A Sirene Ed. 39 (Junho/2019)

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A SIRENE

PARA NÃO ESQUECER | Ano 4 - Edição nº 39 - Junho de 2019 | Distribuição gratuita


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A SIRENE PARA NÃO ESQUECER

Junho de 2019 Mariana - MG

Aconteceu na reunião ATINGIDOS(AS) FAZEM MANIFESTAÇÃO 13 de maio, Barra Longa

A comunidade se reuniu para reivindicar, dentre outros pontos, a retirada de todas as famílias das casas que estão em situação de risco; o reconhecimento de pescadores, garimpeiros e das 11 famílias que já têm exames positivos para intoxicação por metais pesados para que tenham direito ao cartão de auxílio financeiro emergencial. Na data, a Fundação Renova planejava fazer uso de caminhões pesados para um simulado na cidade, na tentativa de se eximir da culpa pelas casas que trincaram depois do trânsito intenso. Ricardo Nascimento (morador de Barra Longa): A Renova quer provar que nós não temos dano nenhum, que não fomos atingidos. É claro que eu tenho direito. Nós temos nossos direitos. Eles vão ter que pagar pelo erros que eles cometeram, que é tirar todo mundo da sua casa, tirar o pessoal da sua comunidade e hoje em dia vem falar que não somos atingidos. Quer provar o que pra gente mais?

DESFILE DA LUTA ANTIMANICOMIAL 17 de maio, Mariana

O desfile fazia parte da programação do V Seminário de Saúde Mental de Mariana e protestou contra tratamentos em manicômios, métodos que ferem os direitos das pessoas e, também, contra as mineradoras. Maíra Almeida Carvalho (Equipe Conviver): Para enfrentar o projeto político atual que apresenta uma onda de retrocessos nas mais diversas áreas: o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), da Universidade Pública, os investimentos em leitos psiquiátricos e eletrochoque, os retrocessos nas políticas de álcool e drogas, dentre outros, a Luta Antimanicomial vem às ruas enfrentar e resistir, com alegria, e de mãos dadas contra as correntes, para saudar a diversidade e a diferença. Nesse contexto o município de Mariana não poderia deixar de pautar os impactos da mineração na área da saúde. O município conta com a presença da Equipe Conviver, pioneira na construção do cuidado em saúde mental no contexto de resposta ao desastre-crime da Samarco, que vem acompanhando os(as) atingidos(as) que sofreram deslocamento forçado dos seus territórios.

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AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE REASSENTAMENTO 23 de maio, Mariana

A disputa entre MPMG e advogados(as) das empresas foi mediada pela juíza Marcela Oliveira. Contou com a participação de atingidos(as), representantes da Cáritas Regional Minas Gerais e, do outro lado, representantes da Fundação Renova, e tratou sobre o atraso nas obras de reassentamento. A Justiça manteve o prazo limite de 27 de agosto de 2020 para a entrega dos reassentamentos, assim como a multa de um milhão de reais por dia de atraso. Outra pauta levantada pelos(as) atingidos(as) foi da liberação de recursos para a entrega da Matriz de Danos (realizada pela Cáritas), que garante a contraproposta dos(as) atingidos(as) nas negociações das indenizações. As empresas se negam a liberar o recurso. Ao final da audiência, os(as) atingidos(as) manifestaram contra o atraso dos reassentamentos e exigiram o repasse de recursos para a Matriz de Danos dos Atingidos. NOTA DE PESAR

É com grande pesar que nós do Jornal A Sirene e membros das comunidades atingidas, lamentamos a morte de Antônio José da Silva, filho de dona Dinha e João Banana, no dia 01 de Maio de 2019, em Paracatu de Baixo. Antônio nos deixou muitas lições de amor, respeito e humanidade. Encantava pelo jeito alegre e humilde de ser. Que Deus possa confortar o coração de cada um que sofre com a perda irreparável e que dê forças para atravessar esse momento de tanta dor. Muito respeitosamente, prestamos nossas condolências aos familiares e amigos(as).

EXPEDIENTE Realização: Atingidos(as) pela Barragem de Fundão, Arquidiocese de Mariana | Conselho Editorial: Expedito Lucas da Silva (Kaé), Genival Pascoal, Letícia Oliveira, Juçara Brittes, Pe. Geraldo Martins, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva | Editoreschefe: Genival Pascoal e Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Larissa Pinto | Editor de Texto: Wigde Arcangelo | Diagramação: Larissa Pinto | Reportagem e Fotografia: Joice Valverde, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Simone Maria da Silva e Tainara Torres | Apoio: Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Lei.A Observatório | Impressão: Sempre Editora | Foto de capa: Tainara Torres | Tiragem: 3.000 exemplares | Fonte de recurso: Termo de Ajustamento de Conduta entre Arquidiocesse de Mariana e Ministério Público de Minas Gerais (1ª Promotoria de Justiça de Mariana).


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Foto: Larissa Pinto

Qual é a voz do(a) atingido(a)? O Jornal A Sirene surgiu, em fevereiro de 2016, para garantir o direito à comunicação, à informação e à representatividade para os(as) atingidos(as) pelo rompimento da Barragem de Fundão, da mineradora Samarco (Vale e BHP Billiton). Em julho de 2017, a Fundação Renova também criou um jornal. Não reconhecemos essas publicações porque entendemos que foram projetadas para fazer publicidade para a própria Renova/empresas. O Jornal A Sirene é um veículo de resistência e luta. Nosso único compromisso é criar um espaço que permita que as vozes dos(as) atingidos(as) ecoem. Por Maria Aparecida Luiz (Dada) e Maria do Carmo D’Ângelo Com apoio de Tainara Torres e Wigde Arcangelo

