REVISTA
ITAÚ CULTURAL
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Cada um com a sua língua
Veja também
O compositor Nei Lopes fala da influência do samba no português.
Por que falamos diferente? Descubra a origem dos sotaques. Fotorreportagem: objetos, animais e lugares inusitados ganham forma de letras. Participe com suas ideias
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“A língua é pra comer e pra falar” Pense rápido: quando você viaja para um país ao qual nunca foi antes, qual a primeira medida que toma? Acertou se decidiu comprar um guia local. Mas, se o idioma falado não é de seu domínio, outra regra deve ser seguida com atenção: abrir um espaço na mala para um providencial dicionário de bolso. É ele que vai livrar você daqueles apuros tão frequentes quando não se sabe o que está sendo falado. A língua é, portanto, o principal fator de entendimento e desentendimento entre as pessoas. Isso acontece porque ela está na raiz da comunicação. E sua força é tão grande que acaba por determinar nossos hábitos culturais e sociais, nossa forma de pensar e de agir. Neste bimestre a Continuum fala, em português renovado, sobre os vários aspectos que envolvem a língua. A reportagem que abre a edição mostra que ela é viva e evolui com o passar do tempo, a ponto de hoje a internet configurar-se como um idioma à parte. Em entrevista, o escritor e compositor Nei Lopes fala de seu trabalho de pesquisa sobre as influências que as línguas africanas exerceram na formação do português. É de uma das canções de Lopes, Samba de Eleguá, o verso que dá nome a este texto. Na fotorreportagem, imagens de animais e objetos sugerem letras do alfabeto. Conto inédito do escritor paulistano Ronaldo Bressane traz para a Ficção a linguagem bem-humorada e nada politicamente correta do portunhol selbagem, movimento literário inspirado na fala dos habitantes das fronteiras do Brasil com os outros países sul-americanos. Em reportagem especial, a revista vai a Vale Vêneto, no Rio Grande do Sul, para conhecer seus velhos habitantes, que ainda falam, e ajudam a preservar, o dialeto vêneto, derivado do italiano.
ilustração: Guilherme Kramer
Contribua também para ampliar a abordagem do tema. Saiba como na seção Convocação. E acompanhe a cada semana os novos conteúdos publicados na Continuum On-Line.
Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Alexandre Hypolito, Allan Sieber, Antonio Carlos Viana, Carlos Costa, Cia de Foto, Cristiano Santana, Davi Calil, Diogo Sponchiato, Fabio Prikladnicki, Fernanda Preto, Formiga, Guilherme Kramer, Gustavo Pellizzon, Hare Lanz, Hilton Lacerda, Joana Lira, João Pereira Coutinho, João Wainer, Jorge Filó, Josely Vianna Baptista, Luana Fischer, Luciana Veras, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Mirian Fichtner, Pedro David, Projeto Dulcinéia Catadora, Rebeca Rasel, Regina Stocklen, Rita Loiola, Roberto DaMatta, Rodrigo Lara Serrano, Rodrigo Silveira, Ronaldo Bressane On-Line Alcir Pécora, Augusto Paim, Cacá Machado, Mayra Rodrigues Gomes, Ricardo Aleixo, Welington Andrade Agradecimentos Benjamin Taubkin, Fundação Biblioteca Nacional, Ruy Quaresma (Fina Flor Produções)
capa A língua une e segrega pessoas | imagem: André Seiti
ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007) Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento continuum@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554 Esta publicação segue as normas de Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de com 2009suas ideias Participe
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Entrevista 16. O beija-flor de Nei Lopes O compositor e escritor comenta as contribuições dos idiomas africanos para o português falado no Brasil. Muitas delas vindas do samba.
Reportagem 6. Fala aí, meu camarada!
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56. Roçando a língua de Luís de Camões
Como nascem os sotaques, as gírias, as variações das falas – e os preconceitos que surgem com elas –, que fazem do Brasil um caldeirão linguístico.
Unidos pelos falares, separados pela cultura: por que há tantos obstáculos para se criar uma comunidade lusófona em nível mundial?
12. Uma visita à Torre de Babel
60. Uma operação nada matemática
Descobrir a origem das línguas pode ser tarefa impossível. Mas descobrir os usos que se fazem delas não só é possível como revela muito sobre um indivíduo ou uma sociedade.
Não basta verter palavras para outro idioma. O trabalho do tradutor consiste também em interpretar o tom, o humor e as demais sutilezas do texto – e de seus autores.
46. Entre dois tempos Em um vilarejo gaúcho, a última geração de moradores que ainda fala um dialeto em extinção.
64. A, b, c, dó, ré, mi
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No início era o som: o método que ensina crianças a “ler” música como se leem palavras.
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Artigo 10. Palavras são sensações O escritor Antonio Carlos Viana fala da importância do aspecto lúdico no aprendizado de uma língua.
On-Line 22. Na rede em maio e junho Veja as atualizações exclusivas com matérias e trabalhos artísticos dos leitores.
Arena 28. Acordo ou desacordo? Convenção da discórdia: o antropólogo Roberto DaMatta e o jornalista João Pereira Coutinho debatem se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa tem o poder de unir os países que falam o idioma.
Balaio 30. Comunicar é preciso Dicas para entender a língua por meio de filmes, livros e músicas.
Fotorreportagem 32. Letras que não são Fotógrafos de todas as partes do país encontram, nas coisas e nos lugares mais inesperados, formatos de letras.
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Ficção 38. Los cibermonos de Locombia Ronaldo Bressane apresenta o insólito relatório, escrito em genuíno portunhol selbagem, do desaparecimento do Agente Zed Stein.
Resenha 42. Amolando a língua no veludo Dicionário que nada! Conheça a história da Aurélia, a “dicionária” que reuniu palavras e expressões do universo gay.
Mirada 52. Uma cidade tomada por livros Uma relação fervorosa: os portenhos e a afeição pelas históricas livrarias de Buenos Aires.
Espaço do Leitor 23. Convocação Conheça o tema da próxima edição e envie sugestões, críticas e, é claro, elogios. 24. Área Livre Contos e fotos de leitores ampliam a compreensão da língua.
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reportagem
Fala aí, meu camarada! O Brasil é um verdadeiro caldeirão de sotaques, gírias e variações de falas. Conhecer cada um deles é saber um pouco mais sobre a nossa identidade.
Línguas brasileiras: para muitos nosso português já se transformou num novo idioma
Por Mariana Sgarioni | Poemas Jorge Filó | Fotos Cia de Foto “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.” Essa frase foi escrita por Machado de Assis, em 1881, ao abrir seu primeiro romance realista, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Trata-se de um português perfeito, impecável, porém um pouco distante do que falamos nos dias de hoje. Por isso, vamos propor um exercício de imaginação e pensar como Machado, com seu humor impagável, escreveria essa mesma dedicatória com gírias populares, se estivesse vivinho da silva no ano de 2009. Acho que ficaria mais ou menos assim: “Para os bichos que comeram este meu presunto gelado, dedico estas memórias que escrevi depois de bater as botas.” E se pensássemos ainda que Machado fosse um blogueiro de mão cheia, e ficasse ligado o dia inteiro com seu laptop, conectado com a rede wireless? Talvez escreveria algo parecido com isto: “Pros vermes q roeram meu kdaver, aki vão minhas lbrças. Abs.” Podemos viajar no tempo e escrever esse mesmo trecho nos anos 1950, 1970, 1990. Mesmo existindo formas atuais de dizer a mesma coisa, evidentemente, o original de 1881 continua sendo uma obra recomendadíssima – sobretudo para quem quer conhecer bem a língua portuguesa e dominar a escrita. Por outro lado, esse exercício simplório – e divertido – que propusemos aqui mostra quanto nosso idioma é vivo e está em constante movimento. A língua se transforma, ela é dinâmica. Só desaparece quando as pessoas que a falam são forçadas a adotar outra – coisa que passou a acontecer aqui no Brasil, quando, em 1757, o Marquês de Pombal instituiu o português como língua oficial e proibiu o uso das línguas nativas.
No Sudeste é “uai” Uma forma de expressão Se a pergunta é – “como vai?” Se tá bom se diz “tá bão”.
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Foi um esforço tremendo para impor a língua portuguesa em todo o território nacional. Quando os portugueses chegaram ao Brasil havia cerca de 1,2 mil línguas indígenas na região. Hoje, são 180. O português ganhou enfim sua unificação – por outro lado, a diversidade linguística permanece. As razões são diversas: primeiro, houve resistência dos povos dominados, claro, que mantiveram muitas de suas expressões e palavras. Segundo, o português trazido pelo colonizador não era uma língua homogênea, havia variações dependendo da região de Portugal de onde ele vinha. Sem contar os diversos momentos de chegada dos portugueses, que foram se encontrando com muitas outras nacionalidades no Brasil, o que ia produzindo diversidades linguísticas que caracterizam falares diferentes. Em São Paulo, por exemplo, houve primeiro o encontro linguístico de portugueses com índios. Depois, vieram os negros da África, os italianos, os japoneses, os alemães, os árabes, todos com suas línguas. O resultado é que na mesma cidade é possível encontrar modos de falar completamente distintos. “O português falado, hoje, no Brasil, resulta de uma série de mudanças determinadas por fatores de natureza linguística e histórico-cultural que se vão apresentando ao longo do tempo”, afirma Silvia Brandão, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Alguns exemplos: o “s” chiado (quase um “x”) dos cariocas nasceu com a transferência da família real portuguesa para a cidade em 1808, que produziu no Rio uma versão peculiar da pronúncia lisboeta. Em Santa Catarina, o sotaque cantado é influência direta da forte imigração de portugueses da ilha de Açores. Já Pernambuco ganhou a forte pronúncia do “r” como herança da longa presença holandesa no Recife.
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Vôte, pru mode e oxente É a fala do Nordeste Se o sujeito é valente Também é cabra da peste. Segundo Antonio Houaiss, professor, diplomata, filólogo e lexicógrafo, a variedade de sotaques do Brasil não só enriquece a língua como é sinônimo do seu domínio territorial. Houaiss costumava dizer que a nossa língua, depois de tantas influências, se tornou nova, algo que poderia se chamar de “brasileiro” e não mais “português”. O curioso é que, há muitos anos, antes da lei do Marquês de Pombal, existiu, sim, uma “língua brasileira” por aqui. Era o nheengatu, ainda falado em alguns pontos do Brasil, como na fronteira com o Paraguai e no Amazonas. A língua foi criada no século XVI pelos jesuítas, especialmente pelo Padre Anchieta, que era linguista. Para se entender com os índios, classificou o tupi e criou uma língua que não era nem de português, nem de índio. Eram ambas. Só falava português mesmo quem fosse estrangeiro, ou seja, os portugueses. Herdamos muitas palavras dessa língua, tais como abacaxi, jururu, cipó. E o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando usou a expressão “chega de nhenhenhém”, estava falando nheengatu.
No Centro-Oeste o “candango” Come “Maria-Isabel” Sua dança é o fandango Se é de fora é tabaréu. O nheengatu ajudou muito a formar, por exemplo, o popular sotaque caipira. De acordo com José de Souza Martins, professor de sociologia da Universidade de São Paulo, os índios tinham dificuldades em falar uma série de palavras portuguesas, sobretudo aquelas com a letra “r”. Mulher, colher e orelha eram ditas
como “muié“, “cuié“ e “oreia“. A partir daí veio o chamado “r” retroflexo, aquele “r” dobrado que, com a letra “i”, resulta naquele jeito de falar “cairne” e “poirta”, característico do interior de São Paulo. Muita gente considera esse sotaque como um jeito de falar equivocado. Martins deixa claro que se trata de uma língua dialetal, e não de um erro. “O caipira inventa algo que ele entenda, só isso. Por exemplo, fizemos uma pesquisa no interior em que perguntávamos: ‘Você concorda ou não concorda?‘. Muita gente não entendia. Até que mudamos a pergunta: ‘Você concorda ou disconcorda?‘ ”. Daí entenderam.
Lá no Sul é trilegal Ver um guapo de bombacha Tem china e tem bagual Ai tchê, tudo se acha.
em relação a outros aspectos da vida social, a forma de falar de grupos menos prestigiados socialmente acaba por ter alguns de seus traços estigmatizados”, explica Silvia Brandão. A boa notícia é que esse estigma pode desaparecer caso o sotaque caia, literalmente, na boca do povo. “A partir do momento em que um traço, antes restrito a um grupo, se difunde e atinge a fala da maioria dos indivíduos, ele deixa de ser socialmente marcado.”
No Norte tem xirimbaba Animal de estimação Matrinxã e maniçoba Servem de alimentação.
Justamente por esse julgamento de achar errado o modo de falar do outro existem muitos preconceitos em relação aos sotaques brasileiros. O sujeito abre a boca e quem ouve já imagina de onde ele veio, sua classe social e assim por diante. Especialistas dizem que boa parte desse preconceito se dá por causa da tentativa de uniformizar os sotaques dos apresentadores de televisão conforme o padrão das duas maiores capitais, Rio de Janeiro e São Paulo.
A difusão de um modo de falar é algo realmente fascinante. E isso acontece, muitas vezes, não apenas a partir de um sotaque como também de uma só pessoa. É o que se chama de “idioleto”, ou seja, o conjunto dos usos de uma língua próprio de um determinado indivíduo. Cada pessoa, além de apresentar, na sua maneira de falar, o seu sotaque, usa a língua de uma forma peculiar. Quem não se lembra da língua inventada pelo Mussum, de Os Trapalhões, que fazia a criançada morrer de rir quando dizia “Ai, Cacildis!”. Rapidamente, o idioleto de Mussum, uma língua própria terminada em “s”, misturada ao seu sotaque carioca, se difundiu. Tanto que até hoje muita gente fala (em tom de brincadeira, claro) como ele.
É como torcer o nariz quando o mineiro abandona algumas palavras no meio do caminho ao perguntar “ôndôtô?” em vez de “onde eu estou?”. Ou ainda o “s” dos cariocas ou o “oxente” nordestino. “Embora, do ponto de vista linguístico, não haja forma errada de falar, os indivíduos atribuem julgamentos de valor a determinadas características linguísticas. Como acontece
Mussum adotava um jeito específico de falar, e não gírias, que são palavras, termos ou expressões que, de tanto usadas, podem até entrar no dicionário. “Foi o que ocorreu, por exemplo, com as novas acepções de vocábulos como broto, grilo, legal, bacana, entre outros”, lembra Silvia Brandão. Agora é esperar para ver o que será incorporado com o advento da internet, que usa uma linguagem escrita semelhante à falada. O que Machado de Assis acharia disso?
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artigo
Palavras são sensações Quando aprendidas na infância, certas palavras adquirem significados que nos acompanham vida afora. Por Antonio Carlos Viana | Ilustração Joana Lira No tempo em que se cantava o Hino Nacional antes das aulas, eu ficava intrigado com o verso que dizia: “Dos filhos deste solesmãe gentil, pátria amada Brasil”. O que significava aquele “solesmãe”? Para mim, era um mistério. Tê-lo um dia desfeito, ainda mais pela análise sintática, acabou com a beleza do verso. Mesmo hoje, ao ouvir o hino, o “solesmãe” me transporta para um tempo em que as palavras tinham um sabor ainda não contaminado pela gramática e pelos dicionários. Todos nós temos um dicionário pessoal. Ele se constrói naturalmente, à revelia dos dicionários oficiais. Quando tomamos consciência de que estes existem, o nosso já está formado e é difícil contrariá-lo. A criança vive numa eterna metalinguagem. Ela mesma cria seus códigos de decifração e, assim, vai formando seu dicionário particular, até o dia em que vêm os dicionários de verdade e acabam com a fantasia. Voltando aos meus encontros mais remotos com as palavras, lembro-me de uma expressão cujo sentido que lhe dei é o que me vem logo à cabeça ao me deparar com ela. Quando tinha meus 7, 8 anos, passava diante dos cinemas e via cartazes anunciando alguns filmes para “em breve”. Nunca perguntei a ninguém o que aquilo significava. Como o filme anunciado demorava muito a passar, a expressão entrou para o meu dicionário como sinônimo de “dali a um bom tempo”. É na infância que construímos uma língua própria, que nos faz entender o mundo diferentemente de como os adultos o entendem. Ela é uma janela particular por onde observamos coisas e pessoas. Mesmo quando aprendemos a folhear os dicionários, raramente perdemos o sentido original que demos a algumas palavras. São elas que forram o nosso chão primordial. Não há dicionários que as traduzam da forma como as sentimos pela primeira vez. Elas são antes sensações que significados. Geralmente nos decepcionamos quando descobrimos que o dicionário oficial nos contraria.
