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A transformação de uma vida

Como é feita a transição de gênero de pessoas trans e quais efeitos os tratamentos podem acarretar

Gustavo Ferraz, Laura Borro, Luana Perdoncini, Luísa Secco e Paula Araújo

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Quando tinha 15 anos, Rafael se entendeu como transgênero. Mesmo demorando alguns anos para abraçar a nova identidade, ele sabia que era um homem trans. Agora, aos 19 anos, ele se viu sem nenhum apoio familiar quando optou pelo tratamento hormonal mesmo tendo receio de sofrer mudanças no corpo por pressão da sua família. “Sou desempregado e emocionalmente dependente dos meus pais. Meu namorado também é trans e está em TH (transição hormonal), acredito que juntos conseguiremos resolver isso em um tempo”, explica o artista.

“Tome o seu tempo e não escute quem diz que você tá errado, que tem que fazer isso e aquilo para ser

válido.” Orlando Vinhora, estudante.

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Confira o conteúdo extra desta matéria. Histórias como a de Rafael são muito comuns dentro da comunidade transgênera. A dificuldade de pessoas próximas aceitarem o processo de transição é uma etapa pela qual muitos passam ao longo do seu tratamento.

Além disso, há o preconceito dentro da própria comunidade LGBTQI+ contra pessoas trans que tomaram a decisão de não se submeter, ou ainda vão passar, pela transição hormonal. “Passar pela transição hormonal é, infelizmente, um privilégio. Em questão financeira (caso seja no particular), ter apoio da família, estar psicologicamente bem… nem todos podem passar por isso”, é o que conta Rafael. Ele continua: “Tem quem opte por não passar (pelo tratamento hormonal), seja por esses motivos ou por não ver necessidade, e isso não faz de ninguém menos trans. É triste ver esse pensamento ser disseminado dentro da própria comunidade, e da comunidade LGBTQI+ num geral, é tão triste quanto”, conclui o artista, que ainda não iniciou o tratamento e acompanha o namorado, também trans, durante o tratamento hormonal.

A quantidade de cirurgias de redesignação sexual, aumentou de dez operações para 57 por ano, é o que mostra os números do Sistema Único de Saúde, fazendo dez anos apenas que o SUS passou a realizar os procedimentos de transição de gênero.

Já a prescrição de hormônios cresceu de 171 para 1,9 mil no período de agosto de 2008 a 2017. As cirurgias são realizadas em pessoas que não se identificam com o gênero designado ao nascer, e devem seguir regras da Associação Profissional Mundial de Saúde Transgênero. Os primeiros passos a serem tomados por pessoas têm interesse nesta transição é fazer uma avaliação com orientação de um médico, e, na sequência, começar a ingestão de hormônios, que fará a transformação das características físicas dessas pessoas.

Orlando Vinhoza tem 26 anos e começou a terapia hormonal no ano passado, depois de refletir por alguns anos sobre as mudanças e ter certeza da estabilidade financeira para bancar o tratamento. Ele conta que começou o processo com médico particular que também era trans, o que o ajudou a se sentir mais confortável. Depois, migrou para o SUS, no ambulatório trans em Niterói, onde continua sendo atendido. Orlando relata que a terapia tem sido tranquila, pois teve bastante tempo para entender como funciona e o que esperar.

Com apoio de família, amigos e de seu companheiro, que também é trans e iniciou a terapia hormonal na mesma época, compartilha as histórias, mudanças e a felicidade das suas conquistas. Orlando notou diferenças no formato do corpo, voz, surgimento de barba e está muito contente com elas. Ele diz que o único efeito colateral que reparou foi o aumento de acne.

Orlando aconselha que, para quem está se descobrindo, é bom ter paciência e refletir sobre o que quer e aproveitar

para se conhecer, além de cuidar com as expectativas. “Tá tudo bem se você não tem certeza sobre tudo, se não quer tomar hormônio ou fazer determinada cirurgia. Tome o seu tempo e não escute quem diz que você tá errado, que tem que fazer isso e aquilo para ser válido”, completa.

