Continuum 06 - A geração entre séculos

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ITAÚ CULTURAL A geração entre séculos

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. dez 2007 | itaucultural.org.br


Na montanha-russa da história Em A Corrida para o Século XXI (Companhia das Letras, 00 ), o historiador Nicolau Sevcenko compara o tempo atual a uma viagem em uma montanha-russa. O ponto alto do percurso seria a comunicação global proporcionada pelo avanço tecnológico; o baixo, as diferenças socioeconômicas e a deterioração do meio ambiente. O conceito criado por Sevcenko foi o ponto de partida da Continuum Itaú Cultural de dezembro, que analisa o desenvolvimento da arte e da cultura nos últimos 0 anos – a geração entre séculos. A edição completa o tema geração, iniciado em novembro, com uma análise dos próximos 0 anos. Neste número, vê-se a transformação causada pelos meios de criação eletrônicos: o computador deixa de ser apenas uma ferramenta para a arte e se torna a própria arte; e a internet pluraliza o sistema de produção, como na literatura, com os blogs e outras formas de escrever que passam longe do registro impresso. A tecnologia e seu ritmo veloz de atualização afetam também a produção e a difusão da informação sobre cultura – tema abordado na reportagem de abertura. A estética da dança e das artes visuais entre 987 e 007, fortemente marcada pela hibridização de linguagens e suportes, em parte fruto da tecnologia, é abordada em outra reportagem. Em entrevista, o historiador inglês Peter Burke aponta os fatos históricos que, em sua visão, marcaram os últimos 0 anos – a queda do muro de Berlim, em 989, e mais recentemente a guinada da China ao capitalismo. Na Área Livre, os poetas Greta Benitez e Marcelo Montenegro versam sobre o tema da edição: Greta fala de um antigo objeto de trabalho, a máquina de escrever; e Montenegro faz um caleidoscópio de seus últimos 0 anos. A versão virtual da revista está aberta à sua contribuição ao tema. Poste seu texto, que pode ser publicado na seção Leitor-Autor, em www.itaucultural.org.br. Para dar sua opinião, escreva para continuum@itaucultural.org.br. Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Alexandre Inagaki, Cia de Foto, Fernanda Crancianinov, Greta Benitez, José Carlos Avellar, Marcelo Montenegro Agradecimentos Ballet Stagium, Cartaz – Agência de Comunicação, Diler & Associados, Edson Natale, Eduardo Jorge, Estúdio Zut!, Galeria Luisa Strina, Grupo Corpo, Jorge Zahar Editor, Maria Lúcia Pallares Burke, Marisa Shirasuna, Raquel Krügel, Taiga Filmes, Videofilmes, Warner Home Video capa imagem: Cia de Foto

ISSN 1981-8084 Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento continuum@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

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ITAÚ CULTURAL

sumário .4 Os tempos, eles estão sempre mudando

A tecnologia e a revolução nos modos de produção da arte e da cultura . 0 O que mais vale a pena ser visto

José Carlos Avellar reafirma a vitalidade do documentário . 4 Uma nova história

Em entrevista, Peter Burke analisa a globalização, a política e a transformação das cidades . 8 Vanguarda nostálgica, cidades violentas

A literatura como espaço de transformação . Libertação e pluralidade

Artes visuais e dança: estética renovada . 6 Área livre

Greta Benitez e Marcelo Montenegro vêem poeticamente o tema 20 anos

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Os tempos, eles estão sempre mudando

reportagem

A proliferação dos espaços onde se escreve, se lê, se fala e se ouve cultura

Por Alexandre Inagaki Somos testemunhas e protagonistas de uma era na qual nossos referenciais de tecnologia e disseminação de conhecimento são modificados em intervalos cada vez menos espaçados. Há duas décadas, tecnologia de vanguarda era sinônimo de disquetes de e / polegadas e videogames de 8 bits como o Master System. Atualmente, eles não passam de itens empoeirados, algo como o que o compositor carioca Cazuza chamou, em uma música de 988, de “museu de grandes novidades”. Esse “museu” teve seu catálogo multiplicado, ao longo dos últimos 0 anos, por itens como laser discs, pagers e tamagotchis. Chega a soar quase inverossímil lembrar que naquela época o mercado oferecia para venda computadores como o TK-8 , da Microdigital, cujos programas eram gravados em fitas cassete comuns. Há 0 anos, mal tínhamos idéia de que um dia computadores de todo o mundo estariam interligados a uma única rede. A World Wide Web, sistema de hipertexto que possibilita a troca de dados, imagens e arquivos por meio de hiperlinks, principal responsável pela popularização da internet, só foi criada em 990 pelos pesquisadores Tim Berners-Lee, da Inglaterra, e Robert Cailliau, belga radicado na França. Três anos antes, em 987, um laboratório do Instituto Fraunhofer, da Alemanha, desenvolveu um algoritmo para compressão de áudio, o Eureka 47. Foi o estopim do desenvolvimento de tecnologias que desembocaram na criação do MPEG Audio Layer- , arquivo capaz de comprimir e codificar áudios. De lá para cá, a difusão da arte e da cultura no mundo não pôde mais ser dissociada dos avanços tecnológicos. Há três marcos fundamentais nessa história: Em dezembro de 997, o americano Jorn Barger adotou a denominação “weblog” para definir sua página pessoal: um site regularmente atualizado, cujos posts (entradas compostas de textos, fotos, ilustrações) são armazenados em ordem cronologicamente inversa, com as atualizações mais recentes no topo da página. Não tardaria para que os weblogs ou blogs fossem popularizados, graças à facilidade com que são criados, tornando-se uma poderosa ferramenta de democratização da publicação de conteúdo na Web. Em setembro de 999, um garoto de 9 anos, o americano Shawn Fanning, criou um programa que popularizou o compartilhamento de arquivos MP entre internautas do mundo inteiro: o Napster. Embora o programa, em seu formato gratuito, tenha sido fechado em julho de 00 devido a uma série de ações movidas pela indústria musical, a semente já havia sido lançada. Outros programas como Audiogalaxy, eMule, Kazaa e Soulseek o sucederam, até chegar ao ponto em que se tornou impossível controlar a livre troca de arquivos. .