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Jamais me esqueci de uma palavra que, para mim, pertencia ao gênero masculino. Quando descobri que era feminina, não a reconheci. Achei que os dicionários estavam errados. Pesquisei em vários deles para ver se algum me salvava e a dava como masculina. Não dava. Para mim, “a comichão” não era o mesmo que “o comichão”. Eu achava que só lhe cabia os artigos “o” ou “um”. Desde então, ela não passa de um termo morto no meu acervo linguístico. Janelas para o mundo Minhas primeiras relações com as palavras, como as de toda criança, foram sempre lúdicas. Quando descobri o gosto por elas, lia os textos do livro de português antes que o professor os lesse em sala de aula. Eu protelava a consulta ao vocabulário que ficava no final do livro ou ao pé da página. Preferia deduzir pelo contexto o que elas significavam. Às vezes dava certo, outras vezes não. Imagino como seriam bem mais interessantes as aulas de língua se, em vez de mandarmos os alunos direto ao dicionário, os incentivássemos a imaginar um sentido para as palavras desconhecidas. Quando comecei a estudar francês, meu primeiro professor gostava de brincar com as palavras e foi isso que me levou a me apaixonar, cada vez mais, por essa língua. Já o professor de inglês era seco, técnico, nos mandava logo ao dicionário, sem nenhuma poesia. Suas aulas eram de um tédio sem fim. O de francês fazia com que a gente atentasse para a combinação dos sons, para a sequência das sílabas, e o sentido apareceria depois. Era um exercício que deixava toda a turma em contínua atenção. O verbo “bouleverser” foi um dos exemplos mais vivos que ele deu.
Quando vou traduzi-lo, fico sempre insatisfeito, acho que está faltando alguma coisa. Não sinto em “transtornar” o mesmo movimento interior do original. Não é que haja uma língua mais expressiva que outra, cada uma o é à sua maneira, mas há palavras que nunca deveriam ser traduzidas. “Bouleverser” seria uma delas. Seja em que língua for, o primeiro contato com as palavras é decisivo para a construção de nosso estar no mundo. Por mais que, um dia, você lide com elas, o que vale mesmo é a forma como as sentiu pela primeira vez. Há um dicionário vivo que nos acompanha desde o momento em que passamos a nomear o que nos cerca. Um menino que nasce no sertão nordestino não vê a palavra “terra” com o mesmo olhar de outro que nasce no Sul. Cada um cria um universo de sentidos particulares que carregará vida afora. Há um dicionário que antecede todos os dicionários, e é esse o que mais conta na hora da criação. As palavras abrem janelas para o mundo, mas para abri-las de verdade precisam ter um sopro original. Quando escrevemos um poema, um conto, é bem isto o que procuramos: buscar sentidos ainda não contaminados pela baba do mundo. Para encerrar, recorro a Roland Barthes, quando diz que o escritor “não possui mais em si paixões, humores, sentimentos, impressões, mas esse imenso dicionário de onde retira uma escritura [...] a vida nunca faz outra coisa senão imitar o livro, e esse mesmo livro não é mais que um tecido de signos, imitação perdida, infinitamente recuada”. Antonio Carlos Viana, mestre em teoria literária e doutor em literatura comparada, é autor de O Meio do Mundo e Outros Contos (1999) e Aberto Está o Inferno (2004), publicados pela Cia. das Letras.
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reportagem
Uma visita à Torre de Babel Para entender uma sociedade, entenda primeiro sua língua. Por Rita Loiola | Fotos João Wainer O homem tem a sorte, entre outras, de conhecer sua história desde o princípio. E o começo diz que havia apenas um homem, que falava uma língua concedida por um ser divino. Mas, um dia, os descendentes desse homem resolveram construir uma torre muito alta e chegar aos céus, onde morava seu deus. Só que o proprietário das nuvens não gostou nada dessa invasão e evitou a construção dos últimos andares com uma ideia muito engenhosa: confundiu a língua dos operários. Sem se entenderem, eles migraram para outras regiões, amargando o fracasso do projeto. Torre de Babel, Grande Pirâmide de Cholula e Zacuali são alguns dos nomes que a construção leva em diferentes tradições. O mito é uma das tentativas mais bem-sucedidas de resolver a questão milenar da diversidade das línguas no mundo. Afinal, como explicar um assunto que se confunde com a origem do homem? Como abordar essa “coisa” que chamamos língua e que já foi definida como uma energia, um organismo ou um sistema social? No século XVIII, conhecido como século das luzes, o filósofo francês Rousseau escreveu, em um de seus ensaios menos conhecidos, longamente sobre o assunto. Para ele, o homem começou a falar para emocionar os outros. “Pode-se crer que a necessidade ditou os primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras vozes”, diz ele em seu Ensaio sobre a Origem das Línguas, de 1761 (Unicamp, 2008). Rousseau acreditava que, se o homem tivesse apenas necessidades físicas, da mesma maneira que outros animais, ele provavelmente nunca falaria. Mas, como se desconfia, o Homo sapiens precisa de algumas coisas a mais. Tem desejos e sentimentos e, depois que começou a duvidar da narrativa bíblica sobre a origem
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humana, conheceu novas vontades. Quis entender qual era a linguagem que caminhou com o primeiro homem e começou, no fim do século XIX, a especular sobre a “língua perfeita”, “original” ou “adâ mica”. Foi nesse rastro, por exemplo, que nasceu o esperanto, na Polônia, ou o volapük, na Alem anha, línguas francas internacionais [������������������������ faladas por gente de diferentes idiomas com o objetivo de comunic aremse entre si] com a missão de acabar com a maldição de Babel. “Afinal de contas, o plurilinguismo é visto como um castigo de Deus em todo o Ocid ente, e só é redimido com a descida do Espírito Sant o sobre os apóstolos”, explica o linguista José Luiz Fiorin, da Universidade de São Paulo. “Nesse episó dio, todos falaram e se entenderam, mas não se sabe se os apóstolos ouviram a mensagem na sua própria língua ou se ganharam todos os idiomas, numa espécie de ‘esperanto místico’ ”, explica. As partes da colcha de retalhos s práA solução do Espírito Santo ganhou contorno bemmais s ideia ticos nas línguas universais ou em as que humoradas, como a de Jonathan Swift: “Visto nte palavras são apenas nomes de coisas, seria basta as igo cons gasse carre um mais cômodo que cada que tos assun os coisas que lhe servem para exprimir potenciona falar [...] desse modo, os embaixadores estranderiam negociar com príncipes ou ministros as”, diz língu suas as ecer geiros sem terem que conh 1726 de er, Gulliv o autor irlandês nas suas Viagens de esém (L&PM, 2005). Nessa época apareceram tamb am peculações sobre a origem e o motivo que levav de ria histó uma o com r, os homens a se comunica s hido grun dos r que eles começaram a falar a parti dos. pesa associados ao esforço para levantar objetos os esCansados dessas ideias estapafúrdias, em 1866 iram proib Paris de ística tudiosos da Sociedade Lingu da em “orig à vo todo e qualquer estudo de tema relati ser de e linguagem”. Para eles, o assunto estava long n Jocientífico. No entanto, um inglês chamado Willia que de o encid conv ou acab nes viajou para a Índia e io Méd te Orien do alguns falares da Europa, da Índia e é os estud tinham parentesco. A publicação de seus nsáo marco inicial da linguística comparada, a respo os ecem conh hoje que do vel pelo estabelecimento se que imo próx como famílias linguísticas, o mais pôde chegar dos primórdios das línguas. Participe com suas ideias
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Aquelas semelhanças que Jones apontou acabaram no indoeuropeu, uma língua que jamais foi ouvida, mas que pôde ser reconstruída a partir das coincidências entre idiomas aparentemente tão díspares como o sânscrito, o grego e o latim. Seus ramos são os responsáveis pelo nosso português, mas também por muitas outras línguas, entre elas o romeno (também do braço latino), o inglês e o alemão (do grupo germânico) e o russo (do grupo balto-eslavo). Atualmente, os pesquisadores acreditam que haja no mínimo duas dezenas de famílias como o indo-europeu que, remontadas a mais de 10 mil anos a.C., poderiam acabar em uma única língua, ainda muito mais antiga, chamada scan. Ou não! Porque, como não existem registros, poderiam existir várias línguas dos vários primeiros homens que deram origem a essa colcha de retalhos dos quase 7 mil idiomas falados em todo o mundo. Prática e fortalecimento Mas, se não é possível saber como as línguas surgiram, pelo menos sabemos que elas morrem, certo? Nem sempre. “Essa história de pensar que a língua nasce, evolui e morre é coisa do século XIX, quando se tentava enquadrar tudo nos esquemas biológicos e evolucionistas”, explica o professor de linguística Carlos Faraco, da Universidade Federal do Paraná. Basta pensar, por exemplo, no hebraico, que deixou de ser falado por causa da dispersão dos judeus pelo mundo. Ou seja, estava morto. Só que, com a criação de Israel, em 1948, ele foi resgatado, adaptado e virou a língua oficial da nação. No Norte da Itália também há dialetos desaparecidos, mas registrados em documentos e livros, que voltaram a ser estudados e, como o hebraico, “reviveram” no país com os novos falantes. “As únicas línguas que morrem são aquelas
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totalmente orais e que acabam enterradas com o último conhecedor”, explica Faraco. Foi assim com o dalmático, antigamente falado nas margens do Mar Adriático, e com dezenas de línguas indígenas brasileiras, que sumiram ao mesmo tempo que suas tribos. Melhor que falar de morte, então, seria falar de falta de uso. “Quanto mais a língua é praticada, mais ela se fortalece”, explica a professora de linguística histórica Enilde Faulstich, da Universidade de Brasília. “Falar de morte é uma metáfora, porque língua é algo abstrato. E ninguém mata algo abstrato. Língua e mente caminham juntas e é por isso que, para matá-la, é preciso, antes, matar as pessoas”, diz. Fazer a mágica de “reviver” uma língua só é possível se houver registros de seu uso. E, como a escrita é o modo mais antigo de “guardar” a fala, é a partir desses
documentos que se pode sair por aí “des enterrando” idiomas. Só que, mesmo com eles, descobrir como os seres humanos se expressavam antigame nte é tarefa quase impossível. Porque escrita e oralidade são duas modalidades distintas da linguagem, e não o espelho uma da outra. É só pensar que, se alguém começar a falar como escreve, o resultado sairá um tanto esquisito. “É como se imaginássemos uma linha contínua que vai de algo mais escrito a algo mais oral. De uma ponta a outra existem várias nuances, vários gêneros que misturam características dos dois”, explica Fiorin. O diálogo em casa, por exemplo, estaria numa extremidade oral, enquanto um artigo científico, cheio de burocracias, estaria em outra. Mas a fala de um apresentador de telejornal fica entre as duas porque, apes ar de falado, tem marcas claras da caneta de quem construiu o texto. ”Fala e escrita são coisas muito difer entes, mas não opostas”, diz o professor. Juntas, no enta nto, essas duas modalidades compõem o todo que, além de ser dito ou grafado, é capaz de definir o hom em e seu lugar no mundo.
Construção de sentidos “A sociedade só é possível pel a língua; e por ela também o indivíduo”, escreveu Émile Benveniste, em Problemas de Linguística Geral, de 1966 (Pontes Editores, 2008). Mas será que a líng ua é mesmo capaz de construir tudo isso, como acredi ta o teórico francês? “É por meio dela que o ser hum ano se revela”, esclarece Luiz Francisco Dias, pro fessor de linguística e semântica da Universidade Fed eral de Minas Gerais. “Falando para o outro, falamo s para nós mesmos e, assim, construímos os sentido s e nos descobrimos.” Afinal, basta alguém começar a dizer algo para, imediatamente, denunciar de ond e veio, qual a “turma” a que pertence e, nas entrelinha s e entonações, declarar até os sentimentos e medos que o cercam. Ou, ao menos, foi nisso que o neurolo gista alemão Sigmund Freud pensou quando conceb eu a psicanálise, em 1890. Grosseiramente, seu mé todo nada mais é que uma forma de desbravar o inc onsciente por meio das artimanhas da linguagem .
As palavras usadas, no entanto, fazem parte de outro sistema, definido política e socialmente. A língua, afinal, é o meio de comunicação de um determinado território, usado por seus indivíduos, “um dialeto com exército e marinha”, nas palavras do linguista alemão Max Weinreich. A primeira coisa que uma nova nação precisa, além de definir suas fronteiras, é de uma língua nacional. “Nosso idioma está inscrito na Constituição, e ele é um dos elementos que nos definem como brasileiros”, diz a especialista em linguística histórica Rosa Mattos e Silva, da Universidade Federal da Bahia. “A construção da identidade pessoal passa pela língua, porque é por meio dela que os seres veem a realidade e é com ela que eles se expressam”, diz. Tanto é que não existe gente sem língua, qualquer que seja. E talvez seja por isso que tantas mitologias, tentando explicar o começo do mundo a partir do nada, foram parar na palavra. Leia na Continuum On-Line entrevista com a linguista Marta Scherre, da Universidade Federal do Espírito Santo, sobre preconceito linguístico. Participe com suas ideias
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entrevista
O beija-flor de Nei Lopes Por Marco Aurélio Fiochi | Foto Cia de Foto O samba deu régua e compasso ao compositor, cantor e escritor carioca Nei Lopes para empreender seu respeitável estudo sobre a presença das línguas africanas na formação do português falado no Brasil. Sua produção inclui 23 livros publicados e dois a ser lançados neste ano. São ensaios, contos, perfis e narrativas, além do constante levantamento das palavras de origem africana que integram o vocabulário dos brasileiros, o que rendeu quatro dicionários (dois voltados ao grupo linguístico banto, outro com termos afro-brasileiros para estudantes e mais um com verbetes sobre a produção literária negra). No campo da história, Lopes realizou a extensa pesquisa que compõe os cerca de 9 mil verbetes de sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (Summus, 2004). Um dos mestres do partido alto, reunião musical em que o improviso é essencial para criar na hora versos inspirados e bem-humorados sobre o cotidiano, é autor de vários sambas de sucesso, cantados, entre outros, por Clara Nunes, Alcione e Beth Carvalho. Distante da agitação do Rio de Janeiro e de sua paixão, o Salgueiro, vive tranquilo com a esposa, Sonia, em Seropédica, interior fluminense. É lá que funciona o NEI (Núcleo de Estudos Independentes), uma brincadeira do escritor para falar de seu lugar de trabalho, um escritório repleto de livros, e para ressaltar que sua produção é feita de maneira solitária, sem filiação a nenhuma universidade, mas com a generosidade de amigos que lhe trazem materiais de estudo de várias partes do mundo. É no jardim de sua casa que ele recebe de vez em quando a visita de um passarinho, que, graças à verve afiada do sambista para a improvisação, foi batizado de “beija-flor de Nei Lopes”, trocadilho saboroso com o nome de outra famosa escola de samba, a BeijaFlor de Nilópolis. O sambista Nei Lopes em sua casa: “O samba é fonte de referência, apesar do esvaziamento cultural”
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Você ficou contente com a vitória do Salgueiro no último Carnaval? Esta é uma longa história. Estou afastado do Salgueiro desde 1989. Quando saí da escola, devido a uma incompatibilidade com a direção, fui para a Vila Isabel. Sempre morei naquela região, da Grande Tijuca. Eu era um simples componente do Salgueiro e na Vila Isabel virei dirigente. Você era da ala dos compositores do Salgueiro? Fui da ala dos compositores, mas quando saí estava na velha-guarda. Eu me desentendi com eles porque concorri com um samba-enredo para o Carnaval de
de escravo foi uma mudança difícil. Negro queria era sair fantasiado de senhor. É até ilógica minha participação no Salgueiro pelo fato de eu ter nascido e sido criado no Irajá, subúrbio carioca, completamente distante do núcleo salgueirense. O Irajá tem forte tradição de samba, pois está cercado pelo Império Serrano, pela Portela. O lógico seria eu ir para uma dessas. Inclusive, quando menino, tinha uma tia que foi uma grande figura da Portela, foi compositora, cozinheira. Recentemente tive acesso a uma carteirinha dela e ali estão seu nome e número da matrícula. Imagina um componente da Portela com a carteirinha de número 5, então é da fundação mesmo. Alguns membros da
“O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuição vocabular, que andava solta pelos morros.” 1989 e houve algumas confusões, que são típicas de escolas de samba. Mas meu coração é salgueirense. Fiquei muito feliz com a vitória da escola nesse Carnaval. Eu vi o desfile pela televisão, mas não se tem a noção exata do que seja, pois, apesar de toda a tecnologia, ela não aprendeu ainda a transmitir desfiles de escolas de samba. É algo tão rico... Um cortejo no qual se encena um espetáculo, como se fosse uma ópera. Neste ano, eu me emocionei profundamente porque o desfile estava muito bom, muito bem acabado do início ao fim. A Vila Isabel eu não vi, lá tenho grandes amigos, mas ela não mexe com minha sensibilidade como o Salgueiro, para o qual entrei no final da adolescência. Foi um convívio muito intenso. O Salgueiro foi uma das primeiras escolas a trabalhar com temas ligados a questões dos negros... Sim, isso foi o que me chamou a atenção na adolescência. A primeira vez que vi o Salgueiro foi em 1958. A escola tem uma história social completa, muito coerente em toda a sua existência. Foi a primeira agremiação na qual se exercitou a possibilidade de o meio conduzir a mensagem. Normalmente, o que se via nas escolas de samba era a comunidade majoritariamente negra transmitir os conteúdos da história convencional, oficial, eurocêntrica. Colocar um negro vestido
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velha-guarda, como Monarco e Casquinha, a conheceram bem e, de vez em quando, me questionam por eu não pegar os sambas dela, que só tinham a primeira parte – usual naquele tempo –, e não os completar. Conheço uns dois, que estão na memória, só. Ela foi uma pessoa que me influenciou muito. Seria coerente, então, que eu fosse da Portela ou do Império Serrano, onde tenho amigos, mas nunca estive lá. A razão, no entanto, é muito simples: tenho um amigo de infância que atualmente mora no Recife e sai todo ano na velha-guarda do Salgueiro. Ele pertencia à comunidade dessa escola, era um salgueirense convicto. A gente se criou junto. Quando atingimos a maioridade, ele me convidou para sair no Salgueiro, eu disse que não dava, não tinha dinheiro, não estava trabalhando, e ele me falou que a escola iria dar a roupa a pessoas que tivessem facilidade com dança, para integrar um quadro que não era exatamente de samba, era um balé. Isso foi em 1963, o primeiro ano em que a escola foi campeã, com o enredo sobre Xica da Silva. No ano seguinte, eu me tornei componente. Depois, meu filho, aos 10 anos, deu continuidade a essa tradição, saiu na bateria, ficou ligado à escola por muito tempo. É algo natural. Um dia perguntaram aos meus netos, que são gêmeos, com 9 para 10 anos, de que escola eram, responderam “do Salgueiro”.
