KARINE DALLA VALLE
Internet ao alcance das mãos. Página 3
MICHELLE OLIVIERA
JÚLIA RAMONA
TECNOLOGIA
BEM ESTAR
INFRAESTRUTURA
Academia ajuda nos cuidados com a saúde. Página 4
Desníveis dificultam tráfego em rua principal. Página 11
ENFOQUE VICENTINA
SÃO LEOPOLDO / RS NOVEMBRO DE 2014
http://olharesevozes.wix.com/vicentina
EDIÇÃO
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RENATA CARDOSO
UM LAR FORA DE CASA O DIA A DIA DAS CRIANÇAS NA TURMA DO SOPÃO PÁGINAS CENTRAIS
2. TRANSPORTE
ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO | NOVEMBRO / 2014 | http://olharesevozes.wix.com/vicentina
O volante é dela
dirige à Vania ônibus que
JÉSSICA ZANG
leva moradores do Vicentina ao Centro de São Leopoldo
À
Antes de ser motorista, ela atuou como cobradora
pela manhã, ela dirigiu o ônibus com estudantes de Jornalismo da Unisinos que produziram o jornal Enfoque na comunidade. “O Vicentina é um bom lugar para dirigir”, afirma. Com as duas mãos ao volante e olhar atento aos carros à frente, Vania demonstra conhecimento sobre o bairro. Antes de ingressar em locais onde
à
s 5h10min, os raios de sol ainda não apareceram para iluminar o Vicentina. O dia é noite. E muitos moradores do bairro permanecem acomodados embaixo das cobertas. Entretanto, nas ruas do local, a rotina é diferente para algumas pessoas - movidas talvez pelo velho ditado, um tanto quanto clichê, “Deus ajuda quem cedo madruga”. Nesse horário, de segunda a sexta-feira, com ou sem auxílio divino, Vania Margarete Lopes Farias, 45 anos, percorre parte do Vicentina: ela é motorista de ônibus da empresa Central Transportes. E é graças ao seu trabalho que os moradores do bairro também conseguem trabalhar. Segundo Vania, a maioria dos passageiros é formada por quem precisa se deslocar até o Centro de São Leopoldo em virtude de compromissos profissionais. Apesar de residir no bairro Campina, a relação da motorista com o Vicentina tornou-se mais intensa desde o último mês de agosto. Em três sábados
há pouco espaço e muitos buracos, observa se é possível transitar com segurança. Vez ou outra, desvia de cães que caminham, distraídos, pelas ruas. “Algumas delas são bem estreitas para um ônibus”, comenta. SEXO FRÁGIL? Chegar ao Vicentina antes de o dia clarear demanda
empenho por parte de Vania, que acorda às 2h40min durante a semana. Há 12 anos na profissão, tem a companhia de mais cinco mulheres motoristas na Central. Apesar de haver mais homens no comando dos ônibus, Vania salienta que não existe preconceito contra ela e as colegas. Porém, nem sempre foi assim. Nas primeiras vezes em que dirigiu,
a motorista percebeu certa desconfiança nos olhares de alguns passageiros. “Hoje é diferente. Eles dizem que somos mais cuidadosas do que os homens”, conta, sem esconder o sorriso. Ao longo de mais de uma década de trabalho, Vania foi vítima de quatro assaltos enquanto dirigia. Mas isso não a fez pensar em trocar de atividade. “Nunca tive vontade de largá-la”, confirma. Dirigir sete horas e 20 minutos diariamente, seis vezes por semana, não impede que ela reserve tempo a uma preocupação comum a muitas mulheres: o lado vaidoso. As unhas das mãos da motorista, coloridas em tom azulado e com pequenos desenhos, são uma prova disso. Quilômetro após quilômetro, parada após parada, Vania prova que a população feminina pode desempenhar, com as mesmas condições, tarefas que eram restritas a homens anteriormente. Em 12 anos, ela já mostrou que lugar de mulher também pode ser no comando do volante. Aliás, os versos do cantor e compositor Erasmo Carlos demonstram conformidade com a rotina da motorista: “Dizem que mulher é sexo frágil, mas que mentira absurda!”.
