Continuum 07 - Cultura Imaterial - jan/fev 2008

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ITAĂš CULTURAL Cultura imaterial

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.1 jan fev 2008 | itaucultural.org.br


Da tradição para a contemporaneidade Face mais rica da cultura popular, os bens imateriais são na atualidade um dos focos de atenção de governos de todo o mundo. Dentro dessa vertente se enquadram, entre outros, os saberes transmitidos oralmente por mestres a seus descendentes, as festas, os lugares sagrados, os ritmos musicais ancestrais e determinados ofícios. Desde 2001, a questão se tornou mais visível graças à atuação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que já proclamou cerca de uma centena de manifestações como Obras-Primas do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade. Entre estas, duas brasileiras: a arte kusiwa, dos índios Wajãpi, do Amapá, e o samba-de-roda do Recôncavo Baiano. Signatário das normas do organismo internacional, o Brasil conta com 12 bens culturais imateriais patrimonializados e vários outros em processo de certificação. Nas palavras do ministro da Cultura, Gilberto Gil, em entrevista especial, o governo brasileiro vê o patrimônio imaterial como uma política de Estado, feita por meio da metodologia de certificação coordenada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Esta edição da Continuum Itaú Cultural, excepcionalmente com periodicidade bimestral, procura explorar algumas das opções que esse tema tão pujante pode oferecer, por meio de reportagens sobre a arte de contar histórias, as religiões e os circos de tradição familiar (os quais aguardam a titulação do Iphan). Outra reportagem vê com olhos críticos as questões que envolvem o ato de patrimonializar bens culturais. Na Área Livre, o artista visual Nicolás Robbio mostra, em desenhos, o modo de fazer violas-decocho, um dos patrimônios imateriais brasileiros. A versão virtual da revista vai continuar essa abordagem, com a inclusão de novas matérias no decorrer deste e do próximo mês. Contribua também com seu texto para a seção Leitor-Autor do site, e dê sua opinião pelo e-mail continuum@itaucultural.org.br. Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Cia de Foto, Guilherme Kujawski, Nicolás Robbio, Patrícia Patrício Agradecimentos Alberto Ikeda, Ana Gita Oliveira, Angela Detânico e Rafael Lain, Angélica Salazar, Carlos Nader, Claudia Vasques, Dominique Gallois, Hermínia Silva, Humberto Braga, Isabella Madeira, Joelma Costa, José Frota, Marcelo Manzatti, Marina Kahn, Milton Hatoum, Nanan Catalão, Thiago Mio Salla, Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes Agradecimento especial ministro Gilberto Gil capa Feira de Caruaru, em Pernambuco | imagem: Cia de Foto

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007) Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento continuum@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

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ITAÚ CULTURAL

sumário .4 Identidade da consciência Como um bem cultural vira patrimônio imaterial .8 Lembrar, jamais! A memória humana e a memória cultural em confronto .10 Uma política de ponta Em entrevista especial, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, analisa a cultura intangível .16 A face visível do invisível A fusão de matéria e não-matéria nas religiões .20 Tradição, família e itinerância As origens do circo pelas estradas do Brasil .24 No princípio era o verbo A cultura oral entra na contemporaneidade com a contação de histórias .28 Nos quintais do Recôncavo Samba-de-roda faz a festa em janeiro e fevereiro .30 Área livre Artista visual Nicolás Robbio desenha o modo de fazer violas-de-cocho

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imagens: Jader Rosa | ItaĂş Cultural


Identidade da consciência

reportagem

Cultura imaterial se revela cada vez mais importante para entender a diversidade do Brasil

Por André Seiti Durante o período imperial, nas lavouras de café e de cana-de-açúcar do Sudeste brasileiro, escravos costumavam realizar uma prática de origem africana, conhecida como jongo, que envolvia dança, música e recitação de versos repletos de metáforas. A linguagem cifrada, chamada de ponto, permitia aos trabalhadores que se comunicassem entre si sem que senhores e capatazes compreendessem o que era dito. Cento e vinte anos depois, a riqueza de metáforas e significados do jongo ainda sobrevive, não porque foi ensinada por meio de livros, registros formais ou ensinamentos sistemáticos, mas, sim, porque o conhecimento foi transmitido na prática, de geração para geração. Tradição e transmissão de conhecimentos são fatores essenciais para a continuidade das diversas manifestações culturais intangíveis, peças fundamentais para a construção da chamada “consciência nacional” (termo usado pelo escritor Mário de Andrade para designar um conjunto de práticas, representações, técnicas, objetos e lugares que integram o patrimônio cultural de um povo). “Por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais diversas são as fontes nas quais bebemos mais forte a nossa identidade”, afirma Marcelo Manzatti, antropólogo que atualmente trabalha no processo de reconhecimento do samba paulista como patrimônio imaterial. No entanto, preservar uma manifestação cultural não é tarefa das mais simples. Segundo Manzatti, diversos obstáculos relacionados a variáveis socioeconômicas atrapalham a dinâmica de algumas expressões culturais. “Um jongueiro mora na periferia de Guaratinguetá, estado de São Paulo, por exemplo, e sofre as dificuldades de quem vive em sociedades carentes, marginalizadas”, explica. Outro problema em relação à continuidade dessas manifestações intangíveis está ligado aos próprios praticantes. “Hoje, os mais jovens se interessam por coisas com mais apelo na mídia, mais glamour.”

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Patrimônio legitimado Se de um lado existem problemas, de outro surgem iniciativas para solucioná-los. Ainda é recente no Brasil a criação de políticas para proteção e preservação do patrimônio imaterial. A Constituição de 1988 foi a primeira a tocar nesse assunto e, somente em 2000, por meio de decreto, é que, de fato, se criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, promovido pelo Ministério da Cultura com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Alberto Ikeda, professor de cultura popular da Universidade Estadual Paulista (Unesp), explica de que forma um bem imaterial é reconhecido pelo Estado como patrimônio. “A pessoa ou o órgão proponente deve fazer uma ampla pesquisa, conhecida como inventário, sobre a manifestação ou o saber e encaminhar ao Iphan para ser registrada”, conta. “Após o registro, o governo federal precisa tomar iniciativas para que o bem registrado tenha continuidade, isso se dá através do Plano de Salvaguarda.” Entretanto, Letícia Vianna, antropóloga que coordenou o processo de patrimonialização do jongo, lembra: “para ser considerada patrimônio imaterial, a manifestação precisa ser reconhecida como uma referência para a identidade de um grupo ou comunidade, ter densidade histórica e ser significativa para a diversidade cultural”. Ela ainda ressalta: “é importante levar em conta o interesse das pessoas envolvidas em ter o bem cultural reconhecido pelo Estado”. De acordo com Manzatti, essas pessoas exercem papel fundamental. “Trata-se de patrimônios coletivos; se o coletivo não os legitima, fica difícil dar continuidade.” Para Jurema Machado, coordenadora de Cultura da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), “a participação da comunidade na legitimação dos bens imateriais é condição sine qua non”. Segundo ela, o Estado atua apenas como co-responsável pela preservação, pois esta depende mais dos detentores do saber. “O plano de salvaguarda protege o entorno, criando um ambiente favorável à transmissão do conhecimento.” Entre os resultados do plano de salvaguarda, é possível citar a .6