Eles não falaram que eram da Renova. Assim como eu dei a entrevista para eles, posso dar a entrevista para vocês, mas o problema é que não se identificaram, só depois. Isso é uma coisa que tem de ser feita. Qualquer coisa que for fazer, tem que se identificar. Dizer “eu sou repórter da Sirene” ou, no caso deles, da Renova. Maria Aparecida Luiz (Dada), moradora de Paracatu de Baixo Entregaram aqui em casa um jornal da Renova com uma foto dos meus pais na varanda da casa que a fundação reconstruiu no meio do barro. A imagem estava mostrando para as pessoas que os meus pais estavam super felizes, que a casa era uma maravilha, quando, na verdade, a casa nem construída para idosos foi. O arquiteto que projetou a casa ou é incompetente ou nunca fez uma casa para idosos porque, se você ver o tanto de escadas que tem na casa... Eles não falam a verdade, os meus pais estão no meio da lama tóxica, cheia de metais pesados, e a Renova só mostra aquela fachada bonita. Para a Fundação, está uma maravilha. Essa é a diferença, os jornais da Renova são cheios de máscaras e mentem, mas o Jornal A Sirene expõe a realidade que a gente vive sem rodeios e fala a verdade. Esse é o nosso jornal, o jornal dos atingidos. Maria do Carmo D’Ângelo, moradora de Paracatu de Cima

Às vezes, algo que a gente não está sabendo, fica sabendo pela Sirene. Eu acho bom. Sempre vejo mais o da Sirene. O da Renova não tenho como falar se é bom ou se é ruim porque não acompanho. Maria Aparecida Luiz (Dada), Paracatu de Baixo No dia em que a funcionária da Renova me entregou o jornal e falou que era a voz do atingido, eu falei para ela: “O jornal de vocês é a voz do atingido? Então você vai fazer o seguinte: vai falar com o seu diretor lá que eu sou atingida e quero a minha voz nesse jornal. Quero que ele fale que a gente tem estudos de laboratórios independentes comprovando que a lama de rejeitos está contaminada por metais pesados que são prejudiciais à saúde humana”. É isso que os atingidos estão vendo, não é estudo que eles fazem dizendo que não tem nada, enquanto vários laboratórios independentes mostram que tem alta concentração de metais pesados, como o cobre, chumbo, arsênio, níquel, entre outros, que são prejudiciais à saúde humana. Passei isso para ela, nunca mais eles voltaram aqui para entregar jornal. Então, quem está dizendo a verdade? Maria do Carmo D’Ângelo, moradora de Paracatu de Cima


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Direito de entender

Restituição, compensação e... confusão

Por Guilherme de Sá Meneghin, Promotor de Justiça

Geralmente, expressões jurídicas causam desorientação em pessoas que não são da área, uma vez que não se encaixam no senso comum. Um exemplo clássico é a palavra “defeso”. Dizer que “é defeso portar armas de fogo” parece significar que é permitido portar armas de fogo, mas “defeso” é uma palavra sinônima de “proibido”. Logo, a frase acima pode ser traduzida como “é proibido portar armas de fogo”. No contexto do crime/desastre da Samarco, em Mariana, os(as) atingidos(as) foram arrastados por um redemoinho jurídico, com audiências, processos, terminologias, autoridades, diretrizes, normas, leis, fóruns, decretos, contratos, ministérios... Daí o natural espanto dos(as) atingidos(as) que, a cada dia, enfrentam o desafio de conhecer seus próprios direitos. Por isso, a coluna Direito de Entender serve para auxiliar os(as) atingidos(as) a obter conhecimento jurídico de maneira simples. E, aproveitando os questionamentos dos(as) próprios(as) atingidos(as), abordaremos a distinção entre restituição e compensação. No âmbito do reassentamento, a restituição pode ser definida como a equivalência da situação anterior ao desastre com a situação após a reconstrução das comunidades ou a conclusão dos reassentamentos familiares. Se não houver tal equivalência, o(a) atingido(a) terá direito à compensação para, por outra via, receber uma condição igual à que possuía. Assim, a compensação funciona como forma de completar o direito do(a) atingido(a) até alcançar a restituição. Para explicar essa diferença, imaginemos que uma pessoa possui um imóvel de 1.000 metros quadrados atingido pelos rejeitos da Samarco em sua área original: 1) Se o(a) atingido(a) receber uma propriedade de 1.000 metros quadrados no reassentamento, seja coletivo ou familiar, ficará com situação similar à original, não havendo, em regra, prejuízo; 2) Se o(a) atingido(a) receber uma propriedade de 800 metros quadrados no reassentamento coletivo ou familiar, ficará com 200 metros quadrados de prejuízo. No primeiro caso, o(a) atingido(a) estará contemplado(a) pela restituição, não tendo direito à compensação no que diz respeito ao tamanho do imóvel. Já no segundo caso, a restituição foi incompleta, gerando o direito à compensação. Evidentemente, as circunstâncias que conferem direito à compensação não são somente referentes às dimensões dos terrenos, pois as diferenças de declividade do lote, a qualidade do solo, a disponibilidade hídrica e as relações comunitárias podem originar compensações. Além disso, a compensação não precisa ser necessariamente em dinheiro, pois há a possibilidade de benfeitorias (construções e melhorias dentro dos imóveis restituídos) ou até mesmo de receber outros lotes. O Ministério Público, a assessoria técnica coordenada pela Cáritas e a comunidade atingida vêm trabalhando para assegurar compensações justas, visto que a Fundação Renova - trabalhando em nome das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton - apresentou uma proposta deficiente, que frustrou os(as) atingidos(as). Afinal, pagar 70 reais e 90 centavos por metro quadrado de terreno perdido é vergonhoso e tomaremos todas as medidas, inclusive judiciais, para melhorar essa proposta. Portanto, como disse o poeta romano Horário, “a disputa ainda está nas mãos do juiz”, de maneira que a definição dos valores e direitos compensatórios serão decididos pela Justiça, se não houver acordo entre as partes.