- LEONARDO VIECELI
RECADO DA REDAÇÃO
O protagonismo da comunidade O desafio que recebemos neste semestre, dentro da disciplina de Jornalismo Cidadão acabou se transformando em uma grande experiência. A perspectiva que tínhamos da nossa própria profissão é de que, para sobrevivermos, a nossa esperança é trabalharmos em grandes veículos de comunicação. Mas fomos descobrindo o quanto a mídia de massa limita os temas e as realidades retratadas. Ao iniciarmos as aulas, descobrimos que seriamos os responsáveis por desenvolver outro jornal que tem como característica, retratar a comunidade. Já há um projeto desenvolvido pela Unisinos, há dez anos, na Vila Brás. Alguns de nós já havíamos participado das saídas no outro bairro. E quando soubemos das idas ao Vicentina, involuntariamente, tínhamos em nosso imaginário uma realidade um pouco mais distorcida. O primeiro sábado que nos dirigimos ao bairro foi tomado de surpresa. O local é muito bem
ENFOQUE VICENTINA O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Vicentina, de São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo.
estruturado. Aparentemente, ao olhar superficialmente para o Vicentina, no caminho percorrido pelo ônibus que nos levava até o local, exclamamos: “o bairro é bonito e organizado”. Tivemos que enfrentar algumas barreiras impostas aos entrevistados devido à novidade e a dúvida. Quem são estes jovens? O que eles vão falar de nós? A segunda saída foi mais fácil. Com a primeira edição em mãos, os moradores começaram a abrir mais sorrisos, a contar mais histórias e até nos convidar para visitar as suas casas posteriormente, para tomar um cafezinho, comer um pão e fazer outras refeições. O bairro traz problemas sim. Problemas estes que também estão presentes em outros bairros, em outras cidades, Estados e Países. Quem não deseja mais segurança? Quem não quer melhorias na saúde? Quem não quer investimentos na educação? Ao fazermos um questionamento sobre o que os moradores
REDAÇÃO – Jornalismo Cidadão – Orientação: Sonia Montaño. Edição e reportagem: Francine Malessa, Guilherme Rovadoschi e Jacson Dantas. Reportagem: Bárbara Müller, Cíntia Richter, Diovana Dorneles, Júlia Soares, Júnior Melo da Luz, Leonardo Vieceli, Pedro de Brito, Sabrina Stieler, Thaciane de Moura, Thiago Santos e Vitória Santos. FOTOGRAFIA – Fotojornalismo – Orientação: Marina Chiapinotto. Fotos: Camila Moraes, Carolina Teixeira Lima, Cassiano Cardoso da Silva, Jéssica Luana Zang, Julia Ramona, Karine Dalla Valle da Silva, Laura Hahn Pavessi, Luiza Marques Veber, Michelle Santos de Oliveira, Priscila Boeira, Renata Cardoso de Almeida e Vitória Padilha Roxo. ARTE – Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) – Projeto gráfico e finalização: Marcelo Garcia. Diagramação: Gabriele Menezes. IMPRESSÃO – Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.
destacariam de 2014, muitas reivindicações foram feitas. Mas a esperança ainda permanecia viva dentro dos seus anseios. Hoje, com a terceira edição pronta, podemos afirmar com certeza, que a nossa percepção do Vicentina mudou. Tivemos a oportunidade de ter contato com pautas que possivelmente, não teriam espaço na grande mídia. Para a nossa formação foi um privilégio conhecermos outra realidade. Para vocês, foi a oportunidade de dar voz a quem antes não era ouvido. Desejamos que vocês sigam lendo nossas matérias, contando novas histórias e, principalmente, tornando-se protagonistas de suas vidas.
- FRANCINE MALESSA - GUILHERME ROVADOSCHI - JACSON DANTAS EDITORES
FALE CONOSCO (51) 3591 1122, ramal 1329 enfoquevicentina@gmail.com
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Bairro Três Figueiras – Porto Alegre/RS. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@ unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Próreitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Próreitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinicius Souza. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.
