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Nem mortadela nem gado

Os fenômenos da política brasileira atual se tornaram reflexo de uma polarização histórica-social

Bruna Colmann Brunna Gabardo Isadora Deip Sabrina Ramos

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Fanatismo. É um substantivo masculino que remete à dedicação religiosa obsessiva. Por extensão, é uma concordância cega relacionada a um sistema ou doutrina; dedicação a alguém ou algo; paixão. É o estado psicológico de fervor excessivo e persistente por qualquer coisa ou tema, sendo perigoso em relação à certeza absoluta de suas verdades.

A primeira vez que muitos moradores da capital paranaense ouviram falar na palavra “fanático”, pode ter sido relacionado a torcida organizada de futebol do Club Athletico Paranaense Os Fanáticos (TOF). Essa interação entre torcedores acaba se transformando em grupos com uma vontade maior de apoiar o time e de fazer a diferença dentro dos estádios. Na política, não são grupos, e sim pessoas, que até pouco tempo estavam completamente isoladas. Pessoas que se sentem particularmente ultrajadas por determinadas mudanças e encontraram uma linha de transmissão unificando esses grupos.

O político acaba sendo um beneficiário: ele se aproveita de uma característica social, do ponto de vista estrutural. Mas o fanatismo se aplica na situação brasileira atual?

Segundo a historiadora Andrea Slemian, especialista em História Política

e do Direito, crises tendem a criar polarizações e a necessidade de um senso de comunidade, como em bairros, igrejas e clubes: lugares e pessoas com ideias semelhantes às suas. Desse modo, formando diferentes fenômenos de identificação, e assim também funciona na política.

Essa dinâmica foi ampliada pela internet – por sites que abastecem pontos de vista ideológicos particulares, fóruns de interesses específicos e pelas redes sociais, principalmente Facebook, Twitter e WhatsApp. A participação do novo “torcedor”, amplia o cenário político em um tipo de “rachadura” divisora de opiniões, um combustível cada vez mais inflamável.

Ambos os fenômenos, ligados ao ex-presidente Lula da Silva e ao atual presidente Jair Bolsonaro, possuem uma conexão emocional com o passado. No bolsonarismo, o conservadorismo é presente, agregando pessoas que apoiam o governo militar e o Golpe de 1964. No caso do petismo, o partido foi um adepto da luta contra o regime militar, uma raiz profunda em movimentos populares que se organizaram durante a década de 1970.

Para o Brasil, entre 1964 e 1968, a memória coletiva guardou o radicalismo e o teor político dos discursos da época como principal característica. Era difícil ser indiferente, discutia-se nas universidades, nas assembléias e nas passeatas. Isso é visível devido a um forte movimento de contracultura por parte dos jovens que se colocavam contra velhos hábitos. Temendo a ameaça esquerdista, discursos que se escutavam antes ainda ecoam nas discussões políticas: “São doutrinados pelos professores de história. Seguem a linha de Marx”, explicada pelas raízes sociais e não pela política.

Eleitores bolsonaristas normalmente são apelidados de “gados”, entendendo que estas seriam pessoas que apoiam cegamente o presidente. Já os petistas e lulistas são chamados de “mortadelas” pois em manifestações de esquerda os organizadores costumavam entregar lanches para os manifestantes, sendo o principal deles pães com mortadela. Segundo Andrea, o fenômeno “populismo” é recorrente na trajetória política brasileira. Os discursos de um líder populista falam diretamente com a população, provocando sentimentos de identificação entre o eleitorado e seus respectivos candidatos.

O governo de Getúlio Vargas é mencionado por ela como uma expressão do populismo no Brasil. “Mais do que um governo, a Era Vargas representou a personificação de um líder político”, explica. A ascensão ao poder do ex-governante foi consequência da Revolução de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e impediu a posse do presidente eleito, Júlio Prestes.

A historiadora aponta que o termo “populismo” é utilizado para casos correlatos, como o peronismo - movimento político que surgiu na Argentina na década de 1940, baseado nos ideais de Juan Domingo Perón. Presidente do país por duas vezes, Péron aumentou o contato com sindicatos e proporcionou benefícios à classe trabalhadora. Andrea destaca a importância de separar práticas populistas de atitudes ligadas ao fanatismo político. “O termo ‘populismo’ faz com que pessoas desavisadas o confundam com ‘fanatismo’, mas não acho que seja a mesma coisa”, afirma. Ela acredita que um líder populista nem sempre vai manejar as características relacionadas ao fanatismo político.