criação de oficinas para que jovens do Recôncavo Baiano se apropriem da maestria para confeccionar a viola-de-machete, uma vez que os mestres atuais estão morrendo de velhice. A viola-de-machete é instrumento essencial para a prática do samba-de-roda daquela região. Outro exemplo está relacionado ao ofício das paneleiras do bairro de Goiabeiras, em Vitória, Espírito Santo. Para preservar essa prática, o registro do Iphan determinou também a preservação do vale do Mulembá, lugar de onde é extraída a matéria-prima para a confecção das panelas de barro para moqueca. Preservar não é congelar Não parece haver dúvidas dos benefícios vindos com o reconhecimento de manifestações culturais como patrimônio imaterial. Porém, essa espécie de status pode trazer alguns pontos negativos devido à alta exposição, como a utilização ou a comercialização indevida do conhecimento tradicional. A arte kusiwa dos índios Wajãpi – que consiste em desenhos corporais de códigos e que foi reconhecida pela Unesco, em 2002, como Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade – começou a ser utilizada para fins comerciais ao estampar camisetas, sem a autorização dos índios. Segundo Manzatti, esse fato se deve, sobretudo, à “cultura de mercado e de espetáculo, que tende a transformar tudo em mercadoria”. Para Sylvia Costa Couceiro, historiadora e membro do projeto Formas de Expressão da Cultura Imaterial, em Pernambuco, “é importante que os grupos e suas manifestações não sejam simplesmente incorporados à indústria do turismo e do lazer como elementos pitorescos de uma cultura exótica, sendo absorvidos pelo mercado cultural apenas como entretenimento e diversão para os turistas”. Segundo ela, essas pessoas, antes de tudo, devem ser reconhecidas como cidadãos, “no sentido de que suas manifestações sejam respeitadas como parte representativa da identidade desses grupos e integrantes da ampla e diversa trama que compõe a cultura nacional”.


Outra problemática, de caráter mais subjetivo, está na questão do “preservar”. Sylvia questiona como preservar bens intangíveis que cada vez mais se inserem em uma sociedade sujeita a transformações intensas e rápidas. De acordo com ela, tanto governo quanto sociedade devem compreender que bens de origem imaterial não podem ser preservados, no sentido clássico do termo, utilizado com base na noção de tombamento dos bens imóveis. “Preservar significaria buscar a permanência, o que sugeriria ‘congelamento’ e imobilismo”, explica. “A preservação de uma pretensa ‘pureza’ dos bens intangíveis é um desejo de impossível realização, uma vez que não podemos ‘conservar’ práticas culturais, isolando-as do contato com o mundo e tentando desconectá-las da dinâmica do fazer a história em seu cotidiano.” Em linha semelhante, Jurema complementa: “A tradição é uma reserva de conhecimento, um suporte de inovação. Não devemos congelar a tradição e tratá-la como algo exótico”. Segundo ela, “em tempos de processo de globalização, em que as práticas culturais estão cada vez mais homogeneizadas, a tradição, os bens imateriais se tornam mais relevantes”. Livros imateriais

Saiba como o Iphan registra os bens intangíveis O Iphan estabeleceu a divisão dos bens imateriais em quatro livros. Atualmente 12 manifestações culturais imateriais já foram registradas e mais de 25 inventários estão em andamento, de acordo com o site da instituição [iphan.gov.br]. Confira o que já foi reconhecido pelo Iphan:

Livro de Registro dos Saberes Ofício das Paneleiras de Goiabeiras (ES) Modo de Fazer Viola-de-Cocho Ofício das Baianas de Acarajé Livro de Registro de Celebrações Círio de Nossa Senhora de Nazaré (PA) Livro de Registros das Formas de Expressão Kusiwa – Linguagem e Arte Gráfica Wajãpi (AP) Samba-de-Roda do Recôncavo Baiano Jongo do Sudeste Frevo Tambor-de-Crioula do Maranhão Samba do Rio de Janeiro Livro de Registro dos Lugares Cachoeira do Iauaretê (AM) Feira de Caruaru (PE)

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Lembrar, jamais!

artigo

Se a memória humana é seletiva, por que a memória cultural não pode ser?

Por Guilherme Kujawski Proteger a memória e as manifestações culturais de povos é uma das prioridades da Unesco, entidade que tem aprimorado instrumentos legais para salvaguardar patrimônios imateriais. É quase inapropriado argumentar contra uma iniciativa tão honorável, principalmente dentro de sociedades conhecidas por seu orgulho nacional. Evoque-se no presente texto, então, o direito a um pequeno contraditório de opinião. De saída já se verifica o problema de engessar com rigor práticas originadas de ordens culturais orgânicas que, por sua natureza simbólica, são avessas a enredamentos. Antropólogos provenientes de diversas escolas já testemunharam, com alguma tristeza, seus objetos de estudo (leia-se agentes do “pensamento selvagem”) realizarem complexos rituais não por tradição constituída ao longo de gerações, mas por via de filmes registrados pelos próprios pesquisadores. O que era apenas um rastro de significados no tempo se tornou um… roteiro! O mesmo alerta vale para a memória de nossos acarajés e a arte corporal dos índios Wajãpi, do Amapá. Mas, antes de criticarmos a preservação de memórias culturais, urge-nos perguntar: o que é memória? Em termos da neurociência, e mesmo assim sob um ponto de vista bastante simplificador, a memória consiste em um padrão de conexões entre neurônios, o qual circula pelo cérebro na forma de um código de sinais, como um código Morse. Populações neurais especializadas no transporte de informações codificadas têm a missão de reconhecer quais padrões valem à pena ser reforçados – sob diversos critérios de relevância (trauma e prazer são apenas dois deles) – ou extintos. Por sua característica difusa e fluida, metáforas que remetem a repositórios e banco de dados não se aplicam à memória. Aliás, as metáforas que descrevem o próprio cérebro – concomitantemente uma máquina de previsão (dados sensoriais são comparados à luz de experiências anteriores e aplicados em decisões futuras), um dispositivo semiótico (informações externas são vertidas em símbolos que, por sua vez, são transformados em códigos) e uma rede de comunicação – são insuficientes. De qualquer forma, o cérebro é menos uma rede de telefonia comutada do que uma internet, já que diferentes informações – como lembranças de longo e curto prazos – são transmitidas a regiões específicas de uma maneira multidirecional, e não bidirecional, como assume o senso comum. Funcionalidades desse tipo jamais se sustentariam se as informações fossem se acumulando ao longo do tempo. Esquecer, portanto, é fundamental para a saúde e a eficiência do cérebro. E a memória cultural de um determinado povo, ela não depende da saúde da memória de seus indivíduos?

