk. E o resto da Europa também. Muitos invernos depois, mas ainda tremendo de frio, os dois falaram separadamente à CONTINUUM sobre a carreira, o amor, a filha nascida na água e o trabalho recém-lançado. LÁ NOS PRIMÓRDIOS

Eliete cresceu em São Paulo. Aos 5 anos viu Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, na televisão. “Foi uma das maiores influências da minha vida”, lembra. Filha de mãe espanhola que ouvia muito Joselito e Juanito Valderrama, conta que a “mistura estranha de ingredientes” determinou sua visão de mundo. Bruno cresceu em Belo Horizonte. A memória mais forte dessa época é a de, mais ou menos com 6 anos, ser viciado em locução de rádio. Tinha “fascinação absurda” pelas vozes dos apresentadores da Del Rey, emissora local. Gostava tanto de música que sua brincadeira predileta era fazer programas de rádio para si mesmo: “Era uma coisa bem autista e solitária, mas me dava grande prazer. Tenho certeza de que meu interesse por música veio daí”.

INVERNO E ESTRESSE

Nenhum dos dois havia pensado em morar em Londres. Eliete estudou inglês americano numa escola e achava que, se fosse morar fora do país, o destino seria os Estados Unidos. Mas, no final de 1999, veio o convite para a residência artística na capital inglesa. Na universidade, tinham um estúdio com piano, teclados, mesa de som e microfones e criaram uma performance chamada Living Room. O prazo inicial de estada era de nove meses. No final, veio o convite da gravadora inglesa Sulphur Records: gravar um disco em colaboração com outro artista. A parceira escolhida foi a francesa Sophie Calle. Quando o disco saiu, não voltaram mais para São Paulo. Bruno diz que foi por acaso. Não tinham planos. No meio-tempo, ele ganhou uma bolsa de mestrado em performance na Middlesex University. A dupla começou a promover o disco na Europa. Tocaram na Itália, na França, na Alemanha e em Portugal. Samba de Monalisa – Tetine vs Sophie Calle virou um disco cult no cenário da música eletrônica europeia. Foram “ficando” e vieram outros discos, outros shows. Os invernos são o calo de Bruno. “É o que não tenho aguentado mais, realmente. No começo eu não me importava, agora cada ano que passa fica pior”, reclama. O frio, porém, não invalida

seu amor. “Sempre gostei de Londres. Gosto do ritmo da minha vida aqui”, afirma. Eliete também gosta. Explica que aprendeu a lógica da cidade e destaca o senso de humor inglês: “Amo muito”. Em Londres, eles tiveram uma filha, Yoko, há um ano. O parto dentro d’água ficou na memória como uma experiência maravilhosa. Mas é claro que às vezes ela fica de saco cheio da cidade, pois sente o estresse e observa que a competitividade é enorme, e que as pessoas às vezes podem parecer frias. “Mas acho que meu amor é maior”, enfatiza. PUNK TROPICAL

E dentre os trabalhos do Tetine há um preferido ou uma música de que se goste mais? Essa é a pergunta mais difícil para Bruno, que gosta muito de “Let the X Be X”, do oitavo disco (pela Soul Jazz Records). Também gosta muito de uma performance que fizeram em 1998 chamada “Música de Amor”, gravada em disco. Eliete não titubeia ao responder: “Trabalhos são como filhos, você gosta igual de todos”. Mas há horas em que ela se identifica mais com um do que com outro. Atualmente, gosta mais de “Tropical Punk”, faixa do último disco, From a Forest Near You [De uma Floresta Perto de Você]. O último vídeo, “Revolver”, gravado nos Estados Unidos, é outro preferido da cantora. “Está bem fresquinho no coração.” Para quem quiser escutar o novíssimo From a Forest Near You, o caminho são as lojas especializadas e os canais virtuais de download como iTunes e Amazon – músicas como “Tropical Punk”, “Shiva”, “Revolver”, “Let’s Get Together” e “Não” estão todas lá. Eliete diz que esse trabalho traz uma sonoridade muito peculiar. “Chamamos de tropical mutant punk funk. Dá uma ouvida!”

Em 2008, Tetine produziu para a Rádio Itaú Cultural o programa Three Bullets, para a série on-line Cena Sonora. Confira: itaucultural.org.br/radio A dupla também está no Facebook e mantém o site tetine.net.

CONTINUUM

14

15

Eliete estudou piano por muito tempo, mas nunca pensou que iria trabalhar com esse instrumento. Fazia teatro e pesquisava diferentes ressonâncias sonoras pelo corpo. “Tentava extrair a voz dos joelhos.” Seu envolvimento com música era secundário. “Mudou totalmente quando conheci o Bruno”, conta. “Seja com a voz, seja com o corpo, tudo vira performance.”

Bruno sempre fez muita coisa ao mesmo tempo. Estudou linguística na USP, teve uma bolsa de iniciação científica em que trabalhava na organização de um dicionário de astronomia, foi pesquisador do Datafolha, ensinou literatura portuguesa na rede estadual, deu aulas particulares de violão. A música chegou até sua vida pelo pai, que tocava piano, e pela avó, violinista. Com 13 anos, foi estudar na Fundação de Educação Artística, em Belo Horizonte, onde se envolveu com a produção contemporânea e eletrônica e começou a compor. “Entrei de cabeça na cena pós-punk, de poesia e performance de BH, nos anos 1980. Tocava no R. Mutt, no Divergência Socialista e no Ida & os Voltas”, lembra. Depois foi para São Paulo, onde o Tetine começou.


o que é o amor REPORTAGEM | R I

O

|

A

M

O

Dizem que ele é fogo que arde sem se ver, talvez por isso seja cego. Que só ele constrói, mas que é mortal, posto que é chama.

F

I

C

H

Á

R

MENTE E CORAÇÃO TEXTO mariana sgarioni

ILUSTRAÇÃO dea lellis


“Doei com muito carinho e muito amor.” Com essa frase, a cabeleireira Midori Assami, de 62 anos, deixou um hospital de Londrina, depois da cirurgia de retirada de um rim. Ela doou o órgão ao ex-marido, com quem viveu por 20 anos – e está separada há 19. Com a atitude, Midori afirma que amor não é sinônimo de casamento, convivência diária, paixonite. Nem de apego, obsessão ou presença. Amor significa querer bem. Simples assim. É o “sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem, ou de alguma coisa”, como escolheu Aurélio Buarque de Holanda, pai do dicionário que leva seu nome, para a primeira das 13 definições da palavra. Mais do que querer bem ao ex-marido, a cabeleireira mostrou ainda um amor maior pelo filho do casal, que havia proposto doar o rim ao pai. “Como ele é moço e tem duas filhas pequenas eu falei: ‘Deixa que eu doo, porque já vivi bastante’. E por um filho a mãe faz qualquer coisa.” Amor por um filho, um homem ou uma mulher, uma causa, uma crença religiosa... Esse sentimento assume várias faces no decorrer da vida. De modo geral, todo amor envolve a formação e a manutenção de um vínculo emocional. Estímulos sensoriais e psicológicos são necessários para essa motivação. Definindo assim, de maneira quase técnica, até parece que o amor – e amar – é simples. Que nada. Suas variantes são tantas que chegam a dar nó na mente dos mais apaixonados. “O caráter enigmático do amor é uma das razões pelas quais nós amamos. Amar é surpreender-se e isso é viver”, afirma a psicanalista Betty Milan.

A BIOLOGIA NO COMANDO

Além dos fatores sociais, especialistas apontam uma primeira explicação que não é lá muito romântica e envolve a questão biológica. O psicólogo Ailton Amélio da Silva, autor de O Mapa do Amor (Editora Gente, 2001), concorda com Helen Fisher ao dizer que amar é uma necessidade da natureza humana. Sem se relacionar com o seu semelhante, o ser humano não teria como procriar. E, para se envolver com alguém, ele precisa estabelecer algum tipo de vínculo afetivo. De que maneira acontece esse vínculo? No cérebro, cientistas já descobriram há algumas décadas que essa conexão é movida por um hormônio chamado oxitocina. Até 20 anos atrás, ela estava associada apenas a dois importantes processos fisiológicos ligados à maternidade – as contrações uterinas no momento do parto e a liberação de leite durante a amamentação. Hoje, sabe-se que a oxitocina também atua no cérebro materno de modo a fortalecer os laços de carinho com o filho e os cuidados básicos e de proteção. Todos os seres são dotados dessa qualidade, basta ver, por exemplo, os cuidados dos animais com a cria – seja a deles, seja a dos outros. Nos mamíferos, as fêmeas amamentam filhotes de outras espécies, como aconteceu em fevereiro deste ano, na cidade de Itapetininga (SP). Uma cadela labrador resolveu amamentar dois filhotes de gato abandonados em seu quintal. O instinto materno faz com que as fêmeas produzam o hormônio e passem a ter leite. Da mesma maneira, mulheres amamentam filhos adotivos normalmente. PLATÔNICO E ROMÂNTICO

Se o amor precisa de vínculo, o que dizer, então, do amor platônico, aquele que nunca se concretiza? Platônico vem de Platão, justamente porque o filósofo grego acreditava na existência de dois mundos: o das ideias, em que tudo seria perfeito

e eterno, e o mundo real, finito e imperfeito, mera cópia mal-acabada do mundo ideal. Segundo psicanalistas, o amor platônico revela uma dose de imaturidade emocional, à medida que nunca experimenta os limites e as frustrações de uma relação concreta. Por outro lado, há quem diga que o amor romântico está com os dias contados. O psicanalista Flavio Gikovate afirma, em Uma História do Amor com Final Feliz (MG Editores, 2008), que só sobrevive aos tempos atuais o amor que respeita a individualidade. Ele sustenta que o casamento, por exemplo, pode não ser uma boa expressão do amor. Melhor do que casar e viver junto para sempre, diz o especialista, talvez seja morar em casas separadas – ou ainda continuar solteiro. “No Brasil, o número de divórcios já é maior que o de casamentos no ano. Atualmente, muitos homens e mulheres consideram que ficarão sozinhos para sempre ou aceitam a ideia de aguardar até o momento em que encontrarão alguém parecido tanto no caráter quanto nos interesses pessoais.”, afirmou, em entrevista à revista Veja (veja.abril.com.br/entrevistas/flavio_gikovate.shtml). Será que o amor do futuro está fadado a ser vítima do individualismo? Difícil acreditar no fim do amor romântico, uma vez que ele parece estar entranhado na natureza humana. Fisher afirma que em um levantamento de 166 culturas variadas foram encontradas provas do amor romântico em 147 – quase 90% delas. Da Sibéria ao interior da Austrália e passando pela Amazônia, as pessoas cantavam canções, compunham poemas e contavam mitos e lendas do amor romântico. Muitos fazem a magia do amor com amuletos e encantamentos ou condimentos e preparados para estimular o sexo. Alguns matam os amantes. Outros se matam. Muitos rompimentos causam uma tristeza tão profunda que a pessoa mal pode comer ou dormir. Romeu, de Shakespeare, expressou este sentimento mais sucintamente, dizendo de sua adorada: “Julieta é o Sol”. Impossível viver sem.

