OBSERVATÓRIO
ITAÚ CULTURAL
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NÚMERO
Convenção da diversidade cultural
Mapeamento de pesquisas sobre o setor cultural
REVISTA
OBSERVATÓRIO
ITAÚ CULTURAL
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Nós Todos, Paulo Queiroz, 2003 acrílica sobre tela 139,6 X 140 cm
Integra o acervo do Banco Itaú reprodução fotográfica: Sergio Guerini/Itaú Cultural
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REVISTA
OBSERVATÓRIO
n. 02
ITAÚ CULTURAL
2007
SUMÁRIO .6
AOS LEITORES Apresentação dos temas da revista
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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL DÁ CONTINUIDADE AO MAPEAMENTO DE PESQUISAS SOBRE O SETOR CULTURAL Entrevista com as pesquisadoras Liliana Silva e Lúcia de Oliveira
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PESQUISADORAS DO OBSERVATÓRIO COMENTAM ESTUDO DO IBGE SOBRE O SETOR CULTURAL Trechos de quatro trabalhos exploratórios elaborados por Liliana Silva e Lúcia de Oliveira com base na pesquisa Sistema de Informações e Indicadores Culturais, do IBGE
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PROGRAMA RUMOS COMPLETA DEZ ANOS DE ATIVIDADE Entrevista com Claudiney Ferreira e Edson Natale, gerentes de núcleo do Itaú Cultural
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CULTURA E ECONOMIA – PROBLEMAS, HIPÓTESES, PISTAS, DO SOCIÓLOGO FRANCÊS PAUL TOLILA, INAUGURA A SÉRIE DE LIVROS DO OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL Lançamento do primeiro título do Observatório Itaú Cultural (co-edição Iluminuras) apresenta visão contemporânea das relações entre cultura e economia
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CULTURA, DESENVOLVIMENTO E POLÍTICA Gerardo Caetano
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ECONOMIA DA CULTURA E DESENVOLVIMENTO – PANORAMA GERAL E SUGESTÃO DE DEBATES PARA NÃO-ECONOMISTAS Ana Carla Fonseca Reis
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OBSERVATÓRIO DA CULTURA: ENTRE O ÓBVIO E O URGENTE José Márcio Barros
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O DESENVOLVIMENTO DE PESQUISAS NO CAMPO DAS POLÍTICAS CULTURAIS
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GESTÃO CULTURAL: DESAFIOS DE UM NOVO CAMPO PROFISSIONAL
Isaura Botelho
Maria Helena Cunha
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CONVENÇÃO SOBRE A PROTEÇÃO E A PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE DAS EXPRESSÕES CULTURAIS Adotada pela 33ª reunião da Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em 2005, esta Convenção tem, entre outros objetivos, o de promover a diversidade das manifestações culturais e criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente .3
Revista Observatório Itaú Cultural Editor Mário Mazzilli Editora-Assistente Rosane Pavam Projeto Gráfico Yoshiharu Arakaki Revisão de Textos Kiel Pimenta Colaboradores desta edição Ana Carla Fonseca Gerardo Caetano Isaura Botelho José Márcio Barros Liliana Sousa e Silva Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira Maria Helena Cunha [Esta revista foi organizada e diagramada pela equipe do Instituto Itaú Cultural]
Revista Observatório Itaú Cultural / OIC - n. 2, (mai./ago. 2007). – São Paulo, SP : Itaú Cultural, 2007. Quadrimestral ISSN 1981-125X 1. Política cultural. 2. Gestão cultural. 3. Economia da cultura. 4. Consumo cultural. 5. Instituições culturais. I. Observatório Itaú Cultural. CDD: 353.7
observatorio@itaucultural.org.br .4
imagem: cia de foto
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imagem: Cia de Foto
Aos leitores Este segundo número da Revista Observatório Itaú Cultural abre com duas matérias que apresentam os resultados iniciais do mapeamento das pesquisas existentes sobre o setor cultural no Brasil, feito pela equipe de pesquisa do Observatório Itaú Cultural. Sob orientação do professor Teixeira Coelho, da Universidade de São Paulo, as pesquisadoras Liliana Sousa e Silva e Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira iniciaram em abril de 2007 um processo sistemático de identificação, catalogação e interpretação das pesquisas hoje disponíveis. Como se verá pela leitura das matérias, as pesquisadoras encontraram grande dispersão das fontes, algumas dificuldades de acesso aos textos integrais e certa falta de transparência nas metodologias que orientaram muitas das pesquisas, além da falta de estudos capazes de permitir a construção de séries .6
históricas de dados. Do conjunto de cerca de 30 pesquisas identificadas inicialmente, a que mereceu uma avaliação mais detalhada foi a publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no fim de 2006: o Sistema de Informações e Indicadores Culturais. A avaliação inicial da equipe de pesquisa do Observatório resultou em quatro análises exploratórias do estudo pioneiro do IBGE, cujos principais trechos são aqui publicados. Por seu ineditismo e relevância, a iniciativa do IBGE teve uma acolhida generosa por parte dos pesquisadores ligados ao setor cultural. No entanto, até o fechamento desta edição não eram conhecidas reflexões mais sistemáticas sobre o estudo, situação que o Observatório Itaú Cultural começa a reverter.
Muito em breve estarão disponíveis para consulta no site do Observatório (www. itaucultural.org.br/observatorio) os quatro textos completos, as fichas do levantamento de fontes de dados sobre cultura e a íntegra das cerca de 30 pesquisas até agora selecionadas. Dessa forma, o Observatório cumpre sua missão de organizar e difundir as pesquisas e as informações relevantes sobre o setor cultural brasileiro, bem como refletir sobre elas. Esta revista começou a circular quando se encerrava a primeira etapa do programa Rumos Pesquisa: Gestão Cultural, tema de nossa terceira matéria. Criado em março de 2007 pelo Observatório com o objetivo de identificar os pesquisadores e sua produção acadêmica nas áreas de gestão cultural, políticas públicas e economia da cultura, o programa recebeu mais de 400 inscrições de pesquisadores vinculados a universidades públicas e privadas de praticamente todas as regiões do Brasil. Os projetos inscritos serão agora avaliados por uma comissão, mas o grande número de inscrições e sua dispersão geográfica permitem comemorar a emergência de uma sólida investigação científica no campo da cultura e de suas políticas. Essa iniciativa do Observatório se beneficia da experiência de um dos programas mais duradouros do Itaú Cultural, o Rumos. Desenvolvido pelo Instituto há dez anos, já atingiu cerca de 1,8 milhão de cidadãos, por meio de 670 projetos em áreas como artes visuais, literatura, cibernética, música e arte-educação, entre outras. Além de apresentar o Rumos Pesquisa: Gestão Cultural, a matéria traz informações sobre os outros programas do Rumos que lançaram editais em 2007: literatura e música.
A última matéria da primeira parte da revista trata do lançamento no Brasil do livro Cultura e Economia, de Paul Tolila, pesquisador e professor da Universidade de Avignon, na França. Numa co-edição do Observatório Itaú Cultural com a Editora Iluminuras, o livro apresenta uma reflexão sólida sobre as interações entre a cultura e a economia, vazada em um texto claro e esclarecedor. Paul Tolila é consultor do Observatório e um dos principais especialistas mundiais em gestão cultural e políticas públicas de cultura. Esteve novamente em São Paulo no último mês de junho para o lançamento do livro e reuniões de trabalho com a equipe do Observatório, quando ajudou a definir as linhas de atuação para os próximos três anos. Primeiro título do catálogo de livros do Observatório, Cultura e Economia está à venda nas principais livrarias do Brasil, com distribuição sob responsabilidade da Editora Iluminuras. Instituições, centros de pesquisa, bibliotecas universitárias e programas de pós-graduação de todo o Brasil receberão exemplares gratuitamente, dentro da política de difusão pública dos conteúdos gerados pelo Observatório Itaú Cultural. A segunda parte da revista, dedicada a publicar artigos e ensaios de colaboradores brasileiros e estrangeiros, traz um trabalho de Gerardo Caetano, cientista político da Universidade da República do Uruguai. Apresentado no 1º Seminário Internacional promovido pelo Observatório Itaú Cultural em 2006, o artigo de Caetano se detém nas relações entre cultura, desenvolvimento e política. Faz, ainda, um apelo veemente para a superação de certo provincianismo que ainda limita a formulação de muitas das políticas para a cultura nos países da América do Sul.
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Além do artigo de Gerardo Caetano, a revista conta com as colaborações das pesquisadoras brasileiras, Maria Helena Cunha, Isaura Botelho e Ana Carla Fonseca, e de José Márcio Barros, coordenador do Observatório da Diversidade Cultural da PUC Minas e professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade. Os artigos das pesquisadoras foram apresentados originalmente nos seminários regionais promovidos pelo Observatório Itaú Cultural e seus parceiros, durante o primeiro semestre de 2007. O texto do professor José Márcio Barros, por sua vez, integrou o 2º Seminário Internacional do Observatório, realizado no fim de 2006. Com a publicação desses textos, a revista pretende multiplicar o debate que eles promoveram nas audiências dos seminários de São Paulo, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Recife.
imagem: Cia de Foto
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Finalmente, a exemplo do que aconteceu no primeiro número da revista, é publicado mais um documento, que, embora público, nem sempre tem seu acesso facilitado: a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da Unesco, assinada em outubro de 2005 em Paris e da qual o Brasil é um dos países signatários. Ao encerrar esta apresentação, cumpre registrar nossa satisfação com a recepção alcançada pelo primeiro número da revista. Esse resultado nos estimula a continuar no rumo traçado para esta publicação e, ao mesmo tempo, nos adverte para a responsabilidade de satisfazer às expectativas legítimas de nossos leitores de continuar a receber idéias, reflexões e informações de qualidade sobre o campo cultural.
Observatório Itaú Cultural DÁ CONTINUIDADE AO mapeamento dE pesquisas sobre o setor cultural Levantamento é o primeiro trabalho da área de pesquisa do Observatório O Observatório Itaú Cultural foi idealizado com o objetivo de se constituir como um espaço orgânico de pesquisa e reflexão sobre os fenômenos da cultura e com a vocação de contribuir para a formulação de políticas públicas culturais plurais. Para cumprir parte de seu objetivo, iniciou em abril último um processo sistemático de mapeamento das pesquisas existentes no Brasil sobre o setor cultural. O trabalho ficou a cargo de Liliana Sousa e Silva e Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira, ambas doutoras em cultura e informação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Sob orientação do professor Teixeira Coelho, da mesma universidade, as duas pesquisadoras darão continuidade ao diagnóstico das principais fontes de dados, informações e eventuais indicadores culturais disponíveis. .9
O levantamento pretende mapear todas as pesquisas existentes no Brasil que forneçam dados sobre cultura, desde as mais setoriais e focalizadas, como as realizadas pela Câmara Brasileira do Livro, até aquelas mais abrangentes, como a pesquisa Sistema de Informações e Indicadores Culturais, lançada no fim do ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para Liliana Silva, essa espécie de “mapa de fontes“ do setor cultural não é um levantamento bibliográfico típico, mas ainda assim se aproxima do modelo acadêmico utilizado para iniciar a abordagem de uma nova problemática. O mapeamento pretende identificar os estudos já elaborados ou em fase de elaboração, de modo que evite duplicações de esforços por parte de futuras pesquisas do Observatório. Além de conhecer as pesquisas de qualidade, que poderão subsidiar reflexões e análises do Observatório, o mapa de fontes permitirá identificar as faltas e omissões a ser eventualmente supridas por pesquisas próprias ou em associação com outras instituições de pesquisa. Reconhecer a competência das boas instituições de pesquisa e incorporar os resultados de suas investigações é um princípio declarado pelo Observatório desde o início de suas atividades. Evitar duplicidades e estimular novas investigações é, simultaneamente, uma forma de admitir que o campo cultural não é um terreno totalmente inexplorado pela pesquisa e de colaborar para a construção de uma sólida tradição de investigação.
Principais resultados A pesquisa de fontes elaborada por Liliana Sousa e Silva e Lúcia de Oliveira ainda está em sua etapa inicial. No entanto, algumas indicações já podem ser adiantadas. Foram examinadas cerca de 30 pesquisas, com objetivos, metodologias, âmbitos e períodos de investigação muito diferentes entre si. As mais antigas datam do início dos anos 1990 e a mais recente foi publicada no início de 2007, o Guia Sesi de Investimentos Culturais. Para todas as pesquisas levantadas foram elaboradas fichas de coleta que vão compor, com os textos originais, um banco de dados que ficará disponível aos pesquisadores no site do Itaú Cultural e no Centro de Documentação e Referência do Instituto, em São Paulo. Lúcia de Oliveira afirma que o acesso a esses estudos nem sempre foi fácil, seja pela dispersão das fontes, seja pela natureza das diversas instituições que os realizaram. Portanto, torná-los disponíveis em um só lugar, acompanhados de uma sistematização inicial das informações, já pode ser considerado um avanço em relação à situação anterior e certamente facilitará o acesso de outros pesquisadores, contribuindo também para ampliar a difusão desses estudos. Uma leitura inicial do mapa de fontes elaborado por Liliana Silva e Lúcia de Oliveira permite algumas classificações: • de acordo com a abrangência geográfica: nacional, regional, estadual ou municipal; • por setores da cultura, ou seja, pelas linguagens artísticas abrangidas; • pelo tipo de cobertura: censo, amostra ou cadastro. Além disso, com o levantamento foi possível elaborar uma listagem de instituições produtoras de dados e análises da cultura, muito útil para o conhecimento sobre quem produz dados, estatísticas e indicadores culturais no Brasil. Instituições tradicionais do setor público como o IBGE, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a Fundação Seade, de São Paulo, aparecem ao lado de organismos privados como o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
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Liliana Sousa e Silva é graduada em ciências sociais pela USP, mestre em ciências da comunicação e doutora em cultura e informação pela ECA-USP. imagem: Cia de Foto
(Ibope) e o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), reunião de organizações privadas que financiam ou executam projetos sociais, ambientais e culturais de interesse público. Também foram identificadas instituições do campo acadêmico como o Instituto Gênesis, da PUC/RJ, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o Centro de Estudos da Metrópole (CEM), entre outras. Porém, a classificação mais interessante talvez seja aquela que procurou agregar os estudos por grandes eixos temáticos: economia da cultura, oferta e consumo cultural, gestão pública da cultura, financiamento, infraestrutura, público e práticas culturais. Desse modo, as duas pesquisadoras do Observatório puderam arrolar 11 estudos sobre infraestrutura do setor cultural, com pesquisas sobre equipamentos culturais nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia; seis pesquisas sobre gastos da administração pública; quatro sobre investimentos culturais privados; sete sobre a oferta de bens culturais e serviços, e assim por diante. A classificação por eixos temáticos indica a ampliação do campo tradicional de interesse dos investigadores, que deixa de se limitar aos aspectos ditos internos dos fenômenos culturais, apontando para a crescente preocupação em introduzir elementos quantitativos de avaliação das atividades e dos agentes culturais, inclusive na produção de valor econômico.
O crescimento do interesse em conhecer os fenômenos do campo da cultura, expresso pela multiplicidade das instituições de pesquisa, pela diversidade dos temas, pela diferente natureza dos estudos e por sua cobertura geográfica diferenciada, certamente deve ser comemorado. Indica o reconhecimento da cultura como instância central das sociedades contemporâneas e, portanto, como um campo legítimo em que a investigação deve ser estimulada. Por outro lado, a análise concreta das pesquisas demonstra que estamos ainda nos estágios iniciais de criação do conhecimento especializado e que ainda há muito que fazer nesse campo. Para Liliana Silva e Lúcia de Oliveira, em que pese a alta qualidade de alguns dos estudos, existem algumas limitações quanto ao seu uso mais generalizado e, em especial, quanto à sua capacidade de comparação com outras pesquisas brasileiras e internacionais. Em muitas das pesquisas, por exemplo, não há clareza sobre as opções metodológicas, e isso dificulta tanto a adoção de uma metodologia comum quanto a comparação entre os resultados de diferentes estudos. Além da falta de transparência metodológica, outro problema é a inexistência de séries históricas de dados. Praticamente todas as pesquisas foram realizadas apenas uma vez, produzindo um retrato localizado no .11
tempo e não uma evolução temporal da problemática estudada, o que permitiria análises comparativas. Para o professor Teixeira Coelho, essa limitação deve ser claramente realçada, sobretudo para que novos estudos possam superá-la. A possibilidade de comparação não deve ser entendida como um aspecto marginal das pesquisas, mas, sim, como sua característica central, principalmente para aquelas que vão subsidiar a atuação do Observatório no campo das políticas públicas de cultura: “a política pública cultural ou é comparada ou não será uma política pública efetiva”. O trabalho pioneiro do IBGE Com o lançamento do Sistema de Informações e Indicadores Culturais, o IBGE promete começar a superar a falta de informações quantitativas sobre o setor e, principalmente, construir séries históricas de dados. O estudo, lançado em novembro de 2006 com dados referentes ao ano de 2003, sistematiza informações relacionadas ao setor cultural do Brasil com base em estatísticas sobre a produção de bens e serviços, os gastos das famílias e do governo, além das características da mão-de-obra ocupada no setor. O sistema foi constituído com base em sete bancos de dados regularmente produzidos pelo IBGE: o Cadastro Central de Empresas, a Pesquisa Industrial Anual – Empresa, a Pesquisa Anual de Comércio, a Pesquisa Anual de Serviços, a Pesquisa de Orçamentos Familiares, as Estatísticas Econômicas das Administrações Públicas e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Realizada a pedido do Ministério da Cultura, a pesquisa é o mais abrangente estudo já produzido sobre o setor no Brasil e deve se tornar uma fonte de referência para outras pesquisas, inclusive aquelas a ser realizadas pelo Observatório Itaú Cultural. Pela relevância, abrangência e intenção de atualização periódica da pesquisa, foi sobre ela que as pesquisadoras do Observatório decidiram se debruçar mais atentamente em primeiro lugar. .12
Foram produzidos quatro breves estudos exploratórios, que serão publicados no site do Observatório Itaú Cultural. Como seria natural em um primeiro estudo tão abrangente, surgiram dúvidas e lacunas quanto às opções conceituais e metodológicas definidas pelo IBGE. No entanto, ficou evidenciada a indiscutível relevância do estudo para a ampliação do conhecimento sobre o setor cultural. Em primeiro lugar, reconhecem Liliana Silva e Lúcia de Oliveira, “o estudo do IBGE organiza e sistematiza as informações existentes nas pesquisas correntes produzidas pela instituição, selecionadas a fim de delimitar o setor cultural. Portanto, as estatísticas não foram produzidas diretamente para a criação de dados e indicadores culturais e sim pinçadas das pesquisas já existentes. Como decorrência, atividades indiretamente relacionadas ao setor cultural ou passíveis de questionamento quanto à sua inclusão na esfera da cultura inflam as estatísticas culturais com eixos tangenciais”. Continuando em sua avaliação geral do estudo, as pesquisadoras do Observatório Itaú Cultural ressaltam que “a definição de cultura adotada no estudo do IBGE está relacionada com as atividades econômicas geradoras de bens e serviços e com a mensuração dos produtos ofertados e consumidos. Tal viés econômico limita a ampla esfera da cultura e deixa de contemplar questões tais como a prática cultural dos indivíduos, de que forma se apropriam da cultura, como utilizam os equipamentos culturais, qual a relação entre capital cultural e consumo cultural, a pluralidade da cultura, entre outras”. Por outro lado, a falta de séries históricas que possibilitariam a análise comparativa e a compreensão da evolução do setor poderá começar a ser suprida com a atualização dessa pesquisa, que, aliás, é uma promessa do IBGE para outubro deste ano. Até lá, também já deverá ter sido publicado um suplemento com informações sobre cultura nos municípios brasileiros, que se somará ao esforço pioneiro do IBGE.
pesquisaDORAS DO OBSERVATÓRIO COMENTAM ESTUDO DO IBGE sobre o setor cultural Reflexão #2, Raquel Kogan, 2005, reprodução fotográfica: Cia de Foto
Os textos apresentados nas páginas seguintes integram os primeiros estudos exploratórios realizados pelas pesquisadoras Liliana Silva e Lúcia de Oliveira, com base na pesquisa Sistema de Informações e Indicadores Culturais: 2003, do IBGE. Devem ser entendidos como reflexões iniciais sobre o grande volume de informações coligidas pioneiramente pelo IBGE, e pretendem contribuir, de maneira elevada, com a ampliação do debate e do conhecimento sobre o setor cultural brasileiro.
Gastos das famílias em cultura com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) procura mensurar as estruturas de consumo, dos gastos e dos rendimentos das famílias, e possibilita traçar um perfil das condições de vida da população brasileira com base na análise de seus orçamentos domésticos. Além disso, outros dados são levantados a fim de caracterizar a população brasileira em termos de classe de rendimento, raça ou cor, sexo e nível de escolaridade. Para fins da pesquisa, realizada por amostragem e por meio de entrevistas, nas quais são investigados os domicílios particulares permanentes, a unidade básica é denominada unidade de consumo, que compreende um único morador ou conjunto de moradores que compartilham a mesma fonte de alimentação ou as despesas com moradia. O .13
período de realização da pesquisa em campo foi de julho de 2002 a junho de 2003. A pesquisa informa que, no Brasil, há 48.534.638 famílias, cujo tamanho médio é de 3,6 pessoas (3,3 para as da faixa de menor renda e 3,69 para as da faixa de maior renda). Note-se que os dados não são detalhados sob uma perspectiva espacial, ou seja, são tratados nacionalmente.
Reflexão #2, Raquel Kogan, 2005, reprodução fotográfica: Sérgio Guerini/Itaú Cultural
No caso específico do setor cultural, a POF permite tanto identificar as estruturas de gastos no setor como levantar algumas características das despesas com bens e serviços culturais realizadas pelas famílias brasileiras. A telefonia é um item de peso relevante nos gastos das famílias e, por isso, as estatísticas são apresentadas em duas versões. Com a inclusão da telefonia, a cultura aparece em quarto lugar nas despesas familiares, abaixo apenas das despesas com habitação, alimentação e transporte. Em termos monetários, significa um gasto médio mensal de R$ 115,50, ou 7,9% dos gastos, para um total de gasto médio mensal por família de R$ 1.465,63. Com a exclusão dos gastos com telefonia, a cultura passa a ocupar a sexta posição nos gastos familiares, abaixo das despesas com assistência à saúde e vestuário, o que significa um dispêndio médio mensal de R$ 64,53, ou 4,4% dos gastos. O item cultura mantém a mesma posição quando se analisa a distribuição dos gastos das famílias por faixas de rendimento, com exceção apenas da última faixa (R$ 225,75), na qual supera as despesas com vestuário, ficando abaixo do grupo educação. Percebe-se, da mesma forma, que, quanto maior a renda, maior o porcentual gasto com o grupo cultura. Assim, as famílias da maior faixa de rendimento (mais de R$ 3.000,00) gastam 20 vezes mais com cultura do que aquelas da menor faixa (até R$ 400,00). Dentro do grupo cultura, o maior dispêndio das famílias é com telefonia, em todas as faixas de rendimentos (R$ 50,97). Em seguida, a aquisição de eletrodomésticos ligados à atividade cultural (R$ 17,25) e as atividades de cultura, lazer e festas (R$ 13,82) são os dois grupamentos de maior peso na composição dos gastos familiares. A inclusão do grupamento aquisição de eletrodomésticos ligados à atividade cultural – TV, DVD, videocassete – revela o peso significativo da cultura privada no Brasil. Com base nos dados levantados pela Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), publicada pelo IBGE em 2005, percebe-se que, depois das bibliotecas públicas, presentes em 85% dos municípios brasileiros, estão as videolocadoras, presentes em 77,5% dos municípios. Em contrapartida, as salas de cinema são encontradas em apenas 9,1% deles. As práticas domiciliares, portanto, têm papel relevante, como demonstram os dados. Outra informação importante extraída da Munic é o crescimento significativo dos provedores de internet,
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cuja presença nos municípios subiu de 16,4%, em 1999, para 46%, em 2005. Apesar disso, como revela a POF, os gastos com acesso à internet significam menos de 1% para as faixas de renda até R$ 1.000,00. Dado importante revelado pela pesquisa é o que relaciona nível de escolaridade da pessoa de referência e consumo cultural: o maior grau do primeiro determina o aumento do segundo. O maior peso da cultura ocorre, portanto, nas famílias com pessoa de referência de nível superior. A participação dos dispêndios culturais no dispêndio total das famílias é 36,8 vezes maior para as famílias cuja pessoa de referência tem mais de 11 anos de estudo. Em termos monetários, isso significa uma despesa de R$ 33,67 para aqueles sem instrução, e de R$ 391,65 para os com ensino superior. Para famílias com mais de uma pessoa com nível superior, os gastos sobem para R$ 469,81. O detalhamento dos dados por grupamentos revela que, levandose em conta o nível de escolaridade, os de nível superior gastam significativamente mais com itens como jornal, assinatura de periódicos e outras revistas, cinema e aquisição de equipamentos ligados à informática, embora menos com cursos de informática, em que o gasto maior é feito pelos sem instrução1. Por outro lado, não há diferenças significativas nos gastos quando a perspectiva é o gênero: a despesa média mensal para as famílias cuja pessoa de referência é do sexo masculino foi de R$ 117,12 ante R$ 110,96, quando do sexo feminino. O detalhamento das despesas revela que os homens gastam mais do que as mulheres com a aquisição de eletrodomésticos, brinquedos e jogos, festas, instrumentos e acessórios musicais, enquanto as mulheres gastam mais do que os homens com acesso à internet, cinema, teatro e show, boate, danceteria e discoteca, e telefonia.