TECNOLOGIA .3
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chegou aos moradores do Vicentina com a mesma velocidade das mudanças
O
telefone celular não saía das mãos de Regiane de Souza, 48 anos. Não é moderno, de última geração. Um modelo ultrapassado, sem toques na tela ou aplicativos que já fazem parte do cotidiano de boa parte da população. Apenas faz e recebe ligações. É o que basta para a dona de casa. Apresentada ao mundo da tecnologia há pouco mais de três anos, ela ainda demonstra encantamento com as limitadas funcionalidades de seu aparelho. “Eu não sei mexer bem nisso. Só recebo ligações e ligo raramente. É tudo muito novo, mas eu gosto da tecnologia”, conta a moradora. Regiane é um dos exemplos da mudança de perfil tecnológico do brasileiro. O acesso às novas ferramentas como celulares, smartphones, tablets, videogames, aparelhos de DVDs e Blu-ray, televisão por assinatura e internet era restrito aos mais ricos. Entretanto, cada vez mais pessoas, das mais variadas idades e classes sociais, começaram a se conectar em uma rede invisível que une a todos: a comunicação digital. Segundo dados divulgados pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (Cetic) em junho deste ano, o número de usuários de internet passou da metade da população brasileira pela primeira vez. Em 2013, os internautas somaram 51% dos cidadãos com mais de 10 anos de idade, ou 85,9 milhões de pessoas. Entre os principais fatores que contribuíram para o marco inédito estão o aumento exponencial no uso de celulares para conexão com a rede e a multiplicação de equipamentos portáteis, como notebooks e tablets. COMPARTILHANDO Os estudantes Lucas Rodrigues, 17 anos, Leonardo Rodrigues, 13 anos, Lucca Ávila, 16 anos, e Leonardo Vinícius, 13 anos, passam o dia com o celular como seu principal companheiro. Os amigos conversam pelo aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp, no qual criaram um grupo secreto para troca de vídeos e fotos de conteúdos que acham interessante. Segundo Lucca, a internet facilitou a comunicação
JÚLIA RAMONA
com os amigos. “Eu nem ligo mais por telefone. Se a gente quer sair, eu mando uma mensagem pelo WhatsApp e todo mundo vem junto. Mudou a forma de comunicação”, avalia. Lucas afirma que o Youtube, site que permite que seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato digital, é a sua principal fonte de acesso na internet. “Assisto muito vídeo de humor e ouço muito funk por ele. Ali, quando a gente gosta, compartilha na hora para os amigos”, garante o estudante, fã do estilo musical chamado “funk ostentação”. Shirlei Batista aguardava o ônibus enquanto repassava as últimas atualizações de sua linha do tempo no Facebook pelo celular. O acesso à tecnologia chegou em boa hora para a estudante de Gestão Ambiental. “A gente se distrai, passa o tempo. É uma boa companhia”, avalia, sem tirar os olhos do feed de notícias do aplicativo. CURTINDO A televisão a cabo já é uma realidade no Vicentina. A cada casa, uma antena redonda e com uma logomarca indicando a operadora escolhida. Conforme a Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), em pesquisa divulgada em maio deste ano, o Brasil iniciou o ano com 18,8 milhões de assinantes de TV a cabo, que representam mais de 60 milhões de telespectadores. Os dados reforçam o novo perfil consumidor dos produtos que a televisão a cabo conseguiu atingir: a classe média. Para Ritichele dos Passos, 15 anos, a tecnologia facilitou a vida das pessoas e dos moradores do bairro. “Hoje temos acesso à banda larga e até a televisão a cabo. Antes a gente pensava que não era possível, mas a rapidez que a tecnologia proporciona nos faz pensar como seria um mundo sem isso”, raciocina a estudante, enquanto sua mãe, a dona de casa Liria dos Passos, 42 anos, a observa com o olhar saudoso de quem conviveu por muito tempo sem os benefícios da tecnologia. “Tudo ficou mais fácil, mas no meu tempo as pessoas conversavam, olhavam no olho”, salientou. CUTUCANDO O estudante Jardel Hudson, de 20 anos, utiliza as redes sociais para “paquerar”. O celular, companheiro inseparável, está ao lado em todas as horas. Até no momento de dormir. “Eu fico
com o celular até pegar no sono. E acordo quando ele toca de madrugada. É um vício”, admite, sem culpa. O funcionário público Antônio Cláudio, 64 anos, também utiliza o celular, ainda sem internet, para, segundo ele, “namorar um pouquinho”. Em sua casa, o acesso à internet e a televisão a cabo é constante. “Todo o bairro já tem rede para conexão. Entramos no mapa do mundo, até porque, sem internet a gente não é mais nada, fica por fora”, salientou o morador. O SOBREVIVENTE A única Lan House disponível no Vicentina pertence a Aldo Rogério, que abriu a “AGV Vídeolocadora” em 1994. O local, que é um estabelecimento
comercial onde as pessoas pagam para utilizar um computador com acesso à internet, não serve somente para isso. A locação de jogos de videogame e DVDs variados também são serviços oferecidos por Aldo. As prateleiras forradas de DVDs misturam discos que refletem a diversidade de gostos do público consumidor do bairro. De um lado o contemporâneo e refinado humor de “Borat”, de outro, o insucesso de crítica “Xuxa Só para Baixinhos 6”. Segundo Aldo, o futuro é incerto. “De uns três anos pra cá o mercado começou a decair. Eu acho que não tem mais saída”, reflete, tentando encontrar sentido na frase pontuada com a dor de uma futura derrota. A Lan House teve seus
áureos tempos no início dos anos 2000. “Eu tinha um fluxo muito grande de pessoas, só fechava de madrugada. Era uma febre”, garante o comerciante. Sobre o futuro, Aldo divaga: “Talvez vou apostar nas impressões. É o que mais rende”, conta, lembrando que 30 pessoas passam por dia no local e a maioria busca imprimir documentos e boletos. A tecnologia que tanto ajuda a facilitar as coisas e apressar as tarefas, também urge quanto ao tempo das transformações. Quem sabe o papel em que estas linhas foram escritas amanhã nem exista mais? Se cabe um pedido: por favor, não deixe de ler. Nem que seja pelo computador.