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Ilustração: Larissa Pinto

Papo de Cumadres: Opinião:

Dois Vales, o mesmo crime, da mesma vale

As duas comadres, Consebida e Clemilda, tiveram uma alegria muito grande por receber em Barra Longa os(as) atingidos(as) pelo crime da Vale, em Brumadinho. Apesar da dor, puderam sorrir mesmo com lágrimas nos olhos. Por Sérgio Papagaio

- Cumadre Clemilda, eu me peguei pensanu na dor deste povo, desta outra bacia, onde a barrage da vale istorô levanu tantas vida. - Desde quandu a barrage da vale foi istoranu que eu venhu pensanu, nós tá só se dananu é muito crime formadu e outros já se formandu. Óia, em Barão de Cocais tem uma barrage que tá rebentanu, e antes mesmu de rebentá a vida dus atigidus ela já fez piorá. - Agora eu vou ti falá apesá da tristeza que há, eu senti muita aligria de recebê em Barra Longa as visita du povu da outra bacia, onde a mesma vale novamente pixou com regeitu os patrimoniu mais antigus que há, a terra e u sugeitu. - Cumade Consebida é tudu du mesmu jeitu, foram atingidus pelu rejeitu e são tratadu sem u menor respeitu, quandu iscutu ês de Brumadin queixá me faz alembrá du crimi de cá, se eu fechá meus ôio e fô levada pra quarquer lugá das duas bacia e iscutá as queixa dus atingidu eu não saberei dizê onde tô, acá us crime é tão paricidu, e us pobre atingidu das duas bacia, tão sofrenu com os mesmu bandidu. - Este incontru em Barra Longa tem que sirvi para nós uni, pois as diferença que cada atigindu traz seja na cor da pele ou na religião. Negrus, Indius, brancos de Deus, de Oxalá ou de Tupã, faz de nós tudu irmãos e irmãs, e nu final du mixidu, somus todus pelu memu crime atingidus.

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Foto: Tainara Torres

Lutar é nosso direito O artigo 5º da Constituição Federal assegura, a cada um de nós, o direito de nos expressarmos livremente e de fazer reuniões pacíficas em locais abertos. Para os movimentos de luta, as manifestações são instrumentos essenciais e isso não é diferente para os(as) atingidos(as). Manifestar é reivindicar, resistir e, acima de tudo, exigir aquilo que nos é negado diariamente: nossos direitos. Por Aloísio Martins, Cristiane Ribeiro, Edilaine Marques dos Santos e Wenderson Carlos Com apoio de Caromi Oseas (Assessoria Técnica Cáritas), Joice Valverde, Simone Silva e Tainara Torres

Se não nos unirmos, se não segurarmos um no braço do outro, não vamos conseguir nada, porque, aqui em Barra Longa, ninguém consegue nada se não for através da luta. A gente tem de se unir mesmo, chamar toda população de Barra Longa, correr atrás dos nossos direitos. Cristiane Ribeiro, moradora de Barra Longa A Renova só aparece quando tem alguma mobilização feita pelos atingidos, toda vez que fazemos um protesto, eles aparecem. Se não são as manifestações, não somos vistos. Nós atingidos somos considerados um nada para eles. Nas reuniões, eles tentam dialogar, mas acaba não chegando a nada. Eles vêm só pra jogar conversa fora, se não pressionar e cobrar, não fazem o que é devido. Wenderson Carlos, morador de Barra Longa Manifestar é uma forma de mostrar para todo mundo nossa insatisfação e o desrespeito que a empresa nos trata. Porque, pra todo mundo, ela é boazinha, mas a gente só conseguiu o que tem através de manifestação, de não ficar calado. Se a gente ficar calado, não recebe nada, os direitos vão por água abaixo. Edilaine Marques dos Santos, moradora de Bento Rodrigues A luta é incansável, temos de lutar, insistir. Apesar de muitos do nosso povo estarem desanimados, porque é só papo, nós vamos seguir, não vamos deixar a peteca cair. Estamos procurando uma força que tem de ser a nossa luta. Pra nós, é só dificuldade, mesmo tendo direito, eles falam que não temos. Então nós estamos aí, lutando contra eles para trazer o

povo junto com a gente e para vencer, porque o “não” a gente já sabe que vai levar, mas tem de buscar o “sim”. Aloísio Martins e Cristiane Ribeiro, moradores de Barra Longa Eles vão tentar jogar a culpa sempre para cima dos atingidos, pra gente se sentir culpado e parar, deixar eles fazerem o que quiserem, agir da forma deles. Nós não vamos desistir, vamos bater de frente. Eles tiraram tudo da gente, então a gente tira o sossego deles também. Edilaine Marques dos Santos, moradora de Bento Rodrigues É a partir da reivindicação e da manifestação de vontade das pessoas atingidas que o Ministério Público de Minas Gerais e a assessoria técnica da Cáritas atuam e, por isso, todos os direitos conquistados nas negociações extrajudiciais e judiciais são resultado da participação, resistência, persistência e da combatividade das pessoas atingidas. A luta é dos atingidos e, se não fosse por eles, nenhum destes direitos teriam sido conquistados. Até porque sabemos que o sistema de justiça brasileiro é elitista, deslocado da realidade do povo, e é instrumento que perpetua a dominação, defendendo os interesses dos possuidores e criminalizando os despossuídos. Os atingidos e as atingidas pela Barragem de Fundão têm ocupado estes espaços da Justiça e têm reivindicado voz e poder de decisão. Isso é algo que desestabiliza essa estrutura opressora e marca, de uma forma muito bonita, a história do povo daqui. Caromi Oseas, Assessoria Técnica Cáritas