CONTINUUM

16

17

Se amar é inerente à vida, você sabe por que, afinal de contas, amamos? “Porque somos biologicamente programados para isso. A necessidade de procriar é tão poderosa quanto a de se alimentar ou dormir, criando no cérebro uma energia que abastece quatro sentimentos básicos: paixão, obsessão, alegria e ciúme”, escreve a antropóloga Helen Fisher em seu livro Why We Love? – The Nature and Chemistry of Romantic Love (Por Que Amamos? –

A Natureza e a Química do Amor Romântico), da editora americana Henry Holt and Co.


leonilson REPORTAGEM |

OURO DE ARTISTA É AMAR BASTANTE Vida e obra se confundem na trajetória de Leonilson, um dos mais importantes artistas brasileiros

F

I

C

H

Á

R

I

O

|

A

M

O

R

TEXTO marco aurélio fiochi

Leonilson se destacou em meio a uma nova geração de artistas surgida nos anos 1980


De meu corpo o Amor se apoderou ali com sua força incrível. Constantin Cavafy, “Ao pé da casa” [trecho], 1918

“Quanto tempo faz mesmo?”, pergunta a dona de restaurante Rosa Raw sentada à mesa em seu estabelecimento em São Paulo. “Quase 18 anos”, respondo. A interjeição que se segue é um misto de espanto pela rápida passagem do tempo e de pesar pela ausência remota de um amigo. A mesma lacuna temporal que transforma a dor em algo abrandado e coloca em seu lugar uma saudade morna percorre a fala de outros amigos e parentes de José Leonilson Bezerra Dias (19571993). Zé, Leó, Léo – formas carinhosas adotadas por quem conviveu com ele –, não se considerava um artista, mas, sim, um “andarilho”, um “curioso”. No entanto, tornou-se o maior expoente de sua geração ao pintar e bordar as várias faces do amor.

ENTRE O SKATE E A ENCICLOPÉDIA

Vindo de Porto Velho para São Paulo com apenas 4 anos, Leonilson morou praticamente toda a vida na Vila Mariana. A família, que já deixara

No início da adolescência, passava o tempo tentando aprender a andar de skate, novidade da época, com os vizinhos Luís, Gustavo e Ana Cândida Machado. O estudo no Colégio Arquidiocesano e a leitura atenta dos volumes da Enciclopédia Barsa também faziam parte da sua rotina. Brincar com a máquina de escrever e a de fotografar, aparelho do qual colecionou vários modelos, era um passatempo. “Ele não fazia esportes nem jogava futebol, pois tinha crises fortíssimas de asma, que o acompanharam durante toda a vida”, conta Nicinha. Leonilson acompanhava o pai, seu Theodorino, proprietário da rede de lojas de artigos variados Casa Saudade, em Porto Velho, em compras nas fábricas de tecidos da capital paulista e sempre acabava ganhando retalhos. Panos e linhas eram presença constante na casa paterna. A mãe, dona Carmen, ensinou a costura e o bordado às filhas. “Em nossa casa, havia um quartinho de costura, e ficávamos todos lá brincando, vendo mamãe costurar”, diz Nicinha, que foi quem lhe ensinou os segredos do bordado, corrigindo falhas, mostrando como deixar o lado avesso tão perfeito quanto o visível. Uma das lembranças do período, revelada pelo próprio artista em entrevista a Lagnado, mostra a tranquilidade daqueles tempos: “Perto da minha casa, tinha um

itaucultural.org.br/ CONTINUUM

18

19

foto: ronaldo miranda/arquivo projeto leonilson

“Muito inteligente”, “falador”, “crítico”, “com uma grande verve para fazer comentários apimentados sobre tudo”, “estudioso”, “introspectivo”, “de uma memória sem igual, capaz de dizer os nomes de todos os presidentes do Brasil na ordem exata”, “temperamental”, “sarcástico”, “ranzinza”, “apaixonante”, “assertivo”, “extraordinário”, “muito querido”, “bom caráter”, “espontâneo”, “verdadeiro”, “corajoso”, “batalhador”. A voz daqueles que o conheceram tanto na vida quanto na arte é superlativa ao qualificá-lo. E ao ler depoimentos dele próprio a sensação de integridade aumenta: “É claro que eu penso na minha carreira, em ganhar dinheiro, fazer exposição. Mas penso em mim, nos insights que surgem para fazer um trabalho. Acredito em outra coisa. O mundo real que a gente vive, acho superlegal. Mas isso não tem valor”, declarou à crítica de arte Lisette Lagnado, em entrevista em 1992, publicada em Leonilson: São Tantas as Verdades (DBA/Melhoramentos, 1998).

a capital de Rondônia anos antes para viver em Fortaleza, onde o artista nasceu, em 1957, fixou de vez moradia em São Paulo em 1961 e optou pelo bairro por ser, naqueles tempos, um reduto de migrantes como eles, segundo conta a irmã, a psicóloga Ana Lenice da Silva, a Nicinha. Leonilson foi temporão. Entre ele e Nicinha são cinco anos de diferença. “Quando nasceu, foi uma ciumeira danada”, relembra. “Nas famílias nortistas, o caçula é o rei. Eu estava acostumada a ser a caçula e de repente perdi o trono.” Irmãs mais velhas, Nicinha e Tilda (Ana Lenilda Dias Salvatore) eram como mães para o menino.


leonilson REPORTAGEM |

Thomas Cohn LEONILSON NÃO DEIXOU ‘ESCOLA’. CABE, PORÉM, A ELE O MÉRITO DE AGITAR O CIRCUITO DAS ARTES E AJUDAR A INSERI-LO NO CENÁRIO INTERNACIONAL.”

Entrando na vida adulta, ganhou de seu pai um Fiat 147 branco, novinho em folha, que mais tarde venderia para juntar dinheiro e fazer a primeira viagem à Europa. Dessa fase, em que ficou mais próximo da vizinha Ana Cândida, a melhor lembrança é uma ida frustrada de carro até Fortaleza, interrompida no meio quando uma manobra fez o veículo cair num buraco, quebrando-o. O automóvel teve de voltar para São Paulo rebocado. “Leonilson era muito barbeiro!”, confidencia o irmão de Ana, Luís Machado. Desde cedo, Leonilson mostrou-se um arguto colecionador. Seu alvo eram os brinquedos, que comprava aos montes em feiras de artesanato e em viagens ou eram presenteados por amigos. Parte deles viria tempos depois a integrar sua obra. Outra fixação eram os desenhos de plantas arquitetônicas, feitos em papel milimetrado. O aprendizado da arte iniciou-se aos 11 anos, na Escola Panamericana. Os trabalhos iniciais do artista foram feitos nessa faixa etária, sendo o primeiro bordado, Mirro, criado aos 14 anos. O contato com o meio teve continuidade com a entrada nas artes plásticas da Faap, em 1977, que acabou em 1980. Antes disso, fez um curso técnico de turismo. Durante toda a vida, colecionou centenas de envelopes de cartas, blocos e cartões com os logotipos dos hotéis onde se hospedou; tíquetes e folhetos de companhias aéreas também fazem parte dessa coleção, que demonstra o seu amor por viajar. E é com a primeira grande viagem, para Madri, em 1981, que Leonilson se profissionaliza, realizando uma exposição individual.

A entrada no cenário artístico brasileiro ocorreu num momento em que as galerias procuravam novos talentos para renovar suas coleções. “Antonio Dias nos apresentou em outubro de 1982. Ele tinha 25 anos. Trouxe uma pasta de desenhos e ao vê-la tive a certeza de que a proposta

da galeria de renovar o mercado e lançar nomes começaria por ele”, conta o galerista Thomas Cohn. Luisa Strina, que o representou até 1990, comprou todos os trabalhos do artista tão logo o conheceu. Com Cohn, ela foi a responsável pelo lançamento conjunto de Leonilson no cenário nacional, em 1983. Era o início da Geração 80, movimento artístico que tinha como principal característica uma retomada da pintura, ou do prazer de pintar. Junto de Leonilson, surgem Leda Catunda, Sergio Romagnolo, Ciro Cozzolino, Luiz Zerbini e Daniel Senise, entre tantos outros. Segundo Lagnado, as influências imediatas do jovem artista são o pintor Antonio Dias, com suas telas de cobre e grafite, e o americano Keith Haring, com seus grafites. “As figuras [...] nas primeiras pinturas [...] surgem com a marca da ilustração [...] desfilam, pouco elaborados, ringues, ferros de passar, aviões, dinossauros, gatos e patos. [...] elege alguns elementos que serão retomados e desenvolvidos até o final da vida: o livro aberto, a torre, o radar, o transformador de energia, o raio, o átomo, a escada, o coração, a montanha e o vulcão, a espiral, o relógio, a bússola e, principalmente, a ampulheta que se funde ao símbolo do infinito”, escreve a crítica. Zerbini e Leonilson dividiram ateliê em 1977, além de morarem juntos em Maresias, no litoral paulista por um tempo. Os dois criaram o cenário de A Farra da Terra, peça do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, em 1982. O espetáculo, que estreou no ano seguinte, contava com atores convidados, que vez ou outra faltavam às sessões. Eles eram então convocados a subir no palco e atuar. “Mas Leonilson era um péssimo ator”, diverte-se Zerbini. Outro amigo e parceiro de trabalho foi o artista alemão Albert Hien. Os dois se conheceram na Bienal de São Paulo em 1985 e realizaram duas exposições conjuntas: em 1986, em Munique, e em 1988, em Amsterdã. “Nosso relacionamento foi como o de irmãos que se encontraram depois de um tempo separados. Havia muita coisa em comum. É claro que a maneira poética de re-

F

I

C

H

Á

R

I

O

|

A

M

O

R

NO CENTRO DE UMA NOVA GERAÇÃO

foto: eduardo ortega/arquivo projeto leonilson

hospício de loucos. A gente ia brincar no jardim do hospício. Eles eram tão legais, tão diferentes da vida da gente, eram os ídolos da rua”.