O senhor é um dos criadores e mestres do samba de partido alto. Esse gênero é marcado por narrações de casos do cotidiano. Quais artifícios ou ferramentas a língua oferece para criá-los? É um estilo de samba que me encanta muito pela proximidade com a tradição africana. É a forma menos desafricanizada do samba. Eu me tornei um praticante dele. Hoje já não tenho tanta agilidade como antigamente, é algo que vai se perdendo com a falta de exercício. Partido alto é uma cantoria na base do improviso. Então, quando se escreve, quando se grava esse samba, ele já deixou de ser partido alto. Daí se tem um samba em estilo partido alto, mas em essência não é. Ao gravar, já se escreveu, se memorizou, então não há improviso. O improviso sempre acontece no ambiente da informalidade. Quando é apresentado num teatro, perde a espontaneidade. Todas as cantorias ocorrem ao sabor do momento. Tem de haver uma base, uma poesia previamente preparada, mas o que vai surgir dali não se sabe. Há determinados motivos, dentro de refrões, e tem de se versar com esses temas. A cantoria nordestina, por exemplo, tem vários estilos, cada um com muita rigidez formal. O partido alto tem algumas regras, mas não essa rigidez, essa formalidade em que não se pode sair do estabelecido. O partido alto tem mais o caráter de brincadeira, de algo mais lúdico do que a competição de saber quem é o melhor, como os trovadores na cantoria nordestina. Nele, quanto mais se rimar dentro de uma métrica, melhor. Por exemplo, quando se faz uma quadrinha: “Lá em cima daquele morro tem um pé de manacá”. Pode-se brincar assim: “Lá em cima daquele morro eu peço socorro”, entende? Inclui-se outra qualidade de rima, transforma-se a quadra numa sextilha, fica algo mais encorpado, balançado, gostoso. Aí é que se vê a habilidade do partideiro. Há grandes partideiros atualmente, como o Tantinho da Mangueira. Dos que estão em atuação no momento, ele é o melhor. O Arlindo Cruz também é excelente. O samba é comumente associado à preservação da cultura nacional. Nisso se inclui a língua portuguesa. Qual a contribuição efetiva que o samba deu à nossa língua?
O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuição vocabular. Ele consagrou muita criação lexical que andava solta pelos morros. Na construção de um dicionário, por exemplo, se determinada palavra tem importância histórica, para registrá-la é preciso fazer uma abonação. Onde está essa palavra, em que local foi usada. Muitas vezes, essa abonação só vai ser encontrada em letra de samba. São palavras de uso muito localizado, como qualquer gíria. A gíria é uma forma verbal sempre restrita a determinado ambiente, contexto e grupo. O samba é fonte de referência, apesar do esvaziamento cultural, para o qual a indústria cultural contribuiu decisivamente. É o fenômeno do samba axé... Exato, e também o chamado neopagode, que é sexualização pura e de uma ingenuidade... O samba não é isso, em sua essência é crítico, é cronista da vida. Ultimamente, está nas mãos de muito poucos compositores. Vemos isso no repertório do Zeca Pagodinho. Sua grande importância é essa, ele é o guardião, vamos dizer assim, o bastião da resistência do modo de vida, da cultura, da expressão oral do mundo do samba. Outros compositores, como Luís Grande, Zé Roberto e Barbeirinho do Jacarezinho, também são muito bons. Foi do samba que surgiu seu interesse por estudar as línguas africanas e sua influência no português? Tudo começou com a necessidade que eu sentia desde muito cedo de denunciar essa forma de as pessoas encararem tudo que é africano como negativo, desinteressante, desimportante. Quando descobri que o português que se fala no Brasil tem forte influência africana, não só na sua estrutura, mas no modo de falar, no vocabulário, não parei mais. Há palavras que a gente nem supõe que sejam de origem africana. Nesta semana, por exemplo, me ocorreu que “maluco” poderia ser africana. E é. “Maluco” vem do Congo. Outro exemplo, uma palavra que é do campo semântico da tecnologia, “carimbo”. Ela é de origem africana. Mais uma: “sunga”, do campo da vestimenta, dá a impressão de ser extremamente moderna. Mas não é. Vem das origens africanas, quando se usava o termo “assungar”, que significa diminuir, encurtar. Então, uma roupa assungada é uma roupa encurtada, daí vem “sunga”. Há uma infinidade de palavras africanas sendo pes-
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q u i s a d a s, inclusive os falares dos quilombos remanescentes, como o Cafundó, no interior de São Paulo. São palavras que têm uso restrito nessas comunidades, que não chegaram ao domínio geral, mas têm uma filiação africana muito clara. Muitas delas, já observei, são permanentes. Elas “hibernam” durante um tempo e, por alguma razão, voltam. Quer saber outro termo? Por causa da televisão, todos sabem o que é uma “quenga”. É uma palavra africana muito usada no interior e que ficou restrita a essas localidades por um bom tempo. Hoje, tem circulação nacional. Há outras ainda: “tamanco”, “camundongo”, “marimbondo”, palavras extremamente sonoras, do grupo banto. O senhor é ligado a algum grupo acadêmico de estudo da língua? Não. Minha formação é incompleta, sou bacharel em direito e ciências sociais. O tempo da faculdade foi de muita turbulência política e o ensino não me agradava muito. Apesar disso, eu me formei e advoguei durante um período, mas o que ficou foi só uma base. Acho que tinha vocação de antropólogo mesmo. Na época era o tipo de conhecimento que não era vulgarizado. Sou autodidata. Tenho uma base formal, mas não sou ligado a nenhum grupo acadêmico. Mesmo porque tenho críticas à academia. O trabalho acadêmico é muito em torno do próprio umbigo. As pessoas, em geral, não têm uma preocupação mais adiante, mais social, de transformação. Querem é defender sua tese, ganhar sua promoção, fazer grana. E a vaidade é muito grande. Seus estudos linguísticos começaram a despontar quando a carreira musical já estava consolidada. Hoje, como um assunto visita o outro: o estudo abastece a composição e a composição exemplifica o estudo? Em 2006, por exemplo, publiquei um livro de ficção, Vinte Contos e uns Trocados, pela editora Record. Ou-
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tro dia, comecei a relê-lo e me surpreendi. Eu escrevi esses contos no intervalo de outro trabalho, que não foi publicado ainda, o Dicionário da Antiguidade Africana. Ele vai sair pela Civilização Brasileira, que é do grupo Record também. É um estudo que está sendo muito bem elaborado, porque é pioneiro, ninguém tinha analisado a África antes da chegada dos portugueses. Pois bem, eu percebi, ao reler as histórias de Vinte Contos que nelas, em vários momentos, aparecem referências à música. Todos os contos se passam no ambiente das escolas de samba. A todo momento esse ritmo está nas histórias; e, em várias passagens, a antiguidade africana também. Então tudo vai se ligando, não há dúvida. Reparei também que, atualmente, quando faço um samba, muita coisa da minha formação jurídica tem entrado nas composições. Quero reunir as músicas em que essa influência é recorrente. Esse recurso é usado mais como uma brincadeira, como um deboche, mas é interessante, de qualquer forma. As coisas se entrecruzam sem preconceito nenhum. Na introdução do Novo Dicionário Banto do Brasil (Pallas, 2003), o senhor faz uma observação sobre a influência das línguas africanas no português ao dizer que uma das formas de racismo mais arraigadas na alma brasileira é reduzir essas línguas à condição de “dialetos”. Outro aspecto pontuado nesse texto é a definição do português brasileiro como um dialeto do idioma falado em Portugal... Teoricamente seria, porque um dialeto é uma forma linguística resultante da transmutação, da transposição de uma língua para outro ambiente. O que aconteceu com o português de Portugal e do Brasil? A língua de Portugal, ao vir para o Brasil e ter contato com outras realidades linguísticas, transformou-se bastante. Minha crítica nesse texto é ao preconceito de que toda língua africana é um dialeto. A existência de um dialeto pressupõe a existência de uma língua. É evidente que na África há dialetos, mas há línguas também. O quicongo é uma língua falada por milhões de pessoas, o hauçá, o
mandinga são línguas que têm subdivisões dialetais, de acordo com as regiões. Chamar toda língua africana de dialeto é racista, inferiorizante. Em outro livro meu, Dicionário Literário Afro-Brasileiro (Pallas, 2007), discuto a questão do racismo na literatura. Por exemplo, há um grupo de literatos negros em São Paulo, chamado Quilombhoje, que se reúne em torno dos Cadernos Negros, publicação editada há cerca de 30 anos. Eles publicam às próprias custas antologias de ficção
totalmente africana, tenha um grau de mestiçagem. Em casa, desde cedo fui o primeiro a pensar nas questões que envolvem os negros, por ter sido o primeiro a ter acesso a esse tipo de informação – meu pai e minha mãe não gostavam de tocar nesse assunto. Diziam: “Deixa para lá que a gente tem que melhorar”. Era aquele conceito de melhorar no sentido do embranquecimento mesmo, de deixar a condição de negro para trás. Minha mãe não queria que eu me envolvesse com gente do samba, e eu me envolvi, contrariando todas as expectativas. Além do samba, havia a questão da religião, quanto menos africanizada
“Há uma infinidade de palavras africanas sendo pesquisadas, inclusive os falares dos quilombos remanescentes. São de uso restrito nessas comunidades, que não chegaram ao domínio geral.” e de poesia. É um grupo reconhecido internacionalmente, mas o Brasil não o reconhece. Em nosso país só alcançam reconhecimento as pessoas que estão ligadas aos círculos literários influentes, que vendem muitos livros, estão em grandes editoras. O senhor postou recentemente em seu blog [www.neilopes.blogger.com.br] um texto sobre uma recente pesquisa da situação social do negro brasileiro no último ano. Nele, faz uma crítica ao debate atual sobre a existência ou não de raças. Por que surgem essas proposições, e por que elas ganham força? Meu pai e minha mãe são do século XIX; meu pai nasceu em 1888, poucos meses antes da Abolição. Para mim, o grande acontecimento de 2008 foi a descoberta de minha ancestralidade um pouco além de meu pai. O historiador Flávio Santos Gomes está trabalhando com registros de batismos de pessoas nascidas nos séculos XVIII, XIX, pertencentes a igrejas. Ele me auxiliou. Meu pai dizia que tinha sido batizado na Igreja da Lampadosa, no centro do Rio, que concentrou grande irmandade de pardos. Então, pressupõese que minha ancestralidade mais próxima não seja
fosse, melhor, apesar de minha mãe ser médium. Ela recebia preta-velha, e meus tios recebiam caboclos. Mas, quanto menos africano a gente fosse, melhor. É lógico, um pai que nasceu em 1888 e uma mãe que nasceu em 1900 não vão querer nunca que a formação do filho remeta àquele passado aviltante do qual, embora distantes, sentiram as consequências. Não era bom ser negro, não era confortável. O que eles queriam? Que o filho estudasse, subisse na vida. Comecei, então, a ver que enquanto o negro permanecesse no lugar reservado a ele, ocuparia, sem demérito, funções como mecânico ou operário qualificado, como se dizia antigamente. Se, no entanto, o negro pensasse em ser doutor, um ser pensante, começaria a entrar numa área de conflito com o branco. E é exatamente isso o que está acontecendo. Mas também é um momento muito saudável, pois se trata de um assunto que nunca se discutiu e agora está na pauta do Congresso, com o Estatuto da Igualdade Racial. Se raça não existe, existe o racismo! Essa é a grande questão. Se não tenho a possibilidade de avançar, tenho no mínimo de me preocupar. Assista na Continuum On-Line a trecho do DVD Toca Brasil – Nei Lopes. Participe com suas ideias
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Em outras palavras... Escrever “é viajar entre mundos e ter morada apenas na zona de fronteira”. As palavras são do escritor moçambicano Mia Couto, um dos ����������������������������������������������������������������������� mais conhecidos do continente africano e da literatura em língua portuguesa. Biólogo e jornalista de formação, tem mais de 20 livros publicados, em países como Alemanha e Dinamarca. Em entrevista, Couto fala de seu trabalho e de questões como a lusofonia e o acordo ortográfico. *** O que pode acontecer com uma língua quando retirada de seu contexto? Se os costumes estão intimamente ligados ao idioma e à evolução deste, o que significa retirá-lo de seu local de origem? Muitos afirmam que ele se estagnaria. Em artigo, o professor de teoria literária da Unicamp Alcir Pécora discorda: “A matriz da língua não anula o seu exercício, seja ele partilhado pelos membros da comunidade original de falantes, seja pelos de um grupo mais reduzido, por vezes interessado num registro exclusivamente literário dessa língua”. *** A relação entre língua e música também tem espaço na versão on-line da Continuum. Ouça o programa Mapa – Em Busca do Brasil Sonoro com Luiz Tatit, um dos participantes do grupo Rumo, que reuniu também Ná Ozzetti e Gal Oppido, entre outros. Com 30 anos de formação e discos como Rumo aos Antigos e Diletantismo, o grupo inovou a forma de utilizar os recursos da língua em suas letras. *** Confira, em maio e junho, atualizações exclusivas no site da Continuum (www.itaucultural.org.br/continuum). Ouça o audiobook produzido com curadoria de Cacá Machado, responsável pela exposição sobre Machado de Assis do Museu da Língua Portuguesa; leia o glossário sobre linguagem escrito pela professora Mayra Rodrigues Gomes; conheça a poesia verbovocovisual em criação de Ricardo Aleixo; saiba qual a relação entre som e significado no artigo do professor Welington Andrade, entre muitos outras. No site, você também pode se cadastrar para receber nossa newsletter e acessar as edições anteriores da revista.
O escritor moçambicano Mia Couto: “A língua é uma moradia, uma casa para o pensamento”
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convocação
Abra a gaveta e participe! Cansado de guardar sua produção na gaveta? Mande contos, poemas, ilustrações, fotografias, vídeos e demais trabalhos artísticos para a Continuum Itaú Cultural! Eles podem ser publicados nas páginas – impressas e virtuais – da revista. Basta ficar de olho no tema do mês e enviar sua obra pelo e-mail participecontinuum@itaucultural.org.br.