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A clássica pesquisa de Pierre Bourdieu e Alain Darbel, realizada na década de 1960, já apontava que as relações entre a freqüência a museus e as variáveis sobre públicos – categoria socioprofissional, idade ou local de moradia – reduziam-se quase totalmente à relação entre nível de instrução e freqüência. BOURDIEU, P; DARBEL, A. L’Amour de l’art: les musées d’art européens et leur public. 2. ed. rev. e ampl. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969.
Os gastos culturais das famílias variam segundo certas características socioeconômicas e são determinados por um forte conteúdo simbólico. A pesquisa do IBGE permite uma pequena inserção nesse universo, mas necessita ser adensada com dados mais diretamente relacionados ao setor cultural para que possa, efetivamente, revelar os gastos com cultura das famílias brasileiras.
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Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira é graduada em história pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em cultura e informação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). imagem: Cia de Foto
Atividades econômicas relacionadas ao setor cultural: indústria, comércio e serviços As informações apresentadas no estudo do IBGE permitem redimensionar o setor cultural com base em sua significativa capacidade de geração de empregos e renda. O IBGE utilizou como fonte dos dados estatísticos as informações contidas nas Estatísticas do Cadastro Central de Empresas e nas pesquisas estruturais econômicas: Pesquisa Industrial Anual – Empresa (PIAEmpresa), Pesquisa Anual de Comércio (PAC), Pesquisa Anual de Serviços (PAS). Para fins estatísticos, as atividades econômicas são classificadas de acordo com a identificação de segmentos homogêneos quanto à similaridade de processos de produção, às características dos bens e serviços produzidos, e à sua finalidade. Procurou-se analisar a participação das atividades culturais com base nas variáveis: pessoal ocupado, número de empresas, receita, custos, valor adicionado, valor bruto da produção, custo das operações industriais, consumo intermediário e valor da transformação industrial. Também foram comparados os indicadores das atividades culturais com outras atividades, em termos de salário médio, custo do trabalho, margem de comercialização e taxa de investimento. .16
A análise do setor cultural, baseada nos meios estatísticos disponíveis, não permite uma avaliação detalhada do setor e apresenta outros problemas, como a dificuldade de isolar atividades estritamente culturais que se encontram agregadas a outras atividades. A tentativa de criação de um tronco de áreas consideradas como culturais, com base nas estatísticas já existentes, não é inteiramente realizável, apresentando deficiências na criação de indicadores capazes de descrever de maneira satisfatória a realidade cultural. A questão que se poderia colocar, desde já, é a necessidade de conceituação do que seja cultura, quais áreas a compõem e o que se poderia considerar como uma atividade cultural. Esses pontos não estão explicitados no estudo e, como os dados são retirados de diferentes pesquisas, em que foram empregadas metodologias diversas, nem sempre as informações apresentam uma coerência tal que permita uma aferição das estratégias e conceitos que embasam o estudo. Outra questão a ser levantada é a informalidade, característica importante do setor cultural, a qual impõe limites à pesquisa, que trabalha com empresas formalmente constituídas. Para efeitos metodológicos, conforme explicitado no estudo, atividade econômica cultural é definida como aquela realizada por empresas que produzem pelo menos um produto relacionado à cultura. Dessa forma, a Classificação Nacional de Atividades
Econômicas (Cnae) foi o instrumento-chave para classificar e delimitar as atividades econômicas culturais de natureza industrial, comercial e de serviços. Tal classificação assegura a coerência das informações ao longo do tempo, no espaço territorial, entre fontes diversas, e permite a comparabilidade internacional, uma vez que adota como referência a International Standard Industrial Classification (Isic), Revisão 3, das Nações Unidas, equivalente em espanhol à Clasificación Industrial Internacional Uniforme (CIU). O campo das atividades responsáveis pela produção de bens e serviços culturais foi delimitado excluindo-se aquelas atividades estritamente ligadas a turismo, esporte, meio ambiente e religião. As atividades diretamente ligadas à cultura e às artes, tais como edição de livros, rádio, televisão, teatro, música, bibliotecas, arquivos, museus e patrimônio histórico, compõem o campo propriamente cultural. Outro campo é composto de atividades indiretamente relacionadas à cultura, ou seja, as que agregam em uma mesma classificação aquelas consideradas culturais e outras não necessária ou exclusivamente ligadas ao setor, como, por exemplo, comércio atacadista de artigos de escritório e de papelaria; livros, jornais e outras publicações, em que livros, jornais, revistas, periódicos etc. foram classificados como culturais, enquanto artefatos de papel, de papelão, artigos de escritório, de papelaria, escolares, cadernos, etiquetas de papel etc. foram classificados como indiretamente relacionados à cultura. As informações do estudo do IBGE revelam dados sobre o número de empresas relacionadas ao setor cultural, ressaltando que, em 2003, havia um total de 5.185.573 empresas no Brasil, das quais 269.074 representavam o setor cultural, ou seja, 5,2% das empresas brasileiras, que ocupavam 1.431.449 pessoas, 4% do pessoal total ocupado no país. Pessoal ocupado Número de empresas do setor cultural
269.074
100%
1.431.449
Número de empresas relacionadas às atividades industriais culturais
39.645 14,7%
326.726
Número de empresas relacionadas às atividades comerciais culturais
71.253 26,5%
211.066
Número de empresas relacionadas às atividades de serviços culturais
158.176
58,8%
893.657
No setor de comércio, as atividades de comércio varejista de livros, jornais e revistas foram as que mais constituíram empresas, com um montante de 60.473 e 165.910 pessoas ocupadas, seguidas pelo aluguel de objetos pessoais e domésticos, representado por 13.835 empresas, ocupando 35.993 pessoas. As atividades de serviços culturais foram as que tiveram maior participação no setor cultural, representando 158.176 empresas. Cabe ressaltar que o Cadastro Central de Empresas (Cempre) considera uma gama bastante heterogênea de serviços, agregando empresas tais como publicidade, fotografia, atividades cinematográficas e de vídeo, rádio e televisão, bibliotecas, arquivos, museus, empresas ligadas ao lazer e à diversão, além de atividades .17
de pesquisa e desenvolvimento, de educação profissional e de serviços prestados pelas empresas de telecomunicação e de informática, entre outras. Nesse setor, as empresas mais significativas em termos numéricos foram aquelas classificadas como Publicidade e Atividades Fotográficas, com 33.019 empresas, ocupando 110.735 pessoas, seguidas pelas classificadas como Educação Profissional e Outras Atividades de Ensino, com 29.743 empresas e 241.764 pessoas ocupadas. As instituições que ofereceram curso de qualificação profissional, de treinamento e demais cursos, inclusive de balé, música, artes, idiomas, entre outras, representadas na classe Outras Atividades de Ensino, representaram 27.561 empresas e 134.969 pessoas ocupadas. A soma das atividades cinematográficas e de vídeo (10.073 empresas); das atividades de rádio (6.303 empresas) e televisão (1.343 empresas); de outras atividades artísticas e de espetáculos (19.334 empresas); das atividades de bibliotecas, arquivos, museus e outras atividades culturais (995 empresas), que poderia ser considerada o núcleo duro do setor cultural, ou seja, mais diretamente ligada às linguagens artísticas (embora rádio e televisão sejam pontos questionáveis quanto à sua inserção nessa classificação), representou um total de 38.048 empresas e 175.182 pessoas ocupadas. Dificuldade em criar indicadores para a cultura A análise dos quadros das atividades, com detalhamento de grupo e classe, com base nas seções da Cnae, demonstra a estratégia questionável do IBGE na composição dos itens que integram o setor cultural. Assim, atividades como fabricação de computadores, fabricação de aparelhos telefônicos, sistemas de intercomunicação e semelhantes, fabricação de artefatos para caça, pesca e esporte, só para nos determos em alguns desses itens, revela como os dados do setor cultural estão inflados com números que não se referem diretamente ao setor, ou que poderiam ser refutados como pertencentes ao setor.
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Ver SILVA, Liliana Sousa e. Indicadores para políticas culturais de proximidade: o caso Prêmio Cultura Viva. São Paulo: ECA/USP, 2007. [Tese de doutorado]
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Apesar da importância do estudo do IBGE como primeira tentativa de formulação de um sistema nacional relativo ao setor cultural, e a despeito de denominar-se Sistema de Informações e Indicadores Culturais, não chega à proposição de indicadores culturais, operando apenas como uma sistematização das informações passíveis de compor o setor cultural, dentro de critérios estipulados pelo IBGE. Indicadores são uma estatística processada com o objetivo de fornecer uma informação específica2. Originam-se de estatísticas e vão além. O estudo do IBGE não vai além da sistematização de informações. O que se percebe é a posição secundária reservada à cultura no Brasil, quer em termos de dotação orçamentária, quer em termos do conhecimento efetivo sobre o setor, extraindo-se as informações estatísticas do setor cultural baseada em pesquisas econômicas e sociais. A análise, baseada no critério da constituição jurídica das empresas, reforça
esse ponto e revela que a forma empresarial foi a mais expressiva para o setor cultural, representando 97,2% do total, destacandose o setor de serviços. Em seguida, vieram as entidades sem fins lucrativos, com participação no total de empresas da ordem de 2,7%. As organizações da administração pública tiveram participação inexpressiva no tocante ao número de empresas, 0,1%. O valor bruto da produção relacionada às atividades culturais gerado pelos três setores foi de, aproximadamente, R$ 141 bilhões em 2003. Subtraindo-se os custos com as operações industriais e com o consumo intermediário no comércio e serviços, tem-se um montante de R$ 66 bilhões que se referem ao valor da transformação industrial acrescido do valor adicionado do comércio e dos serviços. Dessa forma, no que se refere ao valor adicionado3, a análise do setor cultural pelo lado da oferta revelou que participa com 10,1%, incluindo as atividades de telecomunicações, e com 6%, excluindo-as (sendo que a representatividade em termos de número de empresas é da ordem de 5,2%). O setor de serviços representou 68,5% do valor adicionado do conjunto dos setores econômicos definidos como culturais. As atividades industriais culturais representaram 27,9% do valor adicionado, e as do comércio 3,5%, a menor participação no valor adicionado. A análise do estudo Sistema de Informações e Indicadores Culturais, de inquestionável importância pelo seu pioneirismo, revela a urgência da configuração de uma pesquisa específica sobre o setor cultural, de maneira que se criem indicadores realmente capazes de descrever a realidade multicultural brasileira. Indicadores coerentes e passíveis de comparações, não só dentro de séries temporais, como em relação a outras realidades. A formulação de uma estratégia específica para a sistematização de informações e a criação de indicadores relativos ao setor cultural permitirá a compreensão da cultura não só em sua relação com a economia, mas em relação a diferentes eixos, de forma que cartografe uma realidade intrinsecamente dinâmica e complexa, com o fornecimento de subsídios para a formulação de políticas públicas.
3
Conforme conceituado no glossário do estudo, valor adicionado é a diferença entre o valor bruto da produção e o consumo intermediário, que pode ser definido como o somatório das despesas operacionais, exceto impostos e taxas, despesas com arrendamento mercantil (no caso do comércio), despesas com mercadoria, material de consumo e de reposição, despesas com combustíveis e lubrificantes consumidos em veículos, geradores, empilhadeiras etc., despesas com matérias-primas para fabricação própria e o custo de programação das empresas de televisão por assinatura (no caso do setor de serviços). No caso da indústria, é o valor da transformação industrial.
Gastos públicos no setor cultural No que se refere às despesas consolidadas da administração pública nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal) no ano de 2003, o valor total de investimentos públicos no setor cultural chegou a aproximadamente R$ 2,3 bilhões. Porém, esse montante canalizado para a cultura representa apenas 0,2% do total da receita governamental, sendo que na esfera federal essa participação é de 0,03%, nos estados de 0,4% e nos municípios de 1%. Sob esse aspecto, é necessário levar em conta o fato de não existir nenhum porcentual obrigatório de gastos da receita governamental na área da cultura, tal como existe hoje em relação à saúde e à educação. Apesar da relevância desse dado .19
para uma análise voltada para as políticas culturais, o estudo do IBGE não explicita a fonte desses dados, ou seja, qual sua origem e de que forma esses porcentuais foram obtidos, além de não apresentar dados sobre o dispêndio público em outras áreas do governo, como educação e saúde, o que seria fundamental para o aprofundamento dessa perspectiva de análise. Quanto à distribuição do volume total de gastos entre as três esferas de governo, os dados apontam para um maior aporte de recursos públicos por parte dos municípios, sendo que sua participação ficou em 55%, ao passo que a dos estados corresponde a 32% e a da União a apenas 13% do total. Esses dados vêm reafirmar o papel essencial dos municípios na vida cultural, especialmente por se encontrarem em posição de proximidade à demanda cultural das populações, além de estarem mais sujeitos a pressões de artistas, produtores e consumidores de bens culturais. Além disso, cabe à municipalidade a gestão direta dos diversos equipamentos culturais. Com relação à desagregação dos gastos públicos no setor cultural por categoria econômica, os dados mostram que cerca de 86% dos recursos públicos para a cultura se destinam a despesas com pessoal e outras de custeio. As despesas de capital fixo ficam com 5% e as transferências com 8%. Por fim, as despesas financeiras correspondem a 0,05%, ocorrendo apenas no âmbito do governo federal. Na esfera federal, os dados indicam que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) foi o órgão que mais recebeu recursos, com o valor aproximado de R$ 102 milhões, uma vez que é responsável pelas despesas dos maiores museus federais (o Museu Imperial de Petrópolis, o Museu Nacional de Belas Artes e o Museu da República, no Rio de Janeiro, além do Museu da Inconfidência, em Minas Gerais). O Ministério da Cultura também possui participação elevada no total de gastos do governo federal, com cerca de R$ 91 milhões, pois se trata do órgão central, responsável pela coordenação e gestão de recursos do setor cultural federal. Em seguida vem a Fundação Nacional das Artes (R$ 30 milhões), a Biblioteca Nacional (R$ 28 milhões), a Agência Nacional de Cinema (R$ 19 milhões), a Fundação Casa de Rui Barbosa (13 milhões) e a Fundação Palmares (R$ 9,6 milhões). Na esfera estadual, do total de despesas com o setor cultural (cerca de R$ 746 milhões), São Paulo é o estado que tem a maior participação, com aproximadamente 28,2%, seguido por Bahia (10,6%), Rio de Janeiro (8,2%), Amazonas (6,1%), Rio Grande do Sul (5,3%) e Distrito Federal (5,3%), o que demonstra uma desigualdade na aplicação de recursos entre as Unidades da Federação. Porém, esses dados .20
precisam ser relacionados à população, para que se possa chegar a um número relativo que indique o dispêndio por habitante. Já na esfera municipal, os municípios de São Paulo são os que mais efetuaram dispêndios culturais em 2003, com aproximadamente 37,6% do total nacional. Os dados relativos aos dispêndios em cultura nas grandes regiões do país podem ser abordados de forma comparativa entre as esferas municipal e estadual, obtendo-se os seguintes dados: Regiões
Gastos municipais (%)
Gastos estaduais (%)
Sudeste
63,3
40,7
Nordeste
16,4
24,6
Sul
14,3
11,3
Norte
4,6
13,0
Centro-Oeste
1,4
10,4
A análise por grandes regiões, nessas duas esferas, aponta uma concentração de gastos na região Sudeste, que fica com 40,7% dos gastos estaduais e quase 64% dos gastos municipais. A distribuição entre as diversas regiões é mais atenuada na esfera estadual, enquanto os gastos municipais são bastante desiguais entre as diversas regiões. Aqui, novamente, apontamos a necessidade de que esses dados sejam relacionados à população de cada região, visando obter um índice de gastos por habitante.
Emprego cultural: ocupação e salário no setor Os dados do Cempre indicam que, em 2003, atuava na produção cultural brasileira um total de 269.074 empresas, responsáveis pela ocupação de 1.431.499 pessoas, das quais 1.007.158 eram trabalhadores assalariados. Esses números representam 5,2% do número total de empresas cadastradas e 4% do total do pessoal ocupado, sendo 3,5% do pessoal assalariado. Mas é preciso ter certo cuidado com relação a esses números, considerando que não foram incluídas as pessoas ocupadas que estão fora do mercado formal de trabalho. Além disso, as atividades relacionadas direta ou indiretamente à cultura nem sempre podem ser associadas exclusivamente ao setor cultural.
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Com relação aos três segmentos abrangidos pelo estudo (indústria, comércio e serviços), os dados relativos a 2003 indicavam os seguintes porcentuais em relação ao pessoal ocupado, total e assalariado, no setor cultural: Distribuição entre os três segmentos
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Total
Assalariado
Atividades industriais culturais
22,8
26,2
Atividades comerciais culturais
14,7
11,3
Atividades de serviços culturais
62,4
62,5
O Departamento de Estudos, Perspectiva e Estatísticas (Deps) inclui no emprego cultural os seguintes grupos: profissões do audiovisual e espetáculo (gerentes, coordenadores, diretores, artistas, técnicos e trabalhadores dos espetáculos); profissões das artes visuais (artistas plásticos, estilistas, decoradores, fotógrafos, técnicos); profissões literárias (jornalistas e editores, autores literários); gerentes, coordenadores, diretores e técnicos em documentação e conservação; professores de artes; arquitetos. O Observatório do Emprego Cultural aborda o emprego cultural sob duas perspectivas: profissões culturais (específicas do domínio das artes, de espetáculos e informação), as quais não são exercidas exclusivamente em organizações e estabelecimentos (“unidades econômicas”) do setor cultural; e unidades econômicas próprias do setor cultural, que abarcam tanto profissões culturais, como também administrativas, contábeis, técnicas etc.). Fonte: Note de l’Observatoire de l’Emploi culturel, n. 44 e 45, mai. 2006.
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Pessoal ocupado (%)
Considerando as atividades que tangenciam a área da cultura nos três segmentos abordados pelo Cempre (indústria, comércio e serviços), a massa salarial anual gerada pelo setor, em 2003, foi de R$ 17,8 bilhões. Entre eles, o segmento de serviços foi o que gerou a maior massa salarial (R$ 11,6 bilhões), seguido pela indústria (R$ 4,1 bilhões) e pelo comércio, com a menor massa salarial (R$ 1 bilhão). No entanto, esses números poderiam ser mais elucidativos se fossem comparados com o montante de massa salarial gerada por todas as atividades econômicas contempladas pelo Cempre. Quanto às atividades diretamente relacionadas ao setor cultural, no segmento de serviços, três grupos sobressaem pela massa salarial gerada: atividades de ensino, de consultoria em software e de televisão. A atividade que mais se destacou foi a de telecomunicações, que, sozinha, gerou massa salarial superior à do comércio, cabendo, mais uma vez, as ressalvas anteriormente indicadas. Talvez uma alternativa fosse trabalhar apenas com as atividades diretamente relacionadas à cultura4. Outra leitura dos dados do Cempre apresentada no estudo do IBGE é a relação entre o pessoal ocupado em todos os setores econômicos e o pessoal ocupado nas áreas direta ou indiretamente relacionadas à cultura. Sob essa perspectiva, no total dos valores estimados para indústria, comércio e serviços, as atividades culturais abarcaram 5,7% do pessoal ocupado em 2003. No setor cultural, o segmento de serviços destacou-se como o de maior dimensão entre as atividades econômicas culturais, com 55,3% do pessoal ocupado (em relação ao total geral, esse segmento representou 9%). Em seguida vem a indústria, com 25,6% das pessoas ocupadas em atividades culturais (ante 4,5% do total geral), embora represente
apenas 6,1% do total de empresas. Por fim, o comércio foi o terceiro em pessoal ocupado no setor cultural, com 19% (sendo que no total geral essa participação ficou em 3,3%), apesar de ter participação maior de empresas nesse segmento (33,3%). Entre as atividades culturais industriais, o ramo da edição e impressão concentrou 48,4% do pessoal ocupado, seguido do ramo de impressão de jornais, revistas, livros e outros serviços gráficos, com 11%, e a fabricação de artefatos de madeira, palha, cortiça e material trançado (exceto móveis), com 10,7%. Já nas atividades comerciais, houve uma concentração de pessoal ocupado no comércio varejista de livros, jornais e papelaria, com 84,1%. Por fim, no segmento de serviços houve uma distribuição mais homogênea do pessoal ocupado entre as atividades diretamente relacionadas à cultura, com a seguinte divisão: atividades de ensino (18,3%), publicidade e atividades fotográficas (14,4%); consultoria em software (13,9%); atividades de televisão (7,2%); aluguel de objetos pessoais e domésticos, juntamente com atividades de rádio (5,3% cada); atividades cinematográficas e de vídeo (4,1%); outras atividades artísticas e de espetáculos (3,7%); e atividades de agências de notícia (0,2%). As atividades indiretamente relacionadas à cultura tiveram participação de 16,7% em processamento e atividades de banco de dados e distribuição de conteúdo eletrônico, e de 10,8% em telecomunicações. O salário médio mensal pago pelo conjunto dos setores econômicos (indústria, comércio e serviços) relacionados direta ou indiretamente à cultura foi de 5,1 salários mínimos (SM), valor acima da média geral dos setores econômicos, que fica na faixa de 3,3 SM.
O salário médio mensal pago pela indústria em geral (4,6 SM) foi menor do que a média salarial das atividades industriais culturais, de 5,3 SM, sendo que os setores que sobressaíram foram fabricação de aparelhos telefônicos, sistemas de intercomunicação e semelhantes (10,5 SM) e de computadores ,5 SM), os quais, como já foi dito, não atendem exclusivamente à área da cultura. Salários no setor cultural Em 2003, o salário médio mensal do conjunto de atividades econômicas no comércio foi de 2,1 SM, um pouco abaixo da média apresentada pelo setor cultural, que ficou em 2,2 SM. No entanto, as empresas comerciais diretamente relacionadas às atividades culturais pagaram em média 1,6 SM, enquanto, entre as empresas indiretamente relacionadas à cultura, o setor atacadista de artigos de escritório e papelaria pagou 5,5 SM de média salarial. Considerando novamente que esse setor não fornece insumos exclusivamente para o setor cultural, os valores apresentados tendem a superestimar a contribuição da cultura em termos de média salarial no segmento comercial. No geral, o salário médio mensal pago no segmento de serviços foi de 3,2 SM, valor inferior ao pago pelo setor de serviços culturais, que obteve a média de 5,9 SM. O estudo do IBGE sugere que o setor cultural obteve essa média superior provavelmente porque ocupou pessoas mais qualificadas que a média do pessoal que trabalha em outras atividades de serviços. As atividades indiretamente relacionadas à cultura pagaram, em conjunto, um salário médio de 8,4 SM (na área de telecomunicações, a média salarial ficou em 14,2 SM). Entre as atividades diretamente relacionadas à cultura, sobressaíram, com salários mensais .23
acima da média do setor cultural, as agências de notícias (14,7 SM), atividades de televisão (9,8 SM) e consultoria em software (9,2 SM). Ainda no segmento de serviços, chama atenção a baixa média salarial mensal das atividades de ensino, que pagaram 2 SM, contrariando a avaliação do estudo do IBGE de que a diferença salarial entre as atividades culturais de serviços pode ser caracterizada pela qualificação dos trabalhadores empregados nesse setor. Ao que parece, a média salarial paga nas atividades de ensino deveria corresponder teoricamente àquela relativa aos trabalhadores mais qualificados. Pode-se considerar que o estudo do IBGE obteve alguns avanços na apuração da contribuição de atividades culturais no âmbito das atividades econômicas da indústria, do comércio e dos serviços. No entanto, os setores e as atividades considerados direta ou indiretamente relacionados à cultura são demasiadamente abrangentes e muitas vezes extrapolam o setor da cultura. Assim, seria necessário rever as categorias incluídas nesse universo e desagregar alguns dados, obtendo recortes mais específicos para a área da cultura. O próprio IBGE, quando discute os procedimentos metodológicos, se questiona sobre a pertinência ou não de incluir em cultura, por exemplo, a telefonia. Devido a esse questionamento, os dados são apresentados em separado, considerando a inclusão ou não desse ramo de atividade.
5
Na definição do Sebrae, um “arranjo produtivo local” se caracteriza pela aglomeração de um número significativo de empresas que atuam em torno de uma atividade produtiva principal em um determinado território. No entanto, a idéia de território não se resume apenas à sua dimensão material ou concreta; o arranjo produtivo local compreende um recorte do espaço geográfico que possua sinais de identidade coletiva (sociais, culturais, econômicos, políticos, ambientais ou históricos). Além disso, deve promover uma convergência de expectativas de desenvolvimento, estabelecer parcerias e compromissos para manter os investimentos de cada um dos atores no próprio território e promover uma integração econômica e social no âmbito local. Disponível em: http:// www.sebrae.com.br/br/cooperecrescer/ arranjosprodutivoslocais.asp. Acesso em: 23/5/2007.
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Por outro lado, é importante registrar que, em um país como o Brasil, onde prevalecem as relações informais de trabalho, esse recorte com base nas empresas formalmente cadastradas no banco de dados do IBGE fica limitado, diante da quantidade de pessoas que deve, de fato, se ocupar de atividades culturais (especialmente daquelas que podem ser caracterizadas mais propriamente como culturais, como as atividades artísticas e de produção cultural). Além disso, também são excluídas dessa abordagem as atividades econômicas relacionadas à cultura que se estruturam como arranjos ou sistemas produtivos locais5.