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Foto: Joice Valverde

O museu do crime

Dentre as estratégias de publicidade da Fundação Renova, uma tem localização central na cidade de Mariana e funciona como atração turística. Os(As) visitantes, quando saem, levam a sensação de que sabem o que se passa nas comunidades atingidas e de que a fundação/empresas estão reparando os danos. Nós, que estamos do outro lado e vivemos a realidade, sabemos que o casarão da Renova mente, assim como a fundação. Por Simária Quintão e Maria Carneiro (Lilica) Com apoio de Joice Valverde e Larissa Pinto

Eu nunca tinha entrado para ver isso. É ridículo. A nossa realidade não tá ali, minha comunidade não é representada. A maquete só mostra os lugares mais conhecidos. Não tem a zona rural, pularam Ponte do Gama, falam só de Paracatu, mas não mencionam Paracatu de Cima e Paracatu de Baixo. Falta Bicas, Pedras, Campinas, Borba, Barretos. Comunidades que não tiveram lama no território, como Governador Valadares, são mencionadas e nós não. Lilica, moradora de Ponte do Gama Eu não me sinto bem nesses lugares. Nunca fui visitar e não pretendo, porque não vou ver mentira. Se eu chegar lá e alguém tiver contando uma história pra um turista que é mentira, vou querer contar a verdade e, então, vai ter problema. Todo fim de semana estou em Bento Rodrigues, eu passo em Lavoura. Vejo ao vivo e vejo a verdade. Simária Quintão, moradora de Bento Rodrigues Ali é ponto turístico para mostrar a versão deles. Se eu não fosse atingida e visitasse esse museu do crime, iria acreditar no que tá ali. Se uma pessoa vem de fora para conhecer a história do rompimento da barragem, é o que tá ali. A não ser que ela procure saber mais, mas a maioria não quer saber. Só chega, assiste e vai embora pra casa. Lilica, moradora de Ponte do Gama O casarão, para mim, não tem utilidade nenhuma. Quem vai, fica encantado e acha que está tudo bem. Mauro, outro dia, falou certo, a Renova faz hipnose e ilusionismo, porque ela hipnotiza quem vai lá. Fizeram aquele casarão lindo, gastaram uma grana, se for olhar, ficou maravilhoso igual o marketing deles, mas não beneficia a cidade. Por mim, aquilo não existiria, só

vou lá quando sou obrigada a pegar um documento. Entro com vergonha e medo, porque, só de entrar lá, os outros já falam que você tá indo buscar dinheiro. É humilhante entrar nesses lugares. A empresa não tá me dando nada, ela tem de repor o que me tirou e não vai conseguir repor nem metade. Simária Quintão, moradora de Bento Rodrigues A Renova já tem tantos escritórios pela cidade, não tem necessidade de ter outro aqui. É que o Jardim é um ponto de referência, né? Para nós, atingidos, esse museu não tem serventia nenhuma. Por ser um lugar para os atingidos, devia ter a nossa participação sempre. O dinheiro que eles gastaram com essa casa deveria ir para os atingidos. Lilica, moradora de Ponte do Gama Eles queriam fazer o “Vim Ver”* em Bento Rodrigues. Mauro e eu que barramos porque o “Vim Ver” deles é louco. “Vim Ver” do criminoso? Do assassino? Não! E lá não tem nada que eles fizeram para se ver. As únicas coisas que fizeram foram dois cemitérios enormes, que são os diques S3 e S4. Lá tem restos de seres humanos, de animais, histórias de vidas. Tudo nosso tá ali debaixo. Eu falei com eles: lá no Bento, para mostrar alguma coisa pra alguém, somos nós. A verdade é única e é nossa. Não deixamos ter esse “Vim Ver” lá, porque lá não é deles, é nosso. Simária Quintão, moradora de Bento Rodrigues

* ‘Vim Ver’ é o programa de turismo do crime oferecido pela Fundação Renova/empresas. Leia mais na reportagem “O que eles querem ver?” da edição nº 27 do Jornal A Sirene.

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Por que as barragens r

O rompimento da Barragem de Fundão, sob responsabilidade da mineradora Samarco e com participação das min a população que o método de construção e de fiscalização das barragens não garante segurança às comunidades. D medidas preventivas, mas que ainda não cumprem o papel de evitar que comunidades, memórias, rios, mares e vida

Por Joice Valverde, Larissa Pinto, Tainara Torres e Wigde Arcangelo Com o apoio de Charles Murta (Compdec Ouro Preto), Julio Grillo (ex-Superintendente do Ibama) e Paulo S

Nós temos erros gravíssimos em todo o processo de mineração e barragens. O problema começa na escolha do método de disposição dos rejeitos, que é feita pela própria mineradora sem interferência do Estado e da sociedade. A empresa escolhe uma forma de maximizar o lucro, busca o processo e as condições mais baratas. Para as mineradoras, em nenhum instante, a segurança é importante na escolha do processo. O que eles querem é aumentar o lucro.” Julio Grillo, ex-Superintendente do Ibama As mineradoras precisam de licenciamento ambiental para atuar e, para obter essa licença, é necessário que as empresas apresentem o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), chamados de EIA-RIMA. Esses documentos são análises feitas por empresas terceirizadas, contratadas pelas próprias mineradoras, que dizem como a atividade irá impactar a área a ser minerada. Os estudos são entregues e avaliados pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) e repassados para que o Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) autorize ou não as licenças ambientais.