- GUILHERME ROVADOSCHI
O celular é o companheiro inseparável dos moradores do Vicentina
à
urgência à Atecnológica
Na ponta dos dedos
4. ESTILO DE VIDA à Academia próxima da
comunidade facilita a vida de quem quer cuidar do corpo
A ginga da Vicentina de ginástica,. “Eu venho aqui há três meses. Passo muito tempo sentado no trabalho, e com a idade é cada vez mais necessário cuidar da alimentação e do corpo. As academias ficam todas no centro, então ter um espaço desses aqui perto é uma vantagem”, diz. A técnica em enfermagem Gabriela dos Santos Pereira, 28 anos, também destaca a facilidade de deslocamento. “Ir e voltar da academia é muito mais fácil. Quando eu frequentava academias no centro, tinha dias em que não ia por causa da chuva. Aqui eu chego em cinco minutos”, explica. De uma sala separada, longe dos aparelhos, ecoam gritos de ordem, acompanhados de respostas não menos empolgadas. O som chega através da turma de crianças do taekwondo, uma das artes marciais ensinadas na academia, junto com o muay thai. Entre os pequenos alunos, está Bruno Müller de Oliveira. Ainda sem seu kimono, vestimenta que os alunos utilizam, ele ouve atento as instruções do professor Matheus Soares, 21 anos. Foi Bruno que convenceu a mãe, a secretária Betina Müller, 38 anos, a matriculá-lo nas aulas. “É um esporte muito bom,
contribui para a disciplina em casa e também é uma atividade física importante para gastar essa energia que as crianças têm, além de que é próximo e tem horários flexíveis”, comenta Betina. O professor Matheus frisou a necessidade do trabalho com as crianças, que é feito também
através da Associação de Moradores do bairro Vicentina. “O esporte tem uma filosofia antidrogas, antiviolência, e é importante que façamos nossa parte e possamos contribuir para que as crianças não percam o rumo, não acabem tomando caminhos que alguns amigos nossos tomaram”, comen-
ta. Além do taekwondo e muay thai, a Ginga Nativa oferece também aulas de pilates e dança, como zumba e jazz para crianças. As atividades contemplam todas as faixas etárias, o que colabora para o sucesso do estabelecimento.
- PEDRO DE BRITO
A academia Ginga Nativa oferece espaços de treinamento e musculação, além de aulas como taekwondo
à
A
pós dois dias de chuva que castigaram o bairro Vicentina, o movimento na Academia Ginga Nativa é mais calmo do que o habitual. O baixo número de visitantes não reflete a rotina do local, que chega a receber cerca de 200 pessoas por dia, considerado de grande volume para o bairro. Há um ano na ativa, a academia se tornou o ponto de encontro daqueles que visam a saúde do corpo. Três meses atrás, após o sargento que fundou a Ginga Nativa ser transferido para o Recife, o educador físico Eduardo Souza Brum, 30 anos, assumiu o estabelecimento. Morador do bairro há dois anos, Eduardo se mostra surpreso com o intenso movimento. “Nunca vi tanta preocupação com a saúde. Tem muito público durante a semana, principalmente entre 6h30 e 9h”, comenta. O motorista Everton Caetano, 40 anos, citou a importância da academia para o bairro, enquanto usa os aparelhos
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MICHELLE OLIVEIRA
Uma fazenda no asfalto além do relinchar do Gato. Não, este não é o felino que algumas pessoas gostam de ter em casa. É o nome do cavalo crioulo, de 15 anos, que está solitário no campo. O tempo está fechado e uma fina garoa começa a cair, sinal de que mais um dia de chuva se aproxima.Acena composta, além do clima úmido, por um céu cinzento e um vento frio, nos dá a impressão de estarmos na fazenda daquele tio do interior e a tarde de sábado será regada com muitos bolinhos de chuva, pão caseiro com melado, chimarrão e muitos causos (só quem nasceu “pra fora” ou tem parentes que moram longe da cidade grande, sabem disso). Entretanto,não nos encontramos em uma pequena cidade do interior gaúcho.Estamos no bairro Vicentina, em São Leopoldo. Mais precisamente entre a Avenida Thomas Edson e a Rua Manuel dos Passos Figuerôa, a uma quadra da sede da empresa Ferramentas Gedore. Um terreno, medindo cerca de um hectare, se destaca entre as casas de alvenaria, as ruas de asfalto ou paralelepípedo, o movimento dos carros e a
