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Remição pela leitura: aplainando caminhos e ampliando horizontes por meio da leitura e da escrita
Recuperando em momento de leitura.
Coordenador: Pedro Borges Pimenta Júnior Bolsistas: Ana Paula Ribeiro Queiroz de Souza e Rosana Alves Pinto Voluntárias: Malena Pereira da Silva e Sarah Viana Colaboradoras: Leila de Souza Almeida e Zildete Lopes de Souza Gonçalves Texto: Pedro Borges Pimenta Júnior Campus: Januária
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Projeto Remição pela leitura:
aplainando caminhos e ampliando horizontes por meio da leitura e da escrita
O projeto Remição pela leitura é uma iniciativa de professores e estudantes do IFNMG – Campus Januária visando apoiar recuperandos da APAC-Januária a acessarem o benefício de redução de pena por meio da realização de atividades de leitura e escrita. Executado desde 2019, o projeto precisou ser reformulado para atender as exigências sanitárias decorrentes da pandemia. Embora trouxessem facilidades para a equipe executora, permitindo que os recuperandos dialogassem com autores de duas obras lidas, as metodologias de ensino a distância utilizadas impactaram a interação e a prática de revisão de textos. Porém, o saldo final foi positivo, considerando a troca de conhecimentos/experiências permitida pela tecnologia.
Em abril de 2020, as medidas para conter o avanço do novo coronavírus vedavam a interação presencial entre professores e estudantes do IFNMG – Campus Januária com os cerca de 30 recuperandos (todos homens, com idades entre 20 e 60 anos de idade) do regime fechado da APAC – Januária inscritos no Projeto Remição pela leitura. Essa ação de extensão buscava colaborar no desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita necessárias para se acessar o benefício de redução de pena. Em 2019, ano da primeira edição, a comunicação com a equipe do IFNMG fora, segundo avaliação dos recuperandos, um dos aspectos destacados como positivos. Contudo, em 2020, sem contato com familiares, professores e colaboradores, a ociosidade dos recuperandos era inédita e destoava da rotina de aulas, práticas laborais, reuniões e eventos culturais / religiosos, comuns e desejáveis dentro da metodologia de reintegração social e humanização da pena utilizada nas APAC.
Apesar desse cenário, depois de reunião com a direção da instituição, a equipe executora se reorganizou para realizar as oficinas por meio de videoconferências hospedadas na plataforma Google Meet, o que demandou modificações na infraestrutura que permitissem o acesso à internet nas dependências do regime fechado. Isso feito, as oficinas semanais com duração de 1:30h ocorreram sempre nas manhãs de terça-feira, mediadas por tecnologia. Ao todo, foram 21 momentos nos quais os cus-
A escolha do livro: recuperando escolhe obra para leitura.
APAC-Januária
todiados inscritos, previamente selecionados pela APAC – Januária, receberam orientações sobre a legislação relativa à remição de pena por meio da leitura, quanto às peculiaridades da resenha crítica, gênero textual cuja escrita é requisito para concessão do benefício penal (quatro dias remidos a cada obra lida e cuja respectiva resenha tenha sido aprovada por uma banca), e puderam ler e discutir textos de natureza literária e filosófica com a equipe de professores, estudantes do IFNMG e convidados.
Considerando as facilidades da tecnologia, as oficinas possibilitaram a interação dos custodiados com os autores de algumas obras lidas. Isso aconteceu durante oficinas especiais, quando dois escritores, conhecidos nacionalmente, foram convidados para falar sobre seus respectivos livros, respondendo perguntas do grupo. Assim, em agosto, Gilvã Mendes, escritor e psicólogo baiano, falou em duas ocasiões sobre o romance autobiográfico “Queria brincar de mudar meu destino” (Papirus, 2009). Em dezembro, foi a vez do mineiro-carioca Júlio Emílio Braz, escritor premiado no Brasil e no exterior e com obras vertidas para várias línguas, falar sobre o romance “Um encontro com a liberdade” (Editora do Brasil, 2016).
Durante os seis meses de realização do projeto, com o apoio de alunas do Curso de Pós-graduação lato sensu em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, ofertado pelo IFNMG – Campus Januária, os recuperandos produziram 37 resenhas a partir da leitura de 25 livros de diferentes gêneros e autores, a maior parte obras de ficção, quatro delas lidas coletivamente. Aprovadas, as resenhas representaram cerca de 150 dias de pena remidos por meio da leitura e da escrita, num total de 12 beneficiados. Esse é um resultado aparentemente pequeno, dado o número inicial de inscritos e também a quantidade de recuperandos alojados no regime fechado da instituição. Contudo, considerando os relatos dos participantes, pode-se compreender, grosso modo, que os obstáculos para ler e escrever são os maiores dificultadores, já que são tarefas complexas para parte significativa da população, em especial para os privados de liberdade.