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Revelações e ocultações Mas foi no universo das artes, e não na ciência, que a relação entre memória e esquecimento foi entendida com mais clareza. As madalenas de Marcel Proust, símbolos do que o escritor francês chamava de “memória involuntária”, anteciparam, numa das escritas mais elegantes da literatura, princípios sobre o armazenamento da memória enunciados décadas depois pelo psicólogo alemão Hermann Ebbinghaus. Com anos de antecedência, e com certeza não intencionalmente, o escritor argentino Jorge Luis Borges diagnosticou a síndrome hipertimésica no personagem Funes (de “Funes, o Memorioso”, conto do livro Ficções, de 1944), que é a incapacidade de o paciente esquecer fatos não relevantes de seu passado remoto, anomalia recentemente classificada por neurocientistas da Universidade da Califórnia. Teoricamente, portanto, a memória de um povo e a memória do cérebro têm muitos pontos em comum. Citando ainda exemplos das artes, não seria um brilho eterno o resultado de mentes sem lembranças – mentes individuais e coletivas?

Há hoje, devido à tendência determinista da tecnologia, o perigo da “externalização” efetiva da memória coletiva. Terabytes de material simbólico são armazenados a cada dia pelo Google, pela Biblioteca do Congresso [loc.gov/index.html] e por iniciativas pessoais autobiográficas. Por falar no último, esse tipo de terceirização da memória comprova que, com o advento da sociedade do excesso de informação, já não sobra espaço no disco rígido humano, aquele feito de carne e localizado em uma das pontas da espinha dorsal. Na visão do antropólogo francês Marc Augé, revelações e ocultações são partes integrantes dos mecanismos da memória, o que torna ficcional boa parte de nossas lembranças. Portanto, se a memória é incapacitada quando tudo é arquivado, então se pode dizer que o esquecimento é condição necessária da própria vida e suas narrativas. A amputação da capacidade de esquecimento coloca em risco a manutenção da fábrica global de pensamentos. Guilherme Kujawski é jornalista especializado em arte e tecnologia, escritor de ficção científica e coordenador do Itaulab, laboratório de mídias interativas do Itaú Cultural. Autor de Piritas Siderais – Romance Cyberbarroco (Francisco Alves, 1994).

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imagem: Cia de Foto


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imagens: Cia de Foto


Uma política de ponta

entrevista

Por Marco Aurélio Fiochi Em 1977, Gilberto Gil questionou, na canção De Onde Vem o Baião, a origem dos ritmos musicais nordestinos. A resposta, presente em versos como “Debaixo do barro do chão da pista onde se dança/Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino/[...]/Que sobe pelo chão/E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote”, credita a uma dimensão imaterial o impulso criativo que dá vida a uma parte da riqueza musical brasileira. Coincidência ou não, o músico tratou poeticamente um aspecto cultural que, três décadas depois, ganharia espaço cada vez maior em sua gestão como ministro da Cultura. Nesta entrevista, concedida em seu gabinete, em Brasília, Gil demonstra entusiasmo com a cultura intangível: “Essa dimensão é a mais importante da cultura para uma parte enorme da humanidade hoje”. Justiça seja feita, desde que assumiu o ministério, em 2003, a cultura intangível entrou de vez em pauta no Brasil, com as certificações de patrimônio imaterial concedidas pelo Iphan a celebrações, lugares, ritmos musicais e ofícios. Mas, segundo o ministro, esse não é um mérito individual, já que o governo brasileiro é signatário de uma política mundial para esse setor, posta em prática pela Unesco. Lançando o olhar para um futuro que já se apresenta, Gil comenta ainda a interação crescente entre o patrimônio imaterial e a cultura digital.

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Qual é sua visão sobre cultura intangível? A cultura intangível é a parte mais importante, mais substancial da cultura. É a cultura que se processa pelos modos de comunicação. Com o crescimento das populações, especialmente em lugares onde prevalecem os cânones clássicos da cultura eurocêntrica, mas também na periferia do mundo, a cultura intangível se torna mais eloqüente, forte e flagrante. Trata-se da cultura oral, dos saberes, dos processos e das trocas simbólicas cotidianas, nas várias formas de linguagem utilizadas pelas pessoas. Essa dimensão é a mais importante da cultura para uma parte enorme da humanidade hoje. Eu diria que bem mais da metade da população mundial tem nessa dimensão cultural sua dimensão principal. Acho que o Brasil se encaixa com perfeição nesse modelo de povos novos, povos que se construíram com base em uma vivência cultural não formalizada.

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Embora as manifestações da cultura oral e intangível sejam tradicionais e praticadas desde tempos imemoriais, essa questão só se tornou mais intensa no setor cultural com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, realizada pela Unesco em 2003. Como o senhor vê esse despertar relativamente tardio para um aspecto tão relevante de nossa cultura? A Convenção nasce de uma importância crescente e indiscutível da dimensão do patrimônio imaterial. Ela consolida a atenção especial da humanidade para com o patrimônio imaterial. Por meio dela são criados instrumentos de consideração apropriada, definitiva e mais acentuada dessa dimensão cultural no mundo. A Convenção traz essa discussão a um campo institucional, para o plano da atuação do Estado nesse processo todo. Decorre disso o fato de que um dos aspectos fundamentais da Convenção é a autorização das nações para a prática de políticas culturais públicas, adequadas segundo seu entendimento, sua conveniência, suas expectativas e expectativas de seus povos. A Convenção coroa um processo natural de um conjunto de iniciativas mundiais tomadas pela própria sociedade internacional. A politização dessa discussão nasce nos países asiáticos, como a Índia e a China, em que a dimensão demográfica é de extraordinária importância e a diversidade cultural é imensa. Nesse continente, os processos orais, simbólicos, imateriais se dão de forma muito mais nítida, dramática do que na Europa ou em países onde prevaleceu, por força da acumulação de riquezas, do colonialismo, uma visão clássica de cultura e de patrimônio. Essa visão foi herdada pelos povos que, ao se assumir como novos, com suas necessidades especiais e peculiaridades, passam a reivindicar uma consideração à dimensão imaterial, intangível do patrimônio.