Maio-junho: Língua Julho-agosto: Conectividade
As portas da Continuum não estão abertas apenas para obras de arte. Você também pode participar com matérias jornalísticas, reflexões, comentários, críticas, sugestões etc. A cada edição uma enquete convida os leitores a dar sua opinião. Para o tema corrente entre maio e junho, a enquete é: Qual o futuro das línguas?. Acesse e diga o que pensa! *** As relações sociais estabelecidas por intermédio da internet – tema cada vez mais presente em tempos de Orkut, MySpace, Twitter e outros programas que vêm tornando o mundo mais integrado e em conexão – são o mote da entrevista especial, com o jornalista Marcelo Tas, que será publicada na edição sobre Conectividade (julho-agosto). E quem vai fazer essa entrevista é você: envie perguntas, exclusivamente relacionadas ao universo da internet, para ser respondidas por Tas. O fim do mês de maio é o prazo para mandar quantas perguntas quiser, usando o e-mail da redação: participecontinuum@itaucultural.org.br. Para conhecer mais sobre o comunicador, visite seu blog (marcelotas.uol.com.br), uma das páginas virtuais mais visitadas do país. É lá que ele comenta e analisa as novidades da rede não só brasileira, mas a de todo o mundo. Tas também é um dos mais seguidos no Twitter, em que dá dicas sobre o que é bom ficar de olho na internet. Para saber mais, acesse www.itaucultural.org.br/continuum.
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O homem que abdicou das palavras Por Diogo Sponchiato | Ilustração Hare Lanz Abdicou das palavras como quem para de beber cerveja. Talvez estivesse bêbado quando ditou a aposta. Os companheiros de bar nunca acreditaram na proposta de Jorge. Mas ele a fez. Fez para si, porque sabia que de suas entranhas não brotariam revoluções. Usou os amigos e os quatro ou cinco copos de cerveja como álibi para dar força ao seu plano egoísta. Sabia que não era o primeiro nem o último a fazê-lo. E ninguém atentou às suas últimas palavras. Jorge se achava mais um lobo da estepe. Não tinha nem 50 anos, mas se portava feito um velho carcomido por um tempo sem alterações. Considerava-se o melhor entre os alunos e o pior entre os professores. Nunca publicou um livro, ele que se via intelectual, com os óculos na ponta do nariz adunco, o cigarro no canto direito da boca, um ou dois livros presos à axila. Tantas poesias confinadas no armário, prisioneiras do pó. E um romance que o fogo da lareira dilacerou, após uma noite regada a puro malte escocês. Não que fosse pusilânime, mas ciente de que o mundo não se importaria com suas insossas palavras e débeis ideias. Seus textos não refletiam a originalidade que, um dia assegurou ele, habitava sua mente. Jorge era o intelectual que estaria sempre prestes a nascer, mas nunca nasceria. Nesse impasse, decidiu-se pelo aborto. Cansou-se da prosa, esse mar artificial; enfastiou-se da poesia, esse riacho de extremos, antíteses e falsidades. Rasgou os jornais, a interpretação barata da realidade estúpida que vivia. Cobriu com uma lona sua exígua biblioteca, repleta de exemplares emprestados e nunca lidos, afinal, ele sempre preferiu os livros comprados pelo próprio bolso. Ao espreitar um volume de contos de Machado de Assis, colocou-se no lugar do alienista, mas logo cuspiu a lembrança. Árduo trabalho o de mandar ao inferno, ao vazio, ao nada, tudo o que havia lido. Adeus a personagens e mundos. Adeus ao tempo construído por frases. Sua meta era se desvencilhar das palavras. Aposentou-se da leitura. E maior esforço despendeu para renunciar aos diálogos do cotidiano, essas coisas aparentemente insignificantes, mas que são os verdadeiros tijolos do conhecimento humano. Suou para transformar os pedidos de café na padaria em singelos gestos e interpretações. Tornou-se um ator de filme mudo. Logo se viu posicionando os dedos em “v” e levando-os à boca. Minutos depois, estaria com um novo maço de cigarros. Preteriu todos os bons-dias, obrigados e rituais de reciprocidade que, há algum tempo, saíram de moda na urbe. Abnegou o céu, evitando os outdoors e as fantasias sugeridas pelas nuvens.
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Extinguiram-se as poucas amizades. O telefone antigo fora arrancado, a caixa de correio lacrada, o rádio de pilha chutado e a televisão relegada à calçada. Deixou num ferro velho o fusca, herança da esquecida família; evitaria assim os xingamentos que tanto praticava no trânsito. Sobretudo, sofreu para abster-se dos filhos da puta, cacetes e putas que o pariu. As topadas no pé da cama não eram respondidas. Ao esbarrar com um jovem desatento na rua, retribuía apenas um olhar. Os olhos tornaram-se delatores; deles, saíam calados todos os impropérios. As relações humanas se apagavam, mas ele sobrevivia. Tentou se acostumar, simplesmente.
O primeiro ano calado e fechado aos discursos alheios fora uma sucessão de crises. Como desde o princípio temeu, embora não proferisse as palavras, elas continuavam vivendo em seu pensar. As reflexões, as lembranças, os anseios e os sonhos sempre negados estavam lá, dentro daquela cabeça careca, construídos e consolidados por meio de substantivos, adjetivos e verbos, um infinito de verbos. Contorcia-se, espancava as têmporas tentando expulsar as palavras. Pensou em desistir, mas resistia. De repente, sua mente entrava em transe e observava a tênue diferença que residia entre esses dois verbos: desistir e resistir. Lágrimas vertiam daqueles olhos esbugalhados, enquanto um “d” se transformava em “r” e, como um relâmpago, ocorria o movimento inverso.
Certa noite, para obliterar as letras e mergulhar no rio do sono, sorveu, ansioso, duas garrafas de pinga. Caiu e adormeceu. Acordou no meio da madrugada devolvendo ao mundo aquilo que só os canaviais poderiam conceber. Jorge, esse nome que, todos os dias, se desenhava em sua mente, quis se valer do vômito para expurgar as palavras que pulsavam em sua cabeça. Tomou banho, para lavar-se das sílabas e do cheiro de álcool. Sentou-se na cama e persignou-se, um velho hábito que era menos fé do que mania. Dessa vez, ao completar o sinal da cruz, Deus invadiu-lhe o cérebro. Antes tivesse se endereçado ao coração. “D”, “E”, “U”, “S”. Essas letras pululavam, emergiam e submergiam,
metamorfoseavam-se, apagavam-se como um vagalume que some na imensidão da noite e estouravam feito um rojão. Ele pensou estar diante de uma revelação. Decerto era um castigo. Estava a ponto de gritar, de urrar, mas manteve o silêncio e pensou que Deus, tão menosprezado em suas antigas conversas filosóficas, havia sentido pena. Três anos tentando fazer de seu mundo a negação do verbo. Três anos seculares. Uma guerra cujas trincheiras estavam dispostas dentro de si.
Desarmado, desalmado, Jorge já avistava a derrota. Enxergou a morte travestida de abecedário e deixou de sair de casa. Uma semana esgotando as cervejas. A única semana em que as palavras não o perturbaram. Talvez profetizasse o início de um fim. Se no princípio era o Verbo, ao fim somente caberia o silêncio. Um silêncio antecipado. Um silêncio ambíguo. Vencedor e vencido; necessário e egocêntrico. No último dia daquela última semana, percebeu que as palavras já recomeçavam a borbulhar. Sentiu a morte tocar-lhe as costas. Olhou-se no espelho e viu-se no meio de uma ponte em cujas extremidades se opunham a palavra e a morte. Subitamente, sentiu uma intensa dor no peito. E, num rodamoinho de imagens e nomes que assaltou seu pensar, pegou um papel escondido debaixo da cama. Ele previa o momento. Gritou, gemeu, pediu perdão aos homens, aos verbos e a Deus. Praguejou, recitou um soneto. Sucumbiu com um dicionário explodindo na mente. Para Jorge, a morte não era a maior derrota. Em seu túmulo não havia seu nome, tampouco um epitáfio. Uma lápide lisa. Poucos compareceram ao enterro. Um funcionário da funerária dirigiu-se a um dos antigos amigos e entregou-lhe um papel. O amigo abriu uma folha de caderno já amarelada pelos anos e reconheceu a caligrafia de Jorge, tão perfeita como nos tempos em que escrevia poemas no colégio. O verbo derradeiro cumpria sua ação. Talvez as palavras não o rodeariam mais. Talvez seu livro se fecharia sob o som do silêncio e à luz da escuridão. Diogo Sponchiato é jornalista. Participe com suas ideias
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Série Paisagens Descritas-SP, 2009, de Rebeca Rasel 26
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Sem TĂtulo, de Alexandre Hypolito Participe com suas ideias
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A unificação da língua portuguesa aproximará o Brasil dos outros países lusófonos? O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor desde janeiro último, além de normatizar o uso escrito do idioma, traz em seu bojo implicações históricas e antropológicas. Seria esse documento capaz de promover uma união mais coesa entre oito povos dispersos em três continentes? Nações irmãs, mas em muito estranhas entre si, seus laços por vezes circunscrevem-se aos limites da diplomacia. Seria a língua capaz de superar essa barreira?
Esforço de “universalização” Por Roberto DaMatta
Por esse motivo, entendo que o acordo de reunir, num único protocolo, a dimensão escrita de uma mesma língua falada por oito nações localizadas em continentes diversos é algo muito importante. Trata-se de um esforço de “universalização” do português. O acordo ortográfico – ainda que remeta às nossas dificuldades mais elementares de reaprender a escrever o português, daí algumas das reações à novidade – traz no seu eixo uma padronização da forma ou do material que carrega o pensamento, os valores e os hábitos, num sistema capaz de juntar num mesmo código as inevitáveis e mais do que importantes variações culturais e sociais, bem como históricas, que separam os países falantes do idioma. Penso que isso o redime de um paulificante reaprendizado da língua. Roberto DaMatta é professor de antropologia da PUC/Rio e professor emérito da Universidade de Notre Dame, Indiana, Estados Unidos. Autor de livros sobre sociedades indígenas do Brasil e a sociedade brasileira e colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.
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ilustração Liane Iwahashi
Os elos entre visões de mundo e seu modo de expressão mais potente, fluido, permanente e fundamental – a linguagem articulada, falada ou escrita – são problemáticos. Sem um suporte material – uma escrita e uma literatura – as línguas desaparecem com os seus falantes. A expressão “língua morta”, usada para designar linguagens cifradas, utilizadas em campos específicos, como o do direito e da filosofia, é uma contradição em termos. Pois essas línguas estão mais vivas do que muitos idiomas que, devido ao contato cultural, têmse esvanecido sistemática e tragicamente do mapa da humanidade. Isso nos dá, talvez, uma noção mais precisa da importância de uma padronização da língua na sua dimensão escrita, com todas as dificuldades e limitações que ela apresenta aos seus usuários, sejam eles nativos, sejam estrangeiros, analfabetos ou instruídos. Pois uma língua escrita unifica-se revelando – como tem ocorrido com a reforma do português – os seus arbítrios. Estes nada mais são do que as escolhas de sons e sentidos que todos os códigos de comunicação humanos, como meios de contato projetados para fora e independentes do organismo e dos códigos genéticos que regem o mundo da biologia, expõem. Pois todas as línguas humanas escolhem, distinguem e excluem sons e modos de combinar cadeias sintáticas e semânticas que formam seu léxico e sua gramática.
O desacordo ortográfico Por João Pereira Coutinho Não é preciso ter lido os românticos para saber que a língua é o produto de um povo, e não de alguns sábios que resolvem decidir que existe apenas uma forma correcta de falar, escrever e pensar em português. O primeiro problema com o Acordo Ortográfico começa aqui: tomando como base duas pronúnciaspadrão – a brasileira e a portuguesa –, os sábios de ambos os países chamaram a si a tarefa hercúlea de “unificar” a língua, como se isso fosse desejável. Não é. Ao ignorar os outros falantes do português, a atitude revela prepotência perante povos terceiros e alegadamente “inferiores”. Não existem donos de uma língua. Ela pertence a quem a fala, com suas variações fonéticas e ortográficas. O caso não é singular: o inglês, o francês ou o espanhol possuem variações linguísticas e geográficas que nunca puseram em causa sua importância no mundo. A diversidade é uma força, não uma fraqueza. Mas a natureza aberrante do acordo não está apenas na forma desrespeitosa como se tratam tradições linguísticas que devem e merecem ser protegidas. Como cidadão português, existe uma razão suplementar para me opôr a ele. E essa é estritamente linguística. De acordo com os pais do acordo, a “unidade da língua” só se consegue quando a ortografia de base alfabética for uma transcrição fonética o mais fidedigna possível. Assim se entende a obsessão de eliminar certas consoantes mudas, como o “p” de “adopção” ou o “c” de “actor”. Essa obsessão assenta em novo erro. O facto de existirem certas consoantes mudas nas palavras do português de Portugal começa por representar uma pegada etimológica de inegável riqueza para o estudo de uma língua. O “p” de “adopção” não é um mero arcaísmo: é uma expressão de história e de identidade. Mas não só: o “p” permite aos portugueses abrir a vogal que antecede a consoante, funcionando assim como importante indicador fonético. A discussão ignora algumas dessas idéias. E até os opositores do acordo, pelo menos em Portugal, parecem ter preferido considerações nacionalistas (e economicistas) que passam ao largo do real problema: persistem em dizer que ele apenas serve os interesses económicos do Brasil, que acabará por ter posição dominante no mercado livreiro em todo o mundo de língua portuguesa. Ainda que isso seja verdade, o problema principal não está na economia; está no reduto histórico, filosófico e cultural. Aceitar o acordo será aceitar uma imposição artificial sobre a mais singular construção humana. Será compactuar com uma intromissão arbitrária na nossa mais profunda humanidade. João Pereira Coutinho é jornalista português, escritor e autor de Avenida Paulista (Editora Record, 2009). Escreve semanalmente para a Folha de S.Paulo. Este artigo foi escrito com as regras ortográficas utilizadas em Portugal antes do atual Boom,acordo. de Lúcio Carvalho
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Comunicar é preciso A língua que se expressa pela arte
CINEMA Língua – Vidas em Português, de Victor Lopes (idem, Brasil e Portugal, 2002, TV Zero/Sambascope) Documentário, dirigido por um moçambicano de nacionalidade portuguesa que vive no Brasil, traça um retrato poético sobre a língua portuguesa e a lusofonia mundo afora. Rodado em países como Moçambique, Brasil, Índia, Portugal e Japão, a obra deixa evidente o paradoxo língua/cultura: enquanto a primeira une, a segunda separa. [este documentário faz parte da Midiateca do Itaú Cultural e pode ser consultado gratuitamente] imagem: TVZero/divulgação
CINEMA Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira (idem, Portugal, 2003, Paris Filmes) Rosa Maria (Leonor Silveira), professora de uma universidade portuguesa, e sua pequena filha, Maria Joana (Filipa de Almeida), partem em um cruzeiro de Lisboa rumo a Bombaim (Índia). No trajeto, visitam lugares que marcaram a civilização ocidental, como Pompeia (Itália), Ceuta (Espanha), Atenas (Grécia), Cairo (Egito), Istambul (Turquia). Preste atenção na cena em que um americano, uma francesa, uma grega e uma italiana conversam, cada qual falando seu idioma, e todos se entendem. imagem: Paris Filmes/divulgação 30
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INTERNET Enciclopédia Itaú Cultural de Literatura Brasileira (www.itaucultural.org.br/literatura) Criada em 2007, a enciclopédia é uma das mais completas referências sobre literatura brasileira disponibilizada gratuitamente. Além dos verbetes sobre obras, movimentos literários e biografias de romancistas, poetas, contistas e críticos, a publicação oferece histórias de bastidores, ensaios e textos reflexivos, trechos de obras e uma seção de vídeos. Nessa seção, é possível encontrar pérolas, como a recitação de poemas de Adélia Prado e Ferreira Gullar, feita pelos próprios autores; e os depoimentos de Lygia Fagundes Telles e Milton Hatoum, entre outros.
MÚSICA
imagem: Ricardo Labastier/divulgação
Violas de Bronze, de Roberto Corrêa e Siba (independente, 2009) Disco marca o encontro do violeiro mineiro Roberto Corrêa com o rabequeiro pernambucano Siba. Músicas como Cara de Bronze (nome também de um conto de Guimarães Rosa), Big Brother Mental, Boi Tristeza e Lume demonstram a harmonia entre a viola (caipira, de cocho, elétrica...) e a rabeca, e – por que não? – entre o sertão de Corrêa e a zona da mata de Siba. Destaque para a faixa Nos Gerais, que narra um confronto com o diabo no sertão mineiro, a qual ficou curiosamente bela no sotaque de Siba.