Se a empresa contratada para fazer o estudo encontra algum problema, a mineradora busca uma outra empresa. Aquela empresa que foi rigorosa, que foi correta, muito provavelmente não será recontratada no futuro. Com isso, eles começaram uma prostituição do mercado de consultoria na área de mineração, porque só vão contratar empresas que serão favoráveis. Esse é o primeiro grande erro. Porque o Estado é quem deveria contratar o estudo ambiental, mas com financiamento da mineração. O segundo erro é como o processo de licenciamento é feito na Semad. Se a EIA-RIMA omite informações problemáticas para o processo de licenciamento, então, o Estado não vai analisar, porque os analistas se atém somente ao material fornecido pelas mineradoras. O que tiver sido omitido não vai ser analisado.” Julio Grillo, ex-Superintendente do Ibama

As mineradoras e o poder de voto O Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), de acordo com a Lei Mineira nº 21.972, de 2016, deve ter representatividade e participação do poder público, da sociedade civil e dos setores de produção minerária, técnico-científicos e de defesa do meio ambiente. No entanto, a sociedade civil tem apenas uma vaga no Conselho. Pessoas de órgãos como o Sindicato das Indústrias Extrativas de Minas Gerais (Sindiextra), conhecido por representar os interesses das mineradoras, fazem parte do Conselho como sociedade civil. Quando o projeto de mineração avaliado pela Semad chega ao Copam, há várias instituições e pessoas que representam os interesses das empresas, o que garante a aprovação de qualquer projeto apresentado pelas mineradoras.

O Conselho está nas mãos das mineradoras. Os representantes do governo compõem 50% dos votos e sempre votam a favor do parecer apresentado pela Semad. Essas pessoas normalmente não têm condições e nem formação para fazer uma análise técnica de um projeto de mineração. Nos outros 50%, que seria a sociedade civil, as empresas têm quase todos os votos. Então, a mineradora apresenta um projeto e ela mesma vota pelo licenciamento, isso é o cúmulo do absurdo. Uma mineradora não poderia votar pela aprovação do seu próprio projeto. Com a formação atual dos Conselhos, não há possibilidade de um projeto de mineração não ser aprovado, por pior que seja, por mais inseguro e insustentável. Depois que o projeto é aprovado, a mineradora constrói a barragem pelo menor preço. E contrata quem vai cobrar mais barato.” Julio Grillo, ex-Superintendente do Ibama Durante a construção da barragem, não há um órgão capaz de fiscalizar o processo e de garantir a priorização da segurança ao invés do lucro. Se o processo de licenciamento e de construção já é falho, depois de construídas, as formas de fiscalização também não dão conta de garantir a segurança da estrutura.


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Foto: Larissa Pinto

rompem?

neradoras Vale e BHP Billiton, evidenciou para Desde 2015, foram implementadas novas leis e as sejam atingidos e modificados para sempre.

Santana (ouvidor da ANM)

Quem fiscaliza as barragens de mineração? As mineradoras contratam uma empresa terceirizada para efetuar o trabalho de auditoria, que consiste na elaboração de um laudo que assegura ou não a estabilidade da barragem, ou seja, garante que ela não apresenta risco para as comunidades ao seu entorno. Porém, há um conflito de interesses quando o laudo mais importante para a segurança da população é elaborado - e encomendado - pela própria empresa.

Primeiro, a própria mineradora é quem deve garantir a estabilidade de suas estruturas por meio de uma auditoria interna com os seus técnicos. Segundo, pela lei, além de fazer sua própria fiscalização, as empresas são obrigadas a contratar um auditor externo a cada seis meses. Tecnicamente, a auditoria externa seria independente, mas a opinião desse auditor não é tão imparcial, já que a própria empresa contrata e faz os pagamentos. Existe uma influência corporativa grande em cima dessa auditoria externa.” Charles Murta, Geólogo da Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (Compdec) de Ouro Preto

É o mesmo problema da EIA-RIMA. Se a empresa não dá o laudo que a mineradora quer, ela troca de empresa, é simples assim. Com isso, ela sempre vai ter uma avaliação positiva. Brumadinho deixou isso extremamente claro.” Julio Grillo, ex-Superintendente do Ibama

A empresa deve detectar algum problema que possa comprometer a estrutura da sua barragem e, pela lei, é obrigada a informar isso à Agência Nacional de Mineração (ANM). Essa informação é passada por meio da plataforma digital do Sistema Integrado de Gestão de Segurança de Barragens de Mineração, o SIGBM.” Charles Murta, Geólogo da Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (Compdec) de Ouro Preto

Depois de Fundão

O SIGBM começou em 2017, depois de Fundão, porque nós verificamos que teríamos de repensar o modelo de segurança. Até o rompimento de novembro de 2015, nós fazíamos inspeções anuais. O sistema nos apresenta por ordem [ranqueamento] quais são as barragens mais perigosas, olhamos e, a partir disso, mandamos nossa equipe a campo. Como temos poucos funcionários - somos em torno de 34 para quase 800 barragens de mineração -, baseamos nossas visitas pelo ranqueamento no SIGBM.” Paulo Santana, Ouvidor da Agência Nacional de Mineração (ANM)

A ANM vai até a barragem para ver se a Lei nº 12.334, de 2010, que estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), está sendo cumprida. A Defesa Civil, assim como a ANM, não fiscaliza a estabilidade das barragens. Nós, defensores civis, atuamos no preparo, proteção e defesa da população por meio de ações de conscientização e emergência.” Charles Murta, Geólogo da Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (Compdec) de Ouro Preto

Esse processo precisa ser completamente alterado, não pode continuar como está.

Todas as barragens de rejeitos, que são por volta de 300, devem ser descomissionadas porque todas representam risco. O risco não está apenas naquelas com alteamento a montante, essas possuem risco maior, mas todas têm de ser descomissionadas. Ao meu ver, isso deve ser feito do maior potencial de dano para o menor.” Julio Grillo, ex-Superintendente do Ibama


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Foto: Wigde Arcangelo

Viver com medo

A cidade de Itabirito é marcada por um histórico de rompimentos de barragens. Em 1986, a Mina de Fernandinho, barragem de rejeitos do grupo Itaminas, rompeu e matou sete pessoas. Em 2014, três pessoas foram mortas com o rompimento de um talude da barragem B1, da Mina Retiro do Sapecado, pertencente à Herculano Mineração. Em 2019, a cidade vive sob a ameaça de um novo rompimento: as barragens Forquilha 1, Forquilha 2, Forquilha 3 e Forquilha 4, da Mina Fábrica, sob responsabilidade da mineradora Vale, colocam Itabirito em estado de alerta. Por Ednéia Moreira, Geralda Maria Martins, Regina Rosa Guimarães e Wagner Guimarães Com apoio de Charles Murta (Compdec Ouro Preto), Larissa Pinto, Tainara Torres e Wigde Arcangelo

A Defesa Civil de Itabirito conta com 16 veículos com sirenes para alerta de rompimento nas Zonas Secundárias de Salvamento (ZSS).