Em fevereiro de 00 , o americano Chad Hurley, o chinês Steve Chen e o alemão Jawed Karim criaram um site que permite a qualquer internauta publicar, ver e compartilhar vídeos: o YouTube. Além de servir como relicário de imagens raras de programas de TV, cenas de filmes e produções amadoras, o site se tornou referência ao hospedar vídeos com imagens da guerra no Iraque, bombardeios em Israel e cenas de repressão em Oaxaca, no México, ou Pyinmana, em Mianmar. Vivemos tempos nos quais não dependemos mais da mídia tradicional para saber das últimas novidades. Temos blogs, aplicações peer-to-peer, comunidades no Orkut, sites de compartilhamento de vídeos como Dailymotion, de veiculação de músicas como o Imeem e de conteúdo colaborativo como o Overmundo, entre as muitas opções à disposição de qualquer internauta. É a era dos prosumers, conceito cunhado pelo filósofo canadense Marshall McLuhan em 97 para se referir aos consumidores que também produzem conteúdo e são early adopters [formadores de opinião sempre atentos a novidades] das novas tecnologias. Para o jornalista paulista Alexandre Matias, editor do caderno Link de O Estado de S. Paulo e do blog Trabalho Sujo (www.gardenal.org/ trabalhosujo), há dois motivos principais para que o antigo perfil dos consumidores tenha sido modificado: “A facilidade e o barateamento da tecnologia” e “o aumento nas velocidades dos processadores de computadores pessoais e das conexões de banda larga”. Ainda segundo Matias, esta é uma era de ouro para os ProAms, citando o conceito cunhado pelos ingleses Charles Leadbeater e Paul Miller: profissionais que não conseguiram (ou nem desejam) ser cooptados pelo mainstream e recorrem a meios como YouTube e MySpace para divulgar suas produções.

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Pague quanto quiser Os paradigmas mudam com a mesma velocidade vertiginosa dos fugazes minutos de fama do artista americano Andy Warhol. No meio do olho do furacão de um cenário em permanente transição, artistas, produtores e jornalistas titubeiam em afirmar qual será o futuro da produção cultural. No cenário musical, por exemplo, vê-se o recente caso da banda inglesa Radiohead, que ofereceu todas as faixas de seu álbum In Rainbows ( 007) para download, dando aos fãs a opção de pagarem quanto quiserem pelos arquivos. O resultado: 6 % dos cerca de , milhão de internautas que baixaram as músicas não desembolsaram um níquel sequer. Os 8% restantes pagaram em média 6 dólares pelo álbum, rendendo à banda cerca de US$ ,7 milhões. O que os músicos brasileiros têm a dizer sobre a experiência do Radiohead? Fábio Costello, vocalista do grupo de indie-rock carioca Hereges e heavy user de sites como MySpace, Trama Virtual e YouTube, aprovou-a e afirma: “O meio digital prevalecerá porque soluciona e expande a produção e a distribuição de músicas. Cada canção encontrará o seu valor, decidido pelo próprio consumidor, como mandam as regras do marketing saudável”. Costello, porém, é um roqueiro que sucumbiu a uma proposta de emprego no Canadá e mudou-se para lá no começo deste ano. “Música não é minha atividade profissional”, diz. No entanto, ele pondera: “Se eu passar o resto da vida simplesmente soltando singles em MP na internet, serei um artista realizado. Se alguém se interessar em bolar um esquema comercial em torno disso, ótimo, mas não é minha preocupação”.


Beto Cupertino, da banda goiana Violins, elogiada pela crítica especializada e por sites como London Burning e Scream & Yell, é outro que não nutre maiores ilusões: tornou-se funcionário público e mantém atividades musicais em paralelo. Ele explica: “Banda independente no Brasil não tem renda estável para sustentar seus integrantes, não há um circuito intenso de shows com bons cachês para essas bandas. O dinheiro que Violins ganha com um CD é reinvestido na gravação do próximo”. Outro depoimento significativo é o da cantora amapaense Fernanda Takai, do Pato Fu. O grupo produziu seu primeiro álbum por conta própria, depois foi contratado por uma grande gravadora e recentemente retornou à independência, mantendo com a Sony/ BMG um mero contrato de distribuição de seus CDs e DVDs. Recentemente, o Pato Fu disponibilizou seu oitavo álbum de estúdio, Daqui pro Futuro, para venda em formato digital na UOL Megastore antes de vendêlo como CD. Apesar dos pesares, Fernanda ainda crê na sobrevivência dos CDs. Ela afirma: “Sempre há os fãs que gostam do todo. Do encarte, das informações técnicas, do disco físico mesmo. Isso não deve acabar tão cedo. Há um tipo de ouvinte mais genérico que se satisfaz com o que baixa na internet, assim como existe o ouvinte intermediário que procura tudo sobre o artista na rede, e aquele fã que compra o disco, a camiseta e vai ao show”.

Faca de dois gumes Os cineastas também estão discutindo as mesmas questões que os músicos. Um caso emblemático foi o vazamento de Tropa de Elite, longa do carioca José Padilha amplamente baixado pela internet e visto em DVDs piratas antes de sua estréia nos cinemas. Mesmo assim, o filme atraiu em um mês quase milhões de espectadores, arrecadando mais de R$ 6 milhões nas bilheterias. O paulista Paulo Miranda, diretor de três curtas-metragens premiados (entre eles Faça Sua Escolha, exibido no Festival de Veneza de 006), fala dos prós e dos contras da internet: “É uma faca de dois gumes. Como consumidor, sim, os avanços permitem que se achem filmes raros na Web. Graças a ela, baixei raridades como The Seaferers e Day of the Fight, os dois primeiros curtas do americano Stanley Kubrick. Por outro lado, como profissional, vivo um dilema. A internet me ajudou permitindo a divulgação de meus trabalhos no mundo todo. Porém, não ganho nada em cima dessa divulgação”. Paulo questiona: “A médio e longo prazos todo esse processo pode vir a nos prejudicar, financeiramente falando. Como nós, os artistas, nos sustentaremos?”. .7


Enquanto isso, camelôs de todo o país usam a criatividade para faturar, vendendo DVDs piratas de Tropa de Elite 2 (o documentário Notícias de uma Guerra Particular, dirigido pelo carioca João Moreira Salles e pela paulista Kátia Lund, em 999), 3 (trechos de vídeos filmados pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope), 4 (Quase Dois Irmãos, 004, filme da carioca Lucia Murat sobre tráfico de drogas) e até um inacreditável Tropa de Elite 5, alardeado como a “versão pirata definitiva”. Ricardo Cavallini, publicitário paulista e diretor de mídia da agência F/Nazca Saatchi & Saatchi, diz que o boca a boca gerado pela pirataria foi o melhor marketing que o filme poderia ter. E ressalva: “A falta de opções legais criou muitos consumidores ‘alternativos’. Para eles, o prejuízo foi causado não pela pirataria de Tropa de Elite, mas por uma indústria que ‘forçou’ consumidores a buscar alternativas ilegais para ter praticidade, conforto e o custo que eles julgam ser justo pagar”.