Programa Rumos completa dez anos de atividade Rumos Pesquisa: Gestão Cultural retoma modalidade voltada para a pesquisa acadêmica Em dez anos de existência, o programa Rumos de apoio à produção artística e intelectual mantém o objetivo de descentralizar e ampliar o eixo criativo brasileiro. O Rumos levou a 1,8 milhão de cidadãos culturalmente instigados, até este momento, cinco centenas de projetos em áreas tão variadas quanto artes visuais e cibernética, cinema e vídeo, jornalismo cultural e literatura, música e pesquisa. Com o Rumos, o Brasil se abriu ao conhecimento de suas tão diversas manifestações expressivas, por meio dos produtos gerados e também dos encontros e seminários temáticos realizados em toda a extensão nacional. Este novo país possível, que se deseja afirmar e medir, é o mesmo lugar por onde caminha o Observatório Itaú Cultural. Ele usa a cascata de números, estudos e manifestações apuradas localmente pelo Rumos para construir as bases de futuros indicadores de uma cultura que nos define. À moda dessa iniciativa que celebra dez anos, o Observatório tem na pesquisa sua vocação indissociável. imagem: Humberto Pimentel/Itaú Cultural
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O Rumos Itaú Cultural Pesquisa: Gestão Cultural é um segmento do projeto que se aparenta com o Observatório, portanto, de maneira particular. Nascido em 2003 como Rumos Pesquisa, quer se aproximar da academia para que o exercício, a manipulação e o refinamento dos dados coletados sobre a cultura brasileira ganhem um sentido referencial. Se o Brasil quer aprender a pesquisar sua arte e sua cultura, deve fazê-lo desde o berço ensaístico universitário, sem preconceitos ou limitações. Em 2003, a primeira edição do Rumos Pesquisa selecionou trabalhos concluídos em níveis de mestrado e doutorado sobre “mídia arte”. O objetivo era então contemplar reflexões sobre as possibilidades interativas entre tecnologia, arte, ciência e mídia, compreendendo-se por mídia não somente a eletrônica, mas outras modalidades, como o livro, o cartaz, a fotografia e o cinema. A escolha desses trabalhos seguiu, como é de uso no projeto, a orientação de um edital. Coordenada por Selma Cristina Silva, uma assessoria especializada, formada por curadorias e comissões, enxergou nos trabalhos dos iniciantes campos de estímulo para a atuação de um pensamento reflexivo. .26
Os estudos vencedores de prêmios entre R$ 6 mil e 10 mil, acrescidos de livros e a possibilidade de adquiri-los por meio do acervo de documentação e referência do Itaú Cultural, variaram em torno da análise de temas contemporâneos. Analisaramse, por exemplo, rave e cultura jovem, a ciberliteratura, as novas interpretações musicais, a poética escultórica, as imagens subversivas e as influências da tecnociência. Oito pesquisadores, do Sul ao Norte, ganharam, com essas interpretações, a visibilidade de seus pares e a possibilidade de dialogar com eles com base em tais descobertas. Neste ano, o Rumos Itaú Cultural Pesquisa: Gestão Cultural investigará trabalhos acadêmicos na área de economia da cultura (gestão, produção e políticas culturais). Para cada uma das duas categorias de premiação, providenciará um prêmio de R$ 10 mil. A pesquisa concluída será remunerada prontamente; aquela em andamento ganhará R$ 5 mil à época da proposição e mais R$ 5 mil no momento de conclusão do trabalho. Os pesquisadores receberão uma coleção de 20 livros referenciais em suas áreas de pesquisa. Não há limitações quanto à
Edson Natale, Tinhorão e Claudiney Ferreira/imagem: Rubens Chiri/Itaú Cultural
qualificação de cada pesquisador como mestre ou doutor. Além de conhecer os pesquisadores com trabalhos nesse campo, o Rumos Pesquisa pretende identificar as principais instituições, cursos e programas de pósgraduação brasileiros em que as reflexões sobre a produção cultural estão se desenvolvendo de maneira sistemática. Da mesma forma que outras versões do tradicional programa Rumos, o Rumos Pesquisa realizou seminários em diversas capitais e pretende tornar disponíveis as principais reflexões teóricas e experiências de intervenção no campo cultural que vier a conhecer. Muitos dos artigos publicados neste segundo número da revista Observatório Itaú Cultural, por exemplo, foram apresentados nesses seminários e também estarão disponíveis no site do Instituto Itaú Cultural (www.itaucultural.org.br). Massa crítica para a literatura De forma bastante semelhante, é o que a categoria Rumos Literatura quer mostrar desde o momento de sua criação, em 2001:
uma disposição ao debate, à divulgação e à crítica. Na primeira edição do programa, estiveram focadas as discussões sobre a produção literária brasileira contemporânea e o processo de adaptação do texto literário para outras mídias, no caso as peças fonográficas (as audioficções). A opção revelouse antecipadora de uma tendência à difusão sonora de textos nos podcasts. Novos autores viram-se diante da tarefa de adaptar ficções já publicadas de escritores como Fernando Bonassi, André Sant’Anna, Roberto Causo ou Cintia Moscovich, o que abriu seu ofício ao conhecimento público. O Rumos Literatura pôde então vislumbrar não só a difusão do trabalho desses novos ficcionistas, mas também o daqueles surgidos no mercado literário em anos recentes. Ciente de ter antecipado uma tendência audioficcional, o coordenador Claudiney Ferreira julgou oportuno, em 2007, recuar de tal “radicalidade” e se plantar na discussão sobre a prática e a pesquisa da crítica literária contemporânea. Adotou, para isso, as categorias de premiação Produção Literária e Produção da Crítica. Na primeira seção, ele propõe discutir a produção literária contemporânea em seus gêneros e formatos diversos, desde os textos infantis aos coletivos .27
ou focados na poesia digital. Os projetos da segunda seção buscam refletir sobre a crítica literária recente. Para desenvolver essas duas linhas de incentivo, Claudiney Ferreira diz não ter encontrado padrões de referência, o que sugere o ineditismo desse formato do programa. O coordenador está convencido de que tais estímulos à produção reflexiva não são apenas inovadores, mas necessários. As universidades, por exemplo, já difundem as teses perpetradas em seu seio por meio da ferramenta dos sites. Contudo, as discussões desses mesmos trabalhos são praticamente nulas – e isso o fez vislumbrar a função do Rumos como promotor de uma “conversa” entre essas produções. “Estamos, na verdade, medindo o que a universidade produz e fazendo com que se torne próxima do produtor, dandolhe visibilidade e sofisticando o pensamento geral sobre a literatura”, c r ê Ferreira. A “massa crítica”, como ele a define, deve crescer no intuito de valorizar a própria criação ficcional no Brasil.
Barbatuques: Cia de Foto
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Após o lançamento de cada edital, em períodos de três anos, seminários em todo o país reúnem professores, críticos e escritores com o objetivo de valorizar a reflexão sobre a literatura contemporânea. Ferreira, de início, imaginou que o acesso dos professores universitários a esses eventos – dedicados a um público geral, não somente aos inscritos – se visse reduzido em razão do caminho contemporâneo do Rumos. Enganou-se: boa parte da universidade manifestou firmeza em estudar o presente. Um dos seminários, por exemplo, investigou o que o escritor Silviano Santiago definiu como “o protocolo do crítico”, sua moral e códigos de conduta, seu preparo para analisar, entre outros itens, a crescente produção digital. Jornalismo cultural também foi um investimento intuído durante esse abraço às condições de confecção literária no Brasil. Se não há jornalistas capacitados a analisar a produção brasileira, é a produção brasileira que perde amplitude. A “massa crítica” de que fala Ferreira é favorecida pela análise dinâmica exercida pelos jornais.
Em busca de citar a produção musical O programa, criado em 2004, colabora na capacitação de graduandos de jornalismo que desejam se especializar na área cultural, na discussão sobre os conceitos de cultura no ambiente universitário e no debate sobre o futuro do jornalismo cultural. Tudo isso tendo em vista o papel que a cultura assume na sociedade, as opções editoriais dos veículos de comunicação e o surgimento de novos suportes de mídia. Na primeira versão da premiação, entravam apenas os textos destinados ao jornal impresso; agora, serão avaliadas também as reportagens radiofônicas e as análises destinadas ao rádio, ao vídeo e à web. Os professores entram na segunda edição para refletir sobre a abordagem pedagógica da disciplina. Claudiney Ferreira explica que, desde 2004, foca o Rumos Jornalismo Cultural na graduação porque são poucos os cursos sobre a disciplina disponíveis na universidade brasileira. Em verdade, a existência desse Rumos é mesmo responsável por apoiá-los – como no caso das cadeiras existentes na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e na UniTiradentes, em Aracaju. A Universidade Federal Santa Maria introduziu a disciplina em seu currículo depois do estabelecimento do Rumos.
Em 1997, ocorreu a primeira edição do Rumos Música, àquela época um programa na sede do Itaú Cultural no qual artistas estabelecidos convidavam novos talentos em shows semanais no auditório do Instituto em São Paulo. Em dez anos, esse Rumos ganha o Brasil de forma diferente e ampliada, já com uma ponta fixada fora do território nacional, na América do Sul. É uma trajetória em ascensão, com muitas ramificações. Com o objetivo de mapear e difundir o acesso à produção musical das diversas regiões brasileiras, o programa já selecionou mais de uma centena de artistas cujas produções não encontram difusão e circulação adequadas no mercado. O público toma contato com informações, reflexões e obras dos selecionados por meio de seminários, debates, temporadas de shows e também pela distribuição de CDs e DVDs a emissoras de rádio e televisão públicas, universitárias e comunitárias, instituições culturais e bibliotecas públicas, entre outras ações.
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Três anos depois de sua criação, em 2000, o Rumos Música assumia um formato de curadorias em dez regiões principais do Brasil. Edson Natale, que hoje coordena todo o programa, fazia inicialmente a curadoria de São Paulo. Naquele ano, três seminários anuais já se realizavam sobre educação musical, tecnologia e música, e produção fonográfica (deste último germinaram as sementes da criação da Associação Brasileira de Música Independente). Em 2001, assumiase uma coordenação unificada, com Natale à frente, e três anos depois seminários eram realizados em todas as capitais, e também em Campinas e Uberlândia.
Edson Natale/imagem: Rubens Chiri/Itaú Cultural
“O Brasil, tido e havido como um celeiro musical, é um país que não consegue citar sua produção”, afirma Natale. Por essa razão, o trabalho do Rumos Música se reparte com igual afinco entre a atitude reflexiva dos seminários e a propriamente musical, nos editais. Os seminários constituem realização particular dentro desse projeto. Natale crê que eles levantam mais dúvidas do que respostas: são ocasiões nas quais se identificam agentes musicais e suas experiências, e nas quais as informações localizadas entram para circular num âmbito universal.
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Fala-se de tudo nesses encontros, e não necessariamente sobre a produção resultante do programa do Itaú Cultural. O objetivo é marcar presença, conhecer os problemas de âmbito nacional e regional na área, colocar especialistas e novos agentes em diálogo. Depois de cada temporada de encontros e da seleção de artistas, um questionário busca dos participantes sua avaliação sobre o programa em si. “Somos indutores, provocativos, mexemos com as estruturas”, crê Natale. “As pessoas se encontram; se provocamos um curtocircuito entre elas, também sentimos que nossa proposta valeu.” Na edição 2007-2009 do Rumos, os seminários são feitos em todas as capitais brasileiras, obrigatoriamente, e em um mínimo de 50 cidades no total. Em maio deste ano, um desses encontros foi promovido em Buenos Aires, na Argentina, e dele saiu a decisão de compor um disco selecionando a produção registrada no festival de jazz local e no festival de música das províncias argentinas. Argumenta Natale: “O relacionamento com o vizinho latino-americano é uma necessidade para o aprimoramento musical e um canal para difundir o que se faz aqui”. Para o coordenador, a diversidade musical brasileira exige observação atenta e constante, não limitada aos centros de produção e aos gêneros musicais. As seleções musicais para o Rumos incluem peças de cunho etnográfico, mas não deixam de fora a música pop, por exemplo, produzida sem visibilidade por estados como Mato Grosso: “É por isso que nunca utilizamos o termo ‘música de qualidade’ em nosso trabalho de seleção, uma vez que essa modalidade é exclusiva. Se a usarmos, consideraremos fora de padrão, por exemplo, uma manifestação musical como o pagode de Cantagalo. Mas nossa intenção é inversa: é a de incluir no projeto a música brasileira de A a Z”.
CULTURA e ECONOMIA Problemas, Hipóteses, Pistas, do sociólogo francês Paul Tolila, inaugura a série de livros do Observatório Itaú Cultural Co-edição do Observatório Itaú Cultural com a Editora Iluminuras aborda as relações entre a cultura e a produção de riqueza material A importância econômica do setor cultural vem sendo reconhecida crescentemente nas sociedades ocidentais. As atividades culturais ganham relevância cada vez maior ao influenciar estilos e qualidade de vida, com evidentes impactos econômicos. Para além de sua importância como sistema de trocas simbólicas que influenciam a formação da identidade de povos e de indivíduos, a cultura passa a ser reconhecida como um setor responsável pela produção da riqueza material. Estudos brasileiros recentes apontam o setor como responsável por cerca de imagem: Digitalização Banco de Imagem/Itaú Cultural .31
1% do PIB. O pessoal ocupado nas várias atividades culturais atinge cerca de 0,8% da população economicamente ativa, um número maior do que o dos empregados no setor automobilístico, por exemplo. Além disso, aqueles que vivem da cultura no Brasil recebem uma remuneração acima da média nacional. No entanto, as avaliações dos impactos da cultura na economia, no emprego, na renda, nos intercâmbios locais, regionais e internacionais ainda são escassas. As estatísticas confiáveis são raras e a produção teórica ainda incipiente. É principalmente no aspecto da construção de ferramentas conceituais para o equacionamento das relações entre economia e cultura que o livro de Paul Tolila vem colaborar. Tolila é um dos principais especialistas mundiais em gestão cultural e políticas públicas de cultura. Sua atuação profissional se divide entre a academia – é professor da Universidade de Avignon, na França – e a administração pública, tendo ocupado diversas posições executivas em organismos responsáveis pela formulação e pelo acompanhamento das políticas de cultura do governo francês. Além de Cultura e Economia – Problemas, Hipóteses, Pistas, agora publicado no Brasil, Tolila é co-autor, com Olivier Donnat, de Le(s) Public(s) de la Culture: Politiques Publiques et Equipements Culturels, ainda sem tradução em português.
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Esse lançamento do Observatório Itaú Cultural e da Editora Iluminuras não é um livro teórico para especialistas em economia ou em cultura. Tolila opta por um enfoque estratégico das grandes questões econômicas que se apresentam para o setor, e que deveriam ser levadas em conta por seus atores e tomadores de decisão, bem como pelos cidadãos, para uma melhor compreensão dos processos econômicos da cultura, um debate público mais bem fundamentado e, se possível, melhores decisões. Ao incorporar conceitos e instrumentos da análise econômica na reflexão sobre o setor cultural, Tolila pretende ampliar a compreensão sobre os fenômenos culturais e artísticos e ocupar espaços que foram deixados de lado por uma visão purista de alguns agentes do setor. “Pensar hoje a economia do setor cultural não constitui em nada uma derrota dos argumentos humanistas sobre a cultura que todos conhecemos e defendemos. Não significa um abandono do terreno na luta pela defesa de um desenvolvimento cultural, significa, ao contrário, a ocupação de um terreno suplementar do qual o setor cultural e seus principais atores há muito desertaram, deixando o campo livre para as pressões negativas. Pensar a economia do setor cultural é uma arma para a cultura. Uma arma de que o setor cultural deve se apossar para
Paul Tolila/imagem: Cia de Foto
melhorar sua própria visão das coisas, defender suas escolhas e sua existência, participar de maneira ativa do seu desenvolvimento futuro.” Com a publicação desse título de Paul Tolila, o Observatório Itaú Cultural dá início à sua política de edição de livros e reafirma sua decisão de colaborar para a ampliação e a qualificação do conhecimento sobre os fenômenos da cultura. Cultura e Economia – Problemas, Hipóteses, Pistas, assim como os outros títulos a ser publicados pelo Observatório Itaú Cultural, terá metade de sua tiragem distribuída gratuitamente a bibliotecas, prefeituras e outros órgãos da administração pública, centros de pesquisa e programas de pósgraduação de todo o Brasil. Além de ter essa distribuição dirigida, o livro poderá ser encontrado nas principais livrarias brasileiras, por meio da distribuição comercial feita pela Editora Iluminuras. A seguir, apresentamos a íntegra da introdução de Cultura e Economia – Problemas, Hipóteses, Pistas.
Introdução Como pensar a economia do que chamamos, por comodismo, de “setor cultural”? E, antes de tudo, qual a utilidade de uma reflexão econômica nesse campo? A resposta não é fácil nem tampouco imediata. Ela se torna, aliás, particularmente difícil se não penetrarmos mais fundo no grande número de outras questões que é preciso resolver antes de se obter alguma resposta. Alguns exemplos podem ajudar a ilustrar esse propósito. A primeira interrogação abarca o caráter histórico das perguntas que nos fazemos. Estudar a economia da cultura (ou, mais precisamente, do “setor cultural” porque esta denominação nos permite definir melhor nosso objeto no plano socioeconômico como uma convenção moderna e suscetível a variações em nossas sociedades nos distanciando de uma definição puramente “antropológica” da cultura) é um movimento recente em nossas sociedades, um movimento que não tem mais de cinqüenta anos. Encontram-se reflexões sobre a arte dispersas nas obras de Smith, Ricardo, Marx ou mesmo Pareto, com certeza, mas na maioria das vezes elas são recursos de caráter metafórico ou então indicações que salientam ora o lado enigmático ou “exorbitante” dos fenômenos naturais à luz da racionalidade econômica, ora seu valor futuro num mundo livre das sujeições da fome, do capital e do trabalho assalariado. .33
Para os pais da ciência econômica, afora certas “imagens” ou certas “intuições”, a cultura e as artes se situam, em geral, no lado do irracional ou da utopia. Essa atitude, que melhor se poderia chamar de “cultura não-econômica” dos fenômenos culturais afirmada pelos economistas, não deixou de agir sobre os atores do próprio setor cultural. Como se sabe, a economia, seus cálculos e estatísticas, seus modelos e “leis” não têm boa fama nos meios culturais, que preferem opor ao mundo frio da rentabilidade, das limitações financeiras e da concorrência dos mercados, o mundo cálido da paixão, da criação livre e do valor universal dos atos culturais. Ao desinteresse dos economistas pela cultura respondeu, pois, em grande medida, o desinteresse dos atores culturais pela economia, suas ferramentas e seus debates.
imagem: Cia de Foto
Em geral e em qualquer país que se considere, habituamo-nos ao seguinte diálogo: na maior parte do tempo, em nome dos grandes ideais muito humanistas e muito “qualificativos”, o setor cultural demanda cada vez mais meios dos tomadores de decisões, que devem arbitrar as alocações de recursos de maneira racional e quantificada para justificar democraticamente suas escolhas perante os cidadãos. Num período de expansão econômica geral, as coisas andam muito bem. Num período de crise ou de instabilidade econômicas, a história é outra. Isso porque é nesses momentos difíceis que realmente nos damos conta de que nos faltam instrumentos de diálogo e de convicção. Ora, desde o começo dos anos 1970, o mundo conheceu uma série de convulsões econômicas ilustrada pelos desempregos em massa jamais resolvidos, entradas em recessão, repetidas crises financeiras, instabilidades monetárias crônicas. São raros os países que conseguiram ser poupados desses acessos de fraqueza e no próprio continente latino-americano é extensa a lista dos países que, do México à Argentina, passando pelo Brasil, viram seus processos de desenvolvimento freados, e até brutalmente interrompidos durante esse período. Por outro lado, depois de permanecer fora dos cálculos, eis que a economia do setor cultural não só está posta no coração dos debates nacionais por todas as partes do mundo, mas é também objeto de ríspidas negociações internacionais como tão bem ilustram tanto as partidas jogadas na Organização Mundial de Comércio (OMC), como as lutas pelo reconhecimento da Diversidade Cultural cujo teatro foi e continuará sendo a Unesco1. A dimensão econômica do setor cultural se sobressaiu cada vez mais e fortaleceram-se os debates apaixonados (a apaixonantes) que a tomam por objeto. Nesse contexto, o slogan segundo o qual “os bens culturais não são mercadorias como as outras” surge como uma posição de princípio bastante defensiva e fraca, muito distante de uma argumentação econômica sólida e convincente. .34
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Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Sem a menor dúvida, como salientam numerosos teóricos da história econômica (Wallerstein, Braudel), a globalização não data de ontem nem mesmo de trinta anos atrás, mas desde o fim da guerra fria e da queda do bloco comunista ela tomou um rumo cada vez mais inquietante, sobretudo quando emprega doutrinas muito agressivas no campo do comércio internacional que parecem ter herdado o espírito belicoso anterior e dão lugar a práticas de ameaças ou agressões muito distantes da teoria da concorrência pura e perfeita. Mesmo alguns economistas liberais e adeptos do livre mercado, como P. Krugman (2005), por exemplo, se preocupam com isso e apontam os desvios ameaçadores de uma concepção do comércio internacional em que a noção de vantagem “comparativa” para os países é pura e simplesmente substituída pela noção de vantagem “competitiva” normalmente utilizada pelas empresas, e que tende a impregnar as mentes com a idéia de que as nações enfrentam hoje uma luta semelhante à de empresas concorrentes no mercado; uma luta em que (quase) todos os golpes seriam permitidos. O mais incômodo, claro, é ver que essas doutrinas contam com o favor de certos governos, entre outros o dos Estados Unidos. É sob a pressão desses dois fatores (debates democráticos internos sobre a alocação dos recursos, impulso agressivo da concorrência
internacional sobre os mercados de bens e serviços culturais) que se desenvolve hoje a necessidade de pensar a economia do setor cultural, de estudá-la nos seus grandes componentes e de examinar as principais questões que ela encerra. O fato novo é, de agora em diante, não considerar essa conduta como um grilhão para a cultura, destinado a aprisioná-la a lógicas “estrangeiras”, mas a possibilidade de dispor de ferramentas e conceitos suscetíveis de ajudar no desenvolvimento do setor cultural em seu conjunto e permitir aos que o defendem apoiar-se em argumentos e problemáticas convincentes. De certo ponto de vista, as dificuldades atuais são uma oportunidade que se deve aproveitar: durante muito tempo censurou-se ao setor cultural e às administrações encarregadas de sua regulamentação seu “amadorismo econômico”, na verdade, sua despreocupação diante dos problemas financeiros ou da organização. Pensar hoje a economia do setor cultural não constitui em nada uma derrota dos argumentos humanistas sobre a cultura que todos conhecemos e defendemos. Não significa um abandono do terreno na luta pela defesa de um desenvolvimento cultural, significa, ao contrário, a ocupação de um terreno suplementar do qual o setor cultural e seus principais atores há muito desertaram deixando o campo livre para as pressões negativas. .35
Pensar a economia do setor cultural é uma arma para a cultura. Uma arma de que o setor cultural deve se apossar para melhorar sua própria visão das coisas, defender suas escolhas e sua existência, participar de maneira ativa do seu desenvolvimento futuro. Este livro não é uma obra concebida por especialistas da economia, não é uma obra técnica. A problemática que nos ocupa aqui decorre de uma proposta simples, mas que define essencialmente o enfoque das ciências sociais e humanas: o problema principal de todo processo válido reside no valor das perguntas colocadas, das hipóteses propostas e dos modelos que finalmente se constroem. Perguntas, hipóteses e modelos nos permitem, com muita humildade, abordar a diversidade do real, orientar-se em meio à multidão de fenômenos e pensar racionalmente as ações possíveis. São ferramentas simples, às vezes simplistas, mas úteis, a despeito de seus limites, porque permitem a reflexão, o repensar das suposições a priori, o debate claro e a preparação das etapas seguintes da investigação. A intenção deste livro não é, portanto, responder a todas as interrogações que se possam colocar em tal ou qual ponto determinado, em tal ou qual parte especializada do setor cultural: ele visa a um enfoque estratégico das grandes questões econômicas que se colocam para o setor em seu conjunto, e que esse setor, seus atores e seus tomadores
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de decisões, mas também os cidadãos, deveriam levar em consideração para uma melhor compreensão dos processos econômicos da cultura, um melhor debate público e, se possível, melhores decisões. Nessa perspectiva, é necessário precisar a partir de qual ponto de vista a elaboração desta obra foi concebida, isto é, a partir de quais objetivos desenvolveu-se a estrutura das questões que nós nos colocamos, a de nossas hipóteses, bem como as implicações de ações que evocamos para fazer do enfoque econômico do setor cultural uma ferramenta crível e eficaz a serviço do desenvolvimento cultural. Guiaram-nos três objetivos que são também três horizontes de reflexão para instrumentar conhecimentos e debates sobre a economia cultural: o fortalecimento das políticas públicas culturais, as relações entre desenvolvimento cultural e desenvolvimento geral, e as implicações que a globalização atual dos intercâmbios e seus desequilíbrios têm para o desenvolvimento e a diversidade cultural. É em função desses três horizontes que as grandes questões internas da economia cultural são abordadas aqui, quer se trate das indústrias culturais, dos direitos autorais, das novas tecnologias ou ainda da situação dos aspectos “clássicos” da cultura (patrimônio, espetáculo ao vivo, etc.). Na primeira parte, tentaremos definir as grandes questões econômicas que se colocam para um setor cultural já dividido em dois “continentes”, as atividades
ditas clássicas e o campo das indústrias culturais que sustenta hoje o essencial dos empreendimentos (novas tecnologias, direitos autorais, etc.) colocados pela globalização dos intercâmbios. Tentaremos compreender também por que a natureza dos produtos culturais coloca alguns problemas para os processos da economia clássica. Na segunda parte, examinaremos as contribuições econômicas do setor cultural para o desenvolvimento econômico geral em dois planos principais: primeiro, a determinação do impacto do setor cultural sobre a atividade econômica enquanto tal, depois a contribuição do setor cultural para a renovação do próprio pensamento econômico e para os novos enfoques do desenvolvimento no quadro do que se começa a chamar de “a economia do
conhecimento” orientada para um enfoque muito crítico das teorias padrão do livre comércio e da decisão estratégica. Por fim, na terceira parte, tentaremos extrair as linhas de ação para organizar a observação econômica permanente do setor cultural permitindo às políticas públicas da cultura, aos tomadores de decisões e aos cidadãos, dispor dos instrumentos e dos conhecimentos necessários à decisão, à informação dos atores, à condução das ações, à antecipação e ampliação do debate público sobre as implicações e a importância do setor cultural. É a partir disso, também, que poderemos abordar de maneira concreta todo o interesse que pode representar para os países ibero-americanos uma cooperação internacional na exploração das grandes questões econômicas do setor cultural.