LITERATURA La Divina Increnca, de Juó Bananére (Editora 34, 43 páginas, 2001) Em paródia à língua falada pelos italianos que imigraram para São Paulo no começo do século passado, este livro reúne poemas publicados, em sua maioria, no periódico O Pirralho. Bananére, pseudônimo do poeta paulista Alexandre Marcondes Machado, satiriza não só o falar, mas também os hábitos da numerosa colônia, como nos poemas O Studenti du Bó Ritiro e Círgolo Vizioso, este último dedicado a um tal de Maxado di Assizi. [este livro faz parte da Midiateca do Itaú Cultural e pode ser consultado gratuitamente] Participe com suas ideias
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fotorreportagem
Letras que não são Pessoas, objetos, paisagens... Nos lugares menos esperados, elas ganham corpo. Fotógrafos de todo o país encontram formatos de letras onde poucos as percebem.
imagem: Pedro David (pedrodavid.com) 32
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imagem: Gustavo Pellizzon (gustavopellizzon.com) Participe com suas ideias
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imagem: Fernanda Preto (fernandapreto.com) 34
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imagem: Pedro David (pedrodavid.com) Participe com suas ideias
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imagem: Formiga (flickr.com/-formiga-) 36
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imagem: Mirian Fichtner (mirianfichtner.com) Participe com suas ideias
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ficção
Los cibermonos de Locombia Por Ronaldo Bressane | Ilustração Projeto Dulcinéia Catadora Fragmento do relatório do Agente Zed Stein encontrado em um sebo de livros escolares no mercado de Getsemaní, em Cartagena de Índias, maio de 2051. É o último documento deixado por Stein antes de desligar-se da Divisão dos Não Lineares. De: Agente Zed Stein Para: Subcomandante Mark Sandman Asunto: El desaparecimiento del Agente Seymour Glass En: Barichara, Colômbia, 12 de março de 2047 Voy te contar, papito. No es facil escrivir nesta lengua nueva. Ja no es facil cuentar esta historia. Ni mesmo sei bien lo que se pasó. Estoy en una sinistra ciudadezita colonial que parece extraída de los montes de Minas Gerais, mas quedase en los Andes, aunque los sinos toquem con gusto de orapronobis y jo acabe de almorzar um maravilloso bode, que acá ellos jamam de cabros. No es facil una lengua nueva, toda palabra parece un error. Voy te cuentar. Bueno, conforme la misión, estoy en Locombia em busca do Agente Glass: los ultimos sinales que envió perderanse entre las cordilleras Central y Oriental. Y de hecho aché uns parceros en Bogotá, pierto del Mercado San Alejo, que terian visto en janero un gringo narigudo com una superchevere ropa de monge, pedindo infos sobre cactus Sanpedro. Solo sería Glass: el siempre tuve essa quediña por mescalina. Ahora deveria estar ahi por La Candelaria. Donde? No pára de llover, un frio y una neblina ducaray que envolven como chantilly la enormisima ciudad, cuadriculada como um jugo de xadrez donde los peones son enanos vestidos de mariachis, los caballos burricos desembestados, los bispos ziguezagueantes táxis amarillentos subindo los calzadones y continue tu mesmo la metafora (acá en Locombia todo quer dizer otra coisa, como voy a explicar más tarde): un lugar perfecto para sumir. Despues de muchas rumbas y andanzas sin rumbo, descobri, en una galeria llamada Terraza Pasteur, donde allá por las diez de la noche se encontra de tudo, un cierto bar Rayuela, decorado con motivos de Escher. Mostré la fueto de Glass a lo mesero, un punk cafeinómano:
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– Si, me acuerdo, he venido dos noches seguidas, pareció meditabundo, como un niño sin su brinquedo... Bebia mojitos encuanto facia palabras cruzadas. Recuerdo que cuando terminó su librito sonrió, una única vez. Ay, dejó acá su libro! Pega, ia mesmo atirar afuera. Guardé las cruzadas y fue de bar en bar hasta la Macarena, donde, en un tal de Ciudad Invisible, una guapisima danzarina insinuó: – Lo vi comprar unos vestidos de um travesti. – Enserio? – Cual es lo problema?
playboys, no habia miserabiles. No tengo nada que ver con essas tradiciones que gozan con el palo alleno: me cagué si el toro o si el torero o el público van a morir; aché el espetáculo una chatura sin fin... Un toro entrava, danzava y moria, otro toro entrava, danzava y moria, estava a me quedar de sueño, si!, de sueño, de dormirme, y no de sueño, de fantasiar encuanto se durme (jo hablo que esto portuñol oficial es más pobre que el muerto português), embora parecesse mesmo un sueño estúpido, toro após toro si jodiendo, de sus almofaditas los gomelos atirando sombreros y gritando olé, olé, olé, cuando de repente sucedió una puta cosa esquisita.
– Pareciam amigos, ele y lo travesti? Los viu antes deso? El torero cayó muertito de la silva. – No, fue la unica vez. Pareciam amigos, hablavam de moda... Ah! me acuerdo que el tiozito estaba tambié interesado en ropas de torero... Pagué y sali, zonzo con el perfume opiáceo de la chica. Tuve una iluminación sin noción y domingo seguinte compré un sombrero preto y fue a la Plaza de Toros Santamaria. Pagué los ojos de la cara, cien mijones de dineros, por un lugar apretado entre los vinte mil
Si! Y poco a poco los toreros assistentes comenzaran a joderse en la arena, espajando pánico por la plaza de cuernos. Pensé: algun puto francoatirador con una arma phaser, una arma que solo nosotros, Agentes, podemos usar. Tenté quedarme parado encuanto los plays corrian y giré mis ojos para encuentrar la fuente de los disparos – y bum!, dez fileras abajo, una viejita no dejaba dúvidas.
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– Agente Glass, hijoeputa! –, grité, feliz. Luego en seguida la viejita mató el último torero, volteó su cabeza y me miró. En la muesca: era elle, el Escritor Recluso travestido. Desapareció en la multidón – perdón, papito... Las semanas siguientes otros atentados acontecieran formando un padrón, lo que, como sabe el Subcomandante, é algo dificil en Locombia, donde ni mesmo las mijones de maneras de salsar facen lógica, donde cada cosa quer dizer otra cosa. Mas de gringos que perdieran las orejas en asaltos en Villa de Neyva, freiras molestadas en las busetas de Medellín (lo que parece jover en el mojado), buembas explodindo nas mansiones de narcocaudillos de Cartago y trafico de cadáveres de cantores de pós-vallenato en maletas etc., los jornales estan llenos, hoy, mañana y siempre. Extrañísimo, sí, fueran los episodios de la Gallera San Miguel, en Bogotá, y de la Finca Paraíso, en un pántano pierto de Mompós. En el clube gallístico moriran uns cien – todos enbenenados, losers. Solamente restaran los gallos y don Claudio Tovar, el dono, que estaba en el bañero haciendo titica cuando la fumaza asasinou sus sócios. La policía tartamudaba de un veneno a que los supergallos son imunes. 40
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– Un silêncio extraño, povoado por cantos de gallos... Jo me senti acuerdando dentro de un pesadelo kafkiano –, el sobrevivente cacarejaba a la prensa, bañado en lágrimas, su ton paradojalmente gallináceo a lembrar un crítico literário. Ja en la Finca Paraíso facian otra pelea: telecatch de cachuerrones teleguiados. Nada se pasó con los canzitos mutantes, de mastins-sucuris a pitbulls de seis pernas hasta akitas cocainómanos, todos sin lengua, para no llamar atención de la ley. Mas los apostadores, propietarios y visitantes y hasta las tiazitas que venden chicha, aquella cachaza de millo horrible, unos 50 adictos por la pelea de perros fueran snifar coca pela raiz. Si de un lado el goberno notava un padrón en el gás que matava solo humanos y no afectava animales, jo, entre una rumba y otra, imaginava el proximo paso del ensandecido Agente Seymour Glass. Si estaba indo para el norte, mas cierto que se marchase para el Parque Tayrona, território militarizado de las reservas de robonobos, la espécimen de cibermonos creada con orgullo nacional – “Los Macacos Locombianos Do It Better” – para el marketing de porn snuff movies aditivados por la triptoheroina plantada en los contrafortes de la Sierra Nevada de Santa Marta.
Alugué una barca y subi el Magdalena hasta salir por el Caribe, y atraqué en el Cabo San Juan de Guia. Como siempre, no pensaba que el más fácil fuese mesmo tan fácil, me olvidava da esquisita conexión entre los Agentes No-Lineares, aquejo iman que pulsa en nuestro sangue congelado que nos afasta y nos atrai y, claro, trai nuestra condición de pós-humanos, nuestra maldición maçon de judeus errantes que desenbocan en la puta y mesma Jerusalém. El cielo estaba azul y el espacio, lleno de luz – y vi el Escritor Recluso, J. D. Salinger, aquejo que paró de escribir en 1963, la lenda, la piel enferma, la boca rota por copas y copas de mojitos, desdibujado, desangrado, completamente solo en la pequeña angra del Cabo, sob las palmas de coqueros, nu sobre
– Hace tiempo, Agente Stein –, mandó con su voz de tronco seco. – Hace tiempo, Agente Glass! Gran idea, jamás hé pensado en la ecologia sexual como terrorismo político –, y andé hasta la canga de caballo con mi mano en el culo, con miedo de ser violado por um robonobo, mi mamá nunca me perdonaria, papito. Abrazamonos y el Agente Glass me ofereció un cachimbito. – Te acuesta al sol un poco, hombre. Mira! El ópio locombiano és el mas relax del mundo –, y me estendió el fuego. Poco antes de tragar pensé en mostrar, como un aluno estudioso, el librito de palabras cruzadas donde todo estava completo – minos la contesta para “Par-
Si de un lado el goberno notava un padrón en el gás que matava solo humanos y no afectava animales, jo, entre una rumba y otra, imaginava el proximo paso del ensandecido Agente Seymour Glass. una canga colorida en que se percebia el deseño de un caballo. En sus manos, una caneta, un cuaderno. Jo digo solo pues era el unico ser humano en la plaja tomada por los cibermonos que hacian sexo como se no havia mañana, a dos, a tres, cuatro, cinco, octaedros, trenziños, mandalas de macacos lúbricos dando duro en su lenguaje requintada y obsesiva, pero ahora sin un director ditador. El Agente Seymour Glass miraba esto verdadero congreso politico y todo escribia en su cuadernito, rindo, rindose todiño el loko terrorista en su solitário labor libertário, un diós que pregase la anarquia para atingir el zen en la literatura, devolviendo su propio senso al mundo – mesmo que un senso mico. Esto observé de mi barca, mirando las piedras que pareciam gigantescas cobras, tortugas, peces, y el mar parecia el ciel, y el ciel parecia las montañas, y cada una desas cosas parecian símbolos de la civilización Tayrona... acá cada cosa quer dizer otra cosa.
que donde se localiza Sierra Nevada de Santa Marta”: el Tayrona. Ni Jack Sparrow ni españoles imaginarian su Eldorado devastado por monos herosexômanos anestesiados en un toreo tántrico. Tragué el ópio y, tras olor de flores y amendoas y manos del viento, me recuerdo del Agente fejar el cuadierno y salir a pescar unas piedritas volcánicas; juntó sus cosas, guardó na canga y caminó lento sobre los lilases del Caribe. La trilha sonora en mi cabeza era mambo chocolate cuando empezé a cuentar el ritmo de las ondas. Series de tres, cinco, nove, cuatro. Tres, cinco, nove, cuatro. Un padrón. Todo quer dizer otra cosa. Mas fue nessa hora, cuando ja estaba cuase achando buena una bonoba, que jo mesmo comenzé a levitar. Ronaldo Bressane é jornalista e escritor. Publicou, entre outros, a trilogia de contos A Outra Comédia, entre 1999 e 2003. Mantém o blog Impostor (impostor.wordpress.com).
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resenha
Amolando a língua no veludo A história da Aurélia, a “dicionária” sem preconceitos. Por Hilton Lacerda | Cartuns Allan Sieber Uma das diversões mais tolas que eu experimentava quando era adolescente consistia em abrir o dicionário em uma página aleatória e ler numa roda de amigos – invariavelmente em estado de um interessante transtorno de humor – o significado de algum verbete, e eles tinham que descobrir qual a palavra a que me referia. Divertimento engraçado e pouco útil, diga-se de passagem. Agora me vejo aqui, com o nariz tocando a tela do computador, desmembrando meu raciocínio para falar sobre a Aurélia – A Dicionária da Língua Afiada. Acredito que no ano 2000, num sábado de sol, encontrei-me com Fred Libi – codinome de Wanderley Joaquim, que nem nome é – em torno da Praça Benedito Calixto, em São Paulo. Ele estava na companhia de amigos e por essa época ainda não tinha assumido o picumã vasto e descolorido que passou a usar algum tempo depois. Ainda morava em São Paulo – o destino e as convicções o empurraram para Ushuaia, no início do fim do mundo, bem ali na Argentina. Eu estava acompanhado de duas mamíferas (Duda e Juliana) e mais que rapidamente fui chamado de marsupiellen. Como é mais fácil perder amigos que piadas, fiquei feliz ao saber de onde vinha essa palavra. Até hoje fico em dúvida se eu era o motivo da criação ou um exemplo prático que se aproximava no momento da descoberta. Libi, juntamente com Angelo Vip (Victor Ângelo, jornalista), uma espécie de diplomata do xoxo, estava, naquela altura, trabalhando num site gay chamado Supersite. Ambos, fazia certo tempo, traduziam algumas expressões para tornar o site mais compreensível.
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Um glossário à Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, de Anthony Burgess, escrito em 1962 e levado às telas em 1971 por Stanley Kubrick). Muitas outras pessoas, direta ou indiretamente, participaram dessa brigada. A questão é que, ao pescar o monge, o hábito veio junto. O dialeto específico de grupos pesquisados em algumas capitais brasileiras trazia uma quantidade imensa de termos afinados na língua e com aspectos regionais interessantíssimos. Sorte e semente estavam lançadas. E a máquina da imaginação começou a funcionar junto. Da experiência passageira do Supersite, as expressões ganharam fôlego e ocuparam um degrau de eternidade com a realização da “dicionária” Aurélia. Assim mesmo, palavra desvirtuada em seu gênero, travestida, em homenagem que se tornou quase problema, quando a família do filólogo Aurélio Buarque de Holanda e a editora do dicionário Aurélio, a Nova Fronteira, tentaram impedir o lançamento do compêndio. Aurélio, que já estava adjetivado, agora era sublimado a outro espaço de convivência dos modos da fala. Não foi possível o impedimento. Lucrou a língua, que a partir daquele momento começou a ser afiada no veludo do bajubá (ou pajubá), que vinha logo dali, das esquinas fervidas do Brasil.
O bajubá é a língua utilizada nos terreiros de umbanda e candomblé, adotada pelas amapoas de canudo, que a popularizaram, a recriaram e nela enxertaram um tanto de vivências e línguas que estão presentes na dicionária. Uma combinação de criação e adequação da língua iorubá (nagô) com a velocidade da fala marginal desenvolvida para defesa e ataque. Essas expressões tomaram o universo gay e finalmente desaguaram no mundo como uma catarata criativa e abundante. Logo, o ofidã ficou popular, e o ofofi veio junto. E a adé acorreu e aquendou na confusão. Pense numa coisa viva e ativa (e passiva). Pensou? É ela, a dicionária. Mundo-satélite Claro que essa abertura tem seus padrinhos no passado. Um pequeno compêndio havia sido realizado por José Fabio Barbosa da Silva em sua dissertação de mestrado Homossexualismo em São Paulo: Estudo de um Grupo Minoritário, escrita em fins dos anos 1950 e publicada em 2005 pela Editora Unesp, em conjunto com outros textos organizados pelos pesquisadores James Green e Ronaldo Trindade. Numa provinciana São Paulo do meio do século passado, falar sobre néctar divino, salão de chá, quebrar a louça e divino ato é algo quase incrível. O orientador da tese foi o sociólogo Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso fez parte da banca. Participe com suas ideias
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Aurélia, lançada oficialmente no primeiro semestre de 2006, pela Editora do(a) Bispo(a), de São Paulo, não teve novas edições. Mas dezenas de sites estampam, senão integralmente, partes de seu conteúdo, basta “googlar” seu nome. Mas a dicionária não é apenas veículo de expressões que nasceram do bajubá ou de suas pequenas (ou grandes) corruptelas. Ela foi muito além disso, buscando no mundo lusófono palavras e expressões en-
Para Angelo Vip, a dicionária não é apenas instrumento de tradução e revelação. Tem uma função prática. Em matérias publicadas na época do lançamento da dicionária, ele afirmava que o livro tinha a função de aproximar pais e filhos, além de bofes e suas namoradas. Acredito que ela é uma heroína ao desbravar todas as línguas que desaguam no aparentemente divertido e no claramente utilitário (você pode se tornar poliglota em muito pouco tempo!).