Um dos objetivos do poder público ao conferir títulos de patrimônio imaterial a determinados bens culturais intangíveis é assegurar sua preservação diante das transformações constantes por que passam a vida e a cultura. Como o senhor vê o aprofundamento do debate sobre a cultura intangível, que via de regra é também o debate sobre a cultura popular, no cenário contemporâneo? A constituição de um corpo de leis e instrumentos regulatórios que possibilitem a preservação dessa cultura por parte do poder público nasce de um cuidado diante de ameaças de um processo natural, de construção da vida moderna e pós-moderna, que é avassalador, que vai obrigando as pessoas a se enquadrar. Mas outro aspecto importante é a necessidade identitária dos indivíduos e dos grupos sociais, seu auto-reconhecimento, sua autocontemplação. Não basta preservar das ameaças da atualidade, pois não se trata somente do risco de perder algo que é seu, mas, sim, da possibilidade de perder a si próprio. São duas questões, dois cuidados contemplados pelas iniciativas ligadas ao patrimônio imaterial.

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Em sua gestão houve um empenho pessoal em promover o levantamento e a certificação dos bens culturais intangíveis como patrimônios. O senhor acredita que essa política poderá se tornar uma política de Estado? Não vejo isso no futuro, é agora! Estamos fazendo uma política de Estado ao criar os estatutos da certificação. É uma política que se constrói agora e tem vida longa. Ela reflete um desejo e uma ação da Unesco – não por acaso a Organização é dirigida por um dos maiores entusiastas do patrimônio imaterial, o secretário Koïchiro Matsuura. A formação do secretário na esfera institucional da cultura vem do patrimônio imaterial no Japão. Ele veio para a Unesco para representar a grande demanda asiática pelo fortalecimento dessa dimensão. O governo brasileiro, por meio do Iphan, a autoridade cultural patrimonial do país, é signatário dessa política. Vários estados brasileiros, por meio de suas políticas culturais, também assumiram a questão do patrimônio imaterial como política, caso do Ceará, da Paraíba, da Bahia, de Minas Gerais. Alguns programas estaduais, como o do Ceará, são anteriores ao programa do Ministério da Cultura. Trata-se, de fato, de uma política do Estado brasileiro.

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Os Pontos de Cultura do programa Cultura Viva, do ministério, poderão abrigar no futuro manifestações da cultura intangível? Muitos deles já abrigam essas manifestações. São Pontos de Cultura ligados a populações indígenas e a remanescentes históricos da interação cultural afro-brasileira. Não só os Pontos de Cultura, mas também outros programas do ministério, outras vertentes do programa Cultura Viva já contemplam as manifestações certificadas como patrimônio. Se não os certificados, aqueles que estão em processo para se certificar. É uma forma de fazer com que essas manifestações cumpram seu percurso. Há um primeiro estágio, que é a afirmação da identidade, e num segundo momento sua exposição, difusão para públicos que não teriam acesso direto a elas.


Para as comunidades, qual é o impacto das ações planejadas pelo ministério para garantir a sustentabilidade dos modos de fazer e das celebrações da cultura intangível? O associativismo é um passo natural para a visibilidade dessas comunidades, para que elas fortaleçam seus vínculos com as manifestações culturais intangíveis. Portanto, esses grupos passaram a se estabelecer como força política, como força empreendedorística, como força de protagonismo social. O associativismo é baseado na consolidação da cidadania. A primeira noção do associativismo é a politização, as pessoas se associam para se tornar corpos políticos. Claro que o ministério não vai fazer cidadania, não vai fazer de ninguém um cidadão, mas ele ajuda na medida do possível, dando ferramentas técnicas, materiais e conceituais. A parte conceitual é importante, pois dá às pessoas a visão, a noção sobre identidades e diversidades, sobre preservação e conservação, sobre o papel da sociedade e também do governo.

Enfocando aspectos mais contemporâneos da questão, gostaria que o senhor falasse a respeito de outra forma de patrimônio imaterial, constituído a partir do advento da cultura digital. Como o senhor vê o papel das obras de referência virtuais, a exemplo de enciclopédias, para assegurar a preservação da memória cultural? Esse é um tema novo e importantíssimo. Acabo de chegar dos Estados Unidos, onde tive contato com a Internet Archive [archive.org], instituição não-governamental criada por um egresso do mundo dos negócios no Vale do Silício, Califórnia, Estados Unidos. A instituição [fundada em 1996 por Brewster Kahle] nasceu exatamente para preservar acervos com a digitalização. São arquivos, memórias variadas encontradas fragmentadas no campo digital, produtos que são conseqüência, são frutos da internet, bem como tudo aquilo que ela veio a abrigar do mundo analógico, das linguagens anteriores. Trata-se dos grandes filmes do mundo inteiro, do patrimônio musical, do teatro, da literatura. A instituição possui 200 bilhões de páginas da internet arquivadas, fora os 200 mil filmes digitalizados. Essa relação entre o patrimônio imaterial e o mundo digital está cada vez mais próxima, eles estão convergindo, não há como recusar isso. .15


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Obra Sem TĂ­tulo [detalhe], 2006/2007, de JosĂŠ Frota | imagem: arquivo do artista