Teixeira Coelho e Paul Tolila /imagem: Cia de Foto
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Cultura,
desenvolvimento
e política Gerardo Caetano1 O provincianismo como problema cultural
Há cerca de 53 anos, o sábio uruguaio Eduardo J. Couture editava um livro emblemático. Seu título já perfilava todo um horizonte de reflexão que tem muito a ver com algumas reflexões contidas no resumo da apresentação a seguir: “La comarca y el mundo” (O distrito e o mundo). Após registrar diversos traços que, em sua opinião, caracterizavam os uruguaios (entre os quais se destacava o seu “espírito polêmico” e, ao mesmo tempo, sua concordância básica no tocante à “democracia como forma superior de convivência humana”), Couture se perguntava como verificar se sua interpretação era “exata ou errônea”. Diante dessa pergunta, propunha um caminho: “(…) a melhor maneira de compreender o próprio país consiste em comparar. Os uruguaios ainda fazem pouquíssimas comparações. Além disso, quando comparam, confrontam realidades com ideais. (…) Para evitar os exageros convém, de vez em quando, distanciar-se um pouco. Todo afastamento no tempo e na distância é proveitoso para conhecer o próprio país (…): o distrito visto de longe e o mundo visto tendo em conta o distrito.” A seguir, Couture recriava uma “viagem” de reflexões com base em um conjunto de anotações e comentários sobre diferentes lugares da América e da Europa que havia percorrido. Ao final de um longo itinerário que incluía espaços e personagens, o célebre jurista uruguaio voltava ao começo do seu livro, “evocando a geografia do distrito” – conforme ele mesmo advertia. Couture concluía:
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Cientista político, coordenador do Instituto de Ciência Política, docente e pesquisador da Universidade da República do Uruguai. .39
“Em último caso, nossa vida se apóia em um metro quadrado de terra. (…) devemos tomar consciência do mundo e trabalhar na direção dela; porém nunca trabalharemos mais para o mundo do que quando lutarmos para garantir a autenticidade de nosso pequeno distrito. (…) quanto mais do seu país e de sua época for um homem, mais é dos países e de todas as épocas. No princípio era o distrito. O mundo veio por acréscimo.”
imagem: Cia de Foto
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Advogado, professor de literatura e estética, crítico literário e ensaísta uruguaio, é considerado o introdutor da ciência política contemporânea em seu país (Montevidéu, 1916-1977).
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Corria então o ano de 1953. Embora já fossem visíveis várias “rachaduras no muro” (como diria Real de Azúa2), os uruguaios ainda tinham motivos suficientes para sonhar com a “eternidade” da “Suíça da América” e sua “sociedade hiperintegrada”. O mundo se transformava profundamente e, salvo exceções, parecia que os uruguaios não percebiam. De qualquer maneira, ainda havia heranças e energias suficientes para postergar a tragédia. Mais de meio século depois, e a partir de tudo o que foi vivido desde então no distrito e no mundo, o provincianismo é um vício que, sem dúvida, não podemos nos permitir. E, no entanto, sua presença cada vez mais perigosa ainda continua entre nós. As reflexões a seguir propõem provocar sua visualização, tarefa que, como sempre, não resulta simpática no país e, para muitos, parecerá uma blasfêmia. Entretanto, é disso que se trata: assumir o provincianismo como “problema cultural”, ou seja, “radical”, principalmente quando já não temos tempo para permanecer adormecidos atrás de mitos que hoje já não podem mais nos refletir. Como combater o provincianismo que é sempre nocivo, particularmente no campo da cultura e de suas políticas? Sem dúvida, não há receitas para isso, porém o acúmulo de conhecimento comparado, com densidade de “mundo”, que permita uma conectividade maior dos problemas e enfoques, constitui uma boa linha de resposta. Acreditamos que é nesse sentido que se dirige a intenção de construir um observatório da cultura e de suas políticas, que tenha ao mesmo tempo projeção nacional, regional e internacional, permitindo assim sustentar essa conectividade entre o mundo e o distrito, entre o global e o local, que está na base de iniciativas à altura das exigências dos tempos que “correm” (e a metáfora nunca foi mais veraz do que nesta atualidade da “cultura do instantâneo”).
O conceito de globalização em discussão Não se pode confundir o óbvio com o trivial. Por isso, não é inútil lembrar que há décadas vivemos uma autêntica “virada de época” e que as formas de fazer cultura e política em nossos países não deixaram de ser afetadas de maneira radical. Sem dúvida, trata-se de um fenômeno próprio da célebre globalização e suas múltiplas transformações, que não deixou região nem latitude do planeta alheias à profundidade das mudanças em andamento. Porém, precisamente o primeiro conceito que hoje deveria ser colocado em discussão é o de globalização. Trata-se de um conceito que já foi incorporado – freqüentemente de maneira acrítica e preguiçosa – aos nossos discursos e retóricas cotidianas, e que com freqüência é utilizado de maneira equivocada e restritiva. A esse respeito, e para efeito de qualificar o olhar, é oportuno incorporar a visão de alguns autores latino-americanos que estudaram especialmente esse tema e que, com base em diferentes perspectivas, nos propõem eixos de discussão e questionamento em torno dessa categoria tão em moda hoje. Renato Ortiz3, um estudioso brasileiro desses temas, aborda em muitos de seus trabalhos a necessária distinção entre a mundialização da cultura e a globalização da economia, ao mesmo tempo em que faz uma advertência importante em sua concepção de “modernidade-mundo”: este mundo da globalização, onde explode a reivindicação da diversidade, muitas vezes não é um mundo plural, com tudo o que isso implica, mas sim um mundo apenas diverso, com identidades fortemente assimétricas e pulverizadas. Nesse sentido, a exigência de discernir e não confundir diversidade com pluralismo supõe uma primeira pista interessante. Por sua vez, Martin Hopenhayn4, sociólogo chileno que transitou de maneira renovadora pelas interseções entre cultura, política e desenvolvimento, registra em muitos de seus últimos trabalhos – por exemplo, em seu livro mais recente, América Latina Desigual y Descentrada – uma multiplicidade de olhares possíveis sobre o conceito de globalização. Nesse sentido, apresenta diferentes perspectivas: um “olhar crítico”, que tende a postular que a globalização destrói per se a integração social e regional. Um “olhar apocalíptico”, pelo qual se observa a globalização como um “big bang de imagens”, com um mundo que se contrai e no qual “o virtual explode”. Um “olhar pós-moderno”, pelo qual se reconheceria o surgimento de um “mercado de imagens” e de um novo “modelo de software cultural” que modifica de maneira radical a vida cotidiana. Um “olhar tribalista”, com um forte contexto de exclusão no âmbito das identidades frágeis, fugazes e móveis, um
3 Sociólogo, antropólogo e professor da Unicamp, é autor dos livros Um Outro Território, A Moderna Tradição Brasileira e Ciências Sociais e Trabalho Intelectual. Para ele, “não existe, nem existirá uma cultura global, mas sim um processo de mundialização da cultura, que, na sua amplitude planetária e na sua diversidade, se articula ao movimento de globalização da técnica e da economia”.
4 Nascido em 1955, estudou filosofia nas universidades do Chile, Buenos Aires e Paris, onde defendeu tese sobre Nietzsche, sob a orientação de Gilles Deleuze. Atualmente trabalha no Instituto Latinoamericano y del Caribe de Planificación Económica y Social (Ilpes).
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“novo panteísmo moderno sem deuses, porém com mil energias”. Um “olhar culturalista”, pelo qual se celebraria – muitas vezes com ingenuidade – um encontro (freqüentemente simulado) com o outro, com a interseção que se torna acessível a miríades de diversas culturas dispersas. E, finalmente, outro olhar que poderia sintetizarse na visão de um “entrincheiramento reativo”, simulacro impossível, porém que se torna atraente para muitos. A tentação que esses olhares implicam tampouco ajuda a qualificar as mudanças políticas em curso, especialmente se cultivarmos exclusivamente uma delas. 5
Argentino radicado no México desde 1976, o filósofo e antropólogo Néstor Canclini é um dos mais influentes pensadores latino-americanos. Alguns de seus livros foram publicados no Brasil: Culturas Híbridas (4ª ed., 2006), Consumidores e Cidadãos (2005), Culturas da Ibero-América (2003), Diferentes, Desiguais e Desconectados (2005), A Produção Simbólica (1979) e A Globalização Imaginada (2003).
Já Néstor García Canclini5, sociólogo e antropólogo da cultura, cujos textos das últimas décadas alteraram bastante a reflexão sobre esses assuntos, questiona, em alguns de seus últimos trabalhos, a equivalência entre globalização e homogeneização. Entretanto, adverte que certas visões ingênuas em torno do renovado multiculturalismo resultam freqüentemente em justificativas para o que chama de novas “máquinas estratificantes”. Alerta ainda e com igual força para os efeitos de uma “homogeneização recessiva”, que na América Latina promoveria o intercâmbio cultural no momento exato em que nós latino-americanos produzimos menos bens culturais. Com base em um convite para pensar de maneira diferente o desafio proposto, García Canclini nos alerta sobre certos caminhos perigosos: “entrincheirar-se no fundamentalismo”, limitarse a “exportar o melodrama”, aceitar a “hibridação tranqüilizadora” de “inserir-se na cultura equalizada e resistir um pouco”. Esse mesmo autor, em um de seus textos mais célebres, “Consumidores y Ciudadanos. Conflictos Multiculturales de la Globalización”, adverte também para a forte relação entre “recolhimento caseiro” e “a diminuição de formas públicas de cidadania”, dois fenômenos, sem dúvida, característicos destes tempos de globalização. Poderíamos acrescentar outros autores e perspectivas analíticas, porém, isso não faria outra coisa além de confirmar e aprofundar a premissa inicial que supunha a necessidade de uma visão renovada e mais crítica da globalização como fenômeno histórico e de seus múltiplos impactos culturais. Comentemos alguns deles como simples referência a fenômenos culturais que afetam profundamente algumas das tarefas políticas, especialmente o exercício da cidadania e as formas da representação política na atualidade: a revolução mundial das comunicações e das tecnologias da informação; a conseqüente emergência de um novo paradigma tecno-econômico, com conseqüências que têm impacto no plano da organização social (desaparecimento da classe operária tradicional, crescimento exponencial do setor de serviços, forte diminuição da população que trabalha na agricultura, reformulação radical dos mapas de empresas e mercados etc.); a emergência de um novo tipo de “sociedaderede” (conforme assinala, entre outros, Manuel Castells), com
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fórmulas alternativas de vínculos e diferenciação; modificações no campo daquilo que concebemos como ações sociais ou iniciativas públicas, muito unidas à emergência de novas fronteiras entre o público e o privado; fortes modificações no plano da chamada “nova subjetividade” e no plano da vida cotidiana, com processos da magnitude de uma ressignificação profunda da definição do gênero, uma reestruturação radical da família, e uma relação completamente diferente com o lugar do trabalho no novo capitalismo; o “retorno de Deus” (ou a “revanche de Deus”, conforme diz mais explicitamente o sempre polêmico e conservador Samuel Huntington), impregnando as áreas mais diversas da vida pessoal ou coletiva; entre outros muitos fenômenos que poderiam ser mencionados. A metamorfose da representação Todos esses fenômenos e processos têm, sem dúvida, um forte impacto nas formas de conceber e praticar a vida política. Nesse âmbito, se houver um fenômeno destacável dentro de um quadro de mudanças amplas, é o que alguns autores chamaram de “metamorfose da representação”. Os princípios fundamentais desse conceito (elegibilidade dos governantes pelos governantes, manutenção de margens de manobra entre o representante em relação ao representado, o espaço central da deliberação como essencial na construção das decisões coletivas etc.) não desapareceram, porém muitos dos seus conteúdos e procedimentos devem ser ressignificados diante de transformações emergentes e vertiginosas. Alguns exemplos são constituídos por fenômenos como os da erosão das esferas públicas tradicionais, a pluralização e “complexização” das formas de ação cidadã, o surgimento de conceitos como os de “cidadania facultativa” ou “secundária”, as dificuldades tão crescentes quanto visíveis para representar o conflito e a ressignificação profunda dos atores próprios das novas sociedades (“grupos intensos”, os “não-organizados”, as gerações distanciadas por intervalos psicológicos inéditos etc.). Essa “metamorfose da representação” altera, sem dúvida, muitos dos alicerces da vida democrática e de suas instituições; provoca o território fértil para os chamados “processos de reação antipolítica” e o distanciamento crítico dos cidadãos diante das instituiçõeschave para a representação, como são os partidos políticos ou o Parlamento. Da mesma maneira, em um contexto como o latinoamericano, gera dificuldades amplificadas para vários governos emergentes vocacionados a promover mudanças sociais e políticas genuínas e não meramente cosméticas. Hoje, mais do que nunca, as democracias requerem políticas da cultura que promovam novas formas de cidadania, da sociedade civil organizada, do “empoderamento” e da participação dos excluídos. .43
Nesse mesmo sentido, no plano mais teórico, seria necessário rever nossas categorias em torno do papel da política democrática e de suas instituições no tocante aos novos desafios da construção da nova cidadania, a ressignificação efetiva de vias idôneas de representação política, a consolidação da integração social e a sustentabilidade do desenvolvimento. Também nossas práticas e noções de espaço público variam em relação às mutações muito radicais da vida cotidiana. Vivemos, por exemplo, uma reformulação radical de nossa relação com o tempo, essa coexistência difícil de “múltiplos relógios”, que é um fato cultural muito forte (com conseqüências políticas de grande relevância, que freqüentemente passam despercebidas) e afeta as fronteiras de inclusão e exclusão em nossas sociedades, com seus múltiplos ritmos. E, além disso, vivemos em sociedades nas quais mudou a valorização social do tempo: antes, quem estava do lado dos incluídos tinha todo o tempo a perder, procurava o lazer; hoje, quem está do lado dos incluídos não tem um minuto a perder, e toda a tecnologia que compra é orientada para superativar sua energia. Entretanto, é muito diferente esse tempo viscoso dos excluídos, para quem um e-mail, um correio expresso, um telefone celular são uma metáfora perversa. Essa nova “cultura do instantâneo”, conforme foi definida por Michael Ignatieff, propõe uma temporalidade muito diferente para a integração política e para o desenvolvimento social.
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Nascido na Alemanha em 1939, Nobert Lechner radicou-se no Chile em 1971. Doutor em ciência política pela Universidade de Freiburg, foi professor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais nas sedes acadêmicas do Chile e do México, além de dirigir o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Chile entre 1998 e 2004, quando faleceu. Em suas obras destacam-se temas como democracia, política e subjetividade, cultura e economia.
A noção daquilo que era reconhecido como público se corroeu profundamente no âmbito da emergência e consolidação de “sociedades da desconfiança”. Conforme estudou o sempre lembrado Norbert Lechner6, debilitaram-se os contextos habituais de confiança, o que promove um forte aumento de nossos medos. A escola, a empresa, o bairro, o partido político, a nação e tantos outros espaços gregários que traziam confiança e sentido de união se corroeram. Essa “fragilidade do nós” e sua conseqüente afetação do vínculo social, também seguindo Lechner, provocam um recolhimento dos cidadãos à vida privada e à família, com o lar transformado em uma fortaleza sitiada e sobrecarregada. A crise da família nuclear, tão visível, por exemplo, em um país como o Uruguai, que tem as taxas de divórcio mais altas do continente e que viu o panorama de seus “arranjos familiares” transformar-se vertiginosamente, não foi acompanhada por mudanças correspondentes no projeto das políticas de cidadania e representação, tampouco, obviamente, no plano das políticas sociais e culturais ou para as “novas famílias”. No âmbito desses novos contextos, é claro que já não se pode pensar a cidadania e a representação política como suportes da integração social e do desenvolvimento, especialmente com base nos velhos conceitos que até há pouco tempo nos ajudavam a
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viver. Menos ainda perante o desafio das sociedades que sofreram a “desincorporação” de fortes camadas da população. Sem retóricas nem visões ingênuas, deve-se assumir radicalmente esse desafio de renovação teórica porque, caso contrário, corre-se o risco de impulsionar políticas públicas supostamente igualitárias, que apenas vão gerar novos circuitos de exclusão.
Políticas culturais e desenvolvimento Nunca, como tem ocorrido hoje, as políticas culturais devem ser pensadas como políticas sociais, ao mesmo tempo em que também nunca foi tão necessário fortalecer as bases culturais do desenvolvimento consistente e sustentado. E isso requer a interseção entre o local e o global (a dimensão do “glocal”, conforme assinalou mais de um autor), ou a vigência dos enfoques “intermésticos”, que unam o internacional e o doméstico, o distrito e o mundo. As políticas culturais constituem uma variável do desenvolvimento em qualquer sociedade. E é muito bom que voltemos a falar de desenvolvimento na América Latina, porque fazia muito tempo que não falávamos disso. Parece que tínhamos sido dominados por uma espécie de medo de utilizar essa palavra. Com base na leitura apressada, e freqüentemente enviesada, dos fracassos das abordagens desenvolvimentistas dos anos 1960, o discurso político e, fundamentalmente, o econômico haviam sido dominados pelos enfoques curto-prazistas, com base na primazia de uma perspectiva ultraliberal que pressupunha o desenvolvimento como uma variável absolutamente inescrutável, que não devia ser pensada a médio e longo prazos. É bom que não só em economia, mas no plano do social, da política e também da cultura voltemos a falar de desenvolvimento. E é melhor ainda que voltemos a discutir em nossas ágoras não somente o possível (necessariamente móvel, inclusive no plano de restrições poderosas como as de hoje), mas também o desejável, e que se volte a dialogar e polemizar em torno de direitos e obrigações. Devemos advertir também que a construção de políticas hoje, no âmbito de sociedades nas quais o Estado já não pode tanto quanto podia antes, implica evitar atalhos preguiçosos, atalhos simplistas. Aqui a grande questão volta a ser, entre outras coisas, perguntarmos qual Estado e quais instituições públicas queremos e de quais necessitamos. Ou como construir uma política moderna, porém efetivamente integradora, que não seja “estadocêntrica”, ou ainda como investigar qual modelo de relação entre Estado e instituições como os partidos e as múltiplas e diversas organizações da sociedade civil é o mais fecundo para renovar as vias de comunicação e .45
representação. Descobrir, enfim, como contribuir da melhor maneira para a construção de espaços públicos não-estatais e como acabar com essa estatização do que é público, que tantas vezes nos impediu de pensar a política, a sociedade e a cultura de maneira mais livre. Precisamente um dos exemplos mais ilustrativos da necessidade dos governos da região de encarar, com o devido radicalismo, o desafio de uma reinvenção da cidadania tem a ver com os programas e as formas de aplicação de políticas sociais – inclusive as culturais – em contextos de emergência social. De fato, se não se quer que os programas de emergência se tornem assistencialistas, mas comecem a atacar as estruturas de exclusão, é imperativo que os beneficiários das novas políticas públicas se tornem, de modo crescente, sujeitos e não simples objetos da ação pública.
Robert David Putnam (Rochester, Nova York, 1941-), cientista político e professor na Universidade Harvard. Em seu mais famoso e controvertido trabalho, Bowling Alone (1995), afirma que os Estados Unidos experimentam, desde 1960, um colapso sem precedentes em sua vida cívica, social, associativa e política (capital social), com graves conseqüências para o conjunto de sua sociedade.
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Bernardo Kliksberg, economista e sociólogo argentino, é consultor de organismos supranacionais como ONU, Unesco, Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Organização dos Estados Americanos (OEA). Publicou mais de 30 livros, entre os quais se destacam Pobreza, un Tema Impostergable (Fondo de Cultura Económica, 1997), Social Management (ONU, 1997) e Repensando o Estado (Unesco/ Brasil, 1998).
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Trata-se de criar políticas públicas projetadas, desde seu núcleo, com base nessa nova abordagem de cidadania e com uma forte aposta de induzir a organização (independentemente de algum interesse partidário ou ideológico e não subalterno) dos “não-organizados”, que costumam ser, em nossas sociedades, os mais pobres dos pobres, os invisíveis, aqueles que não podem sequer amplificar suas demandas perante o desprezo da sociedade midiática e das redes corporativas. Um governo na América Latina que se limite a responder às demandas dos atores tradicionais com certeza não alcançará os mais excluídos, precisamente aqueles que devem fundar o “direito de terem direitos”. Conforme diversos autores, como Putnam7 ou Kliksberg8, entre tantos outros que poderiam ser mencionados, a globalização atual, se for observada de maneira profunda, volta precisamente a ratificar que o principal capital é o “capital social”, e que este, como Lechner soube ensinar, deve ser visto como “problema cultural”. No texto de uma palestra realizada na Associação Alemã de Pesquisa sobre a América Latina, em Berlim, em novembro de 2000, após destacar os valores da “confiança, da reciprocidade e do civismo” como alicerces do “capital social” e alertar sobre os crescentes déficits na “cidadanização da política”, a “corrosão dos imaginários coletivos” e a transferência do “eixo estruturador da convivência (…) do trabalho ao consumo”, Lechner concluiu com convicção: “(…) há bons argumentos para supor que o desenvolvimento de capital social está vinculado às constelações culturais predominantes na sociedade. Em particular, parece correto afirmar que a criação de capital social depende das representações coletivas que existirem do Nós. Quando esses imaginários sociais se tornam precários, as relações de confiança e cooperação também enfraquecem.”