As Forquilhas somam mais de 57 milhões de metros cúbicos de rejeitos e estão localizadas em Miguel Burnier, distrito de Ouro Preto. Hoje, as barragens que estão em nível 3 - nível máximo de alerta - são: Forquilha 1 e Forquilha 3. O rompimento da Barragem de Forquilha 1 comprometeria as Forquilhas 2 e 4, localizadas logo abaixo da primeira. Já a Forquilha 3, localizada ao lado das outras barragens, não comprometeria a estrutura dessas construções, de acordo com o estudo de rompimento apresentado pela mineradora Vale. Em caso de rompimento, a lama de rejeitos chegaria, primeiro, à região rural de Miguel Burnier, na comunidade de São Gonçalo do Bação, e seguiria em direção à Itabirito, passando por Raposos, Rio Acima, Belo Horizonte, Nova Lima, Sabará, Santa Luzia, Pedro Leopoldo, Lagoa Santa, Jaboticatuba, chegaria em Matosinhos e desaguaria no Rio São Francisco. Segundo a Defesa Civil de Ouro Preto, há uma estimativa de que 5 mil pessoas seriam atingidas apenas em Itabirito. Estamos nessa iminência da barragem romper e atingir nosso bairro. Apesar deles fazerem esses programas, rotas de fuga, é uma situação que a gente não sabe o que realmente está acontecendo. Ninguém da empresa veio aqui, nunca falaram nada. Tanto que, para mim, foi uma surpresa essa barragem de Ouro Preto. Ednéia Moreira, moradora de Itabirito O governo tem de tomar uma providência, porque é um absurdo a pessoa viver com medo. Eu tenho 82 anos, fiquei sem dormir, preocupada, achando que, a qualquer hora, poderia explodir uma barragem dessa e a gente ter de sair de casa, perder tudo o que tem. Isso não pode continuar. A gente está velho, não temos sossego para dormir. E a pessoa que não pode andar? Vive com medo? Isso não é vida. Eles têm de tomar uma providência. Geralda Maria Martins, moradora de Itabirito

Para entrar no nível 1 e no nível 2, a Vale nos comunicou, conversamos, eles soltaram na mídia, a população ficou sabendo. Teve tempo e preparo psicológico para soar a sirene. No nível 3, a empresa comunicou à Defesa Civil Estadual, à Agência Nacional de Mineração (ANM) e eles se reuniram secretamente, alheios às Defesas Civis Municipais, quebrando o protocolo previsto no Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM). Já briguei muito em relação a essa falta de informações, porque acho um desrespeito com a população que está dentro das Zonas de Auto Salvamento (ZAS). Charles Murta, Geólogo da Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (Compdec) de Ouro Preto Eu fiquei doente, com depressão, não queria dormir. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que não vai romper nada. Um fala uma coisa, outro fala outra. Vou falar para você: a gente fica com medo, somos pobres, aí vem um mundo de água e, de repente, acaba com tudo. Regina Rosa Guimarães, moradora de Itabirito Tem gente mudando de casa ou querendo mudar, mas eles falam que vão secar as barragens. Caso aconteça o rompimento, acho que vou morrer de paixão por esse lugar, não tem como. O que eles estão fazendo é um crime horrível. Eu nasci aqui. Todo mundo vem conversar aqui, todo mundo me conhece e eu conheço todo mundo. Aqui é o meu lugar e não saio, só se Deus permitir que a barragem estoure, mas tenho fé que isso não vai acontecer. Geralda Maria Martins, moradora de Itabirito Quando nós mudamos a loja para cá, há nove meses, não tinha nada disso acontecendo. Tudo começou após o rompimento em Córrego do Feijão. Se a lama chegar aqui em uma hora e meia mesmo, eu não tenho condição de tirar nem


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Foto: Tainara Torres

"Nasci aqui e não saio. Aqui era o quarto da minha mãe, depois ela abriu essa loja. Foi a primeira loja da rua", Geralda Maria Martins.

metade das minhas coisas da loja. Minha mãe mora em uma área de risco, lá no centro. Ela tem dificuldade para andar, então, eu vou pensar nela primeiro e o que der para salvar aqui, salvou, o que não der, fica. Ednéia Moreira, moradora de Itabirito Dizem que a lama chega em Itabirito em uma hora. Quando a sirene tocar, você sabe se eu vou conseguir sair do lugar de susto? Eu não sei se eu vou correr, salvar meus bichinhos. Meus documentos estão ali, só correr. Fizeram isso com nós, de colocar os documentos em um lugar. Estamos assim, aguardando. Vou tentar levar, pelo menos, as roupas do corpo; os móveis, depois, a gente dá um jeito. Regina Rosa Guimarães, moradora de Itabirito

tinha um inquilino aqui do lado que foi embora por causa da barragem. Para fazer isso, eu vou ter de sair do que é meu para pagar aluguel. O comércio de Itabirito caiu muito, a gente não pode ficar acarretando mais despesas para ir para outro lugar. Você fica naquela sensação que, no nosso país, quem realmente manda são os poderosos, e nós, que não somos poderosos, não podemos fazer nada. A gente trabalha, luta tanto para construir uma segurança e, depois, você vê que não tem segurança nenhuma. O que nós fizemos aqui, a qualquer momento pode ir embora. Ednéia Moreira, moradora de Itabirito Foto: Larissa Pinto