Ao pescar o monge, o hábito veio junto. O dialeto específico de cada grupo pesquisado trazia uma quantidade imensa de termos afinados na língua e com aspectos regionais interessantíssimos. riquecedoras para o mundo gay (mais uma língua) e suas adjacências (muitas e outras línguas). O mundosatélite está ali para marcar presença. Além das expressões regionais brasileiras (Úrsula; trucosa; asilada etc.), a África portuguesa emprestou termos (andzáco; anuna; turra, entre outros); e Portugal bateu à porta (abafar a palhinha; abébia etc.). É como se, de repente, todo o mundo fosse unificado pela língua afiada. E assim Ronalda ganha vida além de seu quintal; Gustafa leva seu muxoxo para o mundo; e as Ornitorrincas saem do isolamento que lhes foi imposto pelo meio e pela mensagem.
A Aurélia vai de a a zuzo bem. Mas seu alcance é maior. Vai dar bem longe, onde o lugar para a imaginação faz a língua ganhar vida. Devo concordar com A. Jaccourd, doutor em linguística, especialista na obra de Ferdinand de Saussaure, Ph.D. em lexicografia, filólogo, com tese de doutorado na Sorbonne, Paris, sobre a linguagem chula e a linguagem erudita falada nos tristes trópicos. Autor da “prefácia” da dicionária, ele reflete nesse texto sobre a criação da incomunicabilidade a partir do evento da Torre de Babel. Mas a Aurélia é um sopro de vida, mantendo certa unidade entre os mundos, equilibrando balanças, fazendo algo para que, por falta de comunicação, a vida não se torne o uó que por vezes achamos que ela é. Hilton Lacerda é cineasta e roteirista. Realizou os roteiros de Baile Perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997) e Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2002).
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De a a zuzo bem Gustafa – s. f. Gay cansativo. Conheça alguns verbetes da Aurélia. A – art. def. f. No mundo gay, o artigo definido feminino é, em muitos casos, anteposto a substantivos próprios ou comuns do gênero masculino. No caso dos comuns, o substantivo, ele próprio, também passa, se possível, para o feminino, criando-se um neologismo. Ex.: a Pedro, a Mário, a Zezinho, a Robertão; a prédia, a fota, a relógia, a dicionária. Abafar a palhinha – (Portugal) expr. Ser passivo numa relação homossexual. Abébia – (Portugal) s. f. Mentira, truque, caô, tanga, couros. Adé – (do bajubá) s. m. Homossexual masculino. Amapoa de canudo – (do bajubá, Rio de Janeiro) s. f. Travesti. Andzáco – (do ronga, Moçambique) adv. O lado de trás. Anuna – (do changana, Moçambique) s. Marido. Aquendar – (do bajubá) v. t. d. e intr. 1. Chamar para prestar atenção; prestar atenção; 2. Pegar; roubar. Forma imperativa e sincopada do verbo kuein! Asilada – (Ceará) adj. Louca. Bajubá – s. m. Baseado nas línguas africanas empregadas pela umbanda e pelo candomblé. É a linguagem praticada inicialmente pelos travestis e posteriormente estendida a todo o universo gay. O bajubá falado emprega uma mistura lexical (do próprio bajubá, do português e, em menor grau, do tupi) sobre a base gramatical e fonológica da língua portuguesa. [var.: pajubá]. Bofe – s. m. Homem heterossexual ou homossexual ativo.
Mamíferas – s. f. pl. Grupo de mulheres que saem em bando. Marsupiellen – s. f. Gay que anda anexo às mamíferas. Ofidã – (do bajubá) s. m. 1. Zona erógena do bofe; 2. O próprio bofe. Ofofi – (do bajubá) s. m. Fedor, catinga [var.: afofi]. Ornitorrinca – s. f. Mulher híbrida, meio pata, antagônica da mamífera. Picumã – (do bajubá) s. m. Peruca, cabeleira; cabelo. Ronalda – s. f. Gay grandalhão, bigodudo e empertigado, com fala grossa e lenta. Podem-se ouvir as vibrações de suas cordas vocais quando diz: “Meu nome é Ronaaaaalda!“. Trucosa – (Pará) adj. Relativo ao gay mentiroso. Turra – (Moçambique) s. m. Bandido. Uó – (do bajubá) adj. Ruim, feio, desagradável, desprezível, errado, equivocado. Úrsula – (São Paulo) s. f. Gay que compra em lugar barato, mas diz que foi em local caro. Xoxo – s. m. Deboche, sarro, onda, caçoada, grea, gozo, avacalhação, ironia. Zuzo bem – adv. “Tudo bem” de bêbado. Ex.: Ficou zuzo bem pra zozo mundo, menos pra Gustafa!
Fervida – 1. s. f. Pessoa ou local agitado; adj. 2 Próprio do que ou de quem ferve; divertido.
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reportagem
Entre dois tempos Um pequeno lugarejo no interior gaúcho assiste à desaparição do dialeto de seus antepassados. Por Fábio Prikladnicki | Fotos Cristiano Santana
Pela posição geográfica distante dos centros urbanos, acredita-se que as coisas tenham mudado menos do que em outras localidades que datam aproximadamente da mesma época (os primeiros imigrantes chegaram em 1878). Os moradores ainda cultivam a lavoura com poucas máquinas e muito gado, fazem comidas e bebidas caseiras e, principalmente, conservam uma maneira bastante particular de se comunicar. É um dos únicos lugares do mundo onde ainda se fala o dialeto vêneto. O nome é referência à região do Norte da Itália de onde levas de pessoas saíram para diversas partes do mundo em busca de uma vida melhor. Em cada lugar, o vêneto sofreu pequenas modificações e ganhou cores locais. Em uma definição simples, dialeto é uma variação linguística que se desenvolve em certo território. Já uma língua é a elevação de uma das variações existentes ao status de idioma oficial, em geral escolhida em função de prestígio (econômico, cultural etc.). Há um debate entre estudiosos que defendem o italiano dos descendentes de imigrantes como dialeto e outros que dizem se tratar de uma língua propriamente dita. Mas os moradores de Vale Vêneto estão mais preocupados com outra coisa: o lugar se tornou uma terra de idosos e, com isso, o “italiano gaúcho” é cada vez menos falado. Metade dos cerca de 100 alunos da única escola que resta vem das redondezas, e o ensino contempla apenas o ciclo fundamental. Os jovens completam sua formação fora, entram na faculdade, começam a trabalhar e vol-
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A família Venturini, que fala o dialeto friulano
No sábado que antecede o feriado de Carnaval, os moradores de Vale Vêneto têm sua rotina consideravelmente alterada. O clube onde os idosos costumam se reunir para jogar baralho e conversar, depois da missa das 20 horas, é fechado para uma festa pré-carnavalesca que reúne de 700 a 800 jovens da região. Até a madrugada que anuncia o dia seguinte, a população local, de 530 habitantes, aumenta temporariamente em mais de 100%. Embora seja um lugar de colonização tipicamente italiana, o repertório que se ouve, em volume máximo, dos carros dos jovens estacionados na rua não é nada folclórico. Funk carioca e Macarena dão o tom. Vale Vêneto, hoje, vive desses paradoxos. Distrito do não menos desconhecido município de São João do Polêsine, no coração da “quarta colônia”, região na qual se instalou uma das principais ondas de imigração italiana no Rio Grande do Sul, o pacato vilarejo está a 40 quilômetros de Santa Maria, uma das maiores cidades gaúchas, e a 250 quilômetros da capital. Se alguém colocar o dedo no centro do mapa do estado – desde que seja um mapa rico em detalhes –, lá estará Vale Vêneto.
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tam apenas nos fins de semana para visitar os parentes. “Não é mais como antes, que ficavam em casa trabalhando na roça. Eram famílias tão numerosas que, quando iam à missa, enchiam a igreja. Se havia serão, jogava-se baralho, cantava-se, comia-se batata-doce, amendoim, pipoca. Era bonita a nossa vida assim”, lembra Antônia Carolina Bortoluzzi, 82 anos, que mora com o irmão, seu Ângelo, 75. Língua e religião, como ela sugere, conviviam em paz: “A missa era em latim, mas o padre fazia o sermão em dialeto. Era difícil alguém falar português”. A portentosa igreja, com capacidade para cerca de 300 pessoas, foi reformada recentemente. A casa de retiro das irmãs, que já foi um internato, agora recebe turistas, e o seminário dos padres também já viveu dias mais movimentados. A geração deles é a última a dominar o vêneto. Os filhos compreendem, mas, na maioria das vezes, não falam. Os netos, nos melhores casos, sapecam apenas algumas palavras. O dialeto também virou coisa de idosos.
Antônio e Amadeu, membros da família Cielo, durante ensaio musical
Outras falas Os Bortoluzzi foram a família mais numerosa a desembarcar por lá, e Paolo Bortoluzzi – primo do avô paterno de dona Antônia e seu Ângelo –, a figura mais importante da história local. Espécie de líder comunitário, foi quem mandou trazer da Itália os primeiros dois padres. A influência era tão grande que o local foi chamado inicialmente de Vale dos Bortoluzzi. Depois da chegada de outras famílias e de muita discussão, além da intervenção pacificadora de um sacerdote, decidiu-se rebatizá-lo com o nome atual. O vêneto, entretanto, não é o único dialeto de Vale Vêneto. Há uma minoria de imigrantes que vieram da região de Friuli-Venezia Giulia, no extremo Nordeste italiano, a leste da região do Vêneto. O dialeto que trouxeram de lá é outro, o friulano. Enquanto o vêneto se assemelha mais ao italiano padrão, o friulano tem influência de localidades fronteiriças, como o alemão e o esloveno. O tempo se encarregou de integrar os imigrantes vindos das duas regiões. Houve casamentos mistos e seus descendentes se orgulham de dizer que falam vêneto, friulano e português.
Nem sempre foi assim. Como os dois grupos, literalmente, nem sempre se entendiam, o senso de convivência obrigou os imigrantes friulanos a aprender o dialeto da maioria de seus vizinhos. A recíproca, claro, não era verdadeira. Até hoje os moradores das duas procedências chamam o dialeto vêneto de “italiano”, como se o friulano fosse um idioma estrangeiro. As provocações começavam já na infância, como conta Archilino Guido Venturini, 80, neto de imigrantes que vieram da comuna de Gemona del Friuli: “Às vezes dava até rolo, aquelas briguinhas de gurizada. Jogavam pedras uns nos outros, mas no dia seguinte estava tudo bem”. Sua esposa, Ana Maria Forsin Venturini, 63, recorda-se de uma típica rixa familiar: “Quando a vó falava com minha mãe sobre assuntos que não queria que as crianças entendessem – por exemplo, se alguma vizinha ganhava nenê –, falavam em friulano. E minha outra vó dizia: ‘É uma língua tão estúpida que não existe nenhum livro sobre isso’ ”. Talvez por isso os Venturini exibam com tanto orgulho o material que recebem de uma associação internacional dedicada à divulgação da cultura friulana. É uma coleção de livros, todos escritos no dialeto, alguns dedicados a ensiná-lo. Mas não adiantou para estimular os filhos a aprender. A maioria nem mora mais por lá. Um deles trabalha em São Paulo, outros dois se mudaram para Mato Grosso do Sul para cultivar arroz. Restou José, 23, que cursa matemática em Santa Maria. E depois da faculdade? “Acho que o melhor é voltar para casa mesmo”, responde. Ele alega que a profissão não tem futuro, diz que precisaria fazer mestrado e doutorado, mas parece motivado mesmo por um sentimento de que alguém precisa ficar para cuidar da família e da terra. É uma escolha rara entre os jovens de Vale Vêneto. A volta não significa um retorno ao dialeto. “Eu entendo tudo, mas não falo. Meus irmãos também não falam muita coisa. Acho que não houve muito incentivo por medo de que a gente não fosse aprender o português correto na escola”, diz.
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É possível que, por circunstâncias socioeconômicas, os dialetos viessem a perder espaço para o português entre os descendentes de imigrantes. Mas um fato, mencionado por todos com quem se conversa em Vale Vêneto, parece ter ficado como um trauma: a proibição de manifestações em dialeto durante o Estado Novo, na década de 1940, na esteira do projeto de nacionalização de Getúlio Vargas. Ainda se conta, por lá, a história de um senhor que teria dado bom-dia, em italiano, a um conhecido na rua e que, por isso, teria sido levado preso por um encarregado do governo de fiscalizar o lugarejo. O detalhe mórbido é que, por motivos de saúde, ele teria logo morrido na prisão. De resto, as escolas intensificaram o ensino do português, e todos aprenderam a rezar na língua pátria. A lei alimentou, inclusive, intrigas entre famílias, como relata Iracema Fátima Cielo, 64: “Famílias que não se gostavam colocavam livros estrangeiros nas outras casas e depois denunciavam. Aí eles prendiam. Muita literatura boa se perdeu dessa forma”. Os Cielo têm se esforçado para que outras coisas não se percam. “O pai queria que nós tomássemos vinho e cantássemos. No começo da família, ele tinha um conjunto. Foi um dos meus irmãos que incentivou os outros a fazer vinho e botar o conjunto de volta. Depois, faleceu”, conta. A família é uma das últimas que ainda realiza o tradicional “filó”, reunião com muita música (em italiano), bebida (vinho, claro) e conversa. A casa da matriarca, dona Virgínia Varaschini Cielo, 88, tem inclusive um parreiral no quintal. “Naquele tempo, se fazia muito vinho. Então, chegava gente de todos os lados para tomar, e ficavam todos bêbados. Os ricos pensam mais em fazer dinheiro; os pobres, em se divertir e cantar”, diz ela. “Não somos apegados aos bens materiais, então conservamos os costumes”, completa o filho, Pio, 51, um dos músicos do conjunto, que congrega cinco familiares e três amigos.
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O maior desejo do patriarca, no entanto, era conhecer Trissino, na província de Vicenza, na Itália, de onde tinha vindo seu pai. A filha Iracema tratou de fazer umas economias e marcou a viagem de ambos para certo dia 24 de agosto. Em 31 de maio, o patriarca morreu. Decidiu ir sozinha mesmo assim e descobriu que a casa dos antepassados ainda existia. Fez contato com parentes que buscou no guia telefônico e ficou um mês em um tour genealógico. Iracema foi decidida a praticar não o dialeto, mas o italiano padrão, que havia aprendido por iniciativa própria: “Gosto mais do italiano gramatical. Acho mais bonito, mais sonoro. Mas quando me escapava uma palavra em dialeto eles vibravam, porque sentiam que eu estava falando como eles. Lá o dialeto também está se perdendo, eu ouvia muito pouco. Os mais idosos falam. Mas no rádio, na TV, na escola é o gramatical”. Em 2002, a escola de Vale Vêneto iniciou um projeto de resgate da história e da cultura com os alunos. Foram trabalhados temas como o motivo da vinda dos imigrantes para o Brasil, o que encontraram por aqui e como viviam. “As crianças pesquisaram muito em casa com os avós e os pais”, diz Maria do Carmo Pivetta Cielo, 41, professora da escola e esposa de Pio. “Elas tinham que escrever as palavras conforme ouviam, porque se escrevessem como está na gramática já não seria dialeto.” O projeto durou seis anos, mas não incluiu o ensino da língua – nem do dialeto, nem do italiano padrão. No currículo da escola, que é estadual, consta apenas o inglês como idioma estrangeiro. Uma solução seria um projeto que funcionasse em turno inverso, mas que esbarraria na falta de pessoas com tempo ou disposição para o trabalho voluntário – problema que provocou a descontinuidade do projeto de resgate. Os pais dos alunos tampouco manifestam vontade de que as novas gerações aprendam o dialeto que um dia foi moeda corrente nas ruas do simpático lugarejo. Vale Vêneto vive, mesmo, de paradoxos: lamenta que as coisas tenham mudado, mas não quer estar na contramão da história. Confira, na Continuum On-Line, relato sobre a visita do repórter ao Vale Vêneto.
