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O verdadeiro pulmão do mundo
from CDM 58
UNESCO inicia a Década Internacional das Nações Unidas sobre a Ciência Oceânica e o Desenvolvimento Sustentável.
Isabelle Almeida, Jéssica Pretto e Nathalia Brum
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Conhecemos mais sobre o espaço sideral do que sobre os oceanos que estão diante de nós. A imensidão azul que atrai milhares de pessoas todos os dias para desfrutar de um banho de mar ou apenas aproveitar a vista é abrigo de uma gigantesca biodiversidade. Entretanto, o que poucos sabem é que cerca de 80% da sua composição nunca foi mapeada, observada ou explorada. Preocupada com esse dado e com a preservação da biodiversidade marinha, a Organização das Nações Unidas (ONU) deu início este ano à Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, popularmente chamada apenas de Década dos Oceanos, proposta em 2017. O marco tem objetivo de gerar e divulgar conhecimento relacionado ao oceano.
Por mais que seja pequeno nosso conhecimento sobre toda essa imensidão azul, cerca de 3 bilhões de pessoas dependem diretamente da biodiversidade marinha e costeira para sua sobrevivência, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Essa dependência, que deveria ser o motivo para a preservação do ecossistema marinho, ameaça sua sobrevivência e prosperidade. A Netflix lançou recentemente o documentário Seaspiricy, abordando a destruição catastrófica que é imposta aos oceanos em todo o mundo e com a intenção de mudar a forma de pensar e agir sobre a sua preservação.
O documentário repercutiu na internet com confrontos à veracidade dos dados utilizados e supostos exageros propositais adicionados ao roteiro, sem falar das fortes críticas da indústria da pesca. Entretanto, a produção aborda de forma verdadeira o impacto que a ação humana está causando na sobrevivência da vida marinha e pode causar também à nossa, em um futuro bem próximo, caso não sejam providenciadas mudanças. Acessível à boa parte da população, o documentário ajuda a despertar o interesse das pessoas sobre os oceanos e sua preservação, encaixando perfeita-
mente seu lançamento com o início da Década dos Oceanos.
A agenda muito ambiciosa da UNESCO tem como intuito discutir sobre a importância de conscientizar todos os países sobre a necessidade da preservação dos oceanos. “A comissão oceanográfica intergovernamental da UNESCO está coordenando esse processo globalmente e cada país tem liberdade de desenvolver esse projeto”, afirma Glauco Kimura, Oficial de Projetos do Programa de Ciências Naturais da Unesco.
No Brasil, o comitê gestor do projeto liderado pela UNESCO é formado por 15 instituições, entre elas ongs como a Rare, a Fundação Boticário para Proteção da Natureza e a Confrem. Entretanto, nem todas as instituições e empresas conseguem enxergar a importância da Década. “Tivemos um envolvimento maior de alguns governos e das universidades. Um dos nossos objetivos é atrair as empresas da chamada economia azul, que são as empresas que dependem exclusivamente dos mares como portos, transporte aquaviário, pesca, petróleo”, ressalta Glauco. Os oceanos possuem uma riqueza que equivale a quinta economia mundial, por isso o envolvimento do setor industrial é de suma importância. “Queremos fortalecer a pesquisa e os investimentos sustentáveis dos oceanos no Brasil”, enfatiza.
Apenas 1% do investimento em ciência no mundo é destinado a pesquisas oceânicas, de acordo com o último Relatório da Ciência Oceânica Mundial. Um dado alarmante e que preocupa cientistas que olham com atenção e preocupação para a situação atual dos oceanos. “Precisamos de mais investimento em ciência oceânica. O homem conhece mais sobre a superfície da Lua do que os oceanos, e isso é inaceitável”, contextualiza Glauco.
A médica veterinária que trabalha com animais marinhos Rafaelle Monteiro relata que a relevância desta série da ONU também é passar a informação para as pessoas, sobre todos os prejuízos desse problema. “Trabalhando com educação ambiental, divulgando a importância de estudar e preservar os oceanos e o ecossistema que está ali. Além de divulgar para a sociedade, alertar os órgãos federais, comprovando cientificamente que se não melhorarmos as condições do oceano, lá na frente não vamos conseguir reverter o quadro”, diz.
José P. Truda, ambientalista.
MAR DE PLÁSTICO
Praticidade e comodidade, duas coisas que o plástico proporciona ao nosso dia a dia e são muito valorizadas na vida moderna. Mas a que preço? O material leva cerca de quatrocentos anos para se decompor na nature
za. E, todos os dias, 890 toneladas de plásticos são despejadas no mar brasileiro. Parte desse volume de lixo é ingerida por animais marinhos, e outra parte se decompõe em fragmentos, se tornando microplásticos que vão parar dentro de peixes de todas as espécies, incluindo aqueles que são ingeridos pelos seres humanos, o que faz com que cheguem à nossa alimentação com consequências ainda desconhecidas a nossa saúde.