Eu tô com quase 47 anos, e minha mãe, Regina, com quase 80, que sentido tem, pra gente, recomeçar? Que sentido ela vai ter em recomeçar na idade dela? Wagner Guimarães, morador de Itabirito Nós estamos passando por uma que você não sabe se mexe na casa, se compra um móvel, você fica perdido. O guarda-roupa está ali, desmontado, um está sem nada, botei no cômodo, lá no alto. Tá lá dentro de uma caixa d’água, com tudo quanto é roupa de cama que eu não uso, assim, nova, tudo embalada. Os outros falam que, se vier, vai na rua de cima, vai pegar tudo. Eles colocam na cabeça da gente, qualquer coisinha a gente tá acordando de medo. Ouvi dizer que ela está no nível 3, o jornal fala uma coisa, o povo fala outra. Agora, tudo quanto barragem tá correndo risco. Regina Rosa Guimarães, moradora de Itabirito Se a gente soubesse desse risco todo alguns anos atrás, eu jamais teria feito minha loja aqui. Pra que eu ia querer correr o risco? Nunca imaginei que tivesse tanta barragem com tanto perigo aqui. Se eu soubesse, teria procurado outro lugar, não sei nem se seria em Itabirito, talvez fosse para uma outra cidade, talvez até outro Estado, não teria feito nada aqui. Porque a gente tem família, eu tenho filhos, marido, irmãos, tenho a minha mãe. Eu posso vender minha loja e ir embora, mas quem vai querer comprar? Ninguém. A gente

" Moro aqui há 46 anos e só saio daqui em último caso", Regina Rosa Guimarães.


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Ainda esperamos uma indenização justa

Foto: Daniela Felix

Nesta edição, A Sirene resgata a história de Bilu, morador de Guerra, subdistrito de Barra Longa, publicada na edição nº 24, em março de 2018, e mostra como o processo de reparação feito pela Fundação Renova continua falho. As propostas de indenização apresentadas pela fundação/empresas ainda violam direitos e não consideram os modos de vida das pessoas. Por Air Martins Costa (Bilu) Com apoio de Sérgio Papagaio

Os dois pés de limão que eu tinha foram embora na lama, não tem jeito de colher limão mais. Eu tinha pés de mandioca. Hoje, eu tô comprando no caminhão que passa aqui, toda semana, por 4 reais o quilo. Se eu for comprar o que eu colhia, vou gastar uns 1.600 reais. Um pé de mandioca produz cerca de 12 quilos, isso dá 48 reais. Eu colhia uns 400 quilos de mandioca por ano. Eles querem pagar por tudo o que eu perdi, no ano de 2018, só 3.612,90 reais. Eles nunca vão parar de maltratar a gente? Bilu, morador de Guerra Em 8 de janeiro de 2018, a Fundação Renova apresentou à família de seu Air Martins Costa (Bilu) uma proposta de indenização vergonhosa, na qual a um pé de limão em período produtivo seria pago o valor de

4,37 reais. Todas as plantações, seu sítio cheio de lama de rejeitos, seus bens materiais e seus danos morais seguiram nesta mesma lógica de valores, o que totalizou 29.193,25 reais. A recusa dos valores por parte da família levou a uma negociação de um valor mais expressivo, a título de lucro cessante dos anos de 2016 e 2017, já concluída. Agora, a história se repete com Bilu e Maria Macedo Costa (Dorinha), pois a Fundação Renova/empresas oferece, como lucro cessante de 2018, a quantia de 48,66 reais pela mandioca que colheriam o ano todo. Limão, laranja, abacate, dentre outros, foram excluídos da lista de plantações indenizadas com a alegação de que são plantações perenes, que só pagam uma vez. Portanto, já que estas plantas foram mortas pela lama, não produziram mais. Sérgio Papagaio, morador de Barra Longa


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Foto: Larissa Pinto

“Toda ação é política” No dia 2 de junho, foi realizada a Quarta Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce, na cidade de Itabira. O evento religioso também assume caráter político e protesta contra os crimes da mineração em Minas Gerais. Organizado pela Província Eclesiástica de Mariana desde 2016, é composto pelas dioceses de Caratinga, Governador Valadares e Itabira. Na cerimônia, foi divulgado o abaixo assinado contra o alteamento da Barragem Itabiruçu, pertencente à Vale, organizado pela Diocese do município. Por Dulce de Oliveira Ferreira, Maria das Graças Quintão e Vicente Bueno Garcia Com apoio de Larissa Pinto e Wigde Arcangelo

O próprio Jesus Cristo foi político, então, a ação da Igreja tem de ser política. A gente não consegue desvincular a política da nossa fé, se for desvincular, nossa fé pode se tornar uma fé vazia, que não se compromete com o próximo. Vicente Bueno Garcia, secretário diocesano de pastoral da Diocese de Itabira Esse evento serve para contribuir com o povo daqui de Itabira e não deixar esquecer o crime cometido contra nós e contra as pessoas de Brumadinho. Me sinto bem participando, tenho a sensação de dever cumprido por estar nessa luta e buscar fortalecê-la com outras comunidades. Porque, sozinho, não tem como; com outros, a gente une as forças. Trazemos e levamos conhecimento e interagimos com as pessoas. Maria das Graças Quintão, moradora de Bento Rodrigues Nós começamos uma Comissão do Meio Ambiente na Diocese de Itabira em 2016 e estão surgindo muitas denúncias por meio dela. Aqui, nós temos três barragens da Vale: a de Pontal, Itabiruçu e a de Santana. Nós estamos com um abaixo assinado contra o alteamento da