Luiz Zerbini SEU PIONEIRISMO NA LINGUAGEM FEZ DELE UM PRECURSOR, QUE ABRIU CAMINHO PARA OS COLEGAS DE SUA GERAÇÃO. GOSTARIA DE VER ELE VELHO. POR SER MUITO RANZINZA, DARIA UM VELHO ENGRAÇADO.”

O que Você Desejar, o que Você Quiser, Eu Estou Aqui, Pronto para Servi-lo, 1990, costura e cabide de cobre, 132 x 42,5 cm. Coleção particular


foto: eduardo brandão/projeto leonilson

Sem Título, 1988, acrílica e chapa de cobre pregada sobre lona, 51 x 47 cm. Coleção Miguel Chaia

foto: rômulo fialdini/projeto leonilson

foto: rômulo fialdini/projeto leonilson

Todos os Rios Levam a Sua Boca, hidrocor e tinta preta a pena sobre papel, 210 x 100 cm. Coleção Família Bezerra Dias

foto: rômulo fialdini/ projeto leonilson

KMS - Horas, c. 1991, acrílica e bordado sobre lona recortada, 17 x 17 cm. Coleção Valdirlei Dias Nunes

Voilà Mon Coeur, 1990, bordado, cristais e feltro sobre lona, 22 x 30 cm. Coleção particular, São Paulo

São Tantas as Verdades, 1988, acrílica, pedras semipreciosas bordadas e fio de cobre sobre lona, 213 x 106 cm. Coleção particular, São Paulo

O Perigoso, 1992, tinta preta a pena sobre papel, 30,5 x 23 cm. Coleção Inhotim, Minas Gerais

CONTINUUM

20

21

J.L.B.D., 1993, bordado sobre veludo, 14 x 12,5 cm. Coleção Família Bezerra Dias

foto: rômulo fialdini/projeto leonilson

foto: rômulo fialdini/projeto leonilson

Converso no Seio de Cristo, 1993, tinta preta a pena sobre papel, 15,5 x 8,5 cm. Coleção Rita e Marcelo Secaf


leonilson REPORTAGEM |

presentar o mundo real e os símbolos em nosso trabalho foi um vínculo entre nós também”, observa Hien, com quem Leonilson trocou extensa correspondência por vários anos. A marchand Regina Boni, galerista de Leonilson por oito anos, “depois de tê-lo assediado por 18”, também manteve uma forte amizade com o artista. Além da arte, a afinidade dos dois passava pela gastronomia. “Ele sempre ia jantar na minha casa. Eu fazia seus pratos prediletos: torta de frango e, de sobremesa, tiramissu ou bolo de laranja. Ele foi uma das grandes paixões da minha vida, um filho para mim.” Regina foi uma das pessoas mais próximas de Leonilson depois da descoberta da infecção pelo vírus HIV, em 1991. A doença mudou radicalmente a vida e a obra do artista. “Ele se tornou mais introspectivo e autocrítico”, relembra Thomas Cohn. Lagnado escreveu: “o assombro da doença sobre a obra é antigo. [...] Mas o ano do compromisso do artista com a tomada de consciência da passagem por este mundo seria 1991 [...] quando [...] formalmente encontra uma maneira de expressar o inquietante ‘eu’ que o habita. Seria o ano do teste”.

ENFIM, O AMOR

A produção de Leonilson sempre fez alusões à sexualidade, ao homoerotismo e aos encontros e impossibilidades do amor. Leitor do poeta grego Constantin Cavafy, entre outros autores que exploram as possibilidades eróticas dos relacionamentos humanos, o artista criou uma narrativa poética por meio de versos e frases soltas que integraram toda a sua obra. A temática já aparecia nos anos 1980, com pinturas de contexto fetichista e erótico, segundo analisa Lagnado em Leonilson: São Tantas as Verdades. O amor era por vezes associado à espiritualidade, como na obra Voilà Mon Coeur, de 1990, em que reproduz no verso uma fala de Jesus Cristo a São João Batista (“Aqui está meu coração, faça dele o que você quiser”), além da frase que dá nome a esta reportagem. Outras obras falam do desejo, como a pintura Jogos Perigosos, de 1989, que traz as inscrições “Esses jogos perigosos/Não são guerra/Nem estão no mar ou no espaço/Mas por detrás de um óculos e um par de jeans”. A figura da ponte inútil, que não consegue ligar dois pontos, é recorrente.

A relação amorosa servil também aparece como tema, por exemplo, no bordado sobre voil O que Você Desejar, o que Você Quiser, Eu Estou Aqui, Pronto para Servi-lo, de 1990. Em entrevista a Lagnado, o artista afirma que todas as suas obras são objetos de desejo. “Uma das características do meu trabalho é a ambiguidade. Os bordados revelam a minha ambiguidade na minha relação como homem”, observou. Com a doença, sua produção passa a ter um tom autorreferente, melancólico e confessional, como se fizesse um ato de contrição por meio da obra de arte. O símbolo do infinito surge também com o desenho de peixinhos, como em J.L.B.D., bordado de 1993. Exemplo maior é a série de sete desenhos O Perigoso, de 1992, em que ironiza sua condição. O amor passa de uma pulsão carnal a um sentimento universal, e a espiritualidade se aprofunda. “O trabalho me ajuda. Nele, coloco minha força. Ele não me deixa esmaecer. Fico fazendo esses trabalhos como orações. É como uma religião que fornece os símbolos. Meu trabalho é mais guiado por esse sentido do que pelo valor estético”, declarou à crítica de arte.

Albert Hien ELE ERA UM ILUSTRADOR GENIAL E UM OBSERVADOR ATENTO DA SOCIEDADE. SE ESTIVESSE VIVO E NÃO OBTIVESSE MAIS SUCESSO NO MERCADO DA ARTE, PROVAVELMENTE ENVEREDARIA PARA A LITERATURA E O CINEMA.”

LEONILSON EM SEGUNDOS Na Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais você encontra várias informações sobre Leonilson, como a biografia do artista e a cronologia de sua carreira, além de imagens de obras. Nascido no Ceará em 1957, ele morou toda a vida em São Paulo, mas era um cidadão do mundo. Ao realizar obras de arte como quem escreve um diário, o

Leonilson está em cartaz no Itaú Cultural até 29 de maio com a exposição Sob o Peso dos Meus Amores. Saiba mais em itaucultural.org.br/leonilson.

artista tornou-se famoso. Após a morte, em 1993, sua produção tem sido cada vez mais aclamada como uma das

F

I

C

H

Á

R

I

O

|

A

M

O

R

foto: rômulo fialdini

AMIGOS E PARCEIROS ARTÍSTICOS Se você gostou das obras de Leonilson, conheça trabalhos de outros artistas da Geração 80 que conviveram e trabalharam com ele.

foto: sergio guerini

principais criações artísticas brasileiras. Acesse e confira: itaucultural.org.br/enciclopedias.

LUIZ ZERBINI Barra 7 (Tela 6), 1995, acrílica sobre tela, 200 x 200 cm

SÉRGIO ROMAGNOLO Sem Título, 1993, plástico moldado, 160 x 210 cm. Coleção do artista

DANIEL SENISE Atlas, 1982, óleo sobre tela, 230 x 190 cm. Coleção Gilberto Chateaubriand/MAM, RJ

LEDA CATUNDA Véus Coloridos, 1998, acrílica sobre tecido, 102 x 75 cm. Acervo Banco Itaú S.A., São Paulo


cidades REPORTAGEM |

As cidades são o amor que aprendemos a amar desde crianças

TEXTO mariana lacerda

PRESENÇA DE PEDRA

R O M A | O I R Á

Não seria exagero imaginar que modificar ou apagar os espaços de um lugar seja o mesmo que roubar um pedaço importante do sentido de nossa existência. Mantê-los vivos é acolher as narrativas, as histórias de quem ali está ou partiu. Não sem razão, o sociólogo J. Dewitte, em um artigo intitulado “A Unidade na Multiplicidade” (La Revue du M.A.U.S.S., n. 14, 1999), escreveu: “Se por um acaso eles [os habitantes de uma cidade] se esquecerem do que são, é suficiente, por assim dizer, retornar a esse lugar para se recordar: ele é, na sua presença de pedra, a recordação sensível do que eles são”.

CONTINUUM

22

23

O segundo sinal que temos de quem somos vem, e agora o sentido do espelho é figurado, pelos olhos dos outros, particularmente os da mãe,

Cinemas, livrarias, praças, por exemplo, são testemunhos sólidos de fatos que aconteceram e não foram fruto da imaginação, da lembrança. É isso que possibilita que nasça dentro de nós a feliz sensação de pertencimento espacial, “sem a qual nós nos sentiríamos exilados em nossa própria casa”, diz Lúcia. Em outras palavras, nós nos apegamos a uma cidade. Sentimento, portanto, que nos leva a nos referir a ela como “a minha cidade”, embora se trate de um ambiente coletivo por natureza.

H

Em um dos seus estudos, Lúcia comparou a cidade ao espelho de Jacques Lacan, um dos pais da psicologia moderna. Em sua teoria do espelho, o psicanalista francês discorre sobre os momentos em que nós, ainda bebês (mais precisamente entre o quinto e o 18º mês de vida), começamos a entender quem somos. Na verdade, bebezinhos costumam ver a si mesmos como partes fragmentadas. Os pés, por exemplo, que comumente levam à boca, parecem não lhes pertencer. Olhar no espelho é ter talvez o primeiríssimo sinal de que ele, o bebê, é um ser completo.

Por isso é possível imaginar que exista uma relação, “inconsciente por definição”, diz Lúcia, no modo como vivenciamos a cidade e a infância. Além disso, existem ainda os significados simbólicos que damos aos lugares que testemunharam partes importantes de nossa vida.

C

Há alguns anos, a arquiteta e urbanista Lúcia Leitão, pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco, dedica-se a entender, à luz da psicanálise, os mecanismos que nos levam a transformar ruas, casas, escolas, igrejas em símbolos de uma experiência pessoal e, posto que única, insubstituível.