Algumas considerações finais Com base em perspectivas não-provincianas, que incorporem o mundo sem copiá-lo mecanicamente e levem em consideração as exigências do “distrito”, conforme aconselhava o uruguaio Couture, muitas coisas mudam. Tomemos, por exemplo, a noção de patrimônio cultural nacional. Como García Canclini e outros autores também estudaram, houve uma modificação radical nos conceitos que orientam hoje os questionamentos sobre o que é válido em cultura, o que deve entrar no cânone ou não. Um patrimônio concebido como instrumento de uma política cultural renovada se redefine em um sentido muito mais aberto, o qual permite uma incorporação mutável entre o arcaico, o residual e o emergente. Concepção que rejeita a noção de patrimônio cultural como formado por um conjunto de bens e práticas que recebíamos como “um dom” de um passado ancestral que, do alto de seu imbatível prestígio simbólico, não cabia discutir. Hoje se discute genuinamente como eliminar certo fundamentalismo das noções de patrimônio cultural, como evitar definilo de maneira restrita à área do nacional, como provocar no cidadão uma relação mais livre e criativa com o patrimônio. Como, enfim, propor uma visão mais refinada e atual para que a sociedade possa criar formas inovadoras de se apropriar de suas histórias e memórias coletivas. Se falarmos sinceramente sobre essas questões, não podemos, obviamente, omitir a questão do financiamento. E esse é um tema freqüentemente evitado por aqueles que estudam as questões culturais porque, de alguma maneira, ainda soa mal entre nós o vínculo entre dinheiro e cultura. Sem dúvida, nesse preconceito se vislumbra toda uma noção arcaica restritiva, e até aristocratizante, do que entendemos por cultura que, entre outras coisas, omite o fato de que as chamadas indústrias culturais cada vez mais proporcionam muito trabalho e configuram realidades econômicas nada desdenháveis em nossos países. E, assim como não podemos falar de políticas culturais sem política, tampouco podemos fazê-lo ignorando seus suportes econômicos. Conhecer esses suportes econômicos ou, em outras palavras, conhecer a configuração material dos fenômenos culturais é exigência da formulação de políticas públicas culturais. Se não, como seria possível pensar sobre a sorte de nossa identidade cultural sem saber a quais regras materiais está submetida a produção cultural em um âmbito de globalização e regionalização? Como refletir sobre os problemas dos trabalhadores da cultura quando estes não são vistos e percebidos como tais? Como impulsionar a promoção de nossas obras culturais quando não conhecemos as condições do mercado regional e internacional? Como podemos pensar na cultura se não sabemos o que a cultura produz em termos de construção econômica? .47
Não temos ainda uma noção adequada no tocante à conceituação e à forma como se auto-representam hoje os agentes culturais, entendidos como agentes econômicos. Não sabemos qual é o valor da produção cultural em áreas vitais. Não sabemos, tampouco, como esses novos contextos de mercado estão implicando e condicionando a concorrência cultural. A ausência de informação rigorosa sobre esses e outros tópicos conexos constitui uma carência formidável que devemos começar a superar de maneira impostergável. No terreno da cultura, ao contrário do que algumas visões defendem, faltam muitos diagnósticos, e sobretudo diagnósticos rigorosos. Em nossos países ainda são necessários muita pesquisa e muito estudo com base empírica consistente no que se refere aos temas da cultura. Isso é decisivo como suporte de uma renovação efetiva de políticas públicas na área. Em segundo lugar, quando se fala de políticas culturais dos governos, muitas vezes se escolhe o atalho preguiçoso da tábula rasa, da hora zero, do começar tudo de novo, sem buscar acúmulos. A cultura é cumulativa por definição, nunca é um afresco instantâneo. Ela se perfila e se constrói por tradições, gostemos ou não. E, em particular, se quisermos inovar profundamente nesse campo, devemos pensar a longo e médio prazos, o que implica assumir acúmulos, aprender que o mundo não começa conosco, que as políticas culturais não prosperam nem se arraigam com base nas cisões culturais. Em terceiro lugar, por tudo o que foi assinalado, é óbvio que acreditamos que são necessárias políticas culturais ativas, com impulsos reformadores, com uma forte reivindicação do espaço da política. Porém, tampouco podemos cair na política populista que não escolhe, que não seleciona. Trata-se de formular políticas ativas, porém com seleção rigorosa. Mas quem define os critérios de seleção em uma construção democrática? Quem define o que se deve ou o que não se deve financiar? Como se define a coleção patrimonial que é sempre imprescindível? Aqui voltamos aos teóricos clássicos da democracia: a democracia nunca pode ser concebida como uma cultura única. A democracia é sempre um pacto de culturas. Não podemos construir democraticamente políticas culturais para sociedades integradas, se não for com base na solidariedade entre os diferentes e na reinvenção permanente da política. De modo que uma base absolutamente indispensável para uma política cultural democrática será isso, ambientar pactos entre culturas, ambientar um pluralismo efetivo e não simplesmente a “tolerância” resignada do diverso que não nos transforma nem interpela. Por último, também uma genuína cosmovisão nos apresenta outra exigência para deixar de lado as perspectivas provincianas: a necessidade imperiosa de apostar na flexibilidade, na ênfase nas .48
questões do conhecimento, na inovação, nos recursos humanos, na profissionalização da gestão cultural, na recusa de aceitar a mera cópia de receitas importadas. Principalmente no plano cultural e no de suas políticas, nem todas as sociedades se transformam igualmente. E aqui temos exemplos muito saudáveis que nos vêm das políticas científicas e tecnológicas aos quais poderíamos recorrer. Entre elas, uma que é aceita por muitos pesquisadores de ciência básica: a idéia do “alfaiate tecnológico”, aquele que é capaz de interpretar um problema ou uma necessidade e buscar uma solução original que projeta alternativas sob medida para aqueles aos quais se destina sua política. Hoje em dia, 80% de um projeto adaptado na área tecnológica, por exemplo, é valor agregado de conhecimento local. Isso também teria que valer para o projeto desafiante de políticas culturais efetivamente renovadas e genuinamente distanciadas de provincianismo. Em momentos nos quais o processo de integração regional navega entre muitos avatares e que, embora em diferentes medidas, os estados da região o reconhecem em suas respectivas sociedades, impõe-se mais do que nunca maior formalização da rede de pesquisadores e centros dedicados ao estudo da cultura e das políticas culturais em suas mais diversas implicações. A criação de um observatório cultural de projeção regional contribuirá, sem dúvida, de maneira decisiva para isso. Em primeiro plano, permitirá confirmar e ajustar sintonias no estudo e na implementação das políticas culturais, terreno privilegiado para a conectividade de iniciativas procedentes de nossos países e de suas localidades. Da mesma maneira, contribuirá para refinar os diagnósticos e acumular dados com base em perspectivas efetivamente comparadas, chave para seu melhor aproveitamento e para habilitar um melhor impacto na melhoria das práticas e desempenhos dos atores. Ao mesmo tempo em que melhorará a qualidade e a validade da informação obtida, esse observatório poderá propiciar iniciativas e enfoques originais que sustentarão, de maneira concreta, a base cultural de múltiplos temas e problemáticas, freqüentemente implementadas com alheamento a essas dimensões inevitáveis (referimo-nos às sustentações culturais das políticas de desenvolvimento, de integração regional, de descentralização, de cooperação, entre tantos outros exemplos que poderiam ser mencionados). Com base nesse tipo de perspectivas mais radicais, ao mesmo tempo em que nos afastamos dos males anteriormente mencionados do provincianismo em um mundo interconectado como nunca antes na história universal, talvez possamos alicerçar melhor as respostas políticas que as nossas sociedades, em nível local e regional, estão a exigir. .49
Economia da cultura e desenvolvimento Panorama geral e sugestão de debates para não-economistas Ana Carla Fonseca Reis1 Parece-me sempre útil, quando o tema de debate é economia da cultura, realizar uma pequena digressão histórica. Uma pincelada aqui e ali nos permite analisar como, ao longo dos séculos, a cadeia de produção, distribuição e consumo de produtos, serviços e manifestações culturais veio sendo percebida. Na busca dessas fascinantes relações que se estabeleceram no passado, alguns relatos são particularmente sugestivos. Um deles se refere à criação da Accademia di San Luca, na Roma dos idos de 1478. A necessidade de balancear o poderio que os aristocratas e clérigos detinham na encomenda das obras de arte e conferir dignidade aos artistas suscitou
1 Administradora pública (FGV/SP), economista e mestre em administração (FEA/USP), doutoranda em arquitetura e urbanismo (FAU/USP), fundadora da empresa Garimpo de Soluções – Economia, Cultura e Desenvolvimento, consultora de economia criativa para a ONU e de investimento em cultura como estratégia de negócios para diversas empresas privadas.
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o surgimento dessa corporação de ofício que, em tradução livre, foi uma precursora dos sindicatos de artistas. Conta Haskett (1997) que, em 1633, a Accademia recebeu a autorização de cobrar um imposto de todos os artistas que trabalhavam em Roma, fossem ou não seus membros, e foi ainda agraciada com o monopólio de todas as encomendas públicas. Informação complementar nos chega por Vasari (2004), célebre biógrafo italiano do século XVI. Ele retratou ao longo de mais de mil páginas o vai-e-vem de muitos dos grandes pintores, escultores e arquitetos que se deslocavam por toda a península, conforme sopravam os ventos do mercado. Nada mais distante do quadro romântico que nos ocorre ao imaginarmos a vida dos artistas da época, supostamente garantida pela generosidade dos mecenas. imagem: Kiko Breda/acervo particular
Se a associação de obras de arte às classes dominantes, constituindo ao mesmo tempo veículos transmissores de mensagens, símbolo de status e poder e, por que não, prazer estético legítimo, não constitui novidade, a visão do mercado de obras de arte tampouco é invenção de nossos tempos. Porém, a abordagem sistêmica de fluxo e a percepção da necessidade de intervenção do Estado para corrigir distorções de mercado, em prol dos objetivos de política pública, só entrou em cena, como objeto de interesse da economia, na recente década de 1960. Surge a economia da cultura como disciplina econômica A economia da cultura surgiu por iniciativa não da economia, mas da cultura. Ou, melhor dito, de uma instituição dotada de perspectiva privilegiada da dinâmica cultural. Preocupada com os custos crescentes de eventos e companhias de artes do espetáculo, a Fundação Ford solicitou a dois economistas, Baumol e Bowen, que desenvolvessem uma análise do setor. Sua conclusão, como é sabido, constatou que os custos crescentes em termos relativos se davam pelo fato de esses espetáculos serem intensivos em mão-de-obra, terem um número constante de artistas necessários para a representação da obra e não se beneficiarem dos avanços tecnológicos que impulsionavam a produtividade dos outros setores. Afinal – argumentariam os autores –, uma sinfonia de Mozart requer o mesmo número de músicos, hoje ou no século XVIII, independentemente da tecnologia moderna. Ressalvas feitas com o benefício da perspectiva histórica, o estudo dos dois economistas desbravou um campo ainda inexplorado: o dos bens e serviços culturais, sob a ótica econômica. .51
Desde então, várias pesquisas se seguiram. Como seria de esperar, no rastro dessas análises práticas surgiu uma publicação especializada no tema, voltada a artigos e aplicações de densidade, o Journal of Cultural Economics, que estreou em 1975. Foi a partir da década de 1970, porém, que a economia da cultura tomou corpo, tendo sido inclusive reconhecida como disciplina econômica, em 1992, pela American Economic Association. Grosso modo, os estudos voltados à economia da cultura desdobram-se em duas vertentes: os de microeconomia, em especial voltados à teoria da firma; e os de macroeconomia, que analisam a questão de forma agregada. O presente texto enquadrase na segunda linha, buscando ressaltar o fluxo da cadeia de valor de bens e serviços culturais e os mecanismos de intervenção e ajuste à disposição do Estado, sob uma ótica não apenas cultural, mas de desenvolvimento, requerendo a integração de diferentes políticas públicas. 2
Economista indiano nascido em 1933, recebeu o Prêmio Nobel de Economia de 1998 por seus estudos sobre a teoria da decisão social e do estado de bem-estar. Sua maior contribuição foi mostrar que o desenvolvimento de um país está essencialmente ligado às oportunidades que ele oferece à população de fazer escolhas e exercer sua cidadania: “Vivemos em um mundo de opulência sem precedentes, mas também de privação e opressão extraordinárias. O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de cidadãos”.
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Palavra que suscita uma miríade de definições, “desenvolvimento” será entendido, aqui, conforme proposto pelo economista Amartya Sen2 em sua brilhante obra Desenvolvimento como Liberdade. Para o autor, a ampliação da liberdade de escolha pressupõe não só a decisão em si, mas o processo que a engendra. Defende, portanto, a capacidade de tomar decisões conscientes e o acesso às informações que subsidiem essa escolha. Tomado por esse ângulo, o desenvolvimento só é viável se abranger, simultaneamente, direitos políticos, sociais, econômicos e culturais. Já vimos, nas últimas décadas, que crescimento econômico não gera necessariamente inclusão social. O acirramento das desigualdades na sociedade brasileira é a prova mais cabal, não obstante a posição do país entre as dez melhores posições no ranking do PIB mundial. Por outro lado, vivemos em uma sociedade capitalista, e defender o desenvolvimento social sem considerar o desenvolvimento econômico é uma quimera. Ora, os bens e serviços culturais, por definição, navegam por dois fluxos paralelos. Enquanto seus suportes, sejam eles bens culturais (tangíveis), sejam manifestações ou serviços culturais (intangíveis), têm valor econômico e são mediados por preços; no que se refere ao seu valor simbólico, de transmissão de mensagens (por exemplo, de elevação da auto-estima, reforço da identidade, promoção da democracia), operam no fluxo social. Em decorrência, os bens e serviços culturais possuem um potencial único de promover, complementarmente, o desenvolvimento social e o econômico.
Fluxos e gargalos Para que esse potencial se concretize, porém, a cadeia de valor deve poder fluir sem gargalos. Assim, a produção de bens e serviços culturais requer profissionais capacitados, sejam eles artistas, sejam produtores culturais ou administradores de equipamentos culturais. Sem o reconhecimento econômico da produção cultural, a própria diversidade entra em risco. Quando o último mestre de um ofício cultural específico não consegue atrair aprendizes (afinal, estes têm de se dedicar a atividades que lhes ofereçam possibilidade de ganhos) e eventualmente tem de abdicar de sua prática cultural para se dedicar a uma atividade que o remunere, o saber cultural que ele detém entra em via de extinção.
Bens e serviços [preço]
g
Oferta & produção
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g
Educação e treinamento
g
g
Democracia de acesso
Demanda & consumo
o
o
o Símbolos e mensagens [valor]
Mercado & distribuição
g
Liberdade de escolhas
C U LT U R A REIS e DEHEINZELIN, in REIS, Ana Carla F., Economia da cultura e desenvolvimento sustentável – o caleidoscópio da cultura.
Por sua vez, a democracia de acesso só se realiza quando o controle da distribuição é pulverizado. Infelizmente, o que temos acompanhado nos últimos anos é o acirramento da concentração dos meios de distribuição em termos mundiais. Segundo dados da Unesco, mais de 80% das salas de cinema do planeta estão nas mãos dos grandes conglomerados internacionais. Números divulgados pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) revelam que não menos de 70% do comércio mundial de música é controlado por quatro empresas. No Brasil, a magnitude da presença do grupo Globo na mídia de massa é uma crítica corriqueira, assim como a feita aos grupos Televisa (México) e Cisneros (Venezuela). Uma das maiores contribuições da economia da cultura é explicitar, portanto, que a diversidade cultural fica enfraquecida quando não há circulação de sua produção e que a concentração dos canais de distribuição legitima a intervenção do Estado no mercado cultural. .53
Exclusão digital como exclusão cultural O enlace entre globalização e novas tecnologias trouxe novo alento à minimização dos gargalos de distribuição de conteúdos culturais. Além de acenar com a possibilidade de ampliar mercados, torná-los mais acessíveis (em custo e tempo) e promover um fluxo financeiro mundial, facilitaria a produção ao disponibilizar softwares específicos (música, filmagem, edição) e tornar esses conteúdos acessíveis em escala mundial. A realidade, porém, nem sempre reflete essa teoria. O déficit de educação formal, a conivência desmedida de nossos governantes com a baixa qualidade de ensino e com níveis catastróficos de analfabetos funcionais, aliados à indisponibilidade de computadores e de acesso à internet, fazem com que o abismo digital seja cada vez mais concreto. Se os programas de inclusão digital são implantados em progressão aritmética, o avanço das tecnologias digitais, a falta de incentivo à prática de reflexão existente no sistema educacional e as conseqüentes barreiras de entrada para o uso e a prática das tecnologias digitais avançam em progressão geométrica. Com isso, a exclusão digital acaba reforçando a própria exclusão cultural nos três grandes pontos da cadeia: na produção, ao tolher a capacidade de criar de maneira alternativa (por exemplo, kits multimídia), na distribuição dessa produção em escala mundial (por exemplo, download na rede) e no consumo (dado que a população excluída não tem acesso à produção disponibilizada digitalmente). Os números da cultura Os estudos de impacto econômico abarcam uma variedade de metodologias (método de avaliação contingente, análise de insumoproduto, estudos da cadeia setorial etc.) e se referem a ações, projetos, setores ou ainda àquilo que se define como recorte da produção cultural de uma determinada região ou país. Eles permitem quantificar a faceta econômica da produção cultural com potencial de mercado, tornando claro que recursos destinados à cultura não são despesas, mas, sim, investimentos. Ademais, a sistematização de dados relativos aos produtos e serviços culturais permite aos gestores públicos identificar os setores com menor potencial de mercado, oferecendo subsídios para a calibragem da repartição orçamentária e a aplicação de instrumentos de intervenção. O reconhecimento dessa importância tem levado países dos mais diversos perfis a promover o levantamento dos números da cultura. Em fins de 2006, a Comissão Européia publicou dados relativos à .54
economia da cultura em 30 países europeus, revelando extrema variabilidade de impacto econômico (de 0,2% do PIB, em Malta, a 3,4%, na França). Mais importante do que os números absolutos, entre 1999 e 2003 o crescimento do setor foi 12,3% superior ao do total da economia na região. Nos Estados Unidos, levantamento da Associação Internacional de Propriedade Intelectual (IIPA) estima que as indústrias culturais tenham respondido, em 2004, por 11,1% do PIB do país (1,3 trilhão de dólares). No mundo, dados cruzados entre Unctad (Conferência de Comércio e Desenvolvimento – ONU) e Unesco estimam que os produtos e serviços culturais representam cerca de 7% do PIB. Entretanto, mais uma vez o oligopólio dos canais de distribuição e a existência de gargalos que asfixiam a cadeia de valor, em especial nos países em desenvolvimento, reforçam as desigualdades na circulação dos recursos gerados. Segundo relatório da Unesco, a América Latina e a Ásia, juntas, contribuíram no período 1994-2003 com não mais do que 3% de todo o fluxo internacional de bens e serviços culturais. No Brasil, o primeiro (e único) estudo de representatividade econômica da cultura nacional foi desenvolvido pela Fundação João Pinheiro, com dados levantados entre 1985 e 1995. Publicado em 1997, dava conta de que o PIB da cultura no Brasil era então de 0,8% (ou 5 reais per capita) e que cada real investido no setor gerava 6, por efeito multiplicador econômico. Muito embora as mudanças cavalares ocorridas na última década tanto na economia (estabilização macroeconômica, abertura do mercado etc.) quanto na cultura (diversidade de debates e reflexões, implementação das leis de incentivo nas três esferas públicas) tenham transformado esses dados em referências históricas, o estudo trouxe uma enorme contribuição para o debate da economia da cultura no país. Em fins de 2006 o IBGE divulgou os primeiros dados do Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2003. Em vez de realizar um levantamento novo, tratou de desagregar e sistematizar dados estatísticos de várias pesquisas do instituto. Excluindo o turismo e incluindo todas as indústrias e serviços de suporte à telefonia e acesso à internet, concluiu que os produtos e serviços culturais motivam 4% do pessoal empregado, 5,2% das empresas formais, 4,4% das despesas familiares mensais e apresentam remuneração média de 5,1 salários mínimos mensais por trabalhador (comparada a 3,3 salários mínimos mensais pagos pelo total da economia brasileira). Tomando a questão pelo lado da demanda, os pesquisadores Isaura Botelho e Maurício Fiore, do Centro de Estudos da Metrópole, desenvolveram um dos estudos mais significativos já feitos no país. Analisando 22 práticas culturais e utilizando uma amostra de 2.002 entrevistados na região metropolitana de São Paulo, as conclusões foram lapidares. Em primeiro lugar, ressaltou-se a .55
complementaridade entre práticas domiciliares e externas: DVD e cinema reforçam o gosto pelo audiovisual, assim como CD e concertos não se substituem, ao contrário, se complementam na cesta de consumo dos aficionados por música. Além disso, o estudo corroborou conclusões reveladas também por pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos, na França e na Espanha, no sentido de que um importante fator decisório da participação cultural de um adulto é a familiaridade que desenvolve com as manifestações e práticas culturais quando criança. Por familiaridade não se entende apenas a educação formal (como visitas escolares a museus e teatros), mas a exposição da criança ao universo cultural por meios variados, como em casa ou nos demais círculos que freqüenta. O célebre “gosto adquirido” pela cultura faz com que a criança, ao crescer, sinta-se à vontade no meio cultural e se ressinta quando não freqüenta ou pratica atividades culturais. Ressalte-se, com isso, que a integração das políticas cultural e educacional é lapidar para promover o desenvolvimento ancorado em cultura. Recuperações urbanas – ponta de lança da economia da cultura Uma das aplicações mais visíveis da economia da cultura se dá quando, aliada ao urbanismo, integra um programa de desenvolvimento socioeconômico por meio de revitalizações urbanas. Um dos exemplos mais conhecidos nos chega de Bilbao, na Espanha. Ao contrário do que se poderia pensar, a criação do Museu Guggenheim na cidade não foi o motivador do programa, mas, sim, uma de oito estratégias traçadas por uma parceria público-privada de recuperação da região basca espanhola. O museu foi adotado como alavanca de reposicionamento da imagem da cidade no mundo (e, de fato, inseriu Bilbao no noticiário e no turismo mundiais), mas foi apenas uma das facetas visíveis de um complexo programa de recuperação da estrutura econômica da região. Segundo dados do museu, em 2004 seu impacto econômico foi de 184 milhões de euros, tendo também criado 4.842 empregos e gerado 30 milhões de euros em impostos adicionais. Outro exemplo interessante é o das áreas de Butler’s Wharf e South Bank, em Londres. Duramente degradada após os bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial, a região viu sua população declinar de 50 mil para 4 mil habitantes. O projeto de demolição da área, em 1977, gerou grandes manifestações populares e a inseriu em um amplo programa de promoção da criatividade como alavanca de crescimento econômico no Reino Unido (Cool Brittania), impulsionado pelo governo trabalhista a partir de 1997. Um de seus ícones mais visíveis é a Tate Modern Gallery, que gerou 3 mil novos empregos e motivou o aumento de 23% no número de hotéis e restaurantes dos arredores. .56
Outros exemplos já viraram emblemáticos, como Barcelona, Baltimore e Puerto Madero, em Buenos Aires. No Brasil, alguns projetos engatinham nesse sentido mas dotados de características próprias, como os motivados pelo Programa Monumenta e a recuperação de circuitos históricos, a exemplo da Estrada Real, nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Justificada a intervenção governamental, o que fazer? Tendo em vista que: a) a cultura apresenta externalidades positivas (portanto, não contempladas pelo mercado); b) investimentos em cultura podem turbinar o motor de desenvolvimento; e c) os gargalos na cadeia de valor de produtos e serviços culturais são fatores impeditivos desse desenvolvimento, a intervenção governamental no mercado de bens e serviços culturais é mais do que justificada. Os instrumentos à disposição do governo para corrigir essas distorções de mercado ante seus objetivos de política pública são os mais variados. Embora as leis de incentivo à cultura (federais, estaduais ou municipais) sejam amplamente utilizadas, há um grande leque de alternativas. Entre elas, destacam-se os subsídios às instituições culturais (para sua manutenção ou programação), os subsídios diretos a artistas (bolsas, seguro-desemprego, isenção de impostos), a criação de fundos de cultura (para financiamento de projetos de interesse público e com pouco apelo comercial) e toda uma gama de financiamentos públicos indiretos, como discriminação de preços (a exemplo da meia-entrada), cheques culturais, privilégios fiscais, taxas e cotas específicas. O que se faz óbvio, porém, é que o sucesso da aplicação desses instrumentos depende da identificação dos objetivos a que se destinam. Essa discussão vem ganhando corpo com os debates em torno da Lei Rouanet e da do Audiovisual. Embora o governo federal comemore estrondosamente os recordes anuais de captação de recursos, resta saber como a aplicação desses montantes ajudou a atingir os objetivos de política pública da cultura. Mensagem final Tendo postergado seu reencontro por muitos séculos, a economia e a cultura parecem finalmente ter voltado a falar uma língua comum. Conforme nos revelam os exemplos mencionados ao longo deste artigo, já era hora. A utilização do conhecimento de mercado e das metodologias econômicas a serviço dos objetivos de política cultural revela que a cultura não só é capaz .57
de promover valores democráticos, reforçar as identidades de uma sociedade, incrementar a qualidade de vida, favorecer a criatividade e a inovação de um povo, mas também possui uma faceta econômica fundamental para gerar a inclusão em uma sociedade em desenvolvimento. Para que essa discussão seja de fato concretizada, é necessária, antes de qualquer coisa, a conscientização desse potencial. Essa missão envolve não somente o governo e a sociedade civil, mas também o setor privado, com o aporte de recursos a programas culturais, incorporando-os à sua estratégia de negócios (mais além de projetos de marketing cultural e de responsabilidade corporativa) e, claramente, beneficiando-se desses investimentos. As experiências internacionais nos mostram que a economia da cultura franqueia um caminho promissor para o desenvolvimento. Cabe a nós, agora, encontrar nossa própria trilha.
Referências bibliográficas BOTELHO, Isaura; FIORE, Maurício. O uso do tempo livre e as práticas culturais na região metropolitana de São Paulo. 2005. Disponível em: www.centrodametropole.org.br/t_pesq_antes.html. EUROPEAN Commission. The economy of culture in Europe. 2006. Disponível em: http://ec.europa.eu/culture/eac/sources_info/studies/economy_en.html. HASKETT, Francis. Mecenas e pintores – arte e sociedade na Itália barroca. São Paulo: Edusp, 1997. INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sistema de informações e indicadores culturais. 2006. Disponível em: www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/indic_culturais/2003/default.shtm. INTERNATIONAL Federation of the Phonographic Industry (IFPI). The recording industry. 2005. INTERNATIONAL Intelectual Property Alliance (IIPA). Copyright industries in the US economy report. 2006. Disponível em: www.iipa.com/pdf/2006_siwek_full.pdf. REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável – o caleidoscópio da cultura. São Paulo: Manole, 2006. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. UNESCO. International flow of selected cultural goods and services 1998-2003. Disponível em: www.uis.unesco.org/template/pdf/cscl/IntlFlows_en.pdf. VASARI, Giorgio. Le Vite dei Più Eccellenti Pittori, Scultori e Architetti. 7. ed. Roma: Newton Comptom Editori, 2004.
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Observatório da Cultura: entre o óbvio e o urgente José Márcio Barros1 Começo pelo óbvio, por entender que aquilo que salta aos olhos em suas evidências compartilhadas tanto ilumina caminhos como se transforma em esquecimento. Começo, portanto, com o básico: a própria definição. Penso observatório como uma estrutura dinâmica de trabalho que atualiza a velha questão da pesquisa aplicada. Parte-se de questões reconhecidas como permanentes, recorrentes ou emergentes numa dada realidade vivida. Por tais qualidades, as questões demandariam esforços de acompanhamento sistemático, crítico e continuado por meio da busca, do tratamento, da organização e da disponibilização de informações, visando à superação ou à consolidação das realidades estudadas. Tal perspectiva pressupõe a crença na informação transformada em conhecimento como agente de consolidação ou superação de realidades sociais. Dois desafios se apresentam: • como enfrentar o problema na chamada “sociedade da informação”, na qual o excesso de informação não gera conhecimento em quantidade e qualidade proporcionais? • como articular conhecimento e realidade sob a perspectiva da permanência e da mudança? A complexidade está, portanto, não apenas no objeto (a cultura, a economia da cultura, políticas culturais), mas também no próprio modelo de trabalho que se elege, um observatório.
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Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e da Diretoria de Arte e Cultura da PUC de Minas Gerais, e coordenador do Observatório da Diversidade Cultural da PUC Minas. .59
Numa sociedade de “descolamento” entre informação e conhecimento, observatórios enfrentam não apenas o desafio das realidades vividas, mas também aquilo que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e tantos outros especialistas chamam de os desafios do conhecimento no século XXI. Arrisco uma primeira proposição: tanto é importante definir os objetos e os métodos de um observatório quanto explicitar os pressupostos sobre os quais ele se funda. Se há uma concordância quanto aos riscos de uma “sociedade da informação” não produzir uma “sociedade do conhecimento”, um observatório tem a enfrentar, necessariamente, os clássicos desafios do “quem, como, onde, por que e para quem”.
imagem: Daya B/acervo particular
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Jacques Delors (Paris, 1925-), economista pela Sorbonne, foi ministro das Finanças da França (1981) e presidente da Comissão Européia entre 1985 e 1995, quando se destacou pelo empenho no relançamento da construção da União Européia. Autor e organizador do relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI: Educação, um Tesouro a Descobrir (1996), em que se exploram os Quatro Pilares da Educação. “A educação deve transmitir, de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro.”