Mais do que respostas, os tempos atuais trazem novos questionamentos. Mas o sentimento geral, até entre os maiores críticos da internet, é que o aumento de quantidade na oferta de produtores de cultura traz mais aspectos positivos do que negativos. Marcelo Forlani, jornalista paulista que, após trabalhar nos sites da 89 FM, Abril Jovem e AOL Brasil, se dedica exclusivamente ao Omelete (www.omelete.com.br), página de cultura pop há mais de sete anos no ar e acessada mensalmente por 700 mil visitantes únicos, afirma: “Da quantidade se tira a qualidade. Com a internet, não há um agente limitador. Não ficamos mais restritos ao que sai no jornal, toca no rádio ou passa na TV”. E complementa: “Com os sites das bandas e serviços que indicam produtos por semelhança, como uma Last.fm, vivemos uma realidade em que apenas uma coisa pode nos parar: a falta de interesse por descobrir coisas novas. É comum ‘perder’ horas vendo fotos de pessoas que não conhecemos num Flickr, ou assistindo a vídeos no YouTube. Os trabalhos que apreciamos são rapidamente enviados para os amigos, salvos nos del.icio. us da vida, enfim, compartilhados. O que é bom tem hoje muito mais chance de ser pulverizado por aí e se tornar conhecido por muita gente”.

Em 964, o americano Bob Dylan cantou The Times, They Are A-Changin’ [Os tempos, eles estão sempre mudando]. Neste cenário de fragmentação dos meios de comunicação e reverberação das vozes pela internet, a única certeza é a de que ninguém pode ficar parado. Seja deixando comentários em blogs, escrevendo resenhas na Amazon, publicando vídeos no YouTube ou músicas na Trama Virtual, o momento é de interagir. Esta é uma era de novas oportunidades, e você é o grande responsável pelas suas. Boa sorte. .8


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imagens: Cia de Foto


O que mais vale a pena ser visto

artigo

O documentário como um passo suspenso no ar

Por José Carlos Avellar Num depoimento sobre Santiago ( 007), o diretor João Moreira Salles lembrou um diálogo de O Mensageiro (The Go-Between, Joseph Losey, 970) – “O passado é uma terra estrangeira em que as coisas acontecem diferentemente” – para explicar que a narração no presente descreve imagens do passado (“Filmei quando tinha 0 anos, editei depois dos 40”) e que passado e presente fazem parte do tempo. O documentário de João pode ser visto como um sinal do tempo – presente na tela como uma síntese do que começou num passado recente e veio até agora. Tome-se em especial o fragmento de A Roda da Fortuna (The Band Wagon, Vincente Minnelli, 9 ) inserido no filme: o instante em que o passeio de Fred Astaire e Cyd Charisse no jardim se transforma em dança. Eles caminham lado a lado em silêncio e de repente o pé que se estende para mais um passo não se apóia no chão, flutua, e a caminhada passa a ser dança sem deixar de ser caminhada.

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O mordomo Santiago Merlo revive sua história em Santiago | imagem: cortesia Videofilmes


Marília Pêra faz um “jogo de cena” no documentário de Eduardo Coutinho | imagem: cortesia Videofilmes

Santiago (ele em particular, mas também o documentário brasileiro como um todo) é como o passeio do filme de Minnelli. No meio de um plano, o filme se faz dança e transforma a conversa sobre o personagem Santiago Merlo numa discussão do processo de construção de um documentário. A câmera meio distante do entrevistado é para o diretor um sinal de que algo nas entrevistas não conseguiu remover a distância entre ele e seu personagem. João, por trás da câmera, permaneceu o filho do dono da casa, e Santiago, diante dela, o mordomo da família de João – e, por isso mesmo, pouco à vontade no filme. Para o diretor, hoje, nas imagens filmadas em 99 sob influência de Yasujiro Ozu (uma cena de Viagem a Tóquio/Tokyo Monogatari, de 9 , fecha o documentário), permanece o que para Werner Herzog é cinema de verdade: os pequenos instantes vazios em que a câmera já está em funcionamento mas a ação ainda não começou. Um filme sobre seu personagem e, no instante seguinte, sobre o processo de fazer um filme sobre um personagem, Santiago pode ser visto também como um novo passo no caminho (e dança) iniciado em Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 984). Talvez o instante quase imperceptível em que o passeio no jardim de Minnelli se

transforma em dança possa ser tomado como metáfora do documentário brasileiro das últimas décadas: na caminhada, o passo suspenso no ar, ele se transforma em ficção antes de tocar o chão, sem essencialmente deixar de ser o que é, documentário. É assim também em Jogo de Cena ( 007), o novo documentário de Eduardo Coutinho. Nele, a simplicidade da proposta faz parte da complexidade do jogo: um palco de teatro, uma cadeira de costas para a platéia vazia, entrevistas com mulheres que responderam ao convite feito por meio de um anúncio de jornal e com atrizes convidadas a refazer a pequena ficção desenvolvida pelos personagens reais para contar um pedaço de suas vidas. Na cena de cinema no palco de teatro, portanto, documentário e ficção, personagens reais e atrizes – nenhum letreiro sobre as imagens diz quem é quem. Algumas atrizes são entrevistadas sobre a experiência de interpretar personagens reais e o diretor aqui e ali interpreta um entrevistador: repete para as atrizes as perguntas feitas aos personagens reais num absoluto jogo de cena. .