Rafaelle trabalhou em instituições que fazem monitoramento de praias e resgate e reabilitação de animais encalhados. Ela conta que a ingestão de resíduos antrópicos por animais marinhos é a causa de muitos encalhes. “Naqueles animais que já são encontrados em óbito, fazemos a necropsia, na qual acabamos encontrando esses resíduos. Ou animais que encalham vivos e durante a reabilitação excretam o lixo junto das fezes. É muito comum, principalmente nas tartarugas marinhas. E o plástico é o principal resíduo”, conta.
Estima-se que aproximadamente 70% de todo o plástico produzido no mundo vai parar no mar. “Conversando com mergulhadores e biólogos que trabalham na área, eles afirmam que podemos encontrar plástico em todos os cantos do planeta. Os nossos oceanos não podem ser uma grande lata de lixo”, reforça o pesquisador Glauco Kimura.
NEM SEMPRE É O QUE A GENTE ESPERA
“Quando ia me formar em Biologia, achava que ia trabalhar com insetos nos parques e praças de Curitiba, acabei montando um projeto para ir para Antártida, tempos depois, pela PUCPR. Foi quando cheguei lá, àquele fim do mundo, e encontrei lixo, redes de pesca e até latinha de refrigerante, que eu vi que o oceano precisa de ajuda. E a minha vida mudou”, desabafou Carlos José Gomes, professor da área de Gestão Ambiental da PUCPR. Depois de sua experiência, ao voltar ao Brasil, ele começou a se aprofundar na situação da costa brasileira, principalmente no litoral do Paraná.
Os resultados que obteve com a busca deixaram Gomes inconformado. Segundo ele, além de toda a poluição que afeta a costa brasileira há anos, o que é inaceitável é a falta de políticas públicas preocupadas com a preservação e renovação dos mares brasileiros e, pior ainda, a existência, alguns anos atrás, de um Ministério da Pesca. “Temos pescadores aqui no litoral, que cercam tainhas com seus barcos e jogam dinamite, matando todos os tamanhos de tainha. A pesca de camarão que tanto ouvimos falar, é, na verdade, uma pesca predatória, coloca-se uma rede no fundo do mar trazendo tudo que você imaginar, de uma única vez”.
Segundo Gomes, o maior motivo para os mares estarem comprometidos como estão hoje, é a desinformação. Por isso, para ele, iniciativas como a da ONU de criar uma década de pesquisa e conscientização sobre o oceano
Carlos José Gomes, biólogo.
é tão importante, por mais que, em sua opinião, a organização devesse ser muito mais agressiva. “A gente sempre viu o oceano diferente, como aquela coisa que não acaba nunca. Mas, se o mar continuar como está, nos próximos 50 anos teremos um massacre sobre os oceanos. Temos que conscientizar as pessoas sobre eles e promover mais estudos para adquirirmos mais conhecimento científico”.
E uma das formas mais incríveis de conscientizar sobre o assunto e instigar a população é através de séries e filmes. Assim como no documentário Seaspiricy, a UNESCO tem em mente a divulgação de uma websérie voltada a conhecer mais sobre os oceanos que será implementada em escolas de todo o país. “Junto com a Unifesp e o projeto Maré de Ciência, a websérie terá 50 capítulos e duas temporadas, como uma série da Netflix mesmo, e cada capítulo vai abordar uma área diferente do oceano”, comenta animado Glauco Kimura. O conhecimento precisa chegar aos pequeninos, pois eles podem reverter a situação em que vivemos atualmente.
A verdade é que o pulmão do mundo não é verde e terreno como as florestas que temos em mente, é azul e concentra em suas águas as maiores produtoras de oxigênio do planeta: algas marinhas. Sozinhas, elas são responsáveis pela produção de 54% do oxigênio do mundo, segundo dados do Instituto Brasileiro de Florestas.
Gomes destacou também sobre outra função que também caracteriza os oceanos como o pulmão do mundo, a sua função de grande captador do gás carbônico que circula na atmosfera. Mas, de acordo com ele, a grande poluição que invade as águas marinhas ameaça o cumprimento desse papel tão fundamental no “corpo” da Terra.
“Os oceanos estão recebendo todo ano cerca de 8 milhões de toneladas de plástico. Não só de plástico, mas de tudo, plástico é mais comentado pois dá ibope. É muito triste você ver que as pessoas não cuidam nem da mata que está diante delas, aí eu penso, uma pessoa dessa vai se preocupar em cuidar do oceano? Claro que não! Temos que entender que cada um é um habitante do planeta Terra, ela é a sua casa. E aí eu pergunto, você não vai cuidar da sua casa para seus filhos, netos e outras gerações futuras?”, questionou Gomes.
E a mata tem um papel muito importante na preservação dos oceanos. Como a restinga, que é um ecossistema costeiro que faz parte do Bioma da Floresta Atlântica, e serve como proteção a muitos animais, inclusive os ameaçados de extinção, que usam a vegetação como abrigo.
A restinga é um berçário de vida marinha, as tartarugas precisam deste espaço para colocar seus ovos. “Pequenos filhotes de tartarugas são muito afetados pela luz. Eles veem os postes elétricos, e, achando que é o sol, que é a referência deles, acabam indo em direção à cidade ao invés do mar. É isso que acontece quando um litoral não tem restinga”, relata Juliane Nonato,
bióloga e presidente fundadora do Instituto Pró-Restinga, de conservação da fauna e flora da restinga e manguezal do litoral paranaense.