Talvez por isso mesmo Michel de Certeau, em seu livro A Invenção do Cotidiano (Vozes, 2002), tenha escrito: “Praticar o espaço é portanto repetir a experiência jubilatória e silenciosa da infância”. A palavra metrópole, aliás, deriva do grego, em que “mete” significa mãe e “poli” cidade.

I

Cineastas e poetas já se debruçaram sobre esse assunto. O turco Orhan Pamuk, que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2006, por exemplo, dedicou um livro inteiro à sua Istambul, dando à obra o nome da cidade (Cia. das Letras, 2007). Os músicos do conjunto português Madredeus têm um CD só para Lisboa. E no Recife, nas vésperas de carnaval, não se canta outra coisa senão o refrão: “Quando eu me lembro que o Recife está longe a saudade é tão grande que eu até me embaraço”. Trata-se do Frevo Nº 2 do Recife, composição de Antônio Maria, jornalista e escritor pernambucano que morava no Rio de Janeiro. A canção é um exemplo da transformação em arte desse sentimento coletivo de apego a uma cidade.

segundo Lacan. É a mãe quem nos informa, ainda que sem saber, que somos uma pessoa inteira. E mais, é ela quem nos empresta os primeiros traços de personalidade, bons ou não. A mãe, por sua vez, é produto de uma cultura. “E a cidade é parte privilegiada da manifestação da cultura”, diz Lúcia.

F

De onde vem e como nasce o amor que temos por algumas cidades que conhecemos? Por que elas são tão especiais e nos fazem, até, adormecer melhor? Como explicar o apego a certos territórios, lugares que parecem traduzir em tijolo, cimento e telha nossos desejos de dias tranquilos?


minicontos FICÇÃO |

SEXO, MENTIRAS E POSTS Quatro escritores produziram pequenos contos sobre certos aspectos do amor: luxúria, ódio, medo e ciúme.

ILUSTRAÇÃO zé otávio

Facas “Puto!”, ela pensou. Com os dentes. Encarava com tanta força que podia até arrancar a cabeça dele fora do pescoço. Ele, facas na mão, também olhava fixo pra ela, mas seu olhar varava, ia até o infinito, sereno. Uns seis, sete metros longe dela, ela encostada na tábua. Como sempre. “Puto!”, ela pensou, de novo. E ele começou a atirar as facas. Matinê de sábado, lombra, pouca gente, maçã do amor a 0,50. Normal. Só mais três facas: as duas da cara,

A

M

O

R

uma de cada lado, e a do cocuruto. Ela, de novo, “Puto!”, pensou, imagens na cabeça, o filme mais velho do mundo: a contorcionista, loira de um amarelo intenso, carne nova, nem fala português direito, romena, chegou outro dia, contente, se via pela janela do trailer, por cima dele. “Puto!” A penúltima faca

são que ele notou essas coisas, seu olhar tava um pouquinho diferente enquanto lançava a última faca.

F

I

C

H

Á

R

O

Com os dentes. Quase uma lágrima no canto do olho direito. Deu a impres-

I

|

roçou suave a sua orelha esquerda. Assustou. “Puto!”, ela disse, baixinho.

Quem foi ao circo aquele sábado – quase ninguém – conta que o ingresso – muito barato – valeu cada centavo. MAURÍCIO PEREIRA é músico. Com André Abujamra, formava Os Mulheres Negras. Na carreira solo, é autor da maioria de suas canções. Ao enviar o texto acima, afirmou não lembrar a última vez que escreveu uma ficção.


Só vigia um ponto negro Ele foi o primeiro grande amor da minha vida, o cara com quem eu quis casar e ter filho. Éramos jovens e descobrimos que, para viver um grande amor, às vezes é preciso encarar uma dose de mágoa. Ele tinha banda, groupies, uma vez pedi pra uma amiga queimar uma delas com o cigarro e fui atendida. Olhava o celular dele, ficava puta se ele dava atenção a quem não devia. Ciúme típico de quem podia virar a esquina e aprontar. Hoje, nem “feliz ano novo” ele me dá. Perdi as contas das vezes que olhei a vida dele pelo Facebook – meu coração vinha na garganta quando ele colocava uma música pra namorada nova, uma foto dos dois. Era uma vida sem a gente. Nos meus sonhos ele ainda aparece. Outro dia, quis contar que Patti Smith escreveu “Caminhos que se cruzam voltarão a se cruzar”. Robert era o menino que queria ser mau, ela era a menina má. Juntos, viveram princípios opostos, luz e trevas, um pouco de tudo. Bem assim, como a gente. DANIELA ARRAIS é jornalista, blogueira e DJ. Mantém o blog donttouchmymoleskine.com. O título do seu conto vem de um verso da música “O Ciúme”, de Caetano Veloso.

Filhotes Eu quero chorar. Chora não. Ajuda aqui, vamos limpar tudo antes de mãe chegar. Não tá certo. E o que pai faz toda vez que bebe tá certo? Mesmo assim a gente não podia ter feito isso. E deixar ser machucado o tempo todo? Ficar sangrando num canto? Não. Era nossa obrigação cuidar dele. Agora só a gente é que vai apanhar. Vem logo, vamos esconder tudo, enrolar num lençol e depois a gente diz que ele fugiu, que ninguém viu. Deixa eu chorar, meu Deus. Não. Garoto agora tá salvo e vai ter vida eterna. Daqui a pouco ele volta. Feito Jesus? Feito Jesus. A gente só precisa esperar três dias. ADRIENNE MYRTES publicou A Mulher e o Cavalo e Outros Contos (Alaúde); A Linda História de Linda em Olinda (Escala), em parceria com Marcelino Freire; e participou de coletâneas como o e-book Possibilidades da Fotografia Contemporânea: Mezanino e Portfólio (Itaú Cultural).

Orgasmo mensal Porra, esse motel exacerbou, a comida aqui é boa demais, disse ele. Uhmmm, chega a dar arrepio, disse ela. Foi a melhor sacada pra comemorar nossos 30 anos de casamento, disse ele. A gente podia vir mais vezes, sussurrou ela. É, nunca comi tão bem assim, disse ele. Eu nunca fui tão feliz, disse ela. Chega de transinha requentada, disse ele. Olha, tou toda molhada, disse ela. Ah, que tesão, uma foda dessas por mês nem fica tão caro, gemeu ele. Ai, bem, acho que enfim vou ter um orgasmo, gemeu ela. Vai, putinha, goza, gritou ele, antes de ejacular sobre o jantar íntimo no melhor motel da cidade. JOÃO SILVÉRIO TREVISAN publicou, entre outros, Em Nome do Desejo, Ana em Veneza, ganhador dos prêmios Jabuti e APCA de 1995, e Devassos no Paraíso, todos pela Editora Record. É colunista da revista G Magazine.

CONTINUUM

24

25

Leia os minicontos de Adriana Lisboa, Andrea Del Fuego, Antonio Prata, Bia Abramo, Daniel Galera, Ferréz, Giulia Moon, Ivana Arruda Leite, Luiz Ruffato, Rodrigo Levino e Zéu Britto em itaucultural.org.br/continuum.


jovens cantoras REPORTAGEM | R O M A | O I R Á H C I F

Bárbara Eugênia: “Quando estamos sofrendo, a inspiração vem muito mais”


O AMOR É VELHO E MENINA Tema número 1 na música popular brasileira, o amor continua a sair da

boca das novas cantoras tanto quanto no passado, embora as chances de finais felizes sejam maiores agora

itaucultural.org.br/ CONTINUUM CONTINUUM

27

FOTOS andré seiti

26

TEXTO fernanda castello branco


jovens cantoras REPORTAGEM |

D

izem que Dalva de Oliveira, fora do palco, era alegre. Essa alegria, no entanto, só os que puderam conviver com a cantora viram de perto. O público enxergava Dalva, a “Rainha da Voz” nos anos 1930, encarnada numa espécie de personagem desesperada, cantando o amor e suas desilusões. Em cena, ela não era triste sozinha. Muitas letras e interpretações marcantes entraram na história para comprovar que a turma da desilusão amorosa era grande: o “Adeus, Querido”, na voz de Ângela Maria (“E em nome do amor/Que houve entre nós dois/Deixemos pra depois/O adeus”); a fossa incomparável de Maysa; o “Amor, Meu Grande Amor”, de Ângela Ro Ro; o “Amor Perfeito”, de Clara Nunes; todas as dores de Dolores Duran; o samba-canção na voz potente de Nora Nei; Elis Regina, bem ali, totalmente dramática, “Atrás da Porta”. O amor é velho e menina, já diria Tom Zé. Seja doído como na era do rádio, tranquilo como um barco a deslizar nas águas da bossa nova ou múltiplo como em tempos mais modernos, ele seguiu sendo cantado por muitas outras mulheres: Maria Bethânia, Gal Costa, Nara Leão, Joyce, Miúcha, Diana, Zizi Possi, Marina, Simone. O tempo passou, os nomes são muitos, mas até hoje o amor se desdobra em inúmeros versos que costuram boa parte da música popular brasileira.

Com tanto amor assim, para todo o sempre, seria possível esperar novidades? A baiana Márcia Castro não espera. “É o assunto mais desgastado e por isso há uma dificuldade em encontrar um jeito novo de abordá-lo. Sempre que você ouve uma canção de amor, acha que já ouviu aquele verso, que aquele sentimento já foi traduzido de algum modo. Eu considero o amor um dos temas mais delicados de cantar”, afirma.

F

I

C

H

Á

R

I

O

|

A

M

O

R

“O amor é um tema muito importante na vida das pessoas e inevitável no trabalho do compositor. É uma necessidade vital que obviamente aparece na música”, analisa a carioca Nina Becker. “Beber o amor, se embriagar, sofrer ou celebrar esse sentimento é uma coisa que a gente vai fazer a vida inteira”, diz a paulista Tulipa Ruiz. Zélia Duncan concorda: “Mudam as formas, as palavras dão cambalhotas, se disfarçam, mas sempre desembocam nesse tema em algum momento”.