Leonidas Noronha é mastologista e diz que teve poucas oportunidades de atender pacientes transgênero. Mas que vê a dinâmica de consulta é bastante distinta. “Na minha experiência, as pessoas trans necessitam de um cuidado especial por parte do profissional da saúde, pois não estamos tratando apenas da parte física, que envolve a cirurgia, mas sim de questões emocionais e sociais”, conta.

O médico fala que os riscos das cirurgias, seja para mastectomia masculinizadora ou para colocação de implantes mamários, são os mesmos comparados a outras cirurgias do mesmo porte. Leonidas fala que esses pacientes precisam de acompanhamento especial com psicólogo ou psiquiatra, “pois se faz necessário relatório por parte desses profissionais atestando acompanhamento por no mínimo dois anos, além do termo de consentimento pós-informado para a cirurgia”, explica o profissional. “Hoje já dispomos de normativas bem definidas pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) no que se refere às responsabilidades éticas e morais na relação médico-paciente.”, ele afirma. Além disso, o mastologista conta que, no Brasil, existem inclusive serviços públicos que oferecem atendimento e cirurgia gratuitas para pacientes trans.

Hoje, o Ministério da Saúde faz a cobertura de consultas com ginecologistas, endocrinologistas e psicólogos. A mastectomia é a retirada da mama, e a histerectomia, a remoção do útero. As cirurgias de redesignação sexual foram regulamentadas pelo Conselho Federal de Medicina nos anos de 1990.

Embora os procedimentos já possam ser realizados no país, critérios devem ser adotados com rigidez. Neste ano, a idade mínima para a realização de cirurgia reduziu de 21 para 18 anos. As terapias hormonais, que antes deveriam ser iniciadas depois dos 18 anos, passaram a ser liberadas a partir dos 16. A terapia para pessoas transgêneras começou no Sistema Único de Saúde (SUS) no ano de 2009, quando foram feitas 171 prescrições, ao custo de R$ 11,2 mil. Já no ano de 2017, foram 1.968 pedidos, com o valor de 108,8 mil.

A psicóloga Cinthia Perdoncini conta que acompanhou um paciente antes mesmo do processo de transição. “O medo da falta de aceitação dos pais fez com que ele iniciasse um tratamento clandestino, tomando remédios por conta própria”, diz.

Com essa situação, Cinthia sentiu a necessidade de se informar a respeito de tratamentos que não exigissem o plano de saúde para que os pais do paciente não descobrissem. “Foi quando cheguei ao Transgrupo Marcela Prado, que deu todo apoio e tirou todas as dúvidas desse paciente para iniciar o tratamento por meio do SUS.” A psicóloga fala que, nas palestras organizadas pelo Transgrupo, ela passou a encorajar o paciente a levar os pais para os eventos. “Isso fez com que os pais passassem a aceitar mais a condição de seu filho e, assim, ele conseguiu dar início a transição hormonal pelo plano da saúde”, Cinthia explica.

A profissional afirma que a vontade de transição de gênero perante as pessoas transgêneras não é considerada uma doença psicológica, porém a falta de aceitação pode desencadear problemas como a automutilação, depressão, ansiedade, problemas com imagem. “São problemas que podem se agravar e levar à alguma fatalidade”, conta a psicóloga.

O OUTRO LADO DA HISTÓRIA

Embora todos os avanços da ciência, cabe registrar alguns fatos, estes que nos mostram que temos muito a melhorar enquanto sociedade. Nosso país lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas transgêneras há pelo menos dez anos. No período de 2008 a 2016, 40% de 2.190 assassinatos de pessoas trans, mundialmente, aconteceram no Brasil, de acordo com a Transgender Europe.

No ano de 2017, o número de travestis e transgêneros assassinados foi de

179, o maior em 10 anos, sendo que no ano de 2018, eram 163. Crimes estes, resultados tão somente de preconceito e intolerância. Delitos de transfobia, que resultou no ano de 2019, na criminalização da homofobia e da transfobia, decretada pelo Superior Tribunal Federal.