Vista do Vale Vêneto
Parreiral no quintal
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mirada
Uma cidade tomada por livros Às vezes, Buenos Aires parece uma livraria a céu aberto. Por Rodrigo Lara Serrano, de Buenos Aires, Argentina | Tradução Josely Vianna Baptista | Ilustração Davi Calil Que tipo de vinho seria o filósofo alemão Friedrich Nietzsche? E quanto ao pensador francês Michel Foucault? Na Eterna Cadencia, uma das livrarias mais originais de Buenos Aires, têm-se as respostas: o primeiro seria um syrah; e o segundo nada mais nada menos que um robusto malbec. Mensalmente, em uma terça-feira, ocorre no local o evento Cata de Ideas, comandado por Luis Diego Fernández, o alquimista que busca o prazer combinando filosofia e vinhos. Durante os encontros, ele e os demais participantes degustam algumas taças e travam polêmicas – no caso do filósofo alemão – acerca do super-homem e da ausência do divino. Falando dessa mistura de enologia e filosofia, Lucio Ramírez, diretor comercial do espaço, sorri. Para ele, mais que uma livraria, Eterna Cadencia “é uma casa tomada por escritores”. Localizado na Rua Honduras, em uma área conhecida como Palermo Hollywood, o local é um exemplo do fervor dos portenhos pelos livros. “Estamos preparando o que batizamos de ‘serviço aspiracional’ ”, conta. “O cliente estipula um valor e, com base nele, nós lhe montamos uma biblioteca ideal.” Os funcionários da Eterna Cadencia entrevistarão o interessado, farão perguntas sobre seu cônjuge, seus filhos e amigos e, finalmente, estenderão uma ponte a um mundo onde os livros não são mais um castigo escolar. “Talvez fracassemos completamente”, desabafa Ramírez, abrindo um sorriso bem-humorado. Ecos de outro tempo Mas, se há uma coisa que não fracassou em Buenos Aires, é a venda de livros. E a Ávila, localizada na Rua Bolívar, no microcentro da cidade, é um bom exemplo disso. “Que eu saiba, é a única livraria do mundo que se mantém no mesmo espaço físico desde o final do século XVIII”, comenta seu dono, Miguel Ávila. “Por isso muitos turistas vêm aqui. E, às vezes, até compram algum livro”, acrescenta, soltando uma gargalhada.
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É que − como negar? − as palavras curam ou ferem. E as livrarias são verdadeiros Bancos Centrais de Palavras. A escritora Cecilia Szperling vê a coisa desse modo: “No sábado passado, entrou na Caleidoscopio [uma pequena livraria no bairro Belgrano R] o intelectual Eduardo Grunner, procurando por uma biografia de 1.500 páginas do escritor Osvaldo Lamborghini”. Um homem de leituras maratônicas? Não necessariamente: “Disse que gostaria de lê-la para ver o que dizia sobre ele, já que conhecia o biografado e lhe haviam dito que seu nome era mencionado no livro. Os comentários foram feitos por amigos nem um pouco contentes com o modo pelo qual foram retratados na biografia, bem completa e exaustiva”. Do edifício clássico de 1830, quando ainda se chamava La Librería del Colegio, passou-se ao atual, construído em 1926. O estabelecimento, situado a duas quadras da sede do governo (a Casa Rosada), foi visitado assiduamente por quase todos os presidentes argentinos e por intelectuais. Ainda assim, para não ter de fechar as portas, a livraria se especializou em história local e do continente americano. E, no silêncio de suas estantes, ecoa um tempo “em que o que se dizia com a língua se sustentava com os colhões”, sublinha o livreiro, lembrando como os duelos verbais de outrora terminavam em duelos com pistola ou sabre.
Palcos de amizades e rivalidades As livrarias portenhas são redutos de grandes amizades, grandes ciúmes e grandes despedidas. A Alberto Casares – Libros Antiguos y Modernos foi testemunha, por exemplo, do adeus entre dois dos mais importantes escritores de expressão hispânica do século XX: Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Isso ocorreu em 27 de novembro de 1985. No dia seguinte, Borges partiu para a Europa, onde viria a morrer em Genebra. A livraria já não fica na Rua Arenales, onde se deu a despedida, e sim na Suipacha, e Alberto Casares transformou-se num dos organizadores da feira do livro antigo da cidade. Na edição 2008, por exemplo, Casares ofereceu um exemplar da primeira edição de Fervor de Buenos Aires (1923), de Borges, por 30 mil dólares.
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A Libros Alberto Casares foi testemunha do adeus entre Borges e Bioy Casares.
Mas Buenos Aires não é somente o lugar de livrarias para gostos hipercaros e refinados. “Quando eu era adolescente, morava no sul, nos arredores da capital, e uma vez por mês, ou a cada mês e meio, ia ao centro com meus amigos para comprar livros na Avenida Corrientes”, relata o escritor e revisor Fernando Mazzeo. “Naquela época, a Corrientes estava coalhada de livrarias; o que existe hoje não é nem a sombra do que havia antes.” A “sombra” são as quase 30 lojas que sobrevivem na via, entre a Cerrito e a Riobamba, e herdaram a glória, mas não o público, daquele que era o local de maior concentração de livrarias do mundo hispânico na América Latina: “Só nessa avenida há mais livrarias do que em todo o Chile”, costumava dizer o escritor chileno Darío Oses ao visitá-la.
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Nela sobrevivem algumas “históricas”, como a Gandhi ou a Hernández. No porão desta última, Alberto Laiseca lançou seu Los Soria, o mais longo de todos os romances argentinos: 1.390 páginas e um protagonista chamado Personagem. Alejandro Seselovsky, autor de Cristo, Llame Ya! Crónicas de la Avanzada Evangélica en la Argentina (Editorial Norma, 2005), lembra-se de ter comparecido ao evento, “que foi muito divertido: Rodolfo Fogwill, com seu brilhantismo delirante, estava entre os palestrantes e, de repente, começou a atacar Ricardo Piglia, o romancista mais respeitado dos anos 1980 e 1990, resmungando em seu estilo sarcástico e incendiário algumas barbaridades terríveis contra ele. E então, ao fundo, abriu-se uma clareira no público, e lá estava Piglia, muito sorridente. De braços cruzados, assentindo em voz baixa: ‘Sim, Rodolfo, claro, Rodolfo...’ ”.
Palácios fundados pela tentação Formada em letras, Patricia Anselmo lembra que abriu a pequena La Cautiva – situada quase na esquina da Salguero com a El Salvador, na região de Palermo que não está na moda – em outubro de 2008, “em plena
“Muitos não compram livros, mas vêm para sentir-se rodeados por eles.” (Néstor Pascuozzo, da Crack Up) crise financeira mundial”, com seu companheiro, o poeta Fernando Molle. Nada indica que seja um lugar apropriado para uma livraria: “Agora estamos começando a vender pela internet, para não dependermos das pessoas que passam”, explica.
O fato é que instalar uma livraria em Buenos Aires não é um negócio, mas uma tentação. Néstor Horacio Pascuozzo, com Diego Singer, da Crack Up, vê a coisa do seguinte modo: “Em março de 2006, eu e seis amigos, que vínhamos de empregos em livrarias, pensamos: nós gostamos disso e, se vamos fracassar, que fracassemos melhor, como diria Beckett. Então fundamos a loja”. Situada na Rua Costa Rica, quase esquina com a J. L. Borges, representa, como a Eterna Cadencia ou La Internacional Argentina, um tipo de livraria que faz de tudo para se manter – edita livros, vende café, sanduíches ou CDs de tango –, mas recupera uma tradição: tem funcionários à moda antiga, que entendem de livros. Em seu caso, norte-americanos ou colombianos. “Todos os livros têm uma aura: cada palavra que usamos já percorreu a civilização inteira. É uma dívida impagável”, diz com entusiasmo. “Muitas vezes as pessoas não compram nossos livros, mas vêm aqui para sentar e sentir-se rodeadas por eles.” Tal “abrigo” é particularmente impactante na livraria El Ateneo Grand Splendid, um velho teatro reformado na Avenida Santa Fe que se tornou uma das joias da cidade. Parece um palácio de ópera transformado em livraria. Seu aspecto grandioso certamente espanta muitos bibliófilos, mas faz com que sintamos fortemente esse toque da civilização que é a tolerância para com o prazer e a leitura alheios. Sentada no café construído sobre o que um dia foi o palco do teatro, Florencia Gutman, desenhista gráfica especializada em capas (fez as de livros de Paulo Coelho editados em espanhol e na Europa do Leste), come uma minipizza de mussarela, observa a galáxia livresca repleta de luzes e leitores num domingo à tarde e exclama: “Não é mesmo fabuloso estar aqui!?”.
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reportagem
Roçando a língua de Luís de Camões Os desafios para a construção de uma comunidade lusófona internacional Por Micheliny Verunschk | Fotos Cia de Foto Um avô contava histórias de Trancoso, na Bahia, e relatos maravilhosos de princesas e castelos fabulosos de além-mar ou de além-sonho. O outro avô, por sua vez, falava de índios e, em particular, de uma moça que virou pássaro e que até hoje canta nas noites do sertão, a “mãe da lua”. A mãe a colocava para dormir embalada na leitura de poetas românticos do século XIX. Os três, sem saber, exerciam uma língua viva, capaz de se reinventar e de se lançar rumo ao futuro. Fora de qualquer pauta política, exerciam lusofonia e criaram alguém absolutamente encantado pela palavra e pelo seu poder. Ao pé da letra a palavra lusofonia significa “o que tem som luso”, ou o que soa em língua portuguesa. Para além do significado estrito, é um conceito político-cultural que compreende o conjunto de identidades comuns existentes entre os falantes do português, o terceiro idioma de origem europeia mais falado no mundo, com cerca de 230 milhões de “usuários” atualmente.
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro
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Da própria língua e seus “produtos” mais evidentes, como a música, a literatura e as artes em geral, passando pela gastronomia, até a preocupação com o ensino e a difusão do português pelo mundo, a lusofonia é presença política oficial desde 1996, ano de criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), organismo internacional que reúne Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Princípe e Timor Leste, além de nações observadoras e outras interessadas, caso da Venezuela, por sua proximidade territorial e cultural com o Brasil.
Horácio Costa, poeta e professor da Universidade de São Paulo (USP), dá conta da pluralidade dessa imersão da língua na contemporaneidade: “Como brasileiro, prefiro pensar a terra ao mar. Interessa-me a fala de língua portuguesa no mundo em suas fronteiras: no caso das Américas, o confronto entre o português brasileiro e o espanhol; no caso africano, entre a voz que fala português e o inglês da África austral”.
“Prefiro a associação de quem fala português no mundo não como lusofonia, voz de luso, mas como as vozes que falam português pelo mundo. A língua portuguesa não é de luso, mas de todos os que a usam.” (Horácio Costa) Segundo projeções estatísticas, até 2050 o português será falado por mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo, daí a justificativa de uma integração mais eficiente entre os países lusófonos, que possa inserir programas de desenvolvimento e cooperação mútua em níveis políticos, econômicos ou culturais. Mas o que é lusofonia de fato? Fora das agendas políticas, a lusofonia viva deveria ser aquela que superasse os desconhecimentos que temos acerca de nós mesmos como falantes do português e da sociedade contemporânea que nos cerca. Essa seria a lusofonia potente que reside na fala do povo nas ruas do Rio de Janeiro, na contação de histórias seja num grotão da Amazônia, seja em Catió, na GuinéBissau, no portunhol falado na região entre fronteiras da América do Sul, nas relações íntimas que oralidade e literatura mantêm na construção e reconstrução de uma língua pulsante.
Geralmente quando se pensa em lusofonia no sentido mais formal do termo, pensa-se também numa suposta participação do escritor na propagação da sua língua e da cultura que ela abarca. O escritor moçambicano Mia Couto rechaça essa incumbência: “Minha responsabilidade é escrever. E fazê-lo o melhor que posso. Não chamo para mim outras missões. Escrever é outra coisa e não pode ser sujeita a esse sentido utilitário. A língua não pode ser entendida como o único veículo de identidade comum. Existem componentes que por vezes esquecemos. E um deles é o factor religioso”. Língua não centralizadora Nascida em Portugal e radicada no Brasil, Cremilda Medina, também professora da USP e autora de Sonha Mamana África (Epopéia; Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 1987), tem uma longa trajetória no que diz respeito às relações entre os países de língua portuguesa, trabalho que se iniciou na década de 1970, quando os chamados “cinco da África” (Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde) se aprofundavam nas lutas pela independência e o Brasil se municiava para o que ela chama de “período épico” de luta pela queda da ditadura militar na década seguinte. Participe com suas ideias
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Uma das funções do escritor lusófono é garantir a continuidade do português
Cremilda ressalta que lusofonia é muito mais uma questão de conhecer a si mesmo e ao outro. “O que facilita é nos conhecermos e, principalmente, nos reconhecermos dentro da diferença e da diversidade da fértil diáspora que espalhou a língua portuguesa pelo mundo. Quando vemos as especificidades da literatura de Mia Couto, em Moçambique, de Nélida Piñon, no Brasil, e de Teolinda Gersão, em Portugal, compreendemos que a língua é o espelho das culturas, de sua diversidade. O fato de Portugal não ter tido, a exemplo de outros países, uma academia real da língua fez do português uma língua não centralizadora, o que, à luz da história, é uma bênção.” O que nos une é o que nos separa Com um programa que pretende atuar em tantas frentes, o projeto lusófono institucional de organizações como a CPLP, como não poderia deixar de ser, apresenta suas fragilidades. Uma delas é o exagerado foco em Portugal e no Brasil. As críticas ao país são tantas que se fala até numa “brasilofonia”, que seria uma tentativa colonialista contemporânea de sobrepor os interesses brasileiros aos dos demais países da comunidade no uso do português. Esse debate tem se intensificado com a recente entrada em vigor do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. A poetisa e artista plástica portuguesa Ana Hatherly afirma ter dúvidas
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quanto à eficácia imediata do acordo, mas acrescenta que “uma das funções relevantes do escritor – neste caso, do escritor lusófono – é contribuir para a continuidade e a dignidade de uma língua tão antiga e tão prestigiada como é o português”. Para o escritor e crítico literário português Arnaldo Saraiva, a língua e sua difusão devem estar a serviço do ser humano e não o contrário. “������������������ Se é natural o empenho na língua materna, também parece perigosa a tentativa de sobrepô-la a línguas maternas de outros, sobretudo se com ela não vai a luta por uma sociedade mais democrática, mais rica e mais justa.” Saraiva lembra que o português já foi língua imperial e língua franca no Oriente. “Não se trata de colocar [o idioma] de novo a serviço de algum projecto imperial, mas de afirmar a dignidade e a cultura nunca devidamente reconhecida das nossas comunidades, e fazer com que [a língua] seja também um instrumento valioso para a melhoria do mundo.” Outra questão, como coloca Costa, é a distância entre a teoria e a prática dessa suposta aproximação: “Quando se fala em lusofonia, pensa-se muito no mar português, no imaginário daquele país, nas suas dores como um ex-império e nos sentimentos belos ou confusos que isso tudo causa. Prefiro a associação de quem fala português no mundo não como lusofonia, voz de luso, mas como as vozes que falam português pelo mundo. A língua portuguesa não é de luso, mas de todos os que a usam”.
Essa opinião é compartilhada por Mia Couto, crítico ardoroso do projeto lusófono no âmbito institucional. “Somos nós que falamos e escrevemos em língua portuguesa todos os dias. E aqui reside uma das muitas inverdades quando se fala de lusofonia. Boa parte dos 20 milhões de moçambicanos não fala português. Não são lusófonos. Se a cidadania que buscamos passa exclusivamente pelo idioma, esses meus compatriotas estão excluídos. Precisamos de uma lusofonia suficientemente plural para poder ser falada nas línguas que são as nossas. Como diz Eduardo Lourenço [ensaísta português]: o que importa não é apenas a língua que falamos mas como somos falados por essa língua.”
mas conviria aproveitar mais as instituições culturais e a televisão, os jornais e as revistas para que as classes médias se familiarizassem com autores que só chegam, quando muito, a escassas elites. Urge criar em Portugal uma grande biblioteca brasileira. E convirá multiplicar os encontros de autores, até em festivais.”
Relações de familiaridade
A grafia dos depoimentos de participantes de outras nacionalidades foi preservada.
Talvez uma das respostas desse distanciamento das nações falantes de língua portuguesa entre si e também de parte do mundo resida no fato de que nenhum dos membros da CPLP está entre os índices desejáveis de desenvolvimento humano, o que demonstra que as questões de aproximação passam por agendas muito mais complexas que simplesmente o encontro e a simplificação das diversidades linguísticas.
Certamente, falta para a desejada integração lusófona sentir a respiração ofegante, entremeada de sintaxes muito próprias, de sotaques diversos, de modos muito únicos de se falar a língua mais que plural que nasceu em Portugal. Falta ainda compreender o que o poeta Manuel Bandeira chamou de “língua errada do povo/língua certa do povo”, o português gostoso do cotidiano das gentes.
Leia na Continuum On-Line entrevista com o escritor Mia Couto.