OUTROS AMORES

Uma solução que Márcia Castro encontrou para incluir o amor em seu disco de estreia (Pecadinho, de 2008), sem cair na mesmice, foi apostar na

sensualidade e na ironia. “Percebi que as músicas que eu escolhia estavam longe desse amor não correspondido. Não defini um conceito previamente, mas tive uma predileção pelas canções mais sensuais. O amor mais sensorial, mais irônico e menos dramático”, analisa. A paulistana Ana Cañas, que, se pudesse, teria escrito “Olha”, de Roberto e Erasmo Carlos, conseguiu se distanciar do amor de casal e explorou terrenos ligados ao aspecto familiar. “São canções que vão entrar no disco novo”, anuncia. “Nelas eu canto sobre o amor que sinto pela minha incrível avó e pelo meu falecido pai. Foi difícil escrever sobre esses amores. Demorei a colocar para fora do jeito que eu gostaria, mas finalmente consegui falar sobre eles”, completa. Outra canção sobre amor familiar também prevista para um disco futuro foi composta pela carioca radicada em São Paulo Bárbara Eugênia para seu sobrinho. “Quero chamar algumas crianças para fazer o coro, mas é só uma ideia. Ela ainda não tem nome e está anotada apenas no meu caderno”, conta. Abrir o leque a vários tipos de amor é mesmo uma saída para não ser repetitivo, especialmente quando se trata de intérpretes em busca incessante por novidades. “Eu já cantei quase todas as formas de amor, porque eu o vejo de uma maneira maior, mais ampla. Não que o amor entre duas pessoas não seja grande, diverso, mas a forma como ele é tratado o deixa muito restrito e doloroso”, explica a maranhense Rita Ribeiro. Se antes o ofício de cantora andava de mãos dadas com a palavra romântica, a inclusão de situações corriqueiras nos repertórios imprimiu mais personalidade e ampliou as possibilidades, permitindo passeios destemidos por novos caminhos. Hoje a pernambucana Karina Buhr canta sobre o conflito no Iraque (“Nassiria e Najahf”) e sobre a lei de incentivo à cultura (“Ciranda do Incentivo”). Márcia Castro canta sobre o esporte favorito do brasileiro (“Futebol para Principiantes”) e Tulipa Ruiz sobre um atraso na ida para o cinema (“Pontual”). DE UM AMOR EM PAZ (OU NÃO)

Se Maysa assumia em alto e bom tom que tinha pensado em morrer de amor (“Andei sozinha, cheia de mágoas/Pelas estradas de caminhos sem-fim/Tão sem ninguém que pensei/Até em morrer, em morrer”), Marisa Monte canta leve e fagueira que o amor acalma, acolhe a alma e ajuda

a viver (“Amor I Love You”). “Antigamente as cantoras viviam mais o coração rasgado”, define Tulipa Ruiz. “Hoje em dia, dá para fazer músicas de amor com final feliz, de forma mais leve”, diz. Há quem não acredite que a grande mudança do amor cantado ao longo dos tempos sejam essas nuances de alegria e tristeza. “Para mim, isso não é uma questão. Tenho músicas que falam do amor triste e outras que falam do amor feliz. Nunca parei para pensar se ia fazer uma música de um jeito ou de outro”, afirma Nina Becker. “Acho que o que muda de geração para geração é o jeito de cantar, a forma de colocar a voz. No entanto, a maneira de falar sobre o amor não mudou muito. Acho até que hoje em dia essa abordagem é mais careta”, completa a cantora. Segundo os ouvidos de Márcia Castro, “a gente vive um momento em que as interpretações são mais clean, sem muitos arranjos dramáticos. ‘Atrás da Porta’, cantada por Elis Regina, é um clássico desse estilo dramático”, analisa. Karina Buhr concorda com Nina Becker e acredita que “não tem regra” na hora de compor. “A vida pessoal de quem escreveu é uma coisa menor do que a letra, que é fantasia”, explica. Da aclamada estreia, com Efêmera (2010), ao caminho que vai levar ao segundo disco, previsto para 2012, Tulipa Ruiz diferencia bem as suas composições feitas em momentos alegres e tristes. “Escrever sobre o amor na alegria é mais celebração. Na dor, é muito reflexivo. Reflexão e pulsos cortados. Acho mais difícil escrever na dor, porque você fica conceituando. Fundo do poço e lama não me inspiram”, conclui. No entanto, mesmo em época de pouca fossa, há também a turma que se inspira mais na tristeza. “Quando estamos sofrendo, a inspiração vem muito mais. Fico curtindo aquilo e daí escrevo”, confessa Bárbara Eugênia. Para Zélia Duncan, esses períodos também são ricos. “Eu me sinto mais profunda, mais conectada com meus sentimentos”, afirma. Até quem aposta no “escracho” prefere falar de amor na tristeza. “É mais fácil compor nas crises. Depois você se emociona, releva, dá risada. Eis o poder da música!”, garante a pernambucana Catarina Dee Jah. O coro da tristeza quase necessária para falar de amor é engrossado por Ana Cañas. “Quando fico mais angustiada e infeliz, o jeito que eu tenho para lidar com isso é compondo. O violão torna-se um grande companheiro na fossa”, conclui.


Ana Cañas canta e compõe sobre o amor, mas aquele que sente pela avó

NOUTRAS PALAVRAS, SOU MUITO ROMÂNTICO Intérpretes reafirmam o poder da canção de amor

FAÇA SUA ESCOLHA Se falar de amor já é difícil, muito mais é ter de escolher apenas uma entre tantas interpretações inesquecíveis sobre o tema. Mas elas conseguiram

Nina Becker Sou romântica. Adoro novela. Adoro todas essas coisas que as pessoas acham bobas. O amor romântico e a canção formaram o meu emocional, o meu imaginário, a minha cabeça e o meu coração. Então, eu tenho apego a essas coisas.

Karina Buhr São tantas! Sou ruim de escolher uma, mas a primeira que me ocorreu foi “Da Maior Importância”, de Caetano Veloso, por Gal Costa.

Tulipa Ruiz Eu me considero romântica, mas, às vezes, em situações que são românticas demais eu fico um pouco ruborizada, envergonhada. Fico com vergonha e não quero assumir. Sou uma romântica disfarçada. Zélia Duncan Sou romântica, mas não tenho essa preocupação em relação ao trabalho, não escolho os temas antecipadamente, deixo fluir. Só que não me incomoda em nada o romantismo. Rita Ribeiro Claro que sou romântica. Gosto desse romantismo muito comum na música. Sou uma cantora romântica, mesmo não cantando sempre o amor afetivo. Márcia Castro Sou muito romântica. Talvez por isso eu nem queira reforçar esse lado meu nas músicas. Já sou tanto isso! Ana Cañas Eu me considero uma pessoa apaixonada pela vida e seus percalços. Bárbara Eugênia Sou totalmente romântica. Incurável.

Tulipa Ruiz Gal Costa em “Da Maior Importância”. E o vídeo é o mais sensual da face da Terra. Zélia Duncan Vou citar duas: “Atrás da Porta”, com Elis Regina, e “Explode Coração”, com Maria Bethânia. Mas há tantas outras... Bárbara Eugênia Eu adoro “Estou Completamente Apaixonada”, gravada pela Diana. Márcia Castro Uma interpretação que eu acho fabulosa é a de Maria Bethânia cantando Gonzaguinha: “Grito de Alerta”. Bethânia cantando aquilo é lindo. Ana Cañas “Atrás da Porta”, com Elis Regina, e “Ne Me Quitte Pas”, com Maysa. Essas duas empatam. Catarina Dee Jah Dolores Duran cantando “Fim de Caso”. Nina Becker Uma música que eu acho linda é “Você Não Sabe Amar”, de Dorival Caymmi. Ela expressa os sentimentos profundos de uma forma poética.

Karina Buhr Costumo dizer que sou uma romântica defeituosa. No site da CONTINUUM você encontra vídeo exclusivo com um bate-papo sobre amor, carreira, lançamentos, dificuldades e alegrias das cantoras da nova geração.

CONTINUUM

28

29

Catarina Dee Jah Sou artista, qualquer pessoa que se presta a viver de arte é romântica.


casa rietveld schröder MUSEUS DO MUNDO |

CASA QUE SE TRANSFORMA Integrada ao Museu Central de Utrecht, na Holanda, a Casa Rietveld Schröder, marco da arquitetura moderna, guarda uma história de amor TEXTO carlos costa

Fora da Holanda, Rietveld é conhecido apenas no meio dos arquitetos e designers, e sua grande obra, localizada numa via chamada Prins Hendriklaan, em Utrecht, é pouco conhecida.

A viúva, Truus Schröder-Schrader, mãe de três filhos, culta e rica, após a perda do marido, em 1923, resolveu construir uma moradia adaptada a suas necessidades e a conceitos sobre vida em família e o papel da mulher na sociedade. Para o desafio, contratou o então marceneiro Rietveld, com quem havia, dois anos antes, reformado um ambiente da residência em que vivera com o esposo.

F

I

C

H

Á

R

I

O

|

A

M

O

R

Construído em 1924, o pequeno edifício de formas geométricas assimétricas e cores primárias, similar a uma pintura do também holandês Piet Mondrian, chama-se Casa Rietveld Schröder. É um ícone da arquitetura moderna e materializa uma estética que traduziu os ideais revolucionários de libertação e reconstrução da sociedade do início do século XX. A casa corporifica também a história de amor clandestino de seus criadores, uma viúva e um arquiteto casado.

Rietveld morava com a mulher e seis filhos e era um promissor designer de móveis ligado a um movimento artístico admirado por Truus e do qual um dos mais importantes representantes foi Mondrian: o neoplasticismo.

PARCEIROS ATÉ A MORTE

Truss e Rietveld se empenharam por um ano no projeto, a tal ponto de a obra ser considerada uma parceria do casal. Depois de concluído, o imóvel abrigou, no térreo, o escritório do arquiteto até 1933. A dupla repetiu a parceria: ela criava interiores de projetos dele e produziu textos sobre arquitetura e design. Truus virou referência do feminismo na Europa, e Rietveld um dos grandes nomes da arquitetura moderna. Após a morte de sua esposa, em 1958, o arquiteto foi morar com a viúva na casa, onde ambos morreram. Ele, em 1964, aos 67 anos. Ela aos 95 anos, em 1985. Dois anos depois, o edifício, reformado, tornouse um espaço aberto à visitação, integrado ao Museu Central de Utrecht. Em 2000, foi tombado como patrimônio histórico da humanidade pela Unesco, por ser “expressão notável do gênio criativo humano” e “ocupar lugar seminal no desenvolvimento da arquitetura na era moderna”. PAINÉIS CORREDIÇOS

A arquiteta Cristina Ortega defendeu na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em 2003, um mestrado no qual discutia o diálogo entre a casa e um dos principais objetos desenhados por Rietveld, a Rood-Blauwe Stoel (Cadeira Vermelha Azul). Cristina produziu um dos raros textos em português que descrevem a edificação: “O pavimento térreo abrigou um vestíbulo com acesso para o pavimento superior, um banheiro, área de serviço, e dois ambientes que tiveram diversas finalidades – um deles foi, durante sete anos, o estúdio de Rietveld – e uma cozinha planejada. [...] No pavimento superior foram projetados: as salas de jantar e estar, três dormitórios e um banheiro. Os únicos

arquivo

Em 2010, o governo da Holanda homenageou a memória do arquiteto Gerrit Rietveld (18881964) promovendo o ano Rietveld. Estrela maior do neoplasticismo na arquitetura, ele foi tema da exposição O Universo de Rietveld, que terminou em fevereiro de 2011, no Museu Central de Utrecht, e de outras atividades, como a digitalização dos mais de mil objetos criados por ele, agora disponíveis em catálogo on-line.