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Decorre da questão a necessidade de pensar que: • sua arquitetura e funcionamento poderiam integrar, de modo interdisciplinar, diferentes pesquisadores e especialistas portadores de diferenças espaciais, temporais e teóricas. Um observatório deve assumir caráter plural na composição de suas capacidades críticas relacionadas a suas bases conceituais e suas referências espaciais e temporais. Onde quer que ele esteja ancorado espacialmente, a forma de operar de um observatório deve reunir olhares e sujeitos de diferentes contextos sociocientífico e cultural; • sua ação, para além da produção de conhecimento, deve se comprometer com a formação de competências, ou seja, certo compromisso com a perspectiva de formação de um número cada vez maior de competências “a serviço” da cultura. Para além de gerar conhecimento com base em informações culturais, deve haver compromisso em formar competências para o trabalho com indicadores culturais; • seu modo de operar precisa se adequar, desde a origem, aos desafios inclusivos contemporâneos. Para além dos compromissos de disponibilização e circulação, por meio de várias e complementares mídias, a transparência e a acessibilidade a seus meios e métodos são centrais. Assim, os processos e as mídias colaborativas surgem centrais na construção e no desenvolvimento de propostas e projetos. Penso, portanto, num observatório ancorado no estímulo da aprendizagem e da mudança. Penso num observatório capaz de reunir e processar informação, produzir conhecimento e competências por meio dos desafios que Jacques Delors2 apresentou em 1996 no Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, especialmente no que se refere ao aprender a conhecer e ao aprender a fazer. Dessa maneira, evitaríamos o risco de produzir um conhecimento que em seu processo e produto negaria o que singulariza seu objeto: a cultura como experiência fundamental do encontro e da troca.
Dessa forma, estaríamos pesquisando as culturas em suas mais diversas formas e significados, mas produzindo, por meio do conhecimento, uma experiência cultural perdurante3.
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COELHO, Teixeira. Cultura na universidade. São Paulo: Jornal da USP, ago. 1997.
Um observatório como uma rede dinâmica de sujeitos e práticas em torno de objetos comuns, construídos com base no equilíbrio entre demandas e possibilidades de interação de grupos de pesquisadores distribuídos no tempo e no espaço. Enfim, um observatório que enfrente a falta de informação, mas também os riscos da obesidade informativa a que se refere Ciro Marcondes Filho, professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP. O campo cultural Mas o que eleger como objeto de um observatório com tais características? Que recorte poderia ser estrategicamente realizado para dar conta da amplitude e complexidade do que se designa sob a legenda da cultura, evitando-se a indeterminação de direção e foco? Não há como fugir de escolhas de modo que se evite um “apetite antropológico” que abarque a totalidade, trocando-as por uma capacidade de realizar cortes que possam produzir conhecimento a ser totalizado. Penso em alguns pressupostos: • a cultura deve ser investigada como realidade plural e dinâmica. Isso significa que, além da diversificação de contextos, modelos, processos e experiências culturais a ser investigadas, as fronteiras e as contaminações entre essas realidades devem merecer atenção e destaque. Dessa forma, além dos campos tradicionais da cultura – artes cênicas, artes visuais, audiovisual, literatura, música, memória e patrimônio, culturas tradicionais (folclore, artesanato, culturas de matrizes étnicas) –, os cruzamentos e as misturas entre si precisam ser também objeto de tipologias móveis e dinâmicas capazes de perceber não apenas as convergências de suportes técnicos, mas também os modelos de criação e de consumo híbridos e contaminados, que se mostram mais complexos que a tentativa de síntese do conceito de artes integradas e que mobilizam cada vez mais o cenário cultural metropolitano; • a cultura, devido a sua pluralidade e capilaridade, tanto se manifesta nos espaços institucionais convencionais quanto nos espaços informalmente instituintes. Para além dos conceitos de mercado formal e informal, trata-se de reconhecer aquilo que é tornado invisível nas pesquisas, posto que classificado como anônimo, periférico, residual e ilegal; • a cultura, portanto, deve ser pesquisada pelo cruzamento de diferentes perspectivas conceituais. A título de exemplo, apresento três que poderiam agregar objetividade e profundidade. O conceito de arranjos produtivos nos remete à idéia de articulação, interação e cooperação entre diferentes atores sociais, em determinadas .61
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Pierre Bourdieu (1930-2002), filósofo de formação, foi diretor da escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França) e consagrou-se como um dos maiores intelectuais de seu tempo. O mundo social, para Bourdieu, deve ser compreendido à luz de três conceitos fundamentais: campo, habitus e capital.
realidades territoriais. O conceito de cadeias produtivas nos remete à relação entre insumos e os ciclos de produção, distribuição e comercialização de bens e serviços culturais. Outro conceito aplicável à análise da cultura é o de campo, de Pierre Bourdieu4, entendido como uma construção teórica que permite compreender a realidade social de forma interativa, resultado das relações, tensões e disputas entre grupos sociais que instituem espaços com autonomia relativa e regras próprias. Pensar a cultura como um dos campos da sociedade permitiria compreendê-la de forma dinâmica. De acordo com Inesita Araújo (2000, p. 10): “Campo é um conceito que permite lidar ao mesmo tempo com estruturas materiais da sociedade – as organizações – e com o conjunto de valores e regras que as sustentam – as instituições. Permite perceber o modo como funcionam as homologias de posições (essenciais como fatores de mediação), as intersecções e os antagonismos entre os vários domínios. Permite, sobretudo, identificar novos campos transversais, processo que adquire cada vez mais relevância nos estudos da sociedade. Favorece, ainda, uma construção teórica e metodológica transdisciplinar. É um conceito operativo no âmbito macro da metodologia. Lembro que campo, em Bourdieu, é uma noção que não descarta, nem oculta o conflito; pelo contrário, um campo é definido por uma hegemonia, mas que se instala por uma luta de poder. A aparente homogeneidade de certos campos pode vir da doxa, senso comum compartilhado, mas que foi estabelecida a partir de disputas. Ou seja, uma hegemonia.” A abordagem da cultura por meio da idéia de campo permitiria que as pesquisas realizadas evitassem os riscos de idealização e autonomização do sujeito, sempre em voga em tempos de modismos gerenciais. Segundo Laplane & Dobranszk (2002, p. 58): “Contra o determinismo das análises estruturalistas, que reduzem o agente, segundo ele [Bourdieu], a um mero “portador” da estrutura, mas, por outro lado, sem cair na filosofia da consciência, embora dela preservando a possibilidade de considerar o agente como operador prático de construções do objeto, ele desenvolveu o conceito de campo: espaço definido por sua estruturação segundo suas próprias leis de funcionamento e suas próprias relações de força – cada campo é relativamente autônomo, muito embora entre os diversos campos (econômico, educacional, político, cultural etc.) exista uma homologia estrutural.” Tal como na perspectiva de Bourdieu sobre o campo literário, o campo cultural, entendido como uma dimensão dos campos sociais, se configuraria dinamicamente por meio de singularidades e universalidades simbólicas simultaneamente estruturais e conjunturais.
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Estratégias Com base nas proposições para um observatório da cultura, com as características até aqui delineadas, algumas estratégias se apresentam como alternativas viáveis e necessárias: • para além de colher dados, há o desafio de construir indicadores qualitativos e quantitativos sobre a cultura, entendida como campo, cadeias e arranjos produtivos. Tais indicadores deveriam ser capazes, inclusive, de diferenciar cultura e atividades de entretenimento e lazer, atribuindo-lhes pesos e significados diferenciados; • a busca de parcerias institucionais para a construção de bancos de dados confiáveis, apropriados às realidades culturais e abertos aos interessados, mostra-se tão importante quanto o conhecimento a ser produzido; • a realização de atividades de difusão, formação e crítica, sempre em parceria com institutos, universidades e instituições voltadas para a ação e a reflexão cultural, seria decorrência natural de um modelo de observatório como o proposto. No que se refere ao trabalho com a informação em matrizes quantitativas, penso que se deveria priorizar: • a ação conjunta com outras instituições, como IBGE, FGV, Ipea, BID, Unesco e outros observatórios e parceiros para a construção de indicadores específicos e confiáveis para a cultura. A padronização de fontes e indicadores, mas também a construção de novos parâmetros e ferramentas, poderia aprofundar os esforços e resultados realizados até aqui de forma que conferissem “harmonização internacional e comparabilidade com estatísticas nacionais”, produzindo-se universalidade e inteligibilidade dos dados e, portanto, extensão das informações (Lins, 2006)5. • a realização de estudos tendo como objeto plataformas de dados existentes ou a construir, com as quais se poderia eleger temáticas com base em três grandes campos: a) cadeias e arranjos produtivos da cultura, abarcando as dimensões de produção, distribuição e consumo de bens e serviços culturais, correlacionando os setores da indústria, de serviços e do comércio; b) monitoramento crítico de gastos e investimentos governamentais, privados e não-governamentais com a cultura nas esferas federal, estadual e municipal, organizados em setores correspondentes às câmaras setoriais hoje em vigor; c) análise contínua de hábitos de consumo cultural da população brasileira com base em segmentações várias.
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Essa é uma das recomendações do estudo Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2003, do IBGE.
Uma segunda direção, correlacionada à primeira, estaria mais preocupada em realizar análises qualitativas, centradas em cenários, sujeitos e práticas hegemônicas no campo cultural e em realidades circunscritas a dimensões específicas de contextos e conjunturas da cultura. .63
Como prioridades, entre as quais se escolheriam alternativas, arriscaria sugerir: • estudo sobre as relações de articulação e complementaridade entre os três níveis de governo (federal, estadual e municipal), correlacionado com as realidades culturais de cada esfera; • análise do comportamento de instrumentos de financiamento da cultura (incentivo fiscal, fundos, investimentos diretos e mercado) e suas relações de integração, complementaridade e sobreposição; • análise de modelos de gestão, dando prioridade às formas de decisão e compartilhamento de escolhas e ações; • diagnóstico dos recursos humanos artísticos, técnicos, educacionais e gerenciais relacionados à cultura, além de uma especial atenção às relações entre educação e cultura; • realização de estudos problematizando hábitos de consumo cultural e habitus culturais (na perspectiva de Bourdieu), buscando compreender os impactos da contemporaneidade nos modos de participar, expressar e criar da sociedade brasileira; • análise da cultura de corporações artísticas, carreiras artísticas e instituições culturais, oferecendo diagnósticos sobre modelos usuais de organização do trabalho com a cultura; • realização de estudos de experiências e modelos de inovação espontâneos e institucionais, de usos e apropriações de equipamentos culturais formais e informais; • realização de análise comparativa entre política cultural e diferentes políticas sociais nos âmbitos nacional e internacional; • construção de possíveis cenários futuros. Penso no observatório da cultura como lugar onde se processam e transformam informações, e não necessariamente onde se produzem tais insumos básicos para a pesquisa. Trata-se de um lugar que faz falar a informação de forma plural e compromissada com o conhecimento. Quanto às formas de divulgação e circulação, penso que devem se mostrar sintonizadas com os vários meios, as várias tecnologias e as diferenças de linguagens concernentes a cada uma. Uma política de informação deve ser construída de forma que coordene ações por meio de internet, suportes digitais, publicações impressas, televisão e rádio, seminários, cursos, palestras e concursos de trabalhos e pesquisas em bases de dados. O principal parece ser o compromisso com a multiplicação de meios em função da multiplicidade de interlocutores.
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Referências bibliográficas ARAÚJO, Inesita. Mediações e poder. Texto apresentado ao GT Estudos da Recepção, no Alaic 2000, Santiago (Chile), abr. 2000. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução de Sergio Miceli, Silvia de Almeida Prado, Sonia Miceli e Wilson Campos Vieira. São Paulo: Perspectiva, 1987. CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. In: A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000. v. 1. COELHO, Teixeira. Cultura na universidade. Jornal da USP, São Paulo, ago. 1997. LAPLANE, Adriana Friszman & DOBRANSZK, Enid Abreu y. Capital cultural: ensaios de análise inspirados nas idéias de P. Bourdieu. Horizontes, Bragança Paulista, v. 20, jan./dez. 2002, p. 59-68. LARA, Marilda Lopes Ginez de & CONTI, Vivaldo Luiz. Disseminação da informação e usuários. São Paulo Perspec., v. 17, n. 3-4, jul./dez. 2003, p. 26-34. LINS, Cristina Pereira de Carvalho. Indicadores culturais: possibilidades e limites às bases de dados do IBGE. Abr. 2006. Disponível em http://www.cultura.gov.br/upload/EdC_CristinaPereira_1148588640.pdf. MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação e jornalismo: a saga dos cães perdidos. 1. ed. São Paulo: Hacker Editores, 2000. p. 176. MARTINS, Maurício Vieira. Bourdieu e o fenômeno estético: ganhos e limites de seu conceito de campo literário. Rev. Bras. Ci. Soc., São Paulo, vol. 19, n. 56, out. 2004. WERTHEIN, Jorge. A sociedade da informação e seus desafios. Revista Ciência da Informação, Brasília, v. 29, n. 2, mai./ago. 2000.
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O desenvolvimento de pesquisas no campo das políticas culturais Isaura Botelho1 O mundo investe de forma expressiva no desenvolvimento de pesquisas e na produção de informações relevantes para a formulação de políticas públicas de cultura. Isso ocorre mesmo em países de tradição liberal, como Inglaterra e Estados Unidos, onde o poder público e a população resistiam a uma presença mais definida nesse campo. Desenvolver bases estatísticas tornou-se prioritário: o pressuposto é o de que a disponibilidade dos números será, por si só, de enorme utilidade. Sabe-se, no entanto, que a utilização de tais dados não é automática, e que isso merece especial atenção. Até agora, as pesquisas mais coerentes no campo das políticas culturais foram desenvolvidas por organismos ligados a Ministérios da Cultura ou homólogos, entendidos como responsáveis pela condução de políticas nessa área e mais propensos a impulsionar estudos que instruam suas decisões na matéria. No entanto, os cortes orçamentários que afetaram tanto instituições centralizadas (ministérios) como as que funcionam num modelo de gestão mais independente (administração a distância), mas financiadas pelos respectivos governos centrais, como ocorre nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, levaram à procura de instrumentos que melhor fundamentassem suas decisões. Conseqüentemente, o estímulo à produção de estudos e de pesquisas tomou um novo impulso.
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Doutora em ciências da comunicação pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pelo Departamento de Estudos e Perspectiva − Ministério da Cultura da França e mestrado profissionalizante em políticas culturais e ação artística pela Universidade de Bourgogne. Atualmente é pesquisadora da Fundação Memorial da América Latina e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
Esse novo momento traz para a linha de frente o debate sobre pesquisa básica e aplicada. Muitos dos novos investimentos em pesquisa de políticas culturais visam à realização de estudos de curto prazo, focados em necessidades de decisão política mais imediata, embora tenham beneficiado igualmente a coleta básica nos tradicionais moldes das ciências sociais. A França exemplifica essa ocorrência, já que mantém, paralelamente ao departamento de estudos do Ministério da Cultura, um sistema baseado em centros de pesquisa nas universidades, financiado pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS). No entanto, não necessariamente esses estudos – e seus responsáveis – dialogam entre si. Na Grã-Bretanha e nos Países Baixos, por exemplo, a tendência dos centros localizados em universidades é a de se tornarem firmas de consultoria, comprometendo seus vínculos com a pesquisa básica.
imagem: Cia de Foto
A pesquisa em política cultural municiará as decisões na matéria e criará critérios objetivos para a formulação de políticas públicas se abranger a promoção de estudos, a produção de bases estatísticas e a documentação. Na França, o Departamento de Estudos da Perspectiva e de Estatística (Deps), do Ministério da Cultura, cobre essas três vertentes; no entanto, em vários outros países elas se encontram sob a responsabilidade de organismos diversos, principalmente no caso das estatísticas. Ao se generalizar nos países desenvolvidos, pesquisas e estudos se estruturaram em torno do mercado de trabalho, da economia da cultura, da formação artística, do conhecimento dos públicos e de suas práticas. Organismos internacionais com o peso do Conselho da Europa, por exemplo, cumpriram um papel importante nesse novo cenário, tanto por suas inúmeras publicações, pela encomenda direta de estudos nacionais ou comparativos, como pela promoção de seminários e conferências internacionais. Os limites do universo dessas análises variam segundo as tradições nacionais. Alguns estudos se iniciam no campo estrito das artes e dos equipamentos culturais diretamente ligados a elas. Mesmo nesses casos, a tendência é ampliar esses limites de forma que abranjam o patrimônio e, mais recentemente, as indústrias culturais.
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O observatório entre os modelos de estudo Diferentes modelos institucionais orientam os estudos de políticas de cultura. O primeiro deles, considerado exemplar por muito tempo, é o de uma divisão de estudos e pesquisa no seio de um organismo central de financiamento com abrangência nacional, como um Ministério da Cultura, por exemplo. Nesse caso, a pesquisa e a informação em matéria de política cultural desenvolvem-se no seio de uma instituição já responsável pela condução de políticas, como é o caso do Deps francês. Há experiências similares no Canadá, na Holanda e na Inglaterra. O grande problema nascido desse modelo é administrar a distância entre a lógica política, operada em curto prazo, e a da pesquisa, que pressupõe o médio ou o longo prazo para sua confecção. Os dirigentes das estruturas organizacionais querem resultados rápidos, mas isso é incompatível com o tempo necessário à realização de uma pesquisa. Esse fato não é de menor relevância, pois a demanda por rapidez interfere na constituição de um bom repertório de dados e análises – todos, como sabemos, desenvolvidos em longo prazo. A considerar tal aspecto, parece-me mais interessante que tais estudos sejam realizados por algum organismo externo à instituição detentora do interesse específico sobre o campo. Eliminar o regime de urgência favorece o bom andamento dos estudos. Isso aponta para dois outros modelos também bastante difundidos: o das instituições de pesquisa independente sem fins lucrativos e o dos centros de pesquisa sediados em universidades. No primeiro caso (um exemplo é a Boekmanstichting, dos Países Baixos), há autonomia em relação às eventuais pressões políticas por parte dos organismos oficiais. No segundo, a universidade que hospeda o centro é escolhida por sua expertise na área. Esse último modelo tem duas particularidades interessantes: além de usufruir a independência do dia-a-dia da política, permite que a pesquisa se desenvolva, em princípio, sob critérios científicos mais rigorosos do que no caso de organismos ligados diretamente às instituições condutoras de políticas. Outra vantagem é o fato de essa localização no seio da universidade permitir um investimento maior, dada a proximidade entre as instituições, em programas de treinamento e de ensino. Como exemplo, há o Centro de Pesquisa de Política, Administração, Cidade e Território (Cerat), na Universidade Pierre Mendes France, e o Observatório de Políticas Culturais, ambos em Grenoble. A Griffith University de Brisbane, na Austrália, tem um organismo similar. No entanto, em muitos casos, diferentemente dos citados, centros universitários funcionam como consultorias privadas, prestando serviços remunerados com valor de mercado. .68
Em alguns países, como o Canadá, a Austrália e os Países Baixos, os respectivos institutos nacionais de estatísticas têm formalmente o mandato para coletar, manter e divulgar estatísticas referentes ao setor cultural. Esse modelo responde diretamente à necessidade de estabelecimento de dados estatísticos como meio para entender o perfil e os parâmetros do campo cultural – o objetivo é estabelecer políticas específicas. No caso francês, cada ministério tem uma unidade diretamente ligada ao Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômico (Insee), responsável pelo acompanhamento das estatísticas referentes ao setor, como é o caso da divisão de pesquisas do Ministério da Cultura. Encaminhamo-nos, finalmente, para um modelo adotado nos últimos anos, o do observatório cultural, com base na instituição do primeiro deles, o de Grenoble, nos anos 1980. Geralmente os observatórios não configuram um modelo à parte, pois se organizam em torno de eixos similares aos dos demais organismos. Na verdade, a inovação esteve no nome, que fez enorme sucesso e gerou uma quantidade significativa de seguidores. Cumpre mencionar as redes criadas recentemente e que exercem um papel importante na promoção e na divulgação de estudos. O modelo mais conhecido é o Circle, programa do Conselho da Europa que reúne pesquisadores e usuários dos resultados das pesquisas em política cultural. O programa organiza seminários e conferências, publica trabalhos de referência e um boletim, além de promover pesquisas e de facilitar a circulação de informação. Outras que merecem ser citadas são a Culturelink, da Unesco, rede de pesquisa e cooperação para o desenvolvimento cultural, e o Instituto Europeu de Pesquisa de Política Comparada e de Artes (EricArts), promotor de grupos de pesquisa interdisciplinares na Europa, que envolvem temas de interesse comum. O objetivo maior desse organismo é a criação de um instituto de pesquisa permanente, em nível europeu, que funcione como um consórcio com estatuto de fundação, conduzido pelos principais observatórios e corpos de pesquisa. Caminhos brasileiros A pequena ocorrência de pesquisas sobre política e gestão culturais encontra-se dispersa no Brasil em instituições de tipo variado, dependente do interesse pessoal do pesquisador. Ainda é um campo sem fisionomia definida no país. O fato de maior relevância nesse terreno, e que deve alterar as informações sistematizadas sobre o setor cultural, é o acordo de cooperação técnica assinado em dezembro de 2004 entre o .69
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São elas: o Censo Demográfico, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pesquisa sobre Padrões de Vida, a Pesquisa sobre Economia Informal, a Pesquisa sobre Orçamentos Familiares, a Pesquisa Mensal de Emprego, a Pesquisa de Informações Básicas Municipais, o Cadastro Central de Empresas e as Pesquisas Estruturais da área econômica (Pesquisa Anual do Comércio, Pesquisa Anual de Serviços e seus suplementos, Pesquisa Industrial Anual − Empresa e Produto). Além dessas, temos o encarte (2005) e o suplemento (2006) da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), cujos dados, se bem analisados, podem se tornar um importante instrumento de gestão.
Ministério da Cultura e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O objetivo desse acordo é produzir indicadores e analisar informações relativas à cultura com base na organização dos dados já produzidos pelo IBGE e que se encontram dispersos em suas pesquisas. Para isso, foi criado um grupo interdisciplinar interno, com cerca de 20 membros, composto de pesquisadores engajados em cada uma das pesquisas periódicas realizadas pelo próprio IBGE, para delas extrair dados que tratam direta ou indiretamente de aspectos relacionados à cultura2. Esse trabalho resultou na publicação Sistema de Informações Culturais, também disponível no site do IBGE. É indubitável o impacto da divulgação dos primeiros resultados desse exaustivo trabalho do IBGE sobre a forma como a sociedade e as estruturas governamentais vêem o campo cultural. Mas não se deve considerar a manipulação dessas bases algo simples e automático; por isso, é fundamental promover mecanismos, entre eles o de financiamento, para estimular seu uso e dar conseqüência ao investimento feito. A utilização dessas bases por parte dos pesquisadores, principalmente acadêmicos, permitirá seu refinamento qualitativo. As informações acrescidas de robustez poderão basear e orientar estudos específicos posteriores. Análises enriquecidas serão capazes de enfrentar problemas apenas pressentidos. Cabe aqui uma observação importante, embora pudesse parecer óbvia: nenhum dos modelos de organismo de pesquisa aqui arrolados planeja a cultura ou a vida cultural. Seria mesmo absurdo imaginar sob esses termos o que está proposto aqui. O objetivo dos estudos e pesquisas no campo da política cultural é o de estimular o desenvolvimento de ferramentas para o melhor planejamento dessas políticas por parte de seus formuladores. Dessa forma, as políticas poderiam ser concebidas com base em problemas reais, não em afinidades dos gestores de plantão. Pensar objetivamente o campo cultural implica considerar a existência de circuitos culturais diversificados, nos quais se incluem uma pluralidade de instituições, programas e projetos, e uma atenção especial à vida cultural da população da maneira como ela é efetivamente vivida. Entre nós, a institucionalização do campo de estudos nessa área dá apenas os primeiros passos. Não me refiro apenas às informações de natureza estatística ou econômica, como no caso do trabalho citado do IBGE. Nessa tarefa, organismos de gestão cultural, universidades, institutos de pesquisa públicos ou privados podem desempenhar um papel fundamental. Temos notícia de que também aumenta o número de interessados em se debruçar sobre o tema no
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universo acadêmico, o que se reflete em projetos de mestrado e doutorado em diversas áreas, como sociologia, antropologia, direito, administração e comunicação. Inventariar dissertações e teses em curso ou já defendidas nos últimos anos nos permitiria verificar se isso ocorre também em outros campos acadêmicos. O Observatório Itaú Cultural propõe-se a realizar essa tarefa, além de estimular, mediante premiação, o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas no setor. Esse observatório parece constituir a primeira experiência de uma organização privada cujo objetivo é se tornar um espaço de reflexão e pesquisa capaz de contribuir para a formulação de políticas culturais plurais. Ademais, o observatório incorporará a expertise que o Instituto Itaú Cultural desenvolveu na criação e na gestão de bancos de dados voltados ao mapeamento nacional da arte e da cultura brasileiras. Será extremamente útil para ampliar o conhecimento do que existe em relação à pesquisa nesse setor, disponibilizando-a para consulta. Do ponto de vista dos organismos públicos, a Universidade Federal da Bahia constitui vanguarda. Foi ela quem criou o Centro de Estudos Multidisciplinares com base no Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Enecult), atualmente em sua terceira versão nacional, e também uma rede virtual (a Redecult) que incorpora pesquisadores de diversos campos das ciências humanas. Com o aumento de visibilidade do setor e a sistematização de dados realizada pelo IBGE, podemos esperar que, cada vez mais, surjam trabalhos de análise baseados em nossa realidade e em seus problemas. Organismos desse tipo podem contribuir enormemente no sentido de estimular os poderes públicos a assumir e a incorporar, de forma permanente, o incentivo à produção de pesquisas específicas, refinando as informações obtidas por meio das grandes bases de dados existentes e propiciando estudos qualitativos direcionados. O estabelecimento de um programa de longo prazo, não atrelado às urgências das diversas gestões governamentais, é indispensável para uma política pública voltada a um dos setores decisivos na formulação de um projeto nacional e, como os dados têm mostrado, tem grande significado do ponto de vista da economia.