A especulação imobiliária coloca as restingas em ameaça. “As pessoas querem morar na beira da praia, encostadas no mar, querem o calçadão para caminhar, e para isso precisam tirar a vegetação. E nós temos uma contradição porque as restingas são áreas de proteção permanente, mas se for para beneficiar a população, elas podem ser retiradas”, diz Juliane. E as construtoras se aproveitam dessa brecha na legislação, colocando em risco essa área que deveria ser preservada.
ESPERANÇA PARA O FUTURO?
Os oceanos passaram por muitas mudanças com o aquecimento global e com a caça predatória das baleias, mas é possível enxergar uma mudança significativa. Em 4 décadas de estudo foi possível observar de perto algumas das consequências da irresponsabilidade de alguns governos, é o que conta José Palazzo Truda Júnior, fundador do Projeto Baleia-Franca e ativista ambiental. O esforço que os pesquisadores têm feito durante décadas está sendo capaz de mudar essa realidade. “Nós estamos vendo as baleias retornarem como nunca pensamos que fosse possível, ainda mais as baleias azuis, as que chegaram mais perto de uma extinção pela caça indiscriminada”.
Por outro lado, a sobrepesca tem chamado a atenção dos pesquisadores, principalmente a pesca dita artesanal, quando é feita sem qualquer controle e que pode causar muitos danos. Na pesca dessa modalidade, não acontece apenas a captura direta das espécies que são alvo, mas também a pesca incidental de espécies vulneráveis ameaçadas como tartarugas, tubarões e até mesmo albatrozes.
Segundo Truda, grandes mudanças estão ocorrendo no mundo inteiro a favor do planeta e da biodiversidade. O motivo para toda onda positiva de ações, segundo ele, é a tomada de consciência por parte dos governos, indústrias e empresários de que se os oceanos forem comprometidos, seus trabalhos serão comprometidos. E para continuar trabalhando, a conservação da natureza torna-se uma exigência. Infelizmente, como de costume, essa onda positiva está atrasada no Brasil.
Segundo o ambientalista, ela ainda está longe da nossa realidade pelos próximos pelo menos 30 anos. “É inacreditável que eu ainda tô lutando hoje, em 2021, as mesmas batalhas que eu lutava em 1968 quando entrei pro movimento ambiental. Ainda estamos lutando com o governo federal que não se interessa em transformar a pesca em algo mais sustentável, com prefeitos que continuam derrubando as áreas de preservação urbana porque não acreditam nas áreas naturais que restam e não entendem que aquilo é um patrimônio inestimável da cidade. Sem falar que é o equipamento indispensável para a sobrevivência das pessoas no meio urbano”.
Mesmo sentindo de perto todas as mudanças que acontecem no fundo do oceano, José se diz otimista e acredita que a resposta para todos esses problemas está nas gerações mais novas. “Está surgindo uma nova geração de
José Palazzo Truda Júnior
José Truda em visita ao Parque Marinho de Bonaire, Caribe Holandês, 2004.
políticos, empresários, pesquisadores e de cidadãos com uma visão de mundo diferente, muito mais consciente sobre o que está acontecendo e disposta a mudar hábitos, a participar da vida política e fazer com que os oceanos sobrevivam”.
Entretanto, segundo Gomes, o crédito dessa mudança é dos próprios jovens. “É muito triste você ver as pessoas mais velhas, os professores, os doutores, desestimulando os mais jovens a praticar cidadania com o seu conhecimento acadêmico científico. Então, eu hoje vou a eventos e converso com pessoas mais jovens com a única e exclusiva intenção de colocar minhoca na cabeça delas”.
A boa notícia é que as minhocas já estão sendo implantadas. É o que garante Rafaelle Monteiro. Seu filho Luca, de apenas 8 anos, já participa desde mais novo com a mãe em atividades ligadas ao mar e sua preservação. “Quando meu filho nasceu,eu já trabalhava na área de marinhos. Era impossível ele não gostar também. Sempre que vamos na praia, ele recolhe lixo e fala com as pessoas sobre a importância dessa prática. É muito importante conscientizar as crianças sobre a preservação da natureza, elas devem ser nosso foco principal porque aprendem muito mais rápido. E inteirar as crianças é muito mais fácil porque elas não têm pensamento formado sobre as coisas, diferente dos adultos”, explica Rafaelle.
Também apaixonado pelos oceanos, Luca é surfista profissional e já conquistou diversos prêmios em categorias infantis de surf em Sergipe. Com grande influência nas redes sociais, ele também mostra sobre a rotina marinha da família aos seus seguidores, isso quando não está juntando lixo na praia e participando de mutirões de coleta. Com apenas pequenas ações que estão ao seu alcance, Luca contribui com a preservação do planeta e serve de exemplo para o público infantil de como podemos transformar nossa realidade em oportunidades que estão bem à nossa frente.
Rafaelle Monteiro
Participação Luca Messenger em multirão para colher lixo na praia em Aracaju - SE.
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