Apesar de regimes autoritários, como nazismo e fascismo, se iniciarem a partir da configuração de um herói, eles não necessariamente estão atrelados à noção de populismo. “Em geral, no século XX, o ‘populismo’ serviu para ideologias mais conservadoras de direita, porque apelavam mais a identificação com o líder, uma coisa emotiva. No entanto, o termo também caracteriza governos como o de Lula e de Kirchner, na Argentina, que não estão vinculados à forças conservadoras”, explica a historiadora.

Além da polarização ser o reflexo de uma crise, é um fenômeno recorrente na história. O Brasil surge como nação a partir disto: no momento da independência do país, haviam aqueles que colocaram-se contra as cortes de Lisboa, e os que apoiaram a não independência. No sistema democrático, a polarização política não representa uma ameaça. O conflito na política é natural e é fundamental que ele exista no ambiente político. Democracias sólidas são polarizadas politicamente. Por exemplo, a democracia dos Estados Unidos é estruturada por dois partidos ideologicamente opostos (Republicano e Democrata), e que disputam há mais de um século.

O posicionamento do eleitorado brasileiro reflete a formação estrutural do país. Mesmo com a existência de grandes tendências e movimentos políticos “rivais”, a maior parte dos eleitores ainda prefere seguir um outro caminho. De acordo com um estudo do instituto Paraná Pesquisas realizado em março de 2021 sobre o lulismo e o bolsonarismo, 27,6% dos eleitores entrevistados se consideram bolsonaristas; 22,3% se declaram lulistas e 46,3% dizem não fazerem parte de nenhum dos dois.

Os especialistas divergem quanto à natureza da polarização no país hoje. O cientista político Emerson Cervi identifica o que ocorre no Brasil como uma polarização social. Há um grupo majoritário de homens brancos heterossexuais católicos que se comportam como uma minoria social, o que é responsável pelo conflito social que se reflete na política. “Quando você tem uma minoria oprimida que se revolta ou se levanta contra a maioria, você tem um efeito na sociedade, que é muito mais fraco ou menos visível. E o que nós temos hoje é uma maioria social se comportando como minoria e é óbvio que você vai ter um conflito muito mais exacerbado”.

Segundo Cervi, a polarização política manifesta-se a partir de uma consistência ideológica, o que não existe no eleitorado brasileiro. Ele observa que há uma disputa de modelo de sociedade, por exemplo uma sociedade progressista ou conservadora, e uma “projeção afetiva”. Ou seja, não é propriamente a política a raiz da polarização, as pessoas assumem po

“Os dois apostam nessa lógica de colocar o eleitorado diante de uma escolha polarizada. ”

Elizabeth Balbachevsky, cientista política

sicionamentos específicos e fazem uso da política para justificar a divergência em relação ao outro, na sociedade.

O cientista político também explica que não é possível estabelecer uma relação entre lulismo e bolsonarismo do ponto de vista político, pois o lulismo surge em resposta às políticas públicas do governo Lula, enquanto o bolsonarismo nasce por outra forma de identificação. Somente após o fim do governo Bolsonaro, quando houver uma parcela significativa da população que se identifique e defenda o resultado de tais políticas, é então possível categorizar o bolsonarismo como uma das correntes políticas do país.

Para a cientista política Elizabeth Balbachevsky existe uma polarização política forçada, que não é expressivamente do eleitorado em si, mas da dinâmica da competição eleitoral. Estimular essa polarização é conveniente para dois sujeitos distintos, pois existem fortes bolsões de rejeições - que nasceram em decorrência de eventos recentes como a Lava Jato. Além disso, possíveis lideranças de outros partidos, capazes de mobilizar o centro e se fortalecer, configuram uma ameaça para a consolidação de tais candidaturas. “Os dois apostam nessa lógica de colocar o eleitorado diante de uma escolha polarizada. Para o PT, a grande chance dele ganhar é o Bolsonaro como adversário. E para o Bolsonaro, a grande chance dele ganhar é ter o PT como adversário”, comenta.

No contexto brasileiro, Elizabeth relembra o processo de impeachment de Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016. “O Bolsonaro surge no cenário político há muito tempo, mas é com o impeachment que ele emerge como uma alternativa de coalizão de determinadas forças, que vão investir em sua figura”, explica.