O casal em foto de 1936


fotos: ernst moritz

Cadeira Vermelha Azul e fachada da casa – formas assimétricas e cores primárias como o abstracionismo de Mondrian

SCHRÖDER E RIETVELD SE EMPENHARAM POR UM ANO NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DA CASA, A TAL PONTO DE A OBRA SER CONSIDERADA UMA PARCERIA DO CASAL.

Além da leveza e flexibilidade, a arquiteta sublinha na obra o uso das cores. “Azul, amarelo e vermelho, assim como os acromáticos, branco, cinza e preto, estão presentes no interior e no exterior, como que sublinhando cada componente: plano ou longitudinal”, completa. ADULTOS E CRIANÇAS

Mas o que torna a construção tão surpreendente? Com cerca de 140 m2, o imóvel possui formas inovadoras até hoje e esconde um interior tão notável quanto o exterior. Nela, tudo tem uma função, inclusive as cores; e as paredes deslizam,

Os destaques estão ligados às teorias do neoplasticismo. Não existem adornos e todos os objetos são funcionais. O tampo de uma mesa se transforma no painel que veda a claridade da janela, o sofá vira uma cama e móveis retráteis ou dobráveis são comuns. Outras soluções também entraram para a história da arquitetura e ainda despertam importantes questões. Os elementos construtivos foram pré-fabricados, com a intenção de baixar os custos. As formas são puras, blocos retangulares; as cores, simples, indicam usos e funções das áreas e objetos. O artifício de paredes que correm, no andar superior, transformando os quartos em um grande vão, foi pensado por Truus para integrar os filhos à vida dos adultos. Vale salientar que, nos anos 1920, não era comum uma mulher contratar um arquiteto, muito menos se intrometer de forma tão decisiva em um projeto. HISTÓRIA ENCOBERTA

Segundo a curadora de design do Museu Central

31

Cristina ressalta que a casa Rietveld Schröder é o primeiro edifício construído de acordo com os princípios do neoplasticismo. Por isso, “seu interior possui um mobiliário intimamente ligado à concepção arquitetônica. A casa se apresenta com uma independência visual de cada um dos componentes, que se destacam cromaticamente, para identificar diferentes elementos e a separação física dos planos”.

transformando os ambientes, que são extremamente abertos e naturalmente iluminados.

30

compartimentos fixos são: o banheiro e a caixa de escada. O restante é [...] subdivisível com painéis corrediços, que podem transformar o amplo espaço em espaços menores [...].


casa rietveld schröder MUSEUS DO MUNDO |

SAIBA MAIS SOBRE O NEOPLASTICISMO

Idealizado pelo artista plástico Theo van Doesburg com o pintor Piet Mondrian, o neoplasticismo pregava a eliminação das formas históricas, das técnicas tradicionais e da distinção entre as artes, utilizando elementos puros e cores primárias. De Stijl, estilo em holandês, era o nome da revista impressa de 1917 a 1932, na Holanda, que divulgou o movimento e influenciou, entre outros, os cubistas, o grupo da Bauhaus e o arquiteto Mies van der Rohe. O corte de excessos era regra geral. Segundo Mondrian, dois procedimentos guiavam as criações: redução dos elementos às unidades básicas (linha, plano e cor primária) e rearticulação segundo princípios assimétricos. Van Doesburg escreveu um texto composto de 17 pontos conceituando o movimento na arquitetura. Esses preceitos se tornaram realidade na Casa Rietveld Schröder.

1.

jannes linders

de Utrecht, Ida van Zijl, o relacionamento do arquiteto com a viúva é notório há tempos. “Quando começou, em 1924, era muito difícil a aceitação social, mas, ao mudar para a casa, Rietveld já era um arquiteto bastante conhecido e a relação foi aceita pela maioria.”

Abolir a simetria e a repetição. O equilíbrio pode ser obtido por meio de diferenças, ao contrário da igualdade simétrica do classicismo.

2.

Os volumes que se sobressaem às fachadas, como as varandas, são consequência do dimensionamento que se dá do interior para o exterior, o que confere uma nova expressão plástica à volumetria.

kim zwarts

Ida escreveu um livro sobre a casa, The Rietveld Schröder House, editado em inglês pela Paperback, no qual a história sentimental do casal é comentada, levando-se em conta o contexto social da época, de forte influência protestante, e que os personagens envolvidos tinham uma natureza introvertida. Referências ao relacionamento também surgem em declarações de parentes, como Han, filha da viúva, que dizia que a mãe havia coberto com uma sombra o relacionamento com Rietveld.

3.

As paredes fixas foram suprimidas, em consequência

Segundo Ida, em 1974, em uma entrevista, Truus assumiu o relacionamento: “Entre o jovem arquiteto e a jovem mulher se desenvolveu uma relação... que cresceu para um grande amor que durou por toda a vida”.

uma nova planta é concebida: aberta, que possibilita a integração entre os espaços exteriores e interiores, onde luz e transparência são elementos Ernst Moritz

essenciais.

O MUSEU

O acervo contém ainda vasta coleção que abrange diversos movimentos artísticos, com foco em arte contemporânea e na produção de Utrecht. Entre os artistas com maior relevo estão os antigos mestres da pintura holandesa Jan van Scorel, Abraham Bloemaert e Hendrick ter Brugghen.

F

I

C

H

Á

R

I

O

|

A

M

O

R

Outra atração é a obra de Dick Bruna, artista contemporâneo que desenhou diversos personagens infantis, entre eles um coelho chamado Miffy (em holandês Nijntje), bastante conhecido na Europa e no Japão.

Composto de quatro edifícios restaurados (um antigo convento medieval, um orfanato, estábulos militares e um hospital psiquiátrico) ao redor de um pátio central, no centro da cidade, o museu tem entradas de 9 a 20 reais. Para visitálo e também a Casa Rietveld Schröder há preços especiais e é bom estar atento aos horários, que podem ser consultados no site da instituição. * fotos cedidas pelo Museu Central de Utrecht

4.

A nova arquitetura é aberta. Um cômodo pode ser subdivido em espaços menores, por meio de divisórias móveis. Os ambientes são transformáveis e ágeis.

kim zwarts

O Museu Central de Utrecht abriga a maior coleção de desenhos de Gerrit Rietveld do mundo. O arquiteto é responsável por mais de cem projetos de edifícios construídos na Holanda, inclusive o turístico Museu van Gogh, em Amsterdã, além de quase mil objetos, como os criados para a casa da Prins Hendriklaan.

5.

A cor é um dos meios elementares para fazer visível a harmonia e as relações arquitetônicas. Os quadriláteros dos pisos resumem a proposta cromática do neoplasticismo.

Consultoria: Cristina Ortega

Visite virtualmente a Casa Rietveld Schröder world-heritage-tour.org (europe/benelux/netherlands/rietveld-schroder) Acesse o site do Museu Central de Utrecht centraalmuseum.nl Conheça mais sobre a obra de Rietveld (inclui catálogo on-line) rietveldjaar.nl/en Leia sobre o neoplasticismo na Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais itaucultural.org.br/enciclopedias


casais de artistas CURIOSIDADES |

E N tapas T Re beijos E © the estate of francis bacon/licenciado por autvis (brasil, 2011)

Tríptico Em Memória de Geroge Dyer, Francis Bacon, 1971

Os casais célebres sempre atiçaram a curiosidade alheia, seja pela fama, seja pelas histórias conturbadas que se tornaram públicas. Conheça a seguir três casais notórios, cujas relações – de amor e ódio – influenciaram suas trajetórias profissionais.

TEXTO andré seiti

R O M A | O I R Á H C I

Ronaldo Bôscoli & Elis Regina O casamento da cantora Elis Regina com o produtor musical Ronaldo Bôscoli durou cinco anos e rendeu um filho, João Marcello Bôscoli, e inúmeros barracos que fizeram a festa das colunas sociais da época. Os dois se conheceram em 1964, quando Bôscoli e Luiz Carlos Miele produziram shows de Elis no Beco das Garrafas, no Rio. Os produtores se desentenderam com a cantora, que começou a faltar às apresentações. Bôscoli descobriu Elis cantando em outras casas e mandou pichar os cartazes nos quais aparecia o nome dela. Em contrapartida, ela boicotou os artistas do Beco das Garrafas em seu programa televisivo, O Fino da Bossa. Por ironia do destino, Miele e Bôscoli foram convidados pela direção da Rede Record a assumir a produção do programa da cantora, que despencava na audiência. Bôscoli e Elis fizeram as pazes e se casaram, em dezembro de 1967. Os desentendimentos voltaram e a crise se refletiu nas apresentações: o show É Elis saiu de cartaz antes do fim da temporada, em 1972, e a cantora acusou o marido de obrigá-la a subir no palco com oito meses de gravidez para ganhar dinheiro.