Atores interpretam menores infratores em Juízo | imagens: cortesia Diler & Associados

Um mesmo e diferente jogo de cena se encontra em Juízo ( 007), de Maria Augusta Ramos. Jovens intérpretes repetem os textos dos menores infratores em julgamento, nas imagens em que estes deveriam aparecer de frente para a câmera. Mas, na cena, quem parece interpretar é exatamente quem não interpreta: a juíza. Atores e atrizes, meninos e meninas falam com gestos encolhidos. A juíza, que é ela mesma, documentada durante uma audiência de verdade, dramatiza sua fala com gestos amplos, com a expressão austera e zangada de mãe (madrasta) que repreende o filho faltoso: “Teu pai te educou com muita dificuldade e não foi para ser ladrão”. A câmera, quase no mesmo ponto de vista dos menores em julgamento para documentar o teatro da Justiça, no meio da reprimenda (dança!) salta para o ponto de vista da juíza e transporta o espectador do teatro da Justiça para a realidade do teatro. Na imagem, portanto, olhos nos olhos da câmera, com idêntico grau de realidade, personagens reais (juíza, promotores e funcionários) e personagens de ficção – crianças da mesma (ou de uma vizinha) parcela da sociedade dos menores em julgamento. Eles repetem as falas, mas não propriamente como atores, e sim como personagens reais que reconstituem um drama que testemunharam ou viveram de modo direto (como num documentário) ou indireto (como numa ficção). .


Cena do documentário Que Bom Te Ver Viva: deslocamento para a ficção | imagem: cortesia Taiga Filmes

Dimensões do real Parafraseando o que João Moreira Salles disse a respeito do tempo, talvez seja possível chegar a uma imagem precisa do que o documentário brasileiro nos propõe a cada novo filme feito nessas duas últimas décadas: documentário e ficção fazem parte da realidade. Por isso mesmo é preciso mostrar que uma e outra dimensão do real se interligam assim como o passo que pára no meio para tocar o chão como dança. Documentário, mesmo, tem sido esse gesto. Quando parece investigação puramente jornalística (um exemplo entre outros possíveis é Ônibus 174, de José Padilha, 00 ); quando parece só investigação cinematográfica (outro possível exemplo, Acidente, de Cao Guimarães, 006); quando o realizador parece falar de si mesmo (como em 33, de Kiko Goifman, 00 ); quando parece falar como se quem falasse fosse outro (como em

O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, 004); e quando parece o que é o documentário é também simultaneamente o deslocamento suave (dança!) para o ponto oposto, do documento direto para o documento ficção (como em Que Bom Te Ver Viva, de Lúcia Murat, 989). Está sempre em busca daquele impossível lembrado por Eduardo Escorel pouco depois de Chamado de Deus ( 00 ), dele e de José Joffilly: “Um documentário volta a sua câmera para a realidade sabendo que, abordada de frente, é impossível entender o que mais precisa ser entendido. A propósito do poema ‘The unbeliever’ [O incrédulo], Harold Bloom escreveu que o olhar de Elizabeth Bishop confronta a seguinte verdade: ‘de olhos abertos, é impossível ver o que mais vale a pena ser visto’. O dilema do poeta é o mesmo do cineasta”. Porque radicaliza esse conflito essencial é que o documentário tem sido entre nós o que mais vale a pena ser visto. José Carlos Avellar é crítico de cinema. Autor de, entre outros, O Chão da Palavra (Rocco, 007) e de ensaios disponíveis em www.escrevercinema.com.

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Uma nova história

entrevista

Por Érica Teruel Guerra e Marco Aurélio Fiochi O historiador inglês Peter Burke é um dos principais estudiosos dos fenômenos sociais e culturais da atualidade. Professor emérito da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, Burke foi professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) na década de 990 e é casado com a historiadora brasileira Maria Lúcia Pallares, professora da Faculdade de Educação da mesma universidade. Autor de mais de 0 livros, entre eles Uma História Social do Conhecimento: de Gutenberg a Diderot ( 000), Burke é nome referencial da história nova, corrente que engloba, entre outros temas, a história das mulheres, o renascimento da narrativa e a história oral e procura estabelecer um paradigma de estudo que leve em consideração a história como um todo, opondo-se à concepção tradicional dessa ciência. Nesta entrevista, por e-mail, o historiador faz uma análise de acontecimentos que marcaram a cultura nos últimos 0 anos e ressalta: “(...) o surgimento da China como uma potência econômica (...) pode ter mais influência sobre a ‘cultura’ nos diferentes sentidos desse termo um tanto vago”.

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Peter Burke | imagem: cortesia Jorge Zahar Editor


Muro de Berlim como palco de manifestações populares | imagem: Tom Stoddart/Getty Imagens

O advento da imprensa transformou a cultura da sociedade européia. De que forma o senhor acredita que a internet e outros adventos tecnológicos dos últimos 20 anos transformaram e estão transformando as relações sociais?

A informação, hoje, deixou de ser apenas unidirecional – dos grandes meios para as grandes massas – para ser produzida por várias pessoas. O senhor acha que essa tendência se consolidará? Os grandes meios de comunicação perderão poder?

A chamada “revolução da impressão” do século XV, de fato, transformou a cultura e a sociedade européias – no devido tempo – mas não muito nos primeiros 0 anos. A história, no sentido de mudança cultural e social, apresentou uma aceleração desde então, porém não tanto a ponto de me permitir dar uma boa resposta à sua pergunta. Para avaliar e compreender com seriedade a transformação das relações sociais, seria mais sensato esperar a primeira geração que cresceu com as novas mídias chegar ao menos à meia-idade, por volta de 040. Dito isso, posso falar sobre as conseqüências de curto prazo como todas as pessoas, observando uma minoria de jovens que se isolam diante da tela do seu computador; uma espontaneidade maior nas relações sociais, já que as reuniões podem ser organizadas de última hora por celular; e um acesso mais rápido e simples – e de certa forma menos confiável – a informações que, na era da enciclopédia impressa, podiam ser consultadas apenas em bibliotecas.