A face visível do invisível

reportagem

Como as dimensões material e imaterial se fundem nas religiões

Por Patrícia Patrício Para as religiões, é tênue, se não inexistente, a fronteira entre os conceitos de material e imaterial. Independentemente do credo, os templos de tijolo, pedra, vidro e arte merecem cuidado não só por sua beleza exterior, arquitetônica, mas também por seus ritos, mitos, festas, modos de viver. Essa é a beleza interior, intangível, imaterial colada na face da matéria. Segundo Maria Cecília Sanchez Teixeira, professora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e coordenadora do Centro de Estudos do Imaginário, Cultura e Educação da mesma instituição, “enquanto a religiosidade se refere à relação do homem com o sagrado, a religião se institucionaliza por meio de doutrinas e dogmas. Não só a religiosidade, mas outras manifestações mitológicas ou ideológicas têm o poder de ‘moldar’ materialmente um povo, porque são manifestações do imaginário e é através dele que nos reconhecemos como humanos, conhecemos o outro e apreendemos a realidade múltipla do mundo. Costumamos dizer que é o imaginário que organiza o real”. Nas palavras de Dary Mota, babá [autoridade do candomblé] Giberewá, de Salvador, “o material não existe, porque matéria equivale à energia. A espiritualidade usa a energia da matéria, que pode ser direcionada para o bem ou para o mal, depende do livre-arbítrio humano. Veja a energia atômica, que foi pensada para o bem e acabou em Hiroshima”. Duas faces de uma moeda, eis o que são “imatéria” e “matéria”, como assinala Edgard Carvalho, professor de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). “Precisamos pensar de maneira dialógica e articular as duas faces da moeda, abandonar essa oposição cartesiana consagrada.” À frente da gestão do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico (Condephaat) entre 1989 e 1991, o antropólogo enfrentou muitos questionamentos sobre o processo de tombamento do terreiro Axé Ilê Obá, em São Paulo. “Nós nos perguntávamos o que estávamos tombando. O culto imaterial ou o material das casas de santo, os objetos? Eu dizia: é impossível separar, conta ele.” Essa ligação é indissolúvel, ensina Maria Cecília: “É inerente à própria condição humana, do Homo symbolicus. São os processos de simbolização que permitem aos humanos tomar consciência da condição própria aos seres vivos: seu destino mortal”.

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Ecoando, em outra clave, o padre João Batista Libânio Christo, professor de teologia do Instituto Santo Inácio, de Belo Horizonte, explica: “Nenhuma religião perdura sem registro material: pintura, grafia, escultura, música. Isso varia nas religiões; na católica vemos a arte barroca condensada nas obras de Aleijadinho, que mostram o sofrimento na cruz e a alegria dos anjos. Eis a corporeidade do sentimento religioso. A arte religiosa é um dos principais patrimônios imateriais (porque espiritual) e materiais (porque de madeira, barro, pedra, notas musicais)”. Deus e a ciência A relação entre Deus e a ciência é outro aspecto que apresenta dimensões materiais e imateriais. Do ponto de vista do zen-budismo, monja Coen acredita que “desenvolvemos uma corrida científica e tecnológica muito importante, mas questionamos quem somos nós. Estamos em plenitude, ou o que nos falta? Essa falta leva a uma procura. Será que deixaremos uma herança não-material para nossos descendentes?”. Carvalho cita pensadores que abordaram a relação entre o divino e a ciência. “Para Lacan, ‘Deus é o Sujeito da Ciência’. Já Hegel diz: ‘Deus é a Idéia Absoluta, o Devir do Espírito, o Universal Concreto...’ Em contraste, temos Nietzsche: ‘Deus deve morrer e o Homem deve ser superado’.” Maria Cecília lembra Gilbert Durand, autor de A Imaginação Simbólica (Edições 70, Portugal, 1995), entre outros: “O que leva o homem a se relacionar com um ser superior é seu desejo, ou intuição, de que existe algo além da matéria. Algo indizível e invisível que a razão simbólica materializa em mitos e ritos”.

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Em sintonia com o pensamento da educadora está padre Libânio. “O ser humano é especialmente simbólico. Ao tomar água pode ver, além de H2O, vida. A gente não se satisfaz com alimentos, precisa reinventar, com mesa, pratos, talheres... Nos relacionamos com coisas, pessoas e uma figura maior: Deus”, explica. “Para citar Jung, há um grande inconsciente coletivo, um processo profundo de criação de imagens. Não criamos sozinhos: o conhecimento passa pelas moléculas. Mesmo que não siga uma religião, o ser humano nutre um sentimento religioso.” Em tempos de guerra No culto multirreligioso celebrado em 17 de dezembro de 2007 no Tribunal Regional Eleitoral em São Paulo, o rabino Alexandre Leoni, da Federação Israelita do Estado de São Paulo, festejou o Brasil, um país sem conflitos religiosos. Essa realidade, porém, não é unânime no mundo, com as disputas no Oriente Médio, que envolvem mais o poder que o nome de Deus, apesar de o terem como pretexto. Carvalho relembra o panorama dos últimos 18 anos, entendendo, como Eric Hobsbawm, que o século XX termina com a queda do Muro de Berlim, em 1989. “Do fim do século XX para cá, percebemos um aumento das religiosidades. Algumas delas servem como fundamento para a intolerância.”


A procura pelo sagrado | imagem: Cia de Foto

O professor da PUC/SP se mostra veementemente contra os fundamentalismos: “A adoração é imanente, ‘a marca do Homem é o Inacabado’, nas palavras de Edgar Morin. Porém, precisamos diferenciar adoração de fanatismo. Mesmo o conflito Israel-Palestina não deveria existir pelas tradições religiosas desses povos”. Como observa Maria Cecília, “o contato com o divino nunca foi algo pacífico. Se se pensar nas religiões antigas desde a Suméria, se verá que a religião sempre foi uma forma de ritualizar a violência. As ‘guerras santas’ sempre existiram”. O padre Libânio compreende os conflitos da seguinte forma: “Existe bondade e violência no ser humano. Vejamos o pecado original, que é mal entendido: Adão e Eva percebem a nudez quando encontram a ambigüidade. Caim mata Abel, irmãos que se amam acabam se matando. A religião prega a paz, mas também participa da ambigüidade quando afirma: defendo minha religião e mato por ela”.

Num tom apaziguador, o rabino Michel Schlesinger, substituto de Henry Sobel na Congregação Israelita Paulista (CIP), argumenta: “Não conheço nenhuma religião que apregoe, em sua essência, a guerra. O conflito é sempre uma manipulação dos princípios religiosos. Infelizmente, existem fundamentalistas em todos os grupos religiosos. Mas a religião deve ser sempre um caminho para a paz”. A declaração faz coro à de monja Coen. “As religiões são bandeirinhas que se botam na frente. Não se questiona a verdade da Torá, do Talmud ou do Corão.” Segundo a religiosa, quando houve guerras medievais no Japão, questionou-se o budismo por se ausentar (como os católicos no Holocausto). “É preciso ter uma atitude crítica: Gandhi parou guerras na Índia conversando.” Para a monja as pessoas precisam ser mediadoras de conflitos, deixar uma herança de carinho e não de ódio. “Acredito que possamos criar uma cultura de paz.”