A menor procura pelas oficinas, nesta edição, também pode ser atribuída ao uso de metodologias do ensino a distância. É fato que o estranhamento inicial foi substituído pelo interesse quanto às possibilidades de comunicação e de troca de conhecimentos permitidas pela tecnologia. Contudo, é possível que os ruídos e a baixa qualidade do sinal de internet também tenham contribuído. Foi isso o que constatou Ana Paula Ribeiro Queiroz de Souza, estudante de pósgraduação. Segundo ela, o formato online favorecia a equipe, mas trazia
Recuperando da APAC Januária em momento de leitura.
APAC-Januária
dificuldades para os recuperandos: “às vezes, por falhas tecnológicas, eles tinham dificuldade para nos ver com nitidez e ouvir com clareza”. Segundo a estudante, os momentos presenciais eram significativos por “proporcionarem a eles a terapia da presença, método abordado pela APAC, e também porque nas oficinas presenciais eles ficavam mais à vontade para falar.”
Embora úteis em outros contextos e indispensáveis no caso da edição 2020 do projeto, a tecnologia não proporcionou um nível de entrosamento entre equipe executora e recuperandos capaz de dar vazão às experiências de leitura, ao compartilhamento de impressões e à manifestação das emoções levantadas pelo texto ou pela escrita. Conquanto seja necessário avaliar melhor tal aspecto, esse cenário parece indicar, segundo Pedro Borges Pimenta Júnior, professor do IFNMG – Campus Januária e coordenador do projeto, que a mediação das leituras e a orientação individual usada na revisão das primeiras resenhas ficaram parcialmente prejudicadas. Para o docente, esses dois movimentos (mediação da leitura e orientação da escrita) são fundamentais para que os custodiados tenham êxito no processo de remição de pena.
Outro problema observado por ele guarda relação com os estereótipos relativos à leitura, que afastam o leitor do livro, da leitura. Essa relação nem sempre amistosa foi analisada por Ibrahim Lima, participante do projeto. Segundo ele, antes das oficinas, os recuperandos da APAC – Januária “não davam atenção aos livros, achavam que eles não tinham nada a ver com sua realidade de vida”. Ibrahim lembra que alguns internos “só folheavam algumas revistas para ver se alguma coisa lhes chamava a atenção. Mal liam a Bíblia nos atos socializadores. Mas a leitura se resumia em decifrar sinais, apenas nisso”.
Assim, para Ibrahim, o projeto Remição pela leitura foi importante por ter colaborado para mudar a visão e o comportamento de vários recuperandos: “já os vejo lendo livros do começo ao fim, noto que tem gente interessada na leitura, vejo opiniões prontas sobre vários assuntos, noto a satisfação de alguns recuperandos em fazer seu próprio texto e exibi-lo com orgulho, e já tem alguns cursando faculdade. Creio que tudo isso foi desencadeado pelo projeto”.
Recordando sua trajetória como leitor durante o período anterior à APAC, quando esteve no presídio comum, Ibrahim aponta que a leitura tornara-se o meio de conexão consigo e com Deus: “Precisava me reencontrar e ligar-me ao Criador; precisava também sair daquele ambiente tão opressor, sujo, violento e hostil. E consegui isso lendo bons livros e
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Biblioteca da APAC – Januária. Detalhe: banner do projeto Remição pela leitura.
escrevendo textos”. A participação nas oficinas do projeto ajudou-o “a confirmar aquilo que já tinha descoberto de maneira instintiva ou casual: a leitura transcende e liberta”. Sentiuse incentivado a produzir mais textos, ao ponto de escrever um livro. Hoje fora da APAC, Ibrahim prepara a revisão final de sua primeira obra, “A lúcida reflexão de um menino perdido”, a ser publicada em 2021, com textos introdutórios de dois juízes da Comarca de Januária, além do belo prefácio de Gilvã Mendes.