Saraiva vê na internet e na universidade o começo de ações mais palpáveis de aproximação entre as múltiplas culturas lusófonas. “A internet está a fazer milagres,
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reportagem
Uma operação nada matemática Os desafios de verter o sentido, o tom, a vida de palavras de um idioma para outro. Por Luciana Veras | Ilustração Rodrigo Silveira Diz a história que São Jerônimo deu à luz a primeira Bíblia em latim. A Vulgata, publicada por volta do ano 400, é até hoje referendada pela Igreja Católica. Concebidos em aramaico e hebraico, antes os textos cristãos haviam apenas sido passados para o grego. Ao imortalizar as Sagradas Escrituras na língua de Roma, ele se tornou o patrono da tradução. Na acepção teórica, o ato de traduzir é uma transferência de palavras, frases e orações de um idioma “de partida” para um “de chegada”. Uma operação exata, quase matemática. Na prática, contudo, a tradução não se restringe à fidelidade, à matriz ou à transformation de, por exemplo, uma edição em inglês de Rei Lear, de William Shakespeare, para o português. Para especialistas, escritores, leitores e, acima de tudo, tradutores, ela é um renascimento. Uma criação. E uma homenagem. Writer and translator Modesto Carone – the main responsible for the translation of the oeuvre of Franz Kafka in Brazil – who for the past twenty-four years has been immersed in the universe that the Czech writer of The Metamorphosis, The Trial, and Letter to His Father (all published in Brazil by Cia. das Letras publishing house in 1997) erected in German–, reminds us that “Goethe believed in the existence of two kinds of translation. One aimed at making the original work an integral part of the literature to which it was being translated. The second advocated that the target language should get as close as possible to the source language, thus creating a third language.”
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“Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituir o original pela tradução é impraticável.” (Modesto Carone) O argentino Jorge Luis Borges foi o primeiro tradutor dos densos e atormentados escritos de Kafka na América Latina. “Kafka possui beleza em qualquer lugar, mas na tradução de Borges havia a elegância de sua própria literatura. Aquilo não era Kafka, era Borges. Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituir o original pela tradução é impraticável. O que se busca é uma correspondência entre as duas línguas. As traduções de Borges são belíssimas”, completa Carone, ele mesmo author de vários livros.
americana Karen Sotelino, Ph.D. em literatura pela Universidade da Califórnia com uma tese sobre a ambiguidade da linguagem das memórias em Machado de Assis e tradutora para o inglês de Lavoura Arcaica (Cia. das Letras, 1989), do brasileiro Raduan Nassar (à espera de uma decisão editorial para ser publicado). “Acredito que Benjamin está certo: traduzir é fazer renascer um texto. Se não acreditasse nisso, não me dedicaria à arte de tradução. Traduzir é uma das maneiras mais sérias de homenagear um texto e seu autor”, continua.
As várias vidas de um texto Se para Carone a tradução literal não existe diante da impossibilidade de se reproduzir, letra a letra, uma impossibilidade de se reproduzir, letra a letra, uma construção semântica e um conjunto de significados, que se reinvente o desafio. “A questão é a maneira pela qual o tradutor consegue – ou não – captar o humor, a lástima, a sutileza, o que Walter Benjamin chamaria ‘a vida’ do texto original”, comenta a acadêmica norte-
No intuito de cumprir sua missão, o profissional deve se preparar. “Os requisitos básicos são o conhecimento mais amplo possível da língua a ser vertida, sensibilidade para o tom em que o texto foi escrito e boa capacidade de expressão na língua de chegada”, explica o journaliste e crítico de cinema José Geraldo Couto, tradutor de Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano (Cosac Naif, 2004), de Martin Scorsese, e Fora do Lugar (Cia. das Letras, 2004), de Edward Said. No meio do caminho, alguns dilemas. “Além das dificuldades técnicas pontuais de encontrar os termos exatos, há a dificuldade geral, agravada em certos casos, de encontrar a ‘embocadura’, o tom, algo que vai além do mero sentido das palavras. Às vezes, é preciso sacrificar a literalidade para buscar uma aproximação com o estilo, com o ritmo, com o sabor do original”, pontua.
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A escritora, pensadora e crítica norte-americana Susan Sontag discorreu sobre “os paradoxos ideológicos embutidos no exercício da tradução” em um dos ensaios reunidos no livro Questão de Ênfase (Cia. das Letras, 2005). O motivo: em Sarajevo, durante a guerra dos Bálcãs, ela dirigiu uma montagem teatral de Esperando Godot, pelo dramaturgo irlandês. peça escrita em francês e em inglês de Samuel Beckett, No palco, os atores falavam em servo-croata. No livro, a indagação de Sontag: “O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? À literatura? À língua? Ao público?”. “Ele é um mediador necessário. Sem a tradução, não conheceríamos As 1001 Noites”, responde Carone – que destinou dois anos e meio a O Castelo, tempos después de ter morado em Viena e lá estudado germanística para estrangeiros, o que o direcionou a Kafka no original. “Sempre existe grau de perda em qualquer tradução. Talvez só um italiano do século XIV fosse capaz de fruir em sua plenitude de A Divina Comédia, de Dante, mas a humanidade seria culturalmente mais pobre se não existissem as traduções para as mais diversas línguas”, acrescenta Couto.
Acertos e desacertos Por um lado, os tradutores cultuam o trabalho de seus pares. “As traduções de Constance Garnett e Rosemary Edmunds da obra de Leon Tolstói são muito boas. Às vezes, ao ler o trabalho de Garnett (Anna Karenina) e de Edmunds (Guerra e Paz), tinha que me lembrar que era tradução. Ao mesmo tempo, elas criaram um ambiente suficientemente estranho para estimular a estética do desconhecido. Ou seja, um texto bem escrito no original carrega o tradutor”, observa Karen Sotelino. “A primeira tradução francesa do difícil Ulisses foi feita por Valery Larbaud com a colaboração do próprio James Joyce”, cita Carone. “Na poesia, traduções maravilhosas são as reunidas por Augusto de Campos em O Anticrítico (Cia. das Letras, 1986). Na prosa, as traduções do russo de Boris Schnaiderman e as traduções do inglês de Paulo Henriques Britto são admiráveis”, enumera Couto. Por outro lado, admitem equívocos e desacertos. “Em Madame Bovary, de Flaubert, traduzia-se ‘l’amour fou’ por ‘amor louco’, quando uma tradução de maior sensibilidade seria ‘uma paixão enlouquecedora’ ou mesmo ‘uma paixão’ ”, pondera Carone. O cinema é um campo no qual, para infelicidade geral, a má translation é recorrente. La Peau Douce (a pele doce) e Baisers Volés (beijos roubados), de François Truffaut, viraram, respectivamente, Um Só Pecado e Beijos Proibidos. Em 1992, um filme que nos Estados Unidos havia sido intitulado Leap of Faith (livremente, um salto de fé) chegou ao país como Fé Demais Não Cheira Bem (Richard Pearce, 1992). Em março deste ano, quando a adaptação do cineasta paulista Fernando Meirelles
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para Ensaio sobre a Cegueira (Cia. das Letras, 1995), romance de José Saramago, estreou na Espanha, o autor português reclamou do título local – Às Cegas. Sua alegação: os personagens, cegos por uma condição física, não pertencem ao sentido implícito na expressão usada pelos espanhóis. Outro exemplo recente é dado pela tradutora Débora Baldelli, com anos de experiência em tradução cinematográfica, inclusive na coordenação do departamento de legendagem em duas edições do Festival do Rio. “O filme Sim Senhor (Peyton Reed, 2008) é baseado no livro Yes Man. Na verdade, o significado é O Homem do Sim, como o personagem é chamado no livro. Portanto, Sim Senhor não faz o menor sentido”, situa. Para cinema, DVD e television, a tradução é mais econômica, dada a escassez de espaço. “Infelizmente, existe um limite de caracteres que deve ser respeitado. A quantidade na legenda eletrônica não é a mesma das cópias com legendas queimadas, nem da exibida em programas de TV. É sempre um grande exercício de síntese”, contextualiza Débora.
Síntese, escolha, estudos, dedicação... A rotina de um tradutor é repleta de palavras – como não? – que determinam os rumos de seus trabalhos. Há confrontos, claro. Carone julga a profissão “importante e indispensável” e “mal paga”. Karen elege a pressa “a grande inimiga da tradução, pois o tradutor, em muitos casos, tem uma carreira acadêmica e outros compromissos e precisa ganhar a vida”. E Couto crê que sua experiência como jornalista pode atrapalhar “justamente pela tendência ao texto objetivo e despojado, que nem sempre é o que a obra de origem pede”.
“O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? À literatura? À língua? Ao público?”(Susan Sontag) Entretanto, o que seria da literatura, da civilização, da vida sem eles? Sem a tradução, os brasileiros não apreciariam Henri Stendhal, Ivan Turguêniev, Julio Cortázar, Umberto Eco, William Faulkner, Virginia Woolf, Hermann Hesse, Salman Rushdie e tantos outros. Sem a tradução, Machado de Assis não seria um genius universal e Guimarães Rosa não teria esboçado, em uma carta de 1963 a seu tradutor italiano, uma lírica e simbólica definição para dois ofícios-irmãos: “Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse ‘traduzindo’ de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no ‘plano das ideias’, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando nessa ‘tradução’. Assim, quando me ‘re’-traduzem para outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do ‘original ideal’, que eu desvirtuara...”. Na Continuum On-Line leia entrevista com o tradutor Modesto Carone. Participe com suas ideias
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Para o Método Suzuki, é possível aplicar os princípios da linguagem ao aprendizado musical
reportagem
A, b, c, dó, ré, mi As relações entre a linguagem musical e a língua falada são muitas, como mostra o Método Suzuki de ensino de música a crianças. Por Carlos Costa | Fotos Luana Fischer Antes de existir o alfabeto, existia o som. A música do vento, árias de ar e poeira, os estalos do fogo, as batucadas de trovões... A música talvez seja a primeira das línguas e, apesar de não ser propriamente um idioma, é considerada uma linguagem universal – que tem na partitura o padrão mundial de sua representação gráfica. Formada por conjuntos de cinco linhas, chamados de pauta ou pentagrama, a partitura dá suporte a uma série de símbolos que definem como uma peça musical será interpretada: as notas, os tons e a duração dos sons, das suspensões e dos silêncios. Trata-se de um sistema de escrita conhecido genericamente por notação musical, cuja origem está ligada aos cantos da Igreja Católica Romana da Idade Média e à figura do monge italiano Guido D’Arezzo (992-1050) – que deu nome, a partir das frases iniciais do hino a São João Batista Hymnus in Ioannem, às sete notas musicais (dó, ré, mi, fá, sol, lá e si).
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Os registros musicais mais antigos, datados da Idade Média, eram realizados em manuscritos que não tinham o pentagrama como base. Foi no século XIX, com a consolidação da indústria de edição musical, que surgiu a partitura no formato atual. A música e seu sistema de escrita evoluíram. Além das notas, surgiram as figuras musicais, os compassos, as claves, as pausas, as deslocações de tons e as especificações sobre a forma de execução (volume, tempo, articulação e acentuação). Hoje, a linguagem da notação musical é compreendida por músicos de qualquer nacionalidade; mas, apesar do progresso, essa linguagem não foi capaz de solucionar a contradição de a partitura não ter som.
“A notação musical não dá conta de uma série de aspectos relacionados à interpretação e, de forma alguma, substitui a experiência concreta da audição”, diz Eduardo Patrício, compositor, professor e mestrando em música pela Universidade Federal do Paraná. “Mas ela é um imenso recurso, não só para registro, mas para o exercício da criatividade e a expansão de possibilidades estruturais na música.” Língua e música Contudo, a partitura não é a única forma de escrita musical. A cifra – sistema de representação de acordes – e a tablatura – sistema baseado na posição dos dedos do músico nos instrumentos – são outras maneiras de escrever música. E, além da escrita, há o registro auditivo, a chamada “música de ouvido”.
Alunas da Escuela Cuatro Cuerdas, em Madri
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Atento a essa relação da música com a língua falada, o instrumentista e pedagogo japonês Shinichi Suzuki (1898-1998) desenvolveu o Método Suzuki. Sistema filosófico de ensino musical a crianças, visa aplicar os princípios da aquisição da linguagem ao aprendizado de música. O método surgiu no Japão em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, e reflete a experiência pessoal de Suzuki, que concebeu a relação entre língua materna e música depois de se mudar para a Alemanha, aos 22 anos, e perceber como as crianças aprendiam facilmente o idioma que tanto lhe custou falar. É uma tentativa de reduzir as consequências traumatizantes do conflito na vida de meninos e meninas, oferecendo a música como um alento. Também conhecido como Educação para o Talento, o sistema preconiza que qualquer pessoa pode aprender música, pois a habilidade não é inata e o talento se constrói, e que a relação com essa arte gera cidadãos mais felizes e mais preparados para a vida. Outros preceitos norteiam a aprendizagem por meio do método, como a participação dos pais, o começo precoce (a partir dos 3 anos) e o aprendizado junto com outras crianças. Brincadeiras e melodias Atualmente, o Método Suzuki é aplicado em escolas de música de mais de 40 países, dos cinco continentes, seguindo os livros, as partituras e os registros de áudio deixados por seu fundador. No Brasil, é pequeno o número de professores capacitados oficialmente para o uso do sistema. Um deles é Emmanuel
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Marcelo, de Curitiba, que se dedica há quatro anos ao ensino utilizando o processo desenvolvido por Suzuki. “Informalmente, diversos professores usam conhecimentos do método, mas, seguindo à risca, há muito poucos, apenas em algumas cidades do Sul e em São Paulo”, conta. Há 15 anos no centro de Madri, Espanha, a Escuela Cuatro Cuerdas funciona como centro exclusivo de ensino por meio da Educação para o Talento. Visitar a escola é uma experiência lúdica. Na entrada, um espaço para deixar os calçados dá mostras de quem domina o ambiente: a quantidade de pares de sapatos com menos de 15 centímetros é bem superior à de adultos. E as crianças correm e brincam por todos os espaços comuns do local. Austeridade e compostura, apenas na hora e na sala de aula. O músico Carlos Albuisech dá aulas de violino e viola na escola e é pai de Clara, de 4 anos, uma dos 120 estudantes da instituição. “O aprendizado de música na infância ajuda no desenvolvimento de funções cerebrais”, diz ele, que aponta como uma das principais facetas do método o triângulo formado por pai, professor e aluno. Os pais assistem às aulas com os filhos e participam em casa do processo de aprendizagem. “Mesmo um leigo em música tem de ir aprendendo junto. É essencial que os pais se envolvam”, reforça. Os alunos têm duas aulas semanais. Uma, de 30 minutos, com um dos pais e o professor. Outra, de 45 minutos, em grupos de cerca de dez crianças, com um professor à frente. Em meio a brincadeiras e jogos, vão aprendendo melodias e técnicas para apreciar e produzir sons. A partitura é introduzida quando os estudantes atingem a puberdade. “Ela entra no processo de aprendizado no período em que o aluno começa a se tornar independente, maduro. Por volta dos 10, 12 anos”, comenta Albuisech. A experiência marca o amadurecimento do jovem, pronto para seguir, simultaneamente, pelos mundos da palavra e da música. Ao mesmo tempo que, no colégio, podem tomar contato com os símbolos e os segredos da literatura, da arte da palavra, aprendem, na escola de música, a extrair do papel – bem como a inserir nele – a língua da música, com seus próprios símbolos e segredos.
O contato com a partitura acontece quando o aluno atinge a puberdade
Patrício, por exemplo, conta que sua experiência com a música nasceu com a partitura, mas seguiu pela audição. “Passei anos sem utilizar partituras em meus estudos, tocando música ‘de ouvido’ ”, afirma. E, como ele, artistas populares e de culturas não eruditas vivenciam o fenômeno musical “de ouvido”, encarando a arte como um idioma, aprendido por meio da audição e da repetição.
PARA O INFOGRÁFICO Como se lê uma partitura? O que querem dizer as bolas, os traços e os caracteres em preto e branco inseridos no pentagrama? Com base em um trecho da canção Brejeiro, de Ernesto Nazareth, o músico Benjamim Taubkin comenta alguns deles: CLAVE (que define a posição das notas na pauta) UMA FRAÇÃO NUMÉRICA (que determina o tempo e o compasso, marcando a estrutura rítmica da música e, consequentemente, seu estilo) AS FIGURAS MUSICAIS (semibreve, mínima, semínima, colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa – que representam as notas) SUSTENIDOS E BEMÓIS PAUSAS INTENSIDADE ANDAMENTO OUTROS...
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