Não conheço uma época em que a informação foi unidirecional. Os governos costumavam usar espiões ou informantes internos porque precisavam saber como as pessoas comuns estavam reagindo às suas políticas. A partir do século XVII, os jornais e as revistas pediam aos leitores que escrevessem cartas comentando o que aparecia na imprensa. Mais recentemente, os programas de rádio e televisão passaram a pedir e receberam as reações de ouvintes e espectadores. Evidentemente, existe uma mudança na escala e na iniciativa com a proliferação dos blogs. Não tenho certeza quanto à importância disso e pode ser útil fazer uma distinção entre regimes relativamente fechados e autoritários (Mianmar, Coréia do Norte e até mesmo a China), em que as conseqüências da revolução da internet são mais importantes e imediatas, e regimes democráticos abertos, nos quais as conseqüências são menos óbvias. Mesmo assim, não vejo a comunicação do tipo “faça-você-mesmo” substituindo as grandes mídias, mas, sim, coexistindo com elas, uma influenciando a outra.

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A globalização trouxe maior democracia cultural? O que é democracia cultural? Você quer dizer o “faça-você-mesmo” cultural? Caso afirmativo, as novas mídias têm incentivado isso, mas não sei se o fato de serem mídias globais é relevante ou não. Quanto à democracia no sentido rigoroso ou político, voltando à segunda pergunta, acho que precisamos diferenciar regimes. Ao mesmo tempo que a globalização ganha força, idéias nacionalistas – refletidas na xenofobia, por exemplo – e fundamentalistas – presentes no terrorismo e nos embates religiosos do Oriente Médio – surgem, tanto em países ricos quanto pobres. Por que isso ocorre? Parece que você acha o contraste entre a globalização e o nacionalismo surpreendente, mas eu acho previsível, e também lamentável. Isto é, vejo as idéias nacionalistas e as xenofóbicas como uma resposta (emocional, irracional, mas também compreensível) a diferentes formas de globalização, entre as quais está a imigração numa escala sem precedentes, e que às vezes é vista como uma “invasão” cultural (pela mídia americana, por exemplo).

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Tendo vivido no Brasil entre 1994 e 1995, como o senhor vê a contribuição desse país num cenário de cultura globalizada? Acredito que não seja o fato de morar no Brasil ou em qualquer outro lugar que torne possível responder à sua pergunta. Em todo caso, nos últimos 0 anos, fiquei impressionado com a difusão da música e das novelas brasileiras e, mais recentemente, do cinema. No Brasil, a preocupação com a segurança tem transformado a arquitetura e a organização das cidades. De que maneira o espaço urbano, ao redor do mundo, se transformou nos últimos 20 anos? Quais seriam as conseqüências desse processo nas relações humanas? Acho que a construção de condomínios e shopping centers como se fossem fortalezas, ilhas de segurança relativa protegidas por muros e guardas, está longe de ser um fenômeno puramente brasileiro – pense no México, na Colômbia, em partes dos Estados Unidos... Não acho que isso seja a única mudança no espaço urbano. Em vez de uma única tendência, vejo um tipo de gangorra de movimentos opostos. Os centros das cidades declinam, mas depois são revitalizados. Praças que eram centros de sociabilidade são destruídas por estacionamentos ou pela ameaça da violência. No entanto, em alguns lugares, o município consegue recuperá-los, transformando-os em zonas de pedestres relativamente seguras.


A transformação do espaço urbano na China | imagem: Jarry Driendl/Getty Imagens

A queda do comunismo e a consolidação do neoliberalismo mudaram a configuração política mundial. São, entretanto, mudanças que ocorrem também no plano cultural, nos hábitos de consumo, por exemplo. Quais são as principais diferenças comportamentais entre a geração de 1980 e a que inicia esse século? Essa é uma pergunta difícil para uma pessoa da minha geração, a dos anos 0! Graças a mais de 40 anos de contato diário com jovens de 8 anos como professor universitário, observei que eles vão se distanciando cada vez mais de mim em termos culturais, com diferentes pontos de referência – músicas, filmes, qualquer coisa. Tenho certeza de que há diferenças entre as duas últimas gerações que você menciona, mas os membros de qualquer uma delas veriam essas diferenças com mais clareza do que eu! Nos últimos 20 anos, qual acontecimento político teve maior influência sobre a cultura? Por quê? Acho que, como diria maioria das outras pessoas que já se depararam com essa pergunta, pelo menos no Ocidente, a queda do Muro. Contudo, o surgimento da China como uma potência econômica, não tanto como um acontecimento com uma data específica mas uma tendência, pode ter mais influência sobre a “cultura” nos diferentes sentidos desse termo um tanto vago.

Qual traço da cultura conseguiu alterar ou influenciar decisões políticas? Algumas culturas (no amplo sentido antropológico) são mais críticas do que outras ou mais individualistas (em sentidos diferentes) do que outras (o individualismo norueguês, por exemplo, significa autoconfiança). Essas características influenciam as estruturas políticas e, assim, menos diretamente, as decisões políticas. O senhor acha que a democracia avançou nos últimos 20 anos? Tenho um problema com os dois conceitos nessa curta sentença. “Democracia” tem mais de um significado e “avanço” é outro conceito problemático – você se refere à expansão de um sistema de governo a mais partes da superfície terrestre, ou a um refinamento do sistema? Fazendo uma pergunta mais aberta: “O que mais me impressionou nos últimos 0 anos quanto às mudanças políticas?”. Eu diria que a ampliação da democracia eleitoral em vários países ex-comunistas (que permitiu às pessoas votar em candidatos comunistas se quisessem). Mas também mudanças na China, onde – ao contrário do que Marx teria esperado – uma base capitalista sustenta uma superestrutura comunista! Fiquei realmente impressionado em Xangai quando vi pessoas comuns na bolsa de valores local acompanhando a sorte dos seus investimentos (querendo comprar e vender as ações elas mesmas por não confiar nos corretores profissionais). Isso não é um tipo de democracia? . 7


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Vanguarda nostálgica, cidades violentas

reportagem

Últimos 20 anos da literatura nacional são discutidos por professores e escritores