A ideia de leitura como prática “libertadora” é também defendida pelo escritor baiano. Para Gilvã, o projeto “compreendeu uma lei básica e simples da vida: não se planta maçã e se colhe jaca. Não se pode tratar seres humanos com brutalidade e querer que eles reajam recitando Camões e Castro Alves”. Ele também acredita que o projeto inverte essa “lógica burra”, pois leva aos recuperandos “uma das maiores vetores de liberdade, dignidade e beleza que é a literatura!”. Recordando a sua participação nas oficinas, afirmou: “eu entendi profundamente o poder da ressocialização. Isso transforma vidas para melhor, e vidas transformam o mundo em um lugar melhor!”.
Mesmo com os problemas citados, o projeto conseguiu bons resultados. É o que pensa Rosana Alves, estudante do IFNMG, para quem as atividades realizadas despertaram o interesse pela leitura e pela escrita entre os recuperandos: “Conseguimos alcançar os objetivos do projeto de forma satisfatória. Durante o período de realização, tivemos o privilégio de ouvir recuperandos que foram despertados pela leitura e escrita, passando a considerar o ato de ler e escrever como uma atividade prazerosa e de grande importância”, afirmou ela.
O despertar para a leitura foi comparado a uma espécie de metamorfose, como avalia Lucas Viveiros Dias, participante do projeto. Ele aponta o diálogo com os autores dos livros lidos como algo positivo: “Isso é demais! Toca o coração e a gente se sente importante”. Para Lucas, mesmo que a remição de pena seja um incentivo à participação, “o conhecimento e a esperança” que os livros trazem consigo são a parte mais importante: “por que isso ninguém rouba de mim”, revela. Lucas acredita que o projeto o ajudou a ingressar no IFNMG – Campus Januária: “Com a leitura pude aprender a interpretar e elaborar textos e, mesmo privado de liberdade, poder dar orgulho para minha mãe, conseguindo uma vaga no Instituto pela nota do ENEM”.
Tais resultados, segundo a presidente da APAC – Januária, Maria das Graças Viana de Matos, foram importantes institucionalmente. Ela avalia que as práticas de leitura individuais, as rodas de conversa e o exercício
da escrita têm fortalecido o método utilizado com sucesso pelas APAC, no Brasil e em outros países. Para ela, o projeto “é a menina dos olhos” da unidade, pois colabora para que os recuperandos tenham “um encontro consigo mesmos, capaz de transformá-los em sujeitos da sua própria história, responsáveis por sua ressocialização e, consequentemente, pela conquista da liberdade”, avaliou.
O projeto atraiu os recuperandos não apenas em virtude da remição de pena, como já afirmado. Antes disso, os participantes foram envolvidos pela potência da leitura, como avalia Zildete Lopes de Souza Gonçalves, professora do IFNMG – Campus Januária e colaboradora do projeto. Para a docente, “o grande mérito da Remição pela Leitura é aproximar os recuperandos da leitura literária”. Segundo Zildete, as atividades de leitura sensibilizam não apenas os participantes, mas também a equipe executora: “não tem como não se emocionar ao ouvir relatos de recuperandos que estão tendo sua primeira experiência com a leitura de um livro, não há como ser mais o mesmo depois dessa experiência, nem eles, nem os envolvidos no projeto”.
Em outra frente, considerando a lacuna na formação dos atores que direta ou indiretamente atuam no ensino de leitura e escrita, tanto na APAC – Januária quanto em outras instituições penais, a equipe executora organizou, em novembro de 2020, o workshop “Educação e Remição em prisões”, evento online que reuniu mais de 90 interessados de todo o país para discutir com a pesquisadora Eli Narciso da Silva Torres (Focus/Unicamp) os estudos mais recentes sobre educação e remição de pena em contextos de privação de liberdade.
Após dois anos de atuação na APAC – Januária e considerando toda a experiência com a realização do projeto no contexto pandêmico, foi possível compreender que aproximar os reclusos do livro e capacitá-los para a escrita não demandam apenas a disponibilização de textos, canetas, papel, etc. Requerem, isso sim, a realização de um trabalho de mediação que transcende a tecnologia, embora não a refute. Assim, a mediação da leitura contribuiu, segundo o coordenador do projeto, professor Pedro Pimenta, para “formar uma comunidade de leitores que, auxiliada pela tecnologia, pode alargar mais ainda as janelas pelas quais o mundo é visto, mesmo detrás das grades”. Para ele, se tiverem apoio especializado, os recuperandos podem tornar-se, por meio da leitura e da escrita, sujeitos de sua própria reintegração, recompensados com uma dupla liberdade: do corpo e da mente. São essas as lições que o projeto leva para edição 2021