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imagens: Cia de Foto


Tradição, família e itinerância

reportagem

O velho circense nos tempos do novo circo

Por Thiago Rosenberg Na quarta-feira, 19 de dezembro, o Circo Zanchettini, comandado pela família quase homônima Zanquettin, chega a Quirinópolis, na região sudoeste do estado de Goiás. São quatro carros, quatro caminhões, três trailers e 11 carretas – cinco cheias de carga e animais e seis mobiliadas e equipadas com toda sorte de eletrodomésticos, além de, entre outros, aparelhos de som, televisores, ar-condicionado e computadores, alguns com webcam e acesso à internet. Eles são conduzidos pelos artistas e técnicos circenses que, há dois dias, deixaram para trás o público de Rio Verde, também no interior de Goiás. Até a noite de estréia do espetáculo, na sexta-feira, a família deve ainda certificar-se de que o terreno atende a suas necessidades de iluminação, água e segurança e, logicamente, montar o circo: alinhar os mastros, erguer e derriçar a lona (de 1.600 m² e aproximadamente 2 toneladas), preparar o picadeiro e a marquise, cobrir de feno o solo etc. Um processo árduo que, em conjunto com a intensa itinerância, dizem os Zanquettin, determina se um artista é de fato ou não um circense. “Para ser um circense”, afirma Erimeide Zanquettin, “é preciso viver o circo em sua plenitude”. Encará-lo como local de moradia e de trabalho da família; transmitir às novas gerações a técnica, a ética e a cultura circenses; levar os espetáculos a diversas – e muitas vezes adversas – regiões, das capitais às mais remotas e inacessíveis cidades. Enfim, agregar os elementos de um estilo de vida essencialmente voltado ao circo dito tradicional, de lona, itinerante, cujos números e técnicas foram transmitidos ao longo de décadas de história – e que deve, em breve, ser patrimonializado pelo Iphan como bem cultural imaterial (o processo de registro encontra-se em andamento).

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De cidade a cidade Erimeide é filha de dona Wanda, a matriarca do Zanchettini. Encontram-se, em Quirinópolis – onde calculam permanecer até os primeiros dias de 2008, antes de rumar a Itumbiara –, outros seis dos dez filhos da septuagenária (em ordem de nascimento: Edlamar Maria, Amaury, Solange Maria, Márcio, Márcia Aparecida e Silvio), alguns deles acompanhados do cônjuge e dos rebentos. Cerca de 20 parentes, entre crianças e adultos. Mais os animais – um tigre, dois leões, três cavalos, três pôneis, dois avestruzes e um cão – e, como não?, os agregados; aqueles que, impressionados com a visita dos artistas à sua cidade, decidiram acompanhar a itinerância do grupo – às vezes entrando de fato para a família.

É o caso de Inara. Natural de Dionísio Cerqueira, em Santa Catarina, ela vivia em Guarujá do Sul, no mesmo estado, quando o Circo Zanchettini por lá passou. Era 1993, e Inara, então com 17 anos, cursava o ensino médio. Acompanhada de duas colegas – Vanusa e Jonara –, foi assistir ao espetáculo e lá conheceu Amaury, ou Palhaço Pequi, que apresentava, entre outros números, o esquete cômico Morrer para Ganhar Dinheiro. Os dois começaram a se encontrar, mas logo o circo rumou para outro município, Descanso. “Se você quiser que eu vou até descanço, me liga: Fone: 42-297, é o telefone da vizinha” (sic), escreveu ela em uma carta. “Fiquei sabendo que vocês irão voltar daqui 3 anos, aí qui ódio todo esse tempo eu não vou aguentar” (sic). Ela entregou a mensagem a um ex-funcionário do circo, Cléber, que ainda estava em Guarujá do Sul, mas ele a perdeu. Passadas aproximadamente três semanas, então, Amaury encontrou a missiva na beira da escada do ônibus da mãe, um Mercedes azul. Ligou para a garota e foi buscá-la em Guarujá do Sul. Inara “fugiu com o circo”, e logo começou a aprender a arte circense. Eduardo, ou Palhaço Cachorrão, o mais velho dos quatro filhos do casal, nasceu no ano seguinte. (O segundo filho, Victor, hoje com 11 anos, não teve a mesma sorte que o pai. Ele conta que, há três anos, quando o circo estava em Coxim, em Mato Grosso, se apaixonou por uma garota chamada Luana – “eu gostava da risada dela” –, mas, uma vez que os artistas voltaram para a estrada, os dois nunca mais se viram. “Se pelo menos ela tivesse Orkut”, lamenta o rapaz.)

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Esse nomadismo constitui uma das principais características do cotidiano circense de tradição familiar. E interfere não apenas na vida afetiva dos artistas – as crianças, por exemplo, freqüentam uma escola em cada cidade; isso quando os colégios em questão têm vagas para os novos alunos. A estrada e todos os municípios a ela ligados são o lar dos Zanquettin. Eles mantêm um imóvel em Curitiba, no Paraná, mas este é raramente visitado. Não há quase nada na casa – se alguém porventura tentar assaltá-la não encontrará muito mais do que um aparelho de telefone. Serve basicamente para reunir a correspondência do circo e abrigar algum membro enfermo da família, já que ele estará próximo a bons hospitais. De geração a geração Já é quinta-feira, o dia anterior à estréia do espetáculo, e a chuva, ainda que fraca, não cessa desde que o Zanchettini apareceu em Quirinópolis. Mesmo assim, os homens da família – mais três quirinopolinos, que vão receber R$ 3,00 por hora de serviço – não interrompem o trabalho braçal de erguer o circo. “Nem engenheiro faz isso como nós”, gaba-se Márcio, referindo-se à precisão com que os artistas colocam o circo de pé, transmitida de geração a geração.