CONTINUUM

32

33

Euclides da Cunha & Anna de Assis Traição, ciúme e assassinatos. O enredo de romance policial marcou a relação amorosa entre o escritor Euclides da Cunha e sua esposa, Anna de Assis. Ambos se conheceram por intermédio do major Sólon Ribeiro, pai de Anna. Ficaram casados por 15 anos e o final do relacionamento se tornou um caso de polícia. Durante as longas ausências do marido (que viajava a trabalho como engenheiro militar), Anna, com 34 anos, conheceu o tenente Dilermando de Assis, 17 anos mais jovem. Tiveram um caso e dois filhos (um deles morreu ainda bebê e o outro era chamado por Euclides de “a espiga de milho no meio do cafezal”, por ser o único loiro em uma família de morenos). Apesar da desconfiança, o autor de Os Sertões

registrou as crianças em seu nome. As crises de ciúmes se intensificaram. Em 1909 Anna abandonou Euclides para ficar com o amante. Em 15 de agosto daquele ano, Euclides descarregou seu revólver em Dilermando, que revidou alvejando o escritor até a morte. Sete anos depois, o filho de Euclides com Anna, para vingar a morte do pai, atirou no amante da mãe, novamente sem êxito: ferido, Dilermando matou o enteado. Em ambos os casos, foi absolvido, declarando legítima defesa.

F

Francis Bacon & George Dyer Certo dia, em 1964, o pintor anglo-irlandês Francis Bacon surpreendeu um jovem tentando arrombar sua casa. Em vez de chamar a polícia, o artista resolveu “adotar” o meliante, George Dyer. Desse encontro surgiu uma das grandes paixões e obsessões da vida de Bacon e que viria a influenciar toda a sua produção. Dyer, criado em uma família de criminosos, passou boa parte de sua juventude frequentando centros de detenção, devido a pequenos roubos. Extremamente vaidoso e alcoólatra, encontrou em Bacon uma espécie de figura paterna e passou a ser tema de grande parte das obras do amante. No entanto, afogava-se cada vez mais no álcool – sustentado financeiramente por Bacon. Às vésperas de uma importante exposição, em Paris, sobre a carreira de Bacon, Dyer morreu de overdose de barbitúricos. A morte, então, tornou-se um tema constante na obra do pintor.


BALAIO

NA VIDA E NA ARTE fotos: divulgação

DICAS PARA QUEM QUER IR ALÉM DA REVISTA

CINEMA O Inferno de Henri-Georges Clouzot, de Serge Bromberg e Ruxandra Medrea, documentário, 2009, 94 min; em DVD, 2010, 102 min, com extras Imagine a situação: em 1964, um dos mais talentosos diretores franceses recebe carta branca (em outras palavras, uma verba considerável) para fazer um filme. O roteiro posto em ação é um thriller de suspense e ciúme, estrelado por uma atriz em ascensão naquele momento, a bela Romy Schneider, e a locação é nada mais nada menos do que a Provença. Três semanas de filmagem e o diretor, pressionado por prazos e por dar conta de sua empreitada, entra em profunda depressão, deixando o trabalho inconcluso. Esse seria o desfecho da história de O Inferno (L’Enfer), cujas cenas repousaram por 40 anos até ser redescobertas e dar origem a este documentário, que disseca a história por trás do filme. No roteiro de Clouzot – que anos depois inspiraria O Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo (1994), de Claude Chabrol –, um gerente de hotel (Serge Reggiani) vai gradativamente enlouquecendo devido ao ciúme que sente por sua esposa (Romy Schneider). Para demonstrar a alucinação do personagem, as cenas mudam do preto e branco para um colorido psicodélico, gerando imagens de grande impacto visual e extrema sedução.

ARTES VISUAIS Oneness, de Mariko Mori Oneness é unidade em inglês e o título da mostra de dez trabalhos da artista japonesa Mariko Mori, exibida em Brasília e em itinerância pelo Rio de Janeiro e São Paulo, nas sedes do Centro Cultural Banco do Brasil. É a primeira vez que trabalhos da artista, nome essencial na produção contemporânea, chegam ao público brasileiro. A curadoria é do italiano Nicola Goretti e a exibição já passou pela Holanda, pela Dinamarca e pela Ucrânia.

HQ Lost Girls, de Alan Moore e Melinda Gebbie (Devir Livraria, 2007) Com desenhos de Melinda Gebbie e texto de Alan Moore, é um clássico dos quadrinhos adultos que reúne em uma história refinada, de traço erótico e repleta de referências históricas e literárias, três personagens fictícias: Alice (Alice no País das Maravilhas), Dorothy (O Mágico de Oz) e Wendy (Peter Pan). Adultas, elas se encontram em um hotel na Áustria, antes da Primeira Guerra Mundial, para rememorar suas aventuras sexuais. No texto de Moore, escritor premiado e reconhecido como um dos principais nomes dos quadrinhos no mundo, a pornografia adquire densidade existencial. Os seis primeiros capítulos da história vieram a público encartados em edições da revista de HQ americana Taboo, em 1991. No Reino Unido e nos Estados Unidos, as edições da obra completa geraram polêmica pelo uso de personagens infantis num contexto sexual. No Brasil, está na terceira tiragem. Depois do trabalho juntos, Moore e Melinda tiveram um romance e estão casados até hoje.

Entre as obras, desenhos, vídeos e instalações, há o trabalho que batiza a exposição – círculo de seis alienígenas, confeccionados em material entre sólido e suave (technogel) –, que interage ao toque do visitante e alude ao conceito budista de unidade. A monumental Wave Ufo, híbrido de máquina e escultura, com mais de seis toneladas, em formato de cápsula, permite a três visitantes por vez sentar e ver fundir-se, em tempo real, suas ondas cerebrais em som e imagem projetados no ambiente. Mariko Mori mora em Nova York e justapõe o pop ocidental das ficções científicas às filosofias orientais zen, criando outros mundos. Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (9 de maio a 17 de julho) e São Paulo (22 de agosto a 23 de novembro)


LITERATURA Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe (Martins Martins Fontes, 2007) Obra que marca o início do romantismo, narra a desventura de um amor não correspondido. As cartas trocadas entre Werther e seu amigo Guilhermine, o narrador, dão a intensidade da verdadeira devoção do personagem por Charlotte, que, comprometida com outro homem, rejeita o rapaz, apesar de também amá-lo. Não vendo outra solução, Werther entrega-se à morte, fim de seu tormento. Lançado em 1774, o romance teve enorme impacto na sociedade alemã, causando uma série de suicídios de jovens que, como Werther, amavam demais. Há teorias de que esta seja uma narrativa autobiográfica: o conturbado amor de Werther e Charlotte teria, na verdade, sido vivido por Goethe, porém sem o desfecho trágico do suicídio.

Carta a D. – História de Um Amor, de André Gorz (Cosac Naify, 2008) O austríaco André Gorz, teórico da esquerda libertária e pioneiro do pensamento ecológico na década de 1970, conheceu a inglesa Dorine (Doreen) Keir em 1947, na Suíça. Viveram 60 anos juntos. Ela sofria de rara doença degenerativa, causada pelo acúmulo de uma substância que lhe fora injetada durante uma radiografia de coluna. No entanto, bem menos do que uma descrição desse sofrimento causado por erro médico, Carta a D., último livro de Gorz, é o registro de um amor urgente e também um balanço final de anos de parceria e convívio. A carta aberta se sustenta e emociona justamente pela sinceridade contida em cada linha de amor declarado. Nela está escrito: “Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do

foto: beto scliar

outro” e, de fato, nessa história de amor, todos os pontos foram vividos a dois, inclusive o final.

MEMÓRIA Moacyr Scliar (1937-2011) Moacyr Scliar não vive mais entre nós. Permanece nos mais de 70 livros que publicou em 73 anos de vida, findos em fevereiro. Gaúcho, judeu, torcedor do Cruzeiro, médico, deixou vaga uma cadeira da Academia Brasileira de Letras, esposa, filho e netos e a unânime recordação de um homem bem-humorado, inteligente e de escrita cuidadosa. Contribuiu para o registro da história judaica brasileira (O Centauro no Jardim, 1980, entre outros), eternizou a lembrança do sanitarista Oswaldo Cruz (Sonhos Tropicais, 1992) e enriqueceu a literatura brasileira, com um particular gosto pela fantasia. Dois livros ganharam as telas, Caminho dos Sonhos (Lucas Amberg, 1999) e Sonhos Tropicais (André Sturm, 2002). Saiba mais sobre o escritor na Enciclopédia Itaú Cultural de Literatura Brasileira (itaucultural.org.br/enciclopedias)

MÚSICA Bibi Ferreira Brasileira – Uma Suíte Amorosa, de Bibi Ferreira (Biscoito Fino, 2011) Para comemorar os 70 anos de carreira, Bibi Ferreira, uma das maiores atrizes do país, que no palco já deu vida a Edith Piaf e Amália Rodrigues, em espetáculos que fazem parte da história do teatro nacional, resolveu cantar a música brasileira. O CD, com direção musical de Francis Hime, é recheado de clássicos de Dorival Caymmi, Vinicius de Morais, Tom Jobim, Chico Buarque. As canções se sucedem sem pausa, apenas costuradas pelo piano de Hime, em clima intimista. Entre os bons momentos estão a releitura meio falada, meio cantada de “Todo Amor que Houver Nessa Vida”, de Cazuza, e “Vambora”, sucesso de

CONTINUUM

34

35

Adriana Calcanhotto.