Por André Seiti O que mudou na literatura brasileira, de 987 até hoje? Quais tendências se consolidaram? Quais caíram por terra? Historicamente, 0 anos é tempo insuficiente para diagnosticar com precisão as transformações desse período e seus impactos. Mas é possível, ao menos, deduzir o que fica e o que é passageiro. A partir do fim da década de 980, a literatura tendeu a abordar com mais freqüência certos temas. Segundo Aurora Fornoni Bernardini, professora de teoria literária e literatura comparada da Universidade de São Paulo (USP), “quanto ao conteúdo da narrativa nesses últimos anos, é dada ênfase às diferentes manifestações de violência urbana”. Para o escritor mineiro Luiz Ruffato, autor de Eles Eram Muitos Cavalos (Boitempo, 00 ), a literatura reflete a sociedade e seu tempo, e a tendência de escrever sobre violência nas cidades não se reduz apenas a uma escolha do escritor. “Não é questão de opção, é uma imposição.” A própria cidade alcançou status temático. “Na prosa, a metrópole passou a ser o espaço hegemônico dos acontecimentos, o novo inconsciente coletivo”, diz o escritor e curador literário paulista Nelson de Oliveira, autor de Naquela Época Tínhamos um Gato (Companhia das Letras, 998). “Na lírica não está sendo diferente. As coletâneas de poemas estão todas manchadas de gás carbônico, óleo diesel e chuva ácida”, conta. “Os conflitos da periferia e das minorias urbanas ganharam mais espaço: a cidade ganhou vida e agora está quase que contracenando com as personagens.” De acordo com o roteirista, cineasta e autor de Passaporte (CosacNaify, 00 ), o paulista Fernando Bonassi, a periferia entrou na “norma culta” da literatura brasileira. “Isso tem a ver com mercado e inclusão social.” Ele também vê o crescente interesse por temas urbanos, mas adverte: “A urbanidade é bem diferente na cidade de São Paulo e do Recife, por exemplo”.

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Além do contexto social, há outro fator que diferencia o modo de contar histórias. “A coisa mais importante que aconteceu na literatura nacional da década de 980 para cá foi o surgimento de um número muito grande de novas vozes”, afirma o escritor e roteirista paulista Marçal Aquino, autor de O Amor e Outros Objetos Pontiagudos (Geração Editorial, 999). “Os discursos são muito variados, e há um pouco de tudo, com predomínio das vivências pessoais das novas gerações e seus impasses”, explica. Para ele, um ponto positivo nessa “pluralidade de vozes” é o crescente número de escritoras. “Nunca houve tantas mulheres escrevendo ao mesmo tempo – e escrevendo bem, muito bem.” Uma dessas escritoras da nova geração é a paulista Andréa Del Fuego. Autora de Engano Seu (O Nome da Rosa, 007), Andréa faz parte de um grupo de escritores que se utilizam da tecnologia para promover seu trabalho. Seu blog (delfuego.zip.net), em dois anos, teve mais de mil leitores, enquanto os três livros que publicou venderam pouco mais de . 00 exemplares. “O blog deixa as coisas mais horizontais, proporciona o mesmo suporte do escritor ao leitor”, diz a autora. Segundo ela, por meio da linguagem direta e enxuta, o blog ajudou a assumir o miniconto como texto literário. “Já qualidade literária é outra coisa”, afirma.

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Imagens: Cia de Foto

Segundo Oliveira, “toda mudança tecnológica traz em seu bojo a redenção e a tragédia”. De acordo com o escritor, a internet está fazendo hoje o que a domesticação do fogo realizou tempos atrás. “Como a literatura poderia ficar fora desse movimento?” Para a professora de comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) Vera Lúcia Follain de Figueiredo, a prosa de ficção tem dialogado criativamente com inovações trazidas pela tecnologia digital. “A literatura tem buscado formatos narrativos que possam dar conta de um mundo percebido cada vez mais como uma imensa rede, como um labirinto.” De acordo com Vera, há dois tipos de narrativas que se sobrepõem a partir da década de 990: a narrativa em abismo, caracterizada pela proliferação de relatos que se desdobram uns sobre os outros, e a narrativa fragmentária, marcada pelos cortes secos e pela condensação do tempo. Mais editoras, menos leitores? Para Vera, o escritor se encontra em um impasse, devido ao declínio de sua intervenção como intelectual na esfera pública e à descrença na função social da literatura. De acordo com ela, muitos escritores da nova geração apresentam uma pretensão ingênua de chocar o leitor por meio de relato das vidas vazias de jovens protagonistas de classe média, autodestrutivos, imersos nas drogas e no sexo. “Nota-se certa nostalgia da irreverência das vanguardas, uma postura que se quer desconstrutora”, explica. “Mas que, sem ter parâmetros estéticos ou ideológicos rígidos contra os quais lutar, redunda numa espécie de simulacro da contestação dos costumes burgueses, realizada pela juventude dos anos 70.”


Já para Oliveira, os procedimentos discursivos inventados pelas vanguardas foram potencializados. “Nas últimas décadas, a linguagem foi mais devassada, invertida, fragmentada, triturada e esticada do que em toda a primeira metade do século XX, na Europa.” Ao mesmo tempo, ele reconhece que, na década de 990, ficou clara a volubilidade da literatura. “Ela também cede muito facilmente às forças do mercado. Os autores de maneira consciente ou inconsciente sabem que a literatura não existe fora das grandes editoras, longe das revistas e dos jornais mais importantes”, conta.

Como se situam, então, as pequenas editoras nesse panorama? Editor da Todos os Bichos, de São Paulo, o paulista Nilson Mendes crê que o mercado editorial é pequeno em relação ao tamanho da população do país. “O surgimento de diversas novas editoras está acontecendo, na maioria das vezes, por idealismo e por um pouco de loucura de seus fundadores”, explica. “A maioria dessas editoras sobrevive graças às edições bancadas pelos próprios autores, o que permite um faturamento mínimo para fazermos aquilo que sabemos e de que gostamos: livros.”