O tom orgulhoso com o qual os circenses aludem ao aprendizado adquirido ao longo das décadas talvez seja o bastante para compreender – não necessariamente concordar com – sua postura em relação às escolas de circo. “Elas formam artistas, mas não circenses”, diz o caçula de dona Wanda, Silvio – que, ao lado do cavalo Champa, levou o Circo Zanchettini à primeira posição no concurso O Melhor do Circo, promovido em dezembro pelo programa da Rede Globo Domingão do Faustão. “Os alunos dessas escolas não aprendem a viver como nós, a pegar a estrada, a desmontar, transportar e montar a lona”, completa. Ex-diretor de artes cênicas da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Humberto Braga integrou a comissão que criou, em 1982, a Escola Nacional de Circo. Ele conta que os professores originais da instituição eram circenses tradicionais, mas “a escola gerou grupos, ou trupes, de outra natureza” – muitos deles representantes do chamado novo circo, que une as linguagens da dança e do teatro à arte circense; caso, por exemplo, da companhia carioca Intrépida Trupe. “O que os artistas de tradição familiar têm dificuldade em entender”, defende Braga, “é que essa é uma mudança natural da arte. É inclusive uma riqueza da linguagem circense; mostra que ela está viva, já que tudo o que é vivo se transforma.” .23


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ilustrações: Jader Rosa


No princípio era o verbo

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Do mito à tecnologia digital, a importância da cultura oral para o ser humano

Por Érica Teruel Guerra Era uma vez... uma grande bola de fogo que, depois de muito tempo queimando, explodiu. Os milhares de pedacinhos resultantes foram para tudo quanto é lado. Foi daí que se originou o Sol, a Lua e até o planeta Terra, onde surgiram plantas e animais. O bicho mais esquisito que apareceu por lá foi o homem. Tinha estranhos costumes, como usar a pele de outras espécies sobre o corpo e pintar formas nas paredes das cavernas. Com o tempo, começou a dar nome às coisas e a contar histórias. O Big Bang é a versão do homem branco, “civilizado”, para explicar seu surgimento. Para os Aruá, povo indígena de Rondônia, a história é diferente: a humanidade surgiu depois que o demiurgo (criatura intermediária entre a natureza divina e a humana) Paricot começou a namorar um monte de cupim e, copulando com uma cavidade no solo, engravidou a Terra. Passados alguns meses, ele e seus irmãos, Andarob e Antoinká, ouviram um barulho vindo lá debaixo do chão. Era a humanidade querendo sair. Em comum, a história do homem branco e a do índio têm o desejo de explicar o mundo. “O mito mexe com um sentido profundo da existência, com indagações que são fundamentais”, conta a antropóloga Betty Mindlin, autora de livros como Moqueca de Maridos (Rosa dos Tempos, 1997) e Terra Grávida (Rosa dos Tempos, 1999), em que está registrado o mito indígena citado. Ilan Brenman, escritor e contador de histórias, completa: “As histórias vieram para responder e para acalmar, para consolar uma angústia, que era saber de onde viemos, qual o sentido da vida, o que é a morte”. É por isso que há aspectos em comum entre contos do mundo inteiro: porque falam da condição humana. Orixás e deuses da mitologia grega têm, por exemplo, características humanas, como vaidade e inveja.

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As histórias, contadas e recontadas ao longo dos séculos, estão intimamente ligadas à identidade da comunidade que as criou e que as alimenta. Betty, em seu trabalho com as tribos indígenas, afirma ter ouvido diversas vezes: “‘Enquanto nós soubermos contar essa história, nós somos um povo’”. Sejam as histórias relatadas para a criança no momento que antecede os sonhos, sejam aquelas contadas ao redor de uma árvore, por um pajé, elas transmitem valores e costumes em palavras que formam o indivíduo e a sociedade por ele habitada. Para Luiz Carlos dos Santos, mestre em sociologia e fundador do Núcleo de Consciência Negra da Universidade de São Paulo, a oralidade carrega exemplos de comportamento, que devem ou não ser seguidos por determinada comunidade. “Ela produz e mantém a memória pessoal e coletiva como uma biblioteca dinâmica que sugere formas de organização social.” A palavra no universo contemporâneo Em uma sociedade na qual reinam as imagens e os estímulos, em que o volume de informação é muito superior ao que o homem pode absorver e o que importa é vender e comprar, qual é o lugar da cultura oral? Coordenador do Observatório da Diversidade Cultural [observatoriodadiversidade.org.br], José Márcio de Barros afirma que, apesar das diversas mudanças ocorridas no plano comunicacional na contemporaneidade, a oralidade mantém sua importância. “Como

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prática cultural de atribuição de significados, de viabilização de encontros e trocas, ela continua a existir tanto em suas características tradicionais (a conversa no bar, o bate-papo, o empenhar a palavra) quanto nas novas práticas (skype, celular).” A educação, para Santos, é um exemplo da vitalidade da palavra: “Os procedimentos sociais que nos tornam membros de um grupo nos são ensinados por meio das narrativas orais, das máximas, dos conselhos, das lições de moral. O processo educacional familiar ainda é majoritariamente comandado pela tradição oral”. Brenman, que conta histórias há 17 anos, diz que, quanto mais as imagens dominam os momentos de interação social da atualidade, com mais encanto as pessoas – crianças e adultos – encaram as narrativas. É por isso que o número de contadores aumenta nas cidades grandes. “O legal é que numa sociedade doida como a nossa as pessoas querem ouvir histórias.” Para Santos, no entanto, esse recente sucesso não significa uma mudança na reação das pessoas às narrativas: “É uma necessidade que vai para além da moda e nos complementa como seres racionais e emocionais”. Barros vê com otimismo a presença da oralidade no século XXI e afirma que a melhor forma de preservá-la é não enclausurá-la no passado: “Rappers, repentistas, adolescentes na porta de shoppings, idosos jogando dama nas ruas fechadas da cidade, vendedores ambulantes, artistas de rua, todos eles revelam a atualidade de nossa oralidade”.


Registrar para não perder Deve a fala virar palavra escrita? A riqueza inventiva das narrativas, combinada com sua importância para a sustentação de minorias étnicas, conduz a questionamentos relacionados à possibilidade de se registrar esse tipo de manifestação cultural. Mas será mesmo possível registrar a oralidade? Santos acredita que não, porque é impossível passar para o papel e mesmo para o vídeo todos os elementos que constituem a experiência oral. “Perdemos o encantamento da fala, o fascínio que a oralidade produz”, opina. Apesar de escrever livros com seus contos, Brenman concorda que a expressão oral é bem diferente da escrita, em parte porque a leitura é um ato solitário e a contação é, geralmente, feita em grupo. “Uma coisa fundamental é o encontro. Quando você conta histórias, pára o seu tempo para compartilhar.” Betty, apesar de concordar com a impossibilidade de se registrar concretamente a oralidade, alerta sobre o perigo de as narrativas das minorias se perderem: “É muito fácil destruir o que esses povos têm”. Registrar, portanto, seria uma forma de impedir que a cultura de massa e os costumes urbanos aniquilem as características tão ricas e tão frágeis dessas comunidades. “Você pode passá-las à outra geração que não teve acesso”, argumenta a antropóloga.