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Gestão cultural: desafios de um novo campo profissional Maria Helena Cunha1 Para refletirmos sobre quais são os desafios para a gestão cultural no século XXI, é preciso discutir sob duas óticas diferentes e complementares. A primeira refere-se aos desafios do campo profissional em gestão cultural, mais especificamente no que diz respeito ao reconhecimento social como campo de trabalho e à formação específica para esse profissional. Já na perspectiva da segunda ótica, trataremos dos desafios para o campo profissional da gestão cultural e abordaremos três aspectos que consideramos fundamentais para os próximos anos: ampliação do acesso a bens e serviços culturais; sustentabilidade das iniciativas culturais; e, por fim, a formulação referencial de indicadores culturais. Desafios do campo profissional em gestão cultural – Reconhecimento social da profissão Em primeiro lugar, é importante esclarecermos que, ao discutirmos a questão relativa ao reconhecimento social da profissão, não significa necessariamente que estamos nos referindo à sua regulamentação com base nos modelos tradicionais. Quando falamos de um olhar contemporâneo sobre o que são essas novas profissões, faz-se necessário compreender o “caráter fluido e indistinto das fronteiras profissionais” (Diniz, 2001, p. 19), ambiente em que a gestão cultural se desenvolve e se encontra, ainda, em processo de estruturação como profissão.
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Mestre em educação (FAE/UFMG), especialista em planejamento e gestão cultural (IEC/PUC-MG), coordenadora do curso de pós-graduação em gestão cultural (UNA) e diretora da DUO Informação e Cultura.
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A estrutura profissional nas sociedades contemporâneas tem sido discutida com base em sua dinâmica, que vem sofrendo mudanças rápidas; portanto, como afirma Holly (in Nóvoa, 1992, p. 46), “se algumas profissões tornam-se mais vulneráveis a certos controles externos e perdem privilégios e prerrogativas, outras surgem ou se fortalecem abrindo novas áreas funcionais na divisão social do trabalho profissional e expandindo o seu controle”. Assim, por trás do processo de “universalização de novas linguagens e visões do mundo criado pela informatização das comunicações encontramse novas expertises à procura de sua forma profissional.” (Holly in Nóvoa, 1992, p. 166). Diante disso, algumas questões associadas ao desenvolvimento das profissões no Brasil devem ser consideradas para entendermos o estágio em que se encontra a gestão cultural como campo profissional: o Estado reconhece a profissão como um elemento constituinte do seu próprio quadro de funcionários (há pouquíssimo tempo surgiram concursos públicos específicos para a área); a formação profissional passa a ser uma exigência de mercado; a criação de associações de classe começa a ser discutida; inicia-se a discussão sobre código de ética – como instrumento que possa oferecer parâmetros para seus grupos profissionais. Tal dinâmica é considerada inerente ao processo de estruturação das profissões, respeitando seus atributos específicos. No entanto, a ordem da apresentação dos elementos não pode ser apreendida como um sentido cronológico e linear de estágios evolutivos. O cenário contemporâneo brasileiro, no qual os gestores culturais atuam e buscam o seu reconhecimento profissional, apresenta algumas variáveis determinantes no processo inicial desse reconhecimento, como a criação das instituições públicas de cultura, na década de 1980; a criação de legislação de incentivo fiscal voltada para o financiamento do setor; a ampliação da participação da iniciativa privada e, conseqüentemente, o aumento da complexidade do ambiente cultural profissional. Tais elementos levam ao redimensionamento do papel da cultura no âmbito da sociedade, tornam mais complexas as relações de trabalho e exigem maior profissionalismo diante do mercado cultural. Reconhece-se o papel social do Estado no que se refere à regulamentação e ao reconhecimento oficial de determinadas profissões, nesse caso, a da gestão cultural. No entanto, somente 20 anos depois, há, de fato, contratação do corpo de funcionários para o Ministério da Cultura e instituições vinculadas por meio de concursos públicos específicos, situação ainda muito diferente para os estados e municípios.
imagem: Kika Antunes/acervo particular
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Outro ponto para o qual chamamos atenção é quando se inicia o processo de criação das escolas com base em conhecimentos mais específicos e o processo educacional formal de nível superior passa a ser um dos elementos relativos ao reconhecimento de profissões, transformando a titulação acadêmica em um instrumento de credenciamento para a atuação profissional. No caso da gestão cultural, essa ainda não é uma realidade: existe um número muito pequeno de cursos acadêmicos que credenciam o profissional. E, de certo modo, tal situação pode vir a reproduzir e reforçar uma sociedade marcada pela desigualdade econômica e social. Para a gestão cultural, o processo de profissionalização do setor e o início da formação específica do gestor proporcionaram o período inicial da constituição do próprio campo de trabalho. A gestão cultural já tem vários elementos indicativos para o processo de reconhecimento social como campo profissional. Atualmente, as ações deixaram de ser apenas atos isolados e passaram a fazer parte de uma noção de pertencimento de grupo, no qual os gestores se reconhecem como pares. Em parte, os questionamentos relativos à profissionalização já foram superados por uma parcela dos atuais gestores culturais. Para eles, profissionalismo hoje significa a conquista do reconhecimento social como resultado da própria construção da imagem coletiva como profissionais da área cultural. Assim, o reconhecimento da profissão perante a sociedade depende do prestígio e da imagem projetados pela coletividade profissional, bem como de um investimento em formação específica, que poderá produzir uma identificação particular com a ocupação. Formação profissional: a especificidade da gestão cultural É importante afirmamos que o reconhecimento social da profissão de gestão cultural e a formação do gestor são temas interligados. Para profissionalizar cada vez mais o mercado de trabalho e alcançar o reconhecimento da profissão é preciso ampliar e democratizar o acesso aos conhecimentos específicos desse campo por meio de um programa consistente de formação cultural e incentivo à pesquisa e à publicação sobre o tema. Para tanto, um programa de formação que tenha como objetivo investir na cadeia produtiva e profissional do setor deve contemplar aspectos relativos à formação no campo artístico, acreditando na potencialização criativa de sujeitos, grupos e regiões, bem como aqueles relativos à qualificação de outros profissionais e técnicos do setor. Investir na formação de técnicos específicos para as .74
necessidades do setor cultural pode vir a ser o estímulo para a criação de um amplo mercado de trabalho. Programas de formação no campo da gestão cultural, com cursos que tratem de temas e de técnicas contemporâneas de gerenciamento da cultura, serão uma das alternativas para a qualificação do profissional que atua tanto no setor público quanto no privado. Quando falamos de processo formativo de tais profissionais, o entendemos em várias dimensões. Como reflexão sistemática que mantém um diálogo com campos teóricos que respondam à especificidade do tema; por meio de encontros formativos (seminários, cursos, fóruns) que levam também ao reconhecimento dos pares; como diversidade de experiências profissionais que marcam a amplitude de ação do setor; e ainda como identificação de referenciais suficientemente coletivizados que possam delimitar um campo comum de atuação. Precisamos ter a clareza de que quando falamos em formação profissional nos referimos à necessidade de qualificar as discussões públicas a respeito da cultura; desenvolver a capacidade de gerenciar organizações culturais; ampliar e profissionalizar o mercado de trabalho; criar perspectivas de fortalecimento do setor como categoria profissional; aprofundar o diálogo entre diversos setores como o educacional, o social, o econômico, o jurídico, o ambiental e o turístico; democratizar o direito à produção e à circulação cultural; e, por fim, proporcionar condições minimamente igualitárias deconcorrência no mercado de trabalho. Desafios para o campo profissional da gestão cultural Neste momento, iniciamos a discussão em torno dos desafios para a gestão cultural como campo de atuação que pode e deve interferir com ações que alterem as condições de vida da sociedade contemporânea. Como afirmamos no início deste texto, destacamos três pontos fundamentais para que a gestão cultural, como setor profissional, possa contribuir para o desenvolvimento econômico e humano baseado em iniciativas culturais como um dos vetores desse processo. Ampliação do acesso a bens e serviços culturais Apresentamos como uma das atitudes necessárias para enfrentar os desafios para a gestão cultural a ampliação do acesso a bens e serviços culturais, por meio da potencialização de ações que atinjam uma maior camada da população brasileira. Chamamos atenção .75
para dois parâmetros norteadores para a construção de linhas de política pública de cultura: a) a difusão de programas que tenham como foco a formação do público consumidor de cultura; b) o desenvolvimento de um trabalho conjunto com a área de educação, peça-chave para a formação de novos públicos e a valorização do saber. Nesse sentido, precisamos trabalhar no intuito de buscar uma educação culturalizada, o que significa preparar as pessoas para o auto-aprendizado, com capacidade de flexibilização de raciocínio e com o objetivo de se tornarem aptas a selecionar informações, criar e abrir espaço para a cultura política, e que proporcione a democratização do saber. Entendemos que promover a integração social e democratizar efetivamente o acesso aos bens culturais é o caminho que possibilita a criação do sentimento de pertencimento nos sujeitos sociais, ou seja, a certeza de que eles fazem parte desta sociedade e, portanto, têm responsabilidade sobre ela, o que, conseqüentemente, leva à diminuição das tensões sociais. Ao relacionarmos cultura, transformação social e desenvolvimento, incluímos o tema da educação como um dos principais vetores capazes de impulsionar esse processo em qualquer sociedade. Como afirma Araújo (2004, p. 242), “democratizar a educação e a cultura é produzir cidadãos de saber crítico e transformador, aptos a discernir o direito e o dever, o justo e o injusto, o certo e o errado e, ao mesmo tempo, mais sensíveis e humanos, que verão o outro como um semelhante, que pode pensar diferente, mas tem igual direito à vida e à busca da felicidade”. Assim, podemos afirmar que só há desenvolvimento real quando atrelado ao sistema educacional democrático e igualitário, que respeite a diversidade e a transversalidade como parte do processo formativo do cidadão. Sustentabilidade das iniciativas culturais Passamos para um segundo ponto relativo aos desafios para o campo da gestão cultural, ou seja, garantir a sustentabilidade das iniciativas culturais, e aqui nos referimos às instituições formais e informais que compõem o conjunto estrutural do setor. Ainda caminhamos para o desenvolvimento de análises e estudos de propostas de estruturação dos pilares de sustentação das iniciativas culturais. Adiantamos que não é possível reverter um quadro de dependência excessiva do poder público se não for estruturado, em conjunto com a iniciativa privada e o próprio campo da gestão cultural, um programa de financiamento à cultura, com diretrizes básicas para a criação de um sistema de sustentação das atividades culturais, por meio da diversificação de fontes de recursos.
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Para tanto, é preciso trabalhar esse campo profissional, compreendendo sua amplitude e diversidade, o que torna ainda mais premente a profissionalização do setor e a incorporação de múltiplas fontes de renda. É preciso ampliar a capacidade de estabelecimento de parcerias consistentes e de longa duração; estruturar as instituições culturais pelo desenvolvimento de trabalhos com base em planos, programas e projetos; aprofundar uma campanha nacional que lute por recursos públicos diretos para iniciativas de cunho não mercadológico; fortalecer linhas de financiamento específicas para a pesquisa e a formação para que se possa, de fato, dar um salto de qualidade e de estruturação do campo como setor produtivo. Deve-se, ainda, buscar o aprimoramento das leis de incentivo à cultura, estimulando a criação de fundos culturais públicos, em âmbito nacional, estadual e municipal. Um ponto fundamental é a oferta de linhas de financiamento específicas para o setor cultural, por meio de instituições bancárias. Para finalizar essa questão, é preciso discutir profundamente a capacidade que as iniciativas culturais têm de produzir recursos próprios, que tenham como foco o público consumidor de cultura. Falamos, por exemplo, de recursos advindos de bilheterias, lojas e cafés de instituições culturais, entre outros serviços e produtos que possam ser comercializados e revertidos para elas como mais um recurso para a sustentabilidade das instituições. É importante salientar que nem sempre os gestores exploram com competência tal possibilidade de fonte de financiamento, por estarem mal acostumados a uma dependência excessiva do Estado e das leis de incentivo, ou por desconhecimento. Um aspecto relevante a ser discutido é a municipalização das ações, pois são os governos municipais que estão mais próximos da realidade dos cidadãos e, portanto, têm capacidade para identificar com mais clareza as necessidades reais de cada setor. A municipalização deveria ter como base de sustentação uma política que vislumbrasse um programa consistente de descentralização cultural, no que se refere tanto à produção e à manifestação cultural quanto às formas de financiamento. Formulação referencial de indicadores culturais No Brasil, ainda existem poucos estudos que levem à formulação referencial e sistemática de indicadores culturais, que possibilitem análises comparativas, monitoramento e avaliação de iniciativas culturais. A cultura desempenha papel importantíssimo no desenvolvimento econômico e social de regiões ou de grupos, pois gera renda e .77
proporciona postos de trabalho – essa já é uma realidade –, mas precisamos concretizar esse fato buscando reconhecimento político motivador de estratégias de ações que consigam, ao mesmo tempo, atingir a sociedade. Questionamos: como colocar isso em prática? É preciso que estudos contínuos sobre o impacto econômico gerado pelo setor cultural sejam desenvolvidos, para que se possa argumentar contra os cortes de gastos, ou mesmo contra a falta de recursos orçamentários diretos por parte do Estado, além de ainda lutar por maiores investimentos do setor privado. Devemos nos pautar em ações planejadas que requerem o desenvolvimento de pesquisas e diagnósticos contínuos, com o intuito de fazer o mapeamento e o reconhecimento das diversas manifestações culturais e a formulação referencial de indicadores culturais. Enfim, é preciso instrumentalizar a área com bases estatísticas e formar banco de dados com informações específicas sobre o setor, para que tenhamos mais clareza no estabelecimento das estratégias de ações políticas. Avaliação é um ponto fundamental a ser desenvolvido e realizado em qualquer programa de políticas culturais. O que significa a real necessidade de obtermos indicadores mais precisos. Consideração final Acreditamos que, para darmos conta dos desafios da gestão cultural apontados anteriormente, ou seja, a democratização do acesso à cultura, a sustentabilidade de suas iniciativas e a formulação de parâmetros referenciais, é preciso enfrentar, ao mesmo tempo, os desafios estruturais do próprio campo: o reconhecimento da gestão cultural como atividade prioritária e estratégica de governo e da sociedade e a formação de profissionais capacitados para colocar em prática a estruturação do setor cultural. Estamos diante de um campo profissional novo e em ascensão, com capacidade de intervenção propositiva nas sociedades contemporâneas, mas que ainda deve ser explorado de forma mais sistemática como objeto de estudos e pesquisas. Ao buscarmos analisar os aspectos estruturais da organização profissional da gestão cultural, concluímos que esse é um campo ainda em pleno processo de constituição. Um dos grandes desafios é a criação de condições para que os princípios idealizados sejam transpostos para a prática efetiva e, principalmente, o desenvolvimento de ações de intervenção no campo da gestão cultural que contenham, claramente, uma visão democrática e de futuro. .78
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Convenção sobre a Proteção e A Promoção da Diversidade das Expressões Culturais A Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em sua 33ª reunião, celebrada em Paris, de 3 a 21 de outubro de 2005, Afirmando que a diversidade cultural é uma característica essencial da humanidade, Ciente de que a diversidade cultural constitui patrimônio comum da humanidade, a ser valorizado e cultivado em benefício de todos, Sabendo que a diversidade cultural cria um mundo rico e variado que aumenta a gama de possibilidades e nutre as capacidades e valores humanos, constituindo, assim, um dos principais motores do desenvolvimento sustentável das comunidades, povos e nações, Recordando que a diversidade cultural, ao florescer em um ambiente de democracia, tolerância, justiça social e mútuo respeito entre povos e culturas, é indispensável para a paz e a segurança no plano local, nacional e internacional, Celebrando a importância da diversidade cultural para a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e outros instrumentos universalmente reconhecidos, .80
Destacando a necessidade de incorporar a cultura como elemento estratégico das políticas de desenvolvimento nacionais e internacionais, bem como da cooperação internacional para o desenvolvimento, e tendo igualmente em conta a Declaração do Milênio das Nações Unidas (2000), com sua ênfase na erradicação da pobreza, Considerando que a cultura assume formas diversas através do tempo e do espaço, e que essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade das identidades, assim como nas expressões culturais dos povos e das sociedades que formam a humanidade, Reconhecendo a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza material e imaterial, e, em particular, dos sistemas de conhecimento das populações indígenas, e sua contribuição positiva para o desenvolvimento sustentável, assim como a necessidade de assegurar sua adequada proteção e promoção, Reconhecendo a necessidade de adotar medidas para proteger a diversidade das expressões culturais incluindo seus conteúdos, especialmente nas situações em que expressões culturais possam estar ameaçadas de extinção ou de grave deterioração, Enfatizando a importância da cultura para a coesão social em geral, e, em particular, o seu potencial para a melhoria da condição da mulher e de seu papel na sociedade, Ciente de que a diversidade cultural se fortalece mediante a livre circulação de idéias e se nutre das trocas constantes e da interação entre culturas, Reafirmando que a liberdade de pensamento, expressão e informação, bem como a diversidade da mídia, possibilitam o florescimento das expressões culturais nas sociedades, Reconhecendo que a diversidade das expressões culturais, incluindo as expressões culturais tradicionais, é um fator importante, que possibilita aos indivíduos e aos povos expressarem e compartilharem com outros as suas idéias e valores, Recordando que a diversidade lingüística constitui elemento fundamental da diversidade cultural, e reafirmando o papel fundamental
que a educação desempenha na proteção e promoção das expressões culturais, Tendo em conta a importância da vitalidade das culturas para todos, incluindo as pessoas que pertencem a minorias e povos indígenas, tal como se manifesta em sua liberdade de criar, difundir e distribuir as suas expressões culturais tradicionais, bem como de ter acesso a elas, de modo que favoreça o seu próprio desenvolvimento, Sublinhando o papel essencial da interação e da criatividade culturais, que nutrem e renovam as expressões culturais, e fortalecem o papel desempenhado por aqueles que participam no desenvolvimento da cultura para o progresso da sociedade como um todo, Reconhecendo a importância dos direitos de propriedade intelectual para a manutenção das pessoas que participam da criatividade cultural, Convencida de que as atividades, bens e serviços culturais possuem dupla natureza, tanto econômica quanto cultural, uma vez que são portadores de identidades, valores e significados, não devendo, portanto, ser tratados como se tivessem valor meramente comercial, Constatando que os processos de globalização, facilitado pela rápida evolução das tecnologias de comunicação e informação, apesar de proporcionarem condições inéditas para que se intensifique a interação entre culturas, constituem também um desafio para a diversidade cultural, especialmente no que diz respeito aos riscos de desequilíbrios entre países ricos e pobres, Ciente do mandato específico confiado à Unesco para assegurar o respeito à diversidade das culturas e recomendar os acordos internacionais que julgue necessários para promover a livre circulação de idéias por meio da palavra e da imagem, Referindo-se às disposições dos instrumentos internacionais adotados pela Unesco relativos à diversidade cultural e ao exercício dos direitos culturais, em particular a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, de 2001, Adota, em 20 de outubro de 2005, a presente Convenção. .81
I. Objetivos e princípios diretores Artigo 1 – Objetivos Os objetivos da presente Convenção são: a) proteger e promover a diversidade das expressões culturais; b) criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em benefício mútuo; c) encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura da paz; d) fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no espírito de construir pontes entre os povos; e) promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional; f ) reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo; g) reconhecer a natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidades, valores e significados; h) reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as políticas e medidas que considerarem apropriadas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu território; i) fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de parceria visando, especialmente, ao aprimoramento das capacidades dos países em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das expressões culturais. Artigo 2 – Princípios diretores 1. Princípio do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais A diversidade cultural somente poderá ser protegida e promovida se estiverem garantidos os direitos humanos e as liberdades fundamentais, tais como a liberdade de expressão, informação e comunicação, bem como a possibilidade dos indivíduos de escolherem expressões culturais. Ninguém poderá invocar as disposições da presente Convenção para atentar contra os .82
direitos do homem e as liberdades fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e garantidos pelo direito internacional, ou para limitar o âmbito de sua aplicação. 2. Princípio da soberania De acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do direito internacional, os Estados têm o direito soberano de adotar medidas e políticas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seus respectivos territórios. 3. Princípio da igual dignidade e do respeito por todas as culturas A proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais pressupõem o reconhecimento da igual dignidade e o respeito por todas as culturas, incluindo as das pessoas pertencentes a minorias e as dos povos indígenas. 4. Princípio da solidariedade e cooperação internacionais A cooperação e a solidariedade internacionais devem permitir a todos os países, em particular os em desenvolvimento, criar e fortalecer os meios necessários a sua expressão cultural – incluindo as indústrias culturais, sejam elas nascentes ou estabelecidas – nos planos local, nacional e internacional. 5. Princípio da complementaridade dos aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento Sendo a cultura um dos motores fundamentais do desenvolvimento, os aspectos culturais deste são tão importantes quanto os seus aspectos econômicos, e os indivíduos e povos têm o direito fundamental de dele participarem e se beneficiarem. 6. Princípio do desenvolvimento sustentável A diversidade cultural constitui grande riqueza para os indivíduos e as sociedades. A proteção, promoção e manutenção da diversidade cultural é condição essencial para o desenvolvimento sustentável em benefício das gerações atuais e futuras. 7. Princípio do acesso eqüitativo O acesso eqüitativo a uma rica e diversificada gama de expressões culturais provenientes de todo o mundo e o acesso das culturas aos meios de expressão e de difusão constituem importantes elementos para a valorização da diversidade cultural e o incentivo ao entendimento mútuo.
8. Princípio da abertura e do equilíbrio Ao adotarem medidas para favorecer a diversidade das expressões culturais, os Estados buscarão promover, de modo apropriado, a abertura a outras culturas do mundo e garantir que tais medidas estejam em conformidade com os objetivos perseguidos pela presente Convenção. II. Campo de aplicação Artigo 3 – Campo de aplicação A presente Convenção aplica-se a políticas e medidas adotadas pelas Partes relativas à proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. III. Definições Artigo 4 – Definições Para os fins da presente Convenção, fica entendido que:
4. Atividades, bens e serviços culturais “Atividades, bens e serviços culturais” refere-se às atividades, bens e serviços que, considerados sob o ponto de vista da sua qualidade, uso ou finalidade específica, incorporam ou transmitem expressões culturais, independentemente do valor comercial que possam ter. As atividades culturais podem ser um fim em si mesmas, ou contribuir para a produção de bens e serviços culturais. 5. Indústrias culturais “Indústrias culturais” refere-se às indústrias que produzem e distribuem bens e serviços culturais, tais como definidos no parágrafo 4 acima. 6. Políticas e medidas culturais “Políticas e medidas culturais” refere-se às políticas e medidas relacionadas à cultura, seja no plano local, regional, nacional ou internacional, que tenham como foco a cultura como tal, ou cuja finalidade seja exercer efeito direto sobre as expressões culturais de indivíduos, grupos ou sociedades, incluindo a criação, produção, difusão e distribuição de atividades, bens e serviços culturais, e o acesso aos mesmos.
1. Diversidade cultural “Diversidade cultural” refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades.
7. Proteção “Proteção” significa a adoção de medidas que visem à preservação, salvaguarda e valorização da diversidade das expressões culturais.
A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados.
8. Interculturalidade “Interculturalidade” refere-se à existência e interação eqüitativa de diversas culturas, assim como à possibilidade de geração de expressões culturais compartilhadas por meio do diálogo e respeito mútuo.
2. Conteúdo cultural “Conteúdo cultural” refere-se ao caráter simbólico, dimensão artística e valores culturais que têm por origem ou expressam identidades culturais. 3. Expressões culturais “Expressões culturais” são aquelas expressões que resultam da criatividade de indivíduos, grupos e sociedades e que possuem conteúdo cultural.
“Proteger” significa adotar tais medidas.