Quanto à divulgação da literatura, novamente o assunto se volta à grande rede. “A internet possibilitou um grau de divulgação e de leitura impossível de ser obtido pela maneira convencional, que seria a edição do livro”, afirma Aquino. Porém, não coube unicamente à rede virtual a tarefa de divulgar literatura. “Os saraus, em geral, são promovidos para disseminar cultura, além disso há a integração das pessoas”, conta a livreira paulistana Paula Fabrio, proprietária da Rato de Livraria, que promove encontros desse tipo em São Paulo. “Um sarau é visto como um evento que reúne escritores e leitores, e também é um modo de compartilhar a experiência da leitura”, diz. “Talvez essa parte seja a mais importante hoje em dia, principalmente porque as pessoas se sentem sozinhas, cada qual com sua internet em casa.” No entanto, Paula acredita que é incerto o futuro desses encontros. “Isso se deve ao fato de que os saraus existentes na cidade são muito pontuais e com públicos específicos”, explica. “As pessoas continuam lendo pouco; muitas vezes essas iniciativas estão esvaziadas de público.” Nesse sentido, estariam os brasileiros cada vez menos interessados em literatura? Para a professora Aurora, não. “O brasileiro está lendo mais. Não sei se está lendo melhor. Basta dar uma olhada à lista dos mais vendidos.” De acordo com Andréa, a internet contribuiu de alguma forma à leitura. “Hoje em dia, para se comunicar, é preciso saber escrever e ler e-mail; isso trouxe a escrita de volta, já é um caminho.” Para Ruffato e Aquino, a realidade é outra. “O Brasil ainda é um país de analfabetos, onde mais de 40% da população vive na linha de pobreza. Os livros são caros e o mercado vive em função do mesmo público”, argumenta Ruffato. Para Aquino, há outra explicação: “Há um número muito grande de opções de entretenimento que são colocadas ao alcance de qualquer jovem; é muito mais difícil seduzir alguém com livros”, explica. “Quando conheço alguém que se interessa por literatura hoje em dia, sempre acho que é motivo de celebração. Os leitores são quase uma seita secreta atualmente.” .


Libertação e pluralidade

reportagem

O impacto da virada cibernética na dança e nas artes visuais nos últimos 20 anos

Por Fernanda Crancianinov “Onde estamos? Para onde vamos?” Em várias partes do mundo, a arte e a cultura vêm se deparando com essas questões-chave, enunciadas pelo artista italiano Maurizio Cattelan. Aparentemente muito simples, as duas perguntas são importantes porque expressam a sensação de mudança de terreno que vem percorrendo o mundo artístico nos últimos 0 anos. “Uma grande transformação está em curso, padrões anteriores não servem mais, e ainda não sabemos o que vai balizar o juízo estético”, explica o paulista Laymert Garcia dos Santos, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre incertezas, é possível identificar ao menos um grande norteador das atuais mudanças: a virada cibernética. “Todos aqueles que estão envolvidos de alguma forma com o processo criativo vão ter de absorver e elaborar os efeitos que a cibernetização da cultura tem provocado, tanto na vida prática quanto na linguagem”, explica Laymert. Nas duas últimas décadas, a dança ganhou uma liberdade que antes não tinha. Até o início dos anos 990, essa arte estava voltada para a técnica clássica. Desde então, a expressão corporal vem se libertando de antigos padrões e fundamentando uma série de novas e diversificadas correntes. “O resultado dessa pluralidade estética pode ser definido em uma palavra: dançateatro”, explica o mineiro Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do Grupo Corpo. A grande quantidade de criações, no entanto, não converge em ponto nenhum – e tão pouco se anula, invadindo e roubando reciprocamente seus mercados. “Elas correm simultâneas e paralelas, ou seja, há espaço e público para cada uma das correntes.” Assim, a dança utiliza-se hoje não só da expressão corporal, mas da palavra, da encenação e de todos os recursos de que o bailarino dispõe. “Surge também uma categoria de dançarino: o bailarino-intérprete”, diz Pederneiras. Para esse novo profissional, o corpo está mais solto; e a dança, mais bem executada. Se por um lado não é mais necessário ter a técnica apurada (perna alongada, rigor de movimentos, padronização de peso e altura); por outro, os últimos 0 anos trouxeram a esse profissional a exigência de um excelente desempenho nos palcos. “Ele deixa de ser um mero executor e terá de se adaptar à convergência de dança, canto e teatro, apresentando algo muito mais elaborado. O dançarino agora interpreta e está mais livre para inovar o movimento como e quando achar necessário”, diz Pederneiras.

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A dança ganha, então, novas possibilidades de coreografia e de interpretação, sendo a coreógrafa alemã Pina Bausch a representante mundial dessa nova tendência. O resultado é a reunião, em um mesmo palco, de diversas formas de arte. Bailarinos-intérpretes e coreógrafos usam novas tecnologias em cena, enquanto outras mídias coexistem no palco para criar um espetáculo de linguagens múltiplas. Essa convergência de áreas distintas pode ser ainda observada na colaboração de profissionais como arquitetos e músicos na composição do espetáculo. Os novos tempos acabam, por fim, levando ao público algo mais elaborado, composto da união de vários criadores individuais em cena. E, se há inovação nos espetáculos, a platéia também se renova, o que, em termos de mercado, significa mais espaço e público para as novas correntes interpretativas. Assim, na América do Sul, os espetáculos ganharam em qualidade e, conseqüentemente, seu público aumentou. “A princípio, a primeira sensação [da platéia] é de estranhamento. Mas, se o espetáculo for bom, o público vai se identificando e digerindo aos poucos aquilo que for mais difícil”, explica.

Para Pederneiras, os espetáculos que inauguram no Brasil essa nova tendência são Kuarup ou A Questão do Índio ( 977), do Ballet Stagium, de São Paulo; Maria, Maria ( 976) e O Último Trem ( 980), os dois últimos do Grupo Corpo, de Minas Gerais. A partir desses marcos, a dança brasileira vem também se afirmando no exterior. “Se há 0 anos não éramos criadores de dança, hoje, ganhamos o reconhecimento internacional. Ainda que jovens, já caminhamos com nossas próprias pernas. Só falta aprender a correr.”