O ideal seria, portanto, que os membros de determinada cultura pudessem continuar praticando seus costumes: “A tradição oral é uma forma própria de expressão, que nós temos de procurar preservar como patrimônio imaterial”, ressalva Betty. Criar um ambiente propício para a transmissão desse conhecimento seria o caminho. “Dar as condições aos pajés e aos narradores de contar de forma tradicional, de ser a narrativa falada, em grupo, ao redor de uma árvore, em torno do fogo, de ser a essência daquele povo”, completa.

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Nos quintais do Recôncavo

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Obra-prima da humanidade, samba-de-roda é arte de senhores, seus filhos, seus netos... “Eu trabalho o ano inteiro Na estiva de São Paulo Só pra passar fevereiro em Santo Amaro Só pra passar fevereiro em Santo Amaro” [Tarasca Guidon, Waly Salomão]

Por Marco Aurélio Fiochi Nos meses de janeiro e fevereiro, o Recôncavo Baiano, faixa de terra em que as águas da Baía de Todos os Santos avançam dando ao mapa do estado um formato côncavo, é um dos pontos mais efervescentes da cultura popular brasileira. O período de festas é comparável em tamanho e importância ao de São João, há vários anos estabelecido como principal data nordestina. Nas cidades que compõem a região, não só a famosíssima Santo Amaro da Purificação, mas também as irmãs Cachoeira e São Félix (ligadas por uma centenária ponte de madeira e ferro que agüenta firme o vaivém de seus moradores nessas celebrações), São Braz e São Francisco do Conde, as festas religiosas, como a do Senhor de Santo Amaro, em janeiro, e a da Senhora da Purificação, em fevereiro, são motivo para comemorações que se estendem por dias. É samba para todo lado nos quintais das casas coloniais, nos terreiros de candomblé, nas escadarias e praças que circundam igrejas católicas. Mais do que um ritmo ou coreografia, o samba-de-roda é um ritual comunitário, um acontecimento social que reúne em longas sessões, regadas a fartos banquetes, senhores e senhoras, seus filhos, seus netos. Diferentemente da forma de dançar o samba em outras partes do país, como o samba carioca, marcado por movimentação corporal mais frenética, o sambade-roda se dança em modo “miudinho”, com o tronco quase imóvel, os movimentos dos membros inferiores e do quadril curtos, enquanto os pés compassadamente vão desenhando círculos em torno da roda de sambistas. “Dona da casa me dá licença/Me dê seu salão para vadiar” [Dona da Casa, domínio público, adaptação J. Velloso/Paulinho Daflin] Os instrumentos são de percussão, como atabaque e pandeiro, mas também há as cordas, entre elas a viola portuguesa, ou viola-de-machete. Em algumas variações são usados como instrumento ainda o prato e a faca, tocados com maestria por sambistas como Dona Edith do Prato. Palmas acompanham toda a sessão. A melodia em geral é alegre, e as letras das canções são em parte auto-referentes ao ter como tema principal o samba e o contexto urbano em que se realiza. Louvações a santos e à natureza também povoam um repertório tradicional e em geral adaptado pelos diversos grupos.

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O inventário do Iphan para a patrimonialização dessa expressão artística dá como data inaugural do samba-de-roda o ano de 1860, o que o vincula necessariamente à etapa final da escravidão no país. Arte de senzala, portanto, ele estava intimamente ligado às línguas e aos cultos africanos e também à capoeira. Reza a lenda que, nesses tempos, toda festa de santo invariavelmente terminava em samba. Mas, como outros aspectos da cultura brasileira, o samba do Recôncavo sofreu a influência da miscigenação. Um exemplo é o prato e a faca usados como percussão – objetos da cultura burguesa européia, eles ganharam outro significado ao cair no samba. A língua portuguesa, com sua poética e melodia da fala, se faz presente nas letras e na dolência do canto. São inúmeros os grupos que levam o samba-de-roda, alguns deles com ressonância além do traçado da Bahia, como o Samba de Roda Suerdieck, de Cachoeira, que tem à frente dona Dalva Damiana de Freitas, exfuncionária da fábrica de charutos homônima localizada em São Félix (além das festas, o samba-de-roda costumava ser a companhia de ofícios pesados como o das charuteiras e dos lavradores da cana-de-açúcar que fizeram a riqueza da região). Outros exemplos são o Samba Chula de São Braz e o Vozes da Purificação, que congregam senhores e senhoras em geral aposentados do serviço público ou da educação, os quais têm no samba atualmente uma de suas principais interações com a cultura.

Compositores como Roberto Mendes, Jota Velloso e Jorge Portugal têm se encarregado de trazer elementos dessa sonoridade tradicional para o contexto contemporâneo, além de atuar como produtores musicais de alguns dos grupos citados. Nesse cenário, a cantora Maria Bethânia, desde que iniciou fase independente das exigências de grandes gravadoras, abre cada vez mais espaço em seu repertório para os sambas de sua terra. “Quanto mais a gente ensina/Mais aprende o que ensinou/Ê ah, ê ô/Ê ah, ê ô” [Filosofia Pura, Roberto Mendes/Jorge Portugal] O título de Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, concedido pela Unesco em 2005, veio um ano depois de o samba-de-roda ter se tornado patrimônio imaterial brasileiro, por meio do Iphan. Nesse meio tempo, boa parte do repertório do Recôncavo foi registrada no CD-catálogo Samba de Roda – Patrimônio da Humanidade. Organizado e produzido por associações de sambadores, o material revela que a preservação dessa arte no cenário contemporâneo passa necessariamente pelo associativismo. Em texto do etnomusicólogo Carlos Sandroni para a publicação, é dado o devido crédito ao samba-de-roda como matriz de várias outras modalidades de samba, mais diretamente o carioca. E foi justamente esse samba pioneiro, até mesmo na hora de se tornar patrimônio, que abriu o caminho para que outras modalidades do ritmo passassem a ostentar o título, caso do carioca, certificado em 2007, e do samba rural paulista, que se prepara para a avaliação do Iphan.

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imagem: Cia de Foto


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itaú cultural avenida paulista 149 são paulo sp [estação brigadeiro do metrô] fone 11 2168 1700 atendimento@itaucultural.org.br www.itaucultural.org.br


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