IV. Direitos e obrigações das Partes Artigo 5 – Regra geral em matéria de direitos e obrigações 1. As Partes, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, os princípios do direito internacional e os instrumentos universalmente reconhecidos em matéria de direitos humanos, reafirmam seu direito soberano de formular e implementar as suas políticas culturais e de adotar medidas para a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais, bem como para .83
o fortalecimento da cooperação internacional, a fim de alcançar os objetivos da presente Convenção. 2. Quando uma Parte implementar políticas e adotar medidas para proteger e promover a diversidade das expressões culturais em seu território, tais políticas e medidas deverão ser compatíveis com as disposições da presente Convenção. Artigo 6 – Direitos das Partes no âmbito nacional 1. No marco de suas políticas e medidas culturais, tais como definidas no artigo 4.6, e levando em consideração as circunstâncias e necessidades que lhe são particulares, cada Parte poderá adotar medidas destinadas a proteger e promover a diversidade das expressões culturais em seu território. 2. Tais medidas poderão incluir: a) medidas regulatórias que visem à proteção e promoção da diversidade das expressões cultuais; b) medidas que, de maneira apropriada, criem oportunidades às atividades, bens e serviços culturais nacionais – entre o conjunto das atividades, bens e serviços culturais disponíveis no seu território –, para a sua criação, produção, difusão, distribuição e fruição, incluindo disposições relacionadas à língua utilizada nessas atividades, bens e serviços; c) medidas destinadas a fornecer às indústrias culturais nacionais independentes e às atividades no setor informal acesso efetivo aos meios de produção, difusão e distribuição das atividades, bens e serviços culturais; d) medidas voltadas para a concessão de apoio financeiro público; e) medidas com o propósito de encorajar organizações de fins não-lucrativos, e também instituições públicas e privadas, artistas e outros profissionais de cultura, a desenvolver e promover o livre intercâmbio e circulação de idéias e expressões culturais, bem como de atividades, bens e serviços culturais, e a estimular tanto a criatividade quanto o espírito empreendedor em suas atividades; f ) medidas com vistas a estabelecer e apoiar, de forma adequada, as instituições pertinentes de serviço público; g) medidas para encorajar e apoiar os artistas e todos aqueles envolvidos na criação de expressões culturais; .84
h) medidas objetivando promover a diversidade da mídia, inclusive mediante serviços públicos de radiodifusão. Artigo 7 – Medidas para a promoção das expressões culturais 1. As Partes procurarão criar em seu território um ambiente que encoraje indivíduos e grupos sociais a: a) criar, produzir, difundir, distribuir suas próprias expressões culturais, e a elas ter acesso, conferindo a devida atenção às circunstâncias e necessidades especiais da mulher, assim como dos diversos grupos sociais, incluindo as pessoas pertencentes às minorias e povos indígenas; b) ter acesso às diversas expressões culturais provenientes do seu território e dos demais países do mundo. 2. As Partes buscarão também reconhecer a importante contribuição dos artistas, de todos aqueles envolvidos no processo criativo, das comunidades culturais e das organizações que os apóiam em seu trabalho, bem como o papel central que desempenham ao nutrir a diversidade das expressões culturais. Artigo 8 – Medidas para a proteção das expressões culturais 1. Sem prejuízo das disposições dos artigos 5 e 6, uma Parte poderá diagnosticar a existência de situações especiais em que expressões culturais em seu território estejam em risco de extinção, sob séria ameaça ou necessitando de urgente salvaguarda. 2. As Partes poderão adotar todas as medidas apropriadas para proteger e preservar as expressões culturais nas situações referidas no parágrafo 1, em conformidade com as disposições da presente Convenção. 3. As Partes informarão ao Comitê Intergovernamental mencionado no Artigo 23 todas as medidas tomadas para fazer face às exigências da situação, podendo o Comitê formular recomendações apropriadas. Artigo 9 – Intercâmbio de informações e transparência As Partes: a) fornecerão, a cada quatro anos, em seus relatórios
à Unesco, informação apropriada sobre as medidas adotadas para proteger e promover a diversidade das expressões culturais em seu território e no plano internacional; b) designarão um ponto focal, responsável pelo compartilhamento de informações relativas à presente Convenção; c) compartilharão e trocarão informações relativas à proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. Artigo 10 – Educação e conscientização pública As Partes deverão: a) propiciar e desenvolver a compreensão da importância da proteção e promoção da diversidade das expressões culturais, por intermédio, entre outros, de programas de educação e maior sensibilização do público; b) cooperar com outras Partes e organizações regionais e internacionais para alcançar o objetivo do presente artigo; c) esforçar-se por incentivar a criatividade e fortalecer as capacidades de produção, mediante o estabelecimento de programas de educação, treinamento e intercâmbio na área das indústrias culturais. Tais medidas deverão ser aplicadas de modo a não terem impacto negativo sobre as formas tradicionais de produção. Artigo 11 – Participação da sociedade civil As Partes reconhecem o papel fundamental da sociedade civil na proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. As Partes deverão encorajar a participação ativa da sociedade civil em seus esforços para alcançar os objetivos da presente Convenção. Artigo 12 – Promoção da cooperação internacional As Partes procurarão fortalecer sua cooperação bilateral, regional e internacional, a fim de criar condições propícias à promoção da diversidade das expressões culturais, levando especialmente em conta as situações mencionadas nos Artigos 8 e 17, em particular com vistas a: a) facilitar o diálogo entre as Partes sobre política cultural; b) reforçar as capacidades estratégicas e de gestão
do setor público nas instituições públicas culturais, mediante intercâmbios culturais profissionais e internacionais, bem como compartilhamento das melhores práticas; c) reforçar as parcerias com a sociedade civil, organizações não-governamentais e setor privado, e entre essas entidades, para favorecer e promover a diversidade das expressões culturais; d) promover a utilização das novas tecnologias e encorajar parcerias para incrementar o compartilhamento de informações, aumentar a compreensão cultural e fomentar a diversidade das expressões culturais; e) encorajar a celebração de acordos de coprodução e de co-distribuição. Artigo 13 – Integração da cultura no desenvolvimento sustentável As Partes envidarão esforços para integrar a cultura nas suas políticas de desenvolvimento, em todos os níveis, a fim de criar condições propícias ao desenvolvimento sustentável e, nesse marco, fomentar os aspectos ligados à proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. Artigo 14 – Cooperação para o desenvolvimento As Partes procurarão apoiar a cooperação para o desenvolvimento sustentável e a redução da pobreza, especialmente em relação às necessidades específicas dos países em desenvolvimento, com vistas a favorecer a emergência de um setor cultural dinâmico pelos seguintes meios, entre outros: a) o fortalecimento das indústrias culturais em países em desenvolvimento: (i) criando e fortalecendo as capacidades de produção e distribuição culturais nos países em desenvolvimento; (ii) facilitando um maior acesso de suas atividades, bens e serviços culturais ao mercado global e aos circuitos internacionais de distribuição; (iii) permitindo a emergência de mercados regionais e locais viáveis; (iv) adotando, sempre que possível, medidas apropriadas nos países desenvolvidos com vistas a facilitar o acesso ao seu território das atividades, bens e serviços culturais dos países em desenvolvimento; (v) apoiando o trabalho criativo e facilitando, na medida do possível, a mobilidade dos artistas dos países em desenvolvimento; .85
(vi) encorajando uma apropriada colaboração entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, em particular nas áreas da música e do cinema. b) o fortalecimento das capacidades por meio do intercâmbio de informações, experiências e conhecimentos especializados, assim como pela formação de recursos humanos nos países em desenvolvimento, nos setores púbico e privado, no que concerne notadamente às capacidades estratégicas e gerenciais, à formulação e implementação de políticas, à promoção e distribuição das expressões culturais, ao desenvolvimento das médias, pequenas e microempresas, e à utilização das tecnologias e desenvolvimento e transferência de competências; c) a transferência de tecnologias e conhecimentos mediante a introdução de medidas apropriadas de incentivo, especialmente no campo das indústrias e empresas culturais; d) o apoio financeiro mediante: (i) o estabelecimento de um Fundo Internacional para a Diversidade Cultural conforme disposto no artigo 18; (ii) a concessão de assistência oficial ao desenvolvimento, segundo proceda, incluindo a assistência técnica, a fim de estimular e incentivar a criatividade; (iii) outras formas de assistência financeira, tais como empréstimos com baixas taxas de juro, subvenções e outros mecanismos de financiamento. Artigo 15 – Modalidades de colaboração As Partes incentivarão o desenvolvimento de parcerias entre o setor público, o setor privado e organizações de fins não-lucrativos, e também no interior dos mesmos, a fim de cooperar com os países em desenvolvimento no fortalecimento de suas capacidades de proteger e promover a diversidade das expressões culturais. Essas parcerias inovadoras enfatizarão, de acordo com as necessidades concretas dos países em desenvolvimento, a melhoria da infra-estrutura, dos recursos humanos e políticos, assim como o intercâmbio de atividades, bens e serviços culturais. Artigo 16 – Tratamento preferencial para países em desenvolvimento Os países desenvolvidos facilitarão intercâmbios culturais com os países em desenvolvimento .86
garantindo, por meio dos instrumentos institucionais e jurídicos apropriados, um tratamento preferencial aos seus artistas e aos outros profissionais e praticantes da cultura, assim como aos seus bens e serviços culturais. Artigo 17 – Cooperação internacional em situações de grave ameaça às expressões culturais As Partes cooperarão para mutuamente se prestarem assistência, conferindo especial atenção aos países em desenvolvimento, nas situações referidas no Artigo 8. Artigo 18 – Fundo Internacional para a Diversidade Cultural 1. Fica instituído um Fundo Internacional para a Diversidade Cultural, doravante denominado o Fundo. 2. O Fundo estará constituído por fundos fiduciários, em conformidade com o Regulamento Financeiro da Unesco. 3. Os recursos do Fundo serão constituídos por: a) contribuições voluntárias das Partes; b) recursos financeiros que a Conferência-Geral da Unesco designe para tal fim; c) contribuições, doações ou legados feitos por outros Estados, organismos e programas do sistema das Nações Unidas, organizações regionais ou internacionais; entidades públicas ou privadas e pessoas físicas; d) juros sobre os recursos do Fundo; e) o produto das coletas e receitas de eventos organizados em benefício do Fundo; f ) quaisquer outros recursos autorizados pelo regulamento do Fundo. 4. A utilização dos recursos do Fundo será decidida pelo Comitê Intergovernamental, com base nas orientações da Conferência das Partes mencionada no Artigo 22. 5. O Comitê Intergovernamental poderá aceitar contribuições ou outras formas de assistência com finalidade geral ou específica que estejam vinculadas a projetos concretos, desde que os mesmos contem com a sua aprovação. 6. As contribuições ao Fundo não poderão estar
vinculadas a qualquer condição política, econômica ou de outro tipo que seja incompatível com os objetivos da presente Convenção. 7. As Partes farão esforços para prestar contribuições voluntárias, em bases regulares, para a implementação da presente Convenção. Artigo 19 – Intercâmbio, análise e difusão de informações 1. As Partes comprometem-se a trocar informações e compartilhar conhecimentos especializados relativos à coleta de dados e estatísticas sobre a diversidade das expressões culturais, bem como sobre as melhores práticas para a sua proteção e promoção. 2. A Unesco facilitará, graças aos mecanismos existentes no seu Secretariado, a coleta, análise e difusão de todas as informações, estatísticas e melhores práticas sobre a matéria. 3. Adicionalmente, a Unesco estabelecerá e atualizará um banco de dados sobre os diversos setores e organismos governamentais, privados e de fins não-lucrativos, que estejam envolvidos no domínio das expressões culturais. 4. A fim de facilitar a coleta de dados, a Unesco dará atenção especial à capacitação e ao fortalecimento das competências das Partes que requisitarem assistência na matéria. 5. A coleta de informações definida no presente artigo complementará as informações a que fazem referência às disposições do artigo 9. V. Relações com outros instrumentos Artigo 20 – Relações com outros instrumentos: apoio mútuo, complementaridade e não-subordinação 1. As Partes reconhecem que deverão cumprir de boa-fé suas obrigações perante a presente Convenção e todos os demais tratados dos quais sejam Parte. Da mesma forma, sem subordinar esta Convenção a qualquer outro tratado: a) fomentarão o apoio mútuo entre esta Convenção e os outros tratados dos quais são Parte; e
b) ao interpretarem e aplicarem os outros tratados dos quais são Parte ou ao assumirem novas obrigações internacionais, as Partes levarão em conta as disposições relevantes da presente Convenção. 2. Nada na presente Convenção será interpretado como modificando os direitos e obrigações das Partes decorrentes de outros tratados dos quais sejam parte. Artigo 21 – Consulta e coordenação internacional As Partes comprometem-se a promover os objetivos e princípios da presente Convenção em outros foros internacionais. Para esse fim, as Partes deverão consultar-se, quando conveniente, tendo em mente os mencionados objetivos e princípios. VI. Órgãos da Convenção Artigo 22 – Conferência das Partes 1. Fica estabelecida uma Conferência das Partes. A Conferência das Partes é o órgão plenário e supremo da presente Convenção. 2. A Conferência das Partes se reúne em sessão ordinária a cada dois anos, sempre que possível no âmbito da Conferência-Geral da Unesco. A Conferência das Partes poderá reunir-se em sessão extraordinária, se assim o decidir, ou se solicitação for dirigida ao Comitê Intergovernamental por ao menos um terço das Partes. 3. A Conferência das Partes adotará o seu próprio Regimento interno. 4. As funções da Conferência das Partes são, entre outras: a) eleger os membros do Comitê Intergovernamental; b) receber e examinar relatórios das Partes da presente Convenção transmitidos pelo Comitê Intergovernamental; c) aprovar as diretrizes operacionais preparadas, a seu pedido, pelo Comitê Intergovernamental; d) adotar quaisquer outras medidas que considere necessárias para promover os objetivos da presente Convenção. .87
Artigo 23 – Comitê Intergovernamental 1. Fica instituído junto à Unesco um Comitê Intergovernamental para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, doravante referido como Comitê Intergovernamental. Ele é composto de representantes de 18 Estados Partes da Convenção, eleitos pela Conferência das Partes para um mandato de quatro anos, a partir da entrada em vigor da presente Convenção, conforme o artigo 29. 2. O Comitê Intergovernamental se reúne em sessões anuais. 3. O Comitê Intergovernamental funciona sob a autoridade e em conformidade com as diretrizes da Conferência das Partes, à qual presta contas. 4. O número de membros do Comitê Intergovernamental será elevado para 24 quando o número de membros da presente Convenção chegar a 50. 5. A eleição dos membros do Comitê Intergovernamental é baseada nos princípios da representação geográfica eqüitativa e da rotatividade. 6. Sem prejuízo de outras responsabilidades a ele conferidas pela presente Convenção, o Comitê Intergovernamental tem as seguintes funções: a) promover os objetivos da presente Convenção, incentivar e monitorar a sua implementação; b) preparar e submeter à aprovação da Conferência das Partes, mediante solicitação, as diretrizes operacionais relativas à implementação e aplicação das disposições da presente Convenção; c) transmitir à Conferência das Partes os relatórios das partes da Convenção acompanhados de observações e um resumo de seus conteúdos; d) fazer recomendações apropriadas para situações trazidas à sua atenção pelas partes da Convenção, de acordo com as disposições pertinentes da Convenção, em particular o Artigo 8; e) estabelecer os procedimentos e outros mecanismos de consulta que visem à promoção dos objetivos e princípios da presente Convenção em outros foros internacionais; f ) realizar qualquer outra tarefa que lhe possa solicitar a Conferência das Partes. 7. O Comitê Intergovernamental, em conformidade com o seu Regimento Interno, poderá, a .88
qualquer momento, convidar organismos públicos ou privados ou pessoas físicas a participarem das suas reuniões para consultá-los sobre questões específicas. 8. O Comitê Intergovernamental elaborará o seu próprio Regimento Interno e o submeterá à aprovação da Conferências das Partes. Artigo 24 – Secretariado da Unesco 1. Os órgãos da presente Convenção serão assistidos pelo Secretariado da Unesco. 2. O Secretariado preparará a documentação da Conferência das Partes e do Comitê Intergovernamental, assim como o projeto de agenda de suas reuniões, prestando auxílio na implementação de suas decisões e informando sobre a aplicação delas. VII. Disposições finais Artigo 25 – Solução de controvérsias 1. Em caso de controvérsia acerca da interpretação ou aplicação da presente Convenção, as Partes buscarão resolvê-la mediante negociação. 2. Se as Partes envolvidas não chegarem a acordo por negociação, poderão recorrer conjuntamente aos bons ofícios ou à mediação de uma terceira parte. 3. Se os bons ofícios ou a mediação não forem adotados, ou se não for possível superar a controvérsia pela negociação, bons ofícios ou mediação, uma Parte poderá recorrer à conciliação, em conformidade com o procedimento constante do Anexo à presente Convenção. As Partes considerarão de boa-fé a proposta de solução da controvérsia apresentada pela Comissão de Conciliação. 4. Cada Parte poderá, no momento da ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, declarar que não reconhece o procedimento de conciliação acima disposto. Toda Parte que tenha feito tal declaração poderá, a qualquer momento, retirá-la mediante notificação ao diretor-geral da Unesco.
Artigo 26 – Ratificação, aceitação, aprovação ou adesão por Estados membros 1. A presente Convenção estará sujeita à ratificação, aceitação, aprovação ou adesão dos Estados membros da Unesco, em conformidade com os seus respectivos procedimentos constitucionais. 2. Os instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão serão depositados junto ao diretor-geral da Unesco. Artigo 27 – Adesão 1. A presente Convenção estará aberta à adesão de qualquer Estado não membro da Unesco, desde que pertença à Organização das Nações Unidas ou a algum dos seus organismos especializados e que tenha sido convidado pela Conferência-Geral da Organização a aderir à Convenção. 2. A presente Convenção estará também aberta à adesão de territórios que gozem de plena autonomia interna reconhecida como tal pelas Nações Unidas, mas que não tenham alcançado a total independência em conformidade com a Resolução 1514 (XV) da Assembléia Geral, e que tenham competência nas matérias de que trata a presente Convenção, incluindo a competência para concluir tratados relativos a essas matérias. 3. As seguintes disposições aplicam-se a organizações regionais de integração econômica: a) a presente Convenção ficará também aberta à adesão de toda organização regional de integração econômica, que estará, exceto conforme estipulado abaixo, plenamente vinculada às disposições da Convenção, da mesma maneira que os Estados Partes. b) se um ou mais Estados membros dessas organizações forem igualmente Partes da presente Convenção, a organização e o Estado ou Estados membros decidirão sobre suas respectivas responsabilidades no que tange ao cumprimento das obrigações decorrentes da presente Convenção. Tal divisão de responsabilidades terá efeito após o término do procedimento de notificação descrito no inciso c abaixo. A organização e seus Estados membros não poderão exercer, concomitantemente, os direitos que emanam da presente Convenção. Além disso, nas matérias de sua competência, as organizações
regionais de integração econômica poderão exercer o direito de voto com um número de votos igual ao número de seus Estados membros que sejam Partes da Convenção. Tais organizações não poderão exercer o direito a voto se qualquer dos seus membros o fizer, e vice-versa. c) a organização regional de integração econômica e seu Estado ou Estados membros que tenham acordado a divisão de responsabilidades prevista no inciso b acima o informarão às Partes do seguinte modo: (i) em seu instrumento de adesão, tal organização declarará, de forma precisa, a divisão de suas responsabilidades com respeito às matérias regidas pela Convenção; (ii) em caso de posterior modificação das respectivas responsabilidades, a organização regional de integração econômica informará ao depositário de toda proposta de modificação dessas responsabilidades; o depositário deverá, por sua vez, informar as Partes de tal modificação. d) os Estados membros de uma organização regional de integração econômica que se tenham tornado Partes da presente Convenção terão competência sobre todas as matérias que não tenham sido, mediante expressa declaração ou informação ao depositário, objeto de transferência de competência à organização. e) entende-se por “organização regional de integração econômica” toda organização constituída por Estados soberanos, membros das Nações Unidas ou de um de seus organismos especializados à qual tais Estados tenham transferido suas competências em matérias regidas pela presente Convenção, e que haja sido devidamente autorizada, de acordo com seus procedimentos internos, a tornar-se Parte da Convenção. 4. O instrumento de adesão será depositado junto ao diretor-geral da Unesco. Artigo 28 – Ponto focal Ao aderir à presente Convenção, cada Parte designará o “ponto focal” referido no artigo 9. Artigo 29 – Entrada em vigor 1. A presente Convenção entrará em vigor três meses após a data de depósito do trigésimo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação .89
ou adesão, mas unicamente em relação aos Estados ou organizações regionais de integração econômica que tenham depositado os seus respectivos instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão naquela data ou anteriormente. Para as demais Partes, a Convenção entrará em vigor três meses após a data do depósito de seu instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão. 2. Para os fins do presente artigo, nenhum instrumento depositado por organização regional de integração econômica será contado como adicional àqueles depositados pelos Estados membros da referida organização. Artigo 30 – Sistemas constitucionais nãounitários ou federativos Reconhecendo que os acordos internacionais vinculam de mesmo modo as Partes, independentemente de seus sistemas constitucionais, as disposições a seguir aplicam-se às Partes com regime constitucional federativo ou não-unitário: a) no que se refere às disposições da presente Convenção cuja aplicação seja da competência do poder legislativo federal ou central, as obrigações do governo federal ou central serão as mesmas das Partes que não são Estados federativos; b) no que se refere às disposições desta Convenção cuja aplicação seja da competência de cada uma das unidades constituintes, sejam elas Estados, condados, províncias ou cantões que, em virtude do sistema constitucional da federação, não tenham a obrigação de adotar medidas legislativas, o governo federal comunicará, quando necessário, essas disposições às autoridades competentes das unidades constituintes, sejam elas Estados, condados, províncias ou cantões, com a recomendação de que sejam aplicadas. Artigo 31 – Denúncia 1. Cada uma das Partes poderá denunciar a presente Convenção. 2. A denúncia será notificada em instrumento escrito depositado junto ao diretor-geral da Unesco. 3. A denúncia terá efeito doze meses após a recepção do respectivo instrumento. A denúncia não modificará em nada as obrigações financeiras .90
que a Parte denunciante assumiu até a data de efetivação da retirada. Artigo 32 – Funções de depositário O diretor-geral da Unesco, na condição de depositário da presente Convenção, informará aos Estados membros da Organização, aos Estados não membros e às organizações regionais de integração econômica a que se refere o Artigo 27, assim como às Nações Unidas, sobre o depósito de todos os instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão mencionados nos artigos 26 e 27, bem como sobre as denúncias previstas no Artigo 31. Artigo 33 – Emendas 1. Toda Parte poderá, por comunicação escrita dirigida ao diretor-geral, propor emendas à presente Convenção. O diretor-geral transmitirá essa comunicação às demais Partes. Se, no prazo de seis meses a partir da data da transmissão da comunicação, pelo menos metade dos Estados responder favoravelmente a essa demanda, o diretor-geral apresentará a proposta à próxima sessão da Conferência das Partes para discussão e eventual adoção. 2. As emendas serão adotadas por uma maioria de dois terços das Partes presentes e votantes. 3. Uma vez adotadas, as emendas à presente Convenção serão submetidas às Partes para ratificação, aceitação, aprovação ou adesão. 4. Para as Partes que as tenham ratificado, aceitado, aprovado ou a elas aderido, as emendas à presente Convenção entrarão em vigor três meses após o depósito dos instrumentos referidos no parágrafo 3 deste artigo por dois terços das Partes. Subseqüentemente, para cada Parte que a ratifique, aceite, aprove ou a ela venha a aderir, a emenda entrará em vigor três meses após a data do depósito por essa Parte do respectivo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão. 5. O procedimento estabelecido nos parágrafos 3 e 4 não se aplicarão às emendas ao artigo 23 relativas ao número de membros do Comitê Intergovernamental. Tais emendas entrarão em vigor no momento em que forem adotadas.
6. Um Estado, ou uma organização regional de integração econômica definida no artigo 27, que se torne Parte da presente Convenção após a entrada em vigor de emendas conforme o parágrafo 4 do presente artigo, e que não manifeste uma intenção diferente, será considerado: a) Parte da presente Convenção assim emendada; e b) Parte da presente Convenção não-emendada relativamente a toda Parte que não esteja vinculada a essa emenda. Artigo 34 – Textos autênticos A presente Convenção está redigida em árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo, sendo os seis textos igualmente autênticos. Artigo 35 – Registro Em conformidade com o disposto no artigo 102 da Carta das Nações Unidas, a presente Convenção será registrada no Secretariado das Nações Unidas por petição do diretor-geral da Unesco. ANEXO Procedimento de conciliação Artigo 1 – Comissão de Conciliação Por solicitação de uma das Partes da controvérsia, uma Comissão de Conciliação será criada. Salvo se as Partes decidirem de outra maneira, a Comissão será composta de cinco membros, sendo que cada uma das Partes envolvidas indicará dois membros e o presidente será escolhido de comum acordo pelos quatro membros assim designados.
da data de pedido de criação da Comissão de Conciliação, o diretor-geral da Unesco fará as indicações dentro de um novo prazo de dois meses, caso solicitado pela Parte que apresentou o pedido. Artigo 4 – Presidente da Comissão Se o presidente da Comissão não tiver sido escolhido no prazo de dois meses após a designação do último membro da Comissão, o diretor-geral da Unesco designará o presidente dentro de um novo prazo de dois meses, caso solicitado por uma das Partes. Artigo 5 – Decisões A Comissão de Conciliação tomará as suas decisões pela maioria de seus membros. A menos que as Partes na controvérsia decidam de outra maneira, a Comissão estabelecerá o seu próprio procedimento. Ela proporá uma solução para a controvérsia, que as Partes examinarão de boa-fé. Artigo 6 – Discordância Em caso de desacordo sobre a competência da Comissão de Conciliação, a mesma decidirá se é ou não competente.
Paris, 20 de outubro de 2005.
Artigo 2 – Membros da Comissão Em caso de controvérsia entre mais de duas Partes, as Partes que tenham o mesmo interesse designarão seus membros da Comissão em comum acordo. Se ao menos duas partes tiverem interesses independentes ou houver desacordo sobre a questão de saber se têm os mesmos interesses, elas indicarão seus membros separadamente. Artigo 3 – Nomeações Se nenhuma indicação tiver sido feita pelas Partes dentro do prazo de dois meses a partir .91
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