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O Último Trem, do Corpo, influenciou a dança nos anos 80 | imagem: José Luiz Pederneiras


Cena de Kuarup ou a Questão do Índio, do Stagium | imagem: Arnaldo Torres

Condição local Assim como na dança, as artes visuais brasileiras também conseguiram mostrar sua maioridade artística ao longo das últimas décadas. Hoje, partindo de uma retrospectiva crítica de suas produções, artistas nacionais dialogam de igual para igual com os de outros países. Ao mesmo tempo, ou por causa disso, todos pensam suas poéticas como parte de uma condição local – não mais um estilo, como era para os modernistas no início do século passado, mas algo libertador. o paulista Tadeu Chiarelli, chefe do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), onde coordena o Centro de Estudos Arte & Fotografia, cita sete artistas que traduzem o período e nele se destacam: o cearense José Leonilson ( 9 7- 99 ), a mineira Rosângela Rennó, o paulistano Nuno Ramos, a mineira Ana Maria Tavares, o carioca Nelson Felix, o paulista Paulo Pasta e o paraense Emmanuel Nassar.

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A paulistana Aracy Amaral, historiadora da arte e professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, acrescenta ainda à lista o carioca Cildo Meireles, “que continua atraindo nossa atenção, mesmo recentemente com sua grande Babel, apresentada ano passado”. A crítica de arte também cita os mineiros Cao Guimarães, Rivane Neuenschwander e Rosângela Rennó, o carioca José Damasceno e o paulistano Vik Muniz. “Acompanho ainda o trabalho de Brígida Baltar, com seus vídeos e performances utilizando o próprio corpo no espaço urbano ou doméstico”, diz. Fora do eixo São Paulo–Belo Horizonte–Rio de Janeiro, Aracy menciona os artistas Eduardo Frota, de Fortaleza, e Pitágoras [Pitágoras Lopes Gonçalves], de Goiânia.


De 0 anos para cá, no entanto, as artes visuais vivem um momento crítico: esvaindo-se, talvez irremediavelmente, do campo da estética, elas caminham para discursos da antropologia, da sociologia, para então se transformar em “outra coisa”. Assim, parecendo ser impossível algum tipo de ruptura, sobretudo de padrão estético, mais do que qualquer outra manifestação cultural, as artes visuais expressam com maior intensidade a crise por que a arte e a cultura passam nas últimas décadas. “Se o conceito de arte, como o entendemos hoje, teve um início histórico; ele também pode ter um fim histórico”, diz Chiarelli. “É por essa razão que já se tornou comum dizer que nenhuma revolução nas artes foi maior que a descoberta do DNA. Quem sabe venham do meio das comunicações, ou da genética, as maiores revoluções de nosso tempo?”, questiona Aracy.

Para a crítica de arte, vivemos em um tempo no qual aquilo que suscita mais clamor, inclusive nas artes, é apontado como mais positivo. “É por isso que ouvimos sempre que a queda das torres gêmeas [World Trade Center, Nova York] não permite que nenhum trabalho artístico possa contribuir com espanto maior que esse”, diz. Dessa forma, se olhar para o passado com o intuito de apontar referências parece ser uma tarefa árdua, indicar futuros caminhos é ainda mais difícil. “Não está bem claro o que permanecerá como referência estética e cultural; mais incerto é definir, hoje, o que virá de novo a partir dessa virada cibernética. A única certeza é a libertação de antigos parâmetros”, conclui Laymert.

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Babel, 00 / 006, obra de Cildo Meireles | imagem: cortesia Galeria Luisa Strina


área livre

A namorada da máquina de escrever

Por Greta Benitez Vinte anos atrás quando ainda era tempo de vestidos armados brochura e perucas brancas de três metros de altura (que microscópicos demônios ajudavam a tecer) ela nutria incontrolável volúpia pela Máquina de Escrever. Sexy relíquia de quando as cartas ainda não eram escritas em luz. A Máquina, por sua vez, aposentada do serviço público em uma loja de usados foi resgatada libertada: pela moça. A partir daí, as duas escreveriam juntas poemas eróticos. Deixando para trás passados burocráticos a aposentada agora era uma Máquina de cabaré com meia arrastão, tatuagem e linguagem pra lá de libertina. Vinte anos atrás, naftalina naquele tempo em que os jornais ainda não eram feitos de luz. Greta Benitez, poeta, lançou Rosas Embutidas (edição do autor, 999, poesia). Mantém o blog Chocolate Amargo (http://gretabenitez.blog.uol.com.br).

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ilustração: Jader Rosa


“Notícias de uma guerra particular” Por Marcelo Montenegro

“Cézanne: ‘a paisagem pensa a si mesma através de mim. Eu sou sua consciência’ .” in Polivox, Rodrigo Garcia Lopes “Como quem traz à mesa um bolo quente” ( 0 anos passados em Marienbad). Lobo Antunes e o “ranger dos carrosséis” (uma quitinete no centro de qualquer lugar). Conversas perdidas na fila do cinema del arte. Um artista plástico explicando a própria obra. Estudantes de fotografia em busca do mendigo mais estético – Narciso mudando de idéia numa rodoviária de espelhos. Itamar Assumpção: “poeta, talvez seja melhor afinar o coro dos descontentes”. “Escola das facas”; “comércio de encantos” (a beleza fugiu do assunto). Jerry Seinfeld e as propostas do Calvino. Canções que não cabem no corpo? Impossível traçar uma reta (“o nosso amor a gente inventa”). Uma Thurman dançando Chuck Berry com John Travolta (minha próxima obra-prima pela lei de incentivo à cultura). “Herói Devolvido”, “Tanto Faz”, “Medusa de Rayban”, “Hein?” – orfanato de tudo e os letais pruridos da vida (exercícios de geometria lírica?). A angústia da originalidade (Bresson: “ser original é tentar ser como os outros e não conseguir”) e, no entanto, entre a profusão de delleuzes e “ou sejas” (Dadá Maravilha: “se a vida te der um limão, faça uma limonada”), a estranha equação dos encontros (onde a máquina do mundo se evola). “Memórias do subsolo”, playground da linguagem: ilíadas clandestinas que a febre percorre até virar suor. Marcelo Montenegro, poeta, é autor de Orfanato Portátil (Atrito Art Editorial, 00 ) e do inédito Hemingway Hotel.

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itaú cultural avenida paulista 49 são paulo sp [estação brigadeiro do metrô] fone 68 700 atendimento@itaucultural.org.br www.itaucultural.org.br


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