barragem de Itabiruçu, que foi aprovado em outubro de 2018. Construímos esse abaixo assinado porque percebemos que a barragem está sendo alteada com uma série de irregularidades. Hoje, essa barragem está com 130 milhões de metros cúbicos de rejeitos, com o alteamento ela vai passar para 222 milhões de metros cúbicos. Se formos olhar a proporção disso tudo, o rompimento da barragem de Itabiruçu seria 20 vezes maior que a de Brumadinho. Isso é um risco não só para a cidade de Itabira, porque atingiria outras cidades, e, mais uma vez, o rio Doce. Vicente Bueno Garcia, secretário diocesano de pastoral da Diocese de Itabira Essa romaria é importante porque a gente divulga mais os acontecimentos sobre as barragens. Eu gosto de participar desses eventos, a gente não consegue fazer muito, mas, pelo menos, participa. Na minha cidade, está todo mundo preocupado porque a gente fica esperando o rompimento da barragem de Barão de Cocais. Ficamos ansiosos, com medo. A gente que vive próximo do rio, corre mais perigo. Dulce de Oliveira Ferreira, moradora de São Gonçalo do Rio Abaixo


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O que me faz bem O time feminino de futebol Unidos de Bento Rodrigues (U.B.R.) tem como integrantes não só moradoras da comunidade de Bento, mas também de Paracatu de Baixo. O esporte, que vem passando de geração em geração, é sinônimo de amor, companheirismo e persistência para muitas delas. Por Larissa Sena e Valéria de Souza Com apoio de Joice Valverde e Tainara Torres

Larissa marcou, em dois jogos, 14 gols pelo Torneio Relâmpago de Futsal Feminino, em Ouro Preto.


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Fotos: Joice Valverde e Tainara Torres

Lá era diferente, a quadra era nossa. Podia marcar jogo o dia e a hora que fosse que a gente conseguia. Aqui não, aqui é burocrático. Para ter um patrocínio pro nosso time é mais difícil. Eles entendem que a gente, por ser do Bento, recebe algum auxílio. Valéria, moradora de Bento Rodrigues

Minha vida é movida pelo futsal. Eu deixo de ir numa festa para poder jogar bola. Se você falar assim: “Valéria, tem um jogo e a festa de Fulano não sei aonde”, eu vou no jogo. Me faz bem e ocupa meu tempo, minha cabeça fica mais leve. É uma válvula de escape. Valéria, moradora de Bento Rodrigues

Eu jogo bola desde pequena em Paracatu. Quando a barragem estourou e eu vim para Mariana, fiquei muito tempo parada, não conseguia fazer nada. Aí, busquei superação no futebol. É onde eu busco força pra superar tudo. Eu falo com minha mãe: “Pode me proibir de qualquer coisa, mas não meu futebol, é a única coisa que me faz bem”. Larissa, moradora de Paracatu de Baixo

Aqui em Mariana, eu sou conhecida como Paracatu e tenho orgulho imenso de carregar o nome em todo lugar que vou jogar. É um apelido que vou levar pro resto da vida. É bom que, pelo menos, Paracatu não fica esquecido. Larissa, moradora de Paracatu de Baixo

Por Roziny Santos Silva Com apoio de Tainara Torres

Valéria joga no time feminino de Bento Rodrigues, desde os 13 anos, seguindo os passos da mãe e da tia.


EDITORIAL Por Mônica Santos, Bento Rodrigues

No dia 5 deste mês, completa-se 3 anos e 7 meses do maior crime socioambiental que impactou diferentes áreas e modos de vida. Durante esse tempo, a Fundação Renova/empresas busca esconder o crime nos territórios atingidos e trazer as pessoas para mais perto dos interesses dela. Não é uma data de comemoração, mas, sim, de repensar a forma de continuar lutando por justiça e de buscar ressarcimento justo e integral no processo de reparação. Na capa desta edição, trazemos a foto de Valéria, moradora de Bento e jogadora do time de futsal Unidos de Bento Rodrigues (U.B.R.), para representar a união que tínhamos lá e que trouxemos para Mariana, mas, agora, de uma forma diferente. Hoje, o time abraça pessoas de outras comunidades, como Paracatu, e serve de inspiração para a nossa batalha, não só dentro da quadra, mas também no nosso dia a dia. Jogar futebol foi uma forma que encontramos de superação e de trazer para cá o que fazíamos lá. Desde o dia 5 de novembro de 2015, viemos pedindo para que o crime não se repetisse. Pelos últimos acontecimentos, foi tudo em vão. A cada dia, fica mais claro que as barragens rompem visando o grande interesse das empresas, que é sempre o lucro falando mais alto. Quantas vidas mais precisamos perder para que a justiça faça valer a lei? Precisamos da mineração com responsabilidade, não da mineração que mata. Tivemos uma audiência muito tensa, como tantas outras. Nela, ficou claro que não há uma igualdade entre as partes, o que deixa a luta mais angustiante a cada dia. É preciso que as pessoas que têm o poder de decidir visitem os territórios atingidos para que possam sentir na pele o que vivemos e, assim, deliberar sobre nossas vidas conhecendo o que passamos e sabendo o que realmente é melhor para nós. Ver de longe é diferente de vivenciar o que é ser atingido(a). Esse é o momento de estarmos mais unidos e repensarmos estratégias para as próximas audiências, fazendo com que nenhum(a) atingido(a) perca seus direitos. É preciso deixar evidente que possuímos muitos direitos, porém, temos de estar alinhados, falando a mesma língua, para que, assim, possamos conquistá-los. Precisamos construir caminhos para não deixar que as empresas e terceiros estabeleçam o valor daquilo que é nosso, mesmo que existam as compensações. Não podemos permitir que quem cometeu o crime diga qual sanção eles mesmos devem cumprir. No mês anterior, fizemos várias manifestações que servem não só para cobrar dos responsáveis, como também para não deixar cair no esquecimento, e fazer com que haja uma interação entre atingidos(as) e comunidade, para mostrar que, por meio da união e do direito de manifestar, possamos, juntos, ir mais longe lutando por dias melhores para todos.


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