De acordo com a historiadora Andrea Slemian, Bolsonaro é visto como alguém capaz de unir bandeiras conservadoras, religiosas e moralizantes, como a questão da Escola sem Partido e do movimento pró-ditadura. Mais recentemente, ele se associa a pautas negacionistas, em um movimento que nega a eficácia da vacina contra a Covid-19. “Isso poderia se aproximar a uma ideia de fanatismo, pois um grupo de pessoas é unido em prol de uma mesma crença”. Andrea Slemian explica que essa questão fanática e anticiência é observada em outros personagens políticos ao redor do mundo, como no ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no dia 15 de abril, rejeitar o recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra a decisão que anulou as condenações de Lula. O ex-presidente havia se tornado réu na Operação Lava Jato, em Curitiba, e a decisão do ministro Edson Fachin mandou o caso para a Justiça do Distrito Federal. Com a rejeição do recurso, Lula permanece elegível para as eleições presidenciais de 2022.

Andrea acredita que as campanhas para o próximo ano vão se polarizar entre o lulismo e o bolsonarismo, mas reforça as histórias e a defesa de pautas de cada um. “Claro que, no final, você vai ter campanhas que exploram a personificação, mas as trajetórias são bem diferentes”, relata Andrea.

Um dos fatores indicados pelo cientista político Emerson Cervi, para explicar a ascensão do bolsonarismo, é uma exaustão perante ao modelo de democracia brasileiro, que foi 20 anos pautado pela direção de dois partidos políticos: PT e PSDB, até 2018. Aliado a isso, ele aponta a criminalização da política. “Ela é consequência da forma como a Operação Lava Jato se deu. Não acho que operações judiciais para combater a corrupção devam ser cri-

ticadas ou estar ausentes da agenda política, mas o problema da Lava Jato foi a forma como ela criminalizou a política, o que contribuiu para o esgotamento do modelo vigente”.

O cientista também considera um terceiro aspecto, que contribuiu para o crescimento do bolsonarismo. “A crise econômica de 2008, no Hemisfério Norte, chegou para nós a partir de 2013, gerando um ambiente de insatisfação, contrariedade e insegurança social”. Cervi acrescenta que Bolsonaro representou um “porta-bandeira” de determinadas características sociais do Brasil, como o racismo estrutural, a homofobia e o machismo.

A RELAÇÃO COM A POLÍTICA

Com a falta de interesse em se informar em um nível básico sobre tópicos que afetam suas vidas, grande parte dos cidadãos brasileiros abdicam de ter controle sobre esses assuntos, e acabam por gerir os próprios prejuízos sem ter quem os represente de fato. A vice-presidente regional sudeste da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP), Maria Aparecida Cunha Malagrino, pontua que o imaginário das crianças e adultos é construído historicamente a partir de figuras heróicas, cujos feitos épicos são repletos de narrativas poderosas com a finalidade de superar obstáculos cotidianos. Ela acredita que a construção de heróis políticos se relaciona com a tendência que as pessoas possuem de transferir as responsabilidades desde pequenas. “Eu penso que alguns indivíduos preferem ser tutelados o tempo todo. Primeiro é com os pais, depois com os professores e depois com os políticos.”

Isso tudo, atrelado a um sentimento de desconfiança das gerações anteriores em comparação com as de agora, a falta de memória ou a memória contábil errada, a indignação e o esgotamento, acaba justificando a situação brasileira atual. De modo semelhante, vale ressaltar a influência das narrativas midiáticas e das fake-news no comportamento dos brasileiros.

Maria Aparecida acredita também que sentimentos exagerados que alguns eleitores criam por seus candidatos são tipos de comportamentos desenvolvidos a partir de crenças e valores particulares. Essas atitudes, segundo ela, podem causar problemas nas relações pessoais do indivíduo. “Rupturas estão acontecendo no cotidiano das famílias, nas relações de trabalho, nos atendimentos e serviços, visto que as pessoas podem deixar de frequentar determinados lugares por existir alguém ali com uma ideologia diferente das delas. Isso também afeta aspectos mais específicos, como a escolha de uma cor. Se a cor de alguma roupa ou objeto for vermelha, verde ou amarela, por exemplo, a pessoa pode sentir um impedimento, repulsa ou raiva por relacionar aquilo a algum partido político contrário ao seu.” A representante da ABPP comenta ainda que é importante que as pessoas que possuem heróis dentro da política tentam cultivar relações saudáveis com seus familiares e amigos. Para isso é preciso compreender que aquilo que nem sempre aquilo considerado por alguns como o ideal, o correto para a vida em sociedade, será necessariamente aplicável para toda a humanidade. Portanto, o momento pede prudência e lucidez.

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