BALAIO.COM

googleartproject.com

A Google pôs no ar em fevereiro último mais uma ferramenta que a ajudará em seu objetivo de organizar toda a informação do mundo. No Google Art Project, o usuário é convidado a passear por 17 dos maiores e melhores museus do mundo. Ao clicar em qualquer obra, com recursos de aproximação, surgem detalhes invisíveis a olho nu. Cada reprodução de tela chega a ter 7 bilhões de pixels. Isso corresponde a cerca de mil vezes mais definição do que fornece uma câmera digital. Outro recurso possibilita ao usuário escolher as obras de que mais gosta em cada museu e formar uma coleção. Para isso, é necessário criar uma conta. Interatividade bem semelhante se encontra em outro site, o Artfinder (artfinder.com), no qual internautas postam comentários, formam galerias de obras preferidas e as compartilham nas redes sociais.

adobemuseum.com

O Adobe Museum of Digital Media (AMDM) é o primeiro e único museu estritamente virtual. O artista americano Tony Oursler foi o escolhido para a inauguração, em fevereiro deste ano, com a mostra Valley. Em março foi a vez de ABC, de John Maeda, designer e cientista de novas mídias, seguido, em abril, pela artista japonesa Mariko Mori. O AMDM conta com a curadoria de Tom Eccles, diretor do Center for Curatorial Studies and Art in Contemporary Culture, do Bard College, Nova York. Ao entrar no site, reserve tempo para carregar as páginas que abusam de recursos de áudio e vídeo. Todo o conteúdo está em inglês.

thecreatorsproject.com

Um bom lugar na internet para descobrir novos artistas e saber o que está acontecendo de mais interessante nos campos da cultura e da tecnologia é o site The Creators Project. Criado em 2010 com o objetivo de celebrar, incentivar e divulgar projetos criativos de produtores espalhados pelo mundo, também funciona como um estúdio de criação de conteúdo. Em 2011, seu compromisso de apoio à arte foi ampliado com o The Studio, iniciativa que pretende facilitar a produção e a divulgação de novos trabalhos, bem como colaborações entre artistas de diversas áreas. A distribuição de conteúdo acontece na rede e em mais uma variedade de veículos, como televisão, celular e mídia impressa. Também são realizados eventos em centros culturais de cidades como Nova York, São Paulo, Londres, Seul e Pequim.

issuu.com/itaucultural/docs/possibilidades_da_fotografia A memória de dois projetos do Itaú Cultural ligados à fotografia está registrada no e-book Possibilidades da Fotografia Contemporânea: Mezanino e Portfólio. Em 2004, foi realizada a primeira edição do Mezanino de Fotografia, voltada a novos talentos da produção fotográfica contemporânea. Dois anos depois, a literatura também passou a ser contemplada, e o projeto ganhou nova dimensão. Essa mudança de foco exigiu uma troca de nome e assim surgiu o Portfólio. Quem baixar o e-book terá acesso a textos atualizados dos catálogos das exposições, a um conjunto de entrevistas inéditas com curadores e idealizadores e a uma seleção de imagens das obras apresentadas, entre outros conteúdos exclusivos.


economia criativa REPORTAGEM |

CULTURA, UMA NOVA MOEDA O setor cultural faz girar, anualmente, no Brasil cerca de R$ 380 bilhões, e a economia criativa propõe novos modelos de gestão

TEXTO pedro henrique frança ILUSTRAÇÃO estevan pelli

Há tempos o jornalista e produtor Rodrigo Maia se interessava pelos conceitos de Creative Commons, Open Business e licenças de software. O que é uma série de palavrões para alguns para ele eram ferramentas que ajudavam a disseminar conteúdo sem os entraves da velha burocracia. Depois de assistir ao documentário A Era da Estupidez (The Age of Stupidity, 2009), Rodrigo viu que poderia ir mais longe com esses mecanismos. Para ser realizado, o filme inglês utilizou o crowdfunding, sistema de financiamento colaborativo em que pessoas investem em projetos em troca de benefícios como dedução de imposto de renda, convites ou o nome nos créditos finais. Foi dali que veio a ideia que ele e seu irmão, Thiago Maia, e mais dois amigos colocaram na rede: o Multidão (multidao.art.br), plataforma que abre espaço para artistas divulgarem trabalhos e buscarem patrocínio para concretizar suas obras.

do sem um olhar da Secretaria da Economia Criativa”, observa a ministra. O EXEMPLO DA MÚSICA

Como define Lala Deheinzelin, consultora e empreendedora cultural, “é uma nova economia baseada em recursos intangíveis, como criatividade, cultura, experiência”. Está na música, no cinema, no design, na arquitetura e até na moda, a exemplo da São Paulo Fashion Week, que discute o modelo de produção em fóruns paralelos às passarelas.

Reinaldo Pamponet [leia artigo na próxima página] utiliza a tecnologia para fazer a cultura girar. Em 2002, deixou o cargo de executivo na Microsoft para promover inclusão digital pela música. Para ele, a prometida revolução que esse modelo econômico pode insurgir ainda é incipiente. “Há uma discussão grande sobre conjuntura quando temos de falar de estrutura. A economia criativa vem justamente questionar esse modelo industrial: ela está mais centrada na produção de subjetividade do que na de objetividade. Vivemos um momento ímpar, mas não estamos sabendo aproveitar.”

O segmento cultural representa uma das três maiores indústrias do mundo e faz girar, anualmente, no Brasil cerca de R$ 380 bilhões, segundo a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). A pauta chegou ao Ministério da Cultura e é uma das prioridades da gestão, que criou uma pasta designada exclusivamente para o assunto, gerenciada por Cláudia Leitão, ex-secretária da Cultura do Ceará. “Essa secretaria é transversal e trabalhará perpassando todos os programas do ministério. A ideia é que nada seja realiza-

Pablo Capilé também viu na música um jeito de ajudar os outros e, sobretudo, redesenhar a economia. Com o Espaço Cubo, implantou, em Cuiabá (MT), um centro que se tornou polo musical e, com outros movimentos, articulou o festival Fora do Eixo. Ele observa que é a “circulação de conhecimento livre que dá oportunidade a quem tinha dificuldade”. Isso só foi viabilizado em razão da conexão de pequenos empreendimentos que aproveitam a mistura de moda, música, teatro, cinema e literatura para escoar conteúdo, tendo a internet como principal canal.

CONTINUUM

36

37

Rede e internet são concomitantes nessa modalidade de negócios que vem pavimentando um novo jeito de fazer cultura e ganhar dinheiro: a economia criativa. O termo nasceu na Austrália nos anos 1990. No livro Guia Brasileiro para Produção Cultural 2010-2011 (Edições Sesc SP), de Cristiane Olivieri e Edson Natale, o tema é citado: “[...] este conceito surgiu quando em alguns países industrializados, em função das

mudanças econômicas e sociais, as atividades de serviços ligados ao conhecimento foram reconhecidas como detentoras de um impulso e projeção que superou o foco das atividades industriais”. Em outras palavras, a força da grana. Em 1997, o primeiro ministro inglês Tony Blair percebeu o potencial do setor cultural para reerguer a economia inglesa, integrando essas atividades no grupo que chamou de Indústrias Criativas.


reinaldo pamponet filho ARTIGO |

ECONOMIA PARATODOS

ilustração em foto de guilherme castoldi

Reinaldo Pamponet Filho Fundador da Eletrocooperativa e da Rede Itsnoon (itsnoon.net), marketplace de economia criativa

Este século traz a novidade das mídias sociais, o mundo mais conectado e aparentemente mais próximo. Ao mesmo tempo, temos uma sensação esquisita, como o Paradoxo de Gramsci: “Uma velha ordem agoniza enquanto uma nova ordem parece não ser capaz de nascer”. O modelo econômico clama para ser redesenhado, o meio ambiente e as sucessivas crises são claros sinais de que alguma coisa está fora da ordem...

Em última instância o que sustenta o indivíduo de fato é a “riqueza” da sua subjetividade. Criar é o espaço da geração da vida e da evolução. O ciclo da criação oxigena, traz novidades, gera novas formas de ver e fazer, em um fluxo orgânico e sustentável. Ainda, criar supõe refletir, inquirir, estudar, potencializando os indivíduos e colocando-os em uma posição de igualdade.

E nós, brasileiros, de uma hora para outra somos a bola da vez. País das tendências, Cristo Redentor decolando, Copa do Mundo, Olimpíadas e um fosso muito grande entre o que parece ser uma sociedade desenvolvida e o que somos de fato. Nunca nos acostumamos nem nos preparamos para essa hora, que me faz pensar em uma frase que ouvi outro dia: “Está muito difícil viver e ser exemplo ao mesmo tempo”.

Gosto muito do conceito da economia criativa porque é uma grande possibilidade em si mesma; abre o espaço da abundância (criação) a algo que está patinando nas suas limitações e/ou artificialidades da escassez (economia dita convencional). A nossa capacidade de criar é o nosso bem mais precioso, e quanto mais exercitado mais tende a aumentar. O que precisamos é desenvolver modelos que possibilitem a geração de fluxos e interações contínuas dos indivíduos hoje conectados.

Não há melhor momento para descolonizarmos de vez o olhar sobre nós mesmos e perceber o que temos de único e valioso. Precisamos reforçar o papel do indivíduo como parte fundamental e protagonista dessa história. Assim, reinventar a forma como trabalhamos hoje é um dos desafios, e a economia criativa, uma das grandes possibilidades, junto com a economia verde.

A economia criativa traz benefícios pelo viés econômico, porque criar é em si um ato fundamental de aprendizagem integral – ao conjugar a subjetividade do indivíduo com a sua capacidade de fazer acontecer, aprender consigo mesmo e com os outros com base em interações. Uma sociedade que ganha com o que aprende. Não seria fascinante exercitarmos o aprender (criar) e ainda se sustentar economicamente com essa criação?

Sustentar-se é ser capaz de viver bem sem causar prejuízo a outras pessoas. O que leva ao prejuízo é o que hoje enaltecem: tornar a sociedade cada dia mais produtiva, com crescimento material, dentro de uma economia extremamente carbonizada e baseada na produção de coisas (objetiva) e não no fortalecimento de processos humanos para produção do intangível (subjetiva).

Esse é o espaço econômico que quero ajudar a construir. Espaço em que a abundância esteja presente e o conceito de elasticidade seja percebido como uma borracha de bodoque, que puxamos ao máximo para lançar ideias, inspirações e sentimentos. E que as pessoas se sintam mais alegres, inspiradas, amorosas e ricas. Espaço que se consolida em “ser mais” – mais você e mais o que você valoriza. Sem demandas desnecessárias e consumos destrutivos, mas um consumo que estimule o potencial maior de cada um. Um consumo que faça expandir nossa vida e nossa consciência.

Economicamente, valorizamos demais o que temos e o que vemos, e de menos o que sentimos ou criamos. O filósofo português Agostinho da Silva disse que “o homem não veio ao mundo para produzir e sim para criar” – na ânsia de produzir, vejo o Brasil com modelos de negócios ainda mal estruturados para surfar a grande onda da economia criativa, e com baixo investimento em novas saídas, limitando o potencial econômico e quiçá arriscando a perder a oportunidade...

Avante e vamos inaugurar um espaço econômico para todos. E já que a moda é o crowd, essa é uma verdadeira possibilidade de crowd economy, em que cada um pode participar interagindo com o outro com o que tem de melhor – você mesmo!


lourenço Mutarelli QUADRINHOS |

CONTINUUM

38

39

A CONTINUUM convidou Lourenço Mutarelli para estrear a seção Quadrinhos, que será composta de histórias exclusivas em seis capítulos. Um folhetim em HQ. Apresentamos o primeiro capítulo.


artes visuais jornalismo cultural educação, cultura e arte

Estão abertas as inscrições para o Rumos 2011 Mais informações itaucultural.org.br/rumos


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.