O Relatório de Violência LGBTfóbica, do ano de 2016, feito pelo Ministério dos Direitos Humanos, afirma que o perfil de pessoas que cometem esses crimes são homens, com idade entre 25 e 30 anos, brancos, e que não possuem nenhuma relação com às vítimas. Além disso, conclui também que a maior parte das agressões e violações ocorreram em locais públicos.

Para o youtuber Stefan Costa, “ninguém está preparado para ajudar nós pessoas trans, já que nos tratam como um novo ser, nos tratam com estranhamento, já que o nosso modo de viver é diferente do padrão”. Ele começou a terapia hormonal com 23 anos. Hoje, aos 25, conta da dificuldade de encontrar médicos dispostos a atendê-lo. “Normalmente, os médicos nos tratam como pessoas anormais, com algum tipo de patologia. Nem todos querem receitar medicamentos, nem acompanhar. Eu passei por dois antes de conseguir um tratamento decente”, conta. Por esse motivo, Stefan começou seu tratamento sozinho, comprando a testosterona com um farmacêutico e aplicando em si próprio.

A endocrinologista Juliana Laibida acredita que todo endocrinologista já atendeu algum paciente transgênero, já teve casos de pacientes que fazem a terapia hormonal por conta. “A maioria acaba usando doses suprafisiológicas (doses altas) esperando efeitos desejados mais rápidos, porém colocando a vida em risco”, conta a profissional. Juliana também fala que já viu casos de trombose venosa, que pode evoluir para trombose pulmonar e morte. Além de trombose, ao fazer uso da automedicação, existe risco aumentado do paciente desenvolver doenças cardiovasculares, câncer, doenças hepáticas (fígado) e aumento de pressão arterial.

A equipe da CDM resolveu verificar se era possível comprar remédios utilizados para terapia hormonal com facilidade. Após assistirmos a um vídeo no YouTube em que uma mulher trans indicava o Climene (valerato de estradiol e acetato de ciproterona) e a Espironolactona, fizemos a tentativa de comprá-los em uma farmácia. Ambos os medicamentos são tarja vermelha e possuem a indicação de venda sob prescrição médica. Entretanto, conseguimos adquiri-los sem dificuldade ou receita. Entre os efeitos colaterais dos medicamentos estão mudança de peso, dor abdominal, erupção cutânea, coceiras, náuseas, diminuição dos glóbulos brancos no sangue, função hepática anormal, tontura e alteração na libido.

Quando perguntada sobre o tratamento feito com o Climene, citado acima, a endocrinologista explica que o remédio é uma opção, mas que prefere usar estrógenos transdérmicos. Porém, Juliana diz que, em hipótese alguma, o paciente deve iniciar tratamento sem o acompanhamento de um endocrinologista, o especialista que cuida da terapia hormonal nestes casos.

Infelizmente, a falta estudos sobre pessoas transgênero em tratamento hormonal por parte da medicina fazem com que muitos profissionais não saibam como direcionar o tratamento correto para pessoas trans que procuram tratamento.

Caio Oliver Assunção é um homem trans e conta que, quando procurou atendimento, foi mal recebido por alguns médicos, que usavam os pronomes errados e não o tratavam pelo nome social. “Isso acontece em diversas áreas. Poucas vezes fui respeitado em clínicas particulares ao contrário das públicas que tem em seu cadastro a opção de ‘nome social’ e, assim, sou tratado pelo gênero com o qual me identifico”, explica.

Perguntado sobre os motivos dessa falta de preparo dos médicos, Oliver afirma que existe uma ausência de empatia e respeito dos médicos, além disso há falta de vontade da parte dos profissionais ao querer ajudar os pacientes, e, por último, não existem estudos sobre saúde trans, o que dificulta a melhora dos médicos em atender pessoas trans. “Parece que a medicina faz questão de reafirmar que não existimos.”

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