vida cotidiana da cidade grande. Na área, cedida por um tio, Régis, mais conhecido na comunidade por Alemão, cria animais há cerca de 20 anos. Para manter a criação, são gastos em torno de R$ 200 por mês em alimento (milho, quirela, alfafa e farelo de soja), fora o valor com vermicida. Filho do seu Enor e da Dona Maria, uma das primeiras famílias a chegar no Vicentina, ele cultiva este gosto desde muito cedo. Aos 10 anos ganhou seu primeiro cavalo do pai e, a partir de então, não parou mais.“Fui criado na lida. O pai tinha bicho também. Meu tio criava gado, tinha tambo de leite (estábulo para ordenha de vacas) aqui no bairro”, recorda. Machado, que é motorista de caminhão tanque há aproximadamente três décadas, se divide entre o emprego e a lida do campo diariamente. Acorda por volta das 4h30 para trabalhar e retorna somente no final da tarde para casa. Mesmo assim, encontra tempo para cuidar da sua “fazenda”, da esposa Janete Machado, 51 anos, com quem está casado há 25 anos, e do filho Guilherme, 16 anos,
CASSIANO CARDOSO
que está seguindo os passos do pai. “Envolve muito tempo isso aqui. Você deixa de ficar em casa, de ficar com a família, de passear, mas quando gosta não adianta”, comenta. Alemão não reside no mesmo espaço em que cria os animais. Por este motivo e pelo fato do tempo que o trabalho de motorista exige, conta com a ajuda de familiares para a lida diária no campo. Com a
aposentadoria chegando, tanto para Machado como para Janete, o objetivo do casal é sossegar um pouco. Alemão quer comprar uma chácara, sua esposa, uma casa na praia. “A gente se aceitou assim, cada um fazendo o que gosta por isto que dá certo”, finaliza Janete com a receita para um casamento feliz e duradouro.
- JACSON DANTAS
Desde pequeno, Alemão gosta da lida com os bichos. A experiência é compartilhada de geração em geração
à
“Ea-ea-ea-ea-ea-ea”, brada um senhor grisalho com barba por fazer, medindo aproximadamente 1,70m, enfática e repetidamente. Como que ao momento em que um filho ouve a voz de seu pai e olha rapidamente para encontrá-lo, um rebanho de ovinos levanta a cabeça para identificar a direção do sonido, fazendo jus ao ditado: “a ovelha conhece a voz do seu pastor”. Compreendendo o chamado, por sobre o pasto molhado, afinal há dois dias cai uma grande quantidade de chuva, o grupo de ovelhas da raça Santa Inês se dirige, organizadamente, em fila indiana, ao estábulo. Sabendo exatamente onde se posicionar, ansiosas, aguardam o alimento, que é distribuído em seguida por quem as chamou, o senhor Régis Eliandro Machado, 50 anos. O som, que se ouvia ao longe, não precisa mais ser entoado. A comunicação entre o pastor e suas ovelhas já foi realizada com sucesso. Agora, além do mastigar do rebanho, só se ouve o cacarejar de cerca de 20 galinhas,o piu dos mais de 30 pintinhos, o cantar de dois galos,
CRENÇA .5
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credos religiosos que podem auxiliar nos momentos de luto
M
uitas vezes, ela chega sem bater na porta. Entra sem avisar. Traz consigo somente tristeza e recordações. Algumas pessoas, por outro lado, já a esperam. Afinal de contas, o que é a morte? Embora existam diferentes visões e teorias sobre o assunto, a religião é, para muitos, uma forma de amenizar a dor da perda. No Vicentina, não há cemitérios, tampouco funerárias, mas diferentes igrejas se espalham pelas ruas. Natural de Brasília, o padre Euripedes Ferreira chegou ao Rio Grande do Sul em 2005. A serviço da Igreja Católica, morou em Canela, Dois Irmãos e Novo Hamburgo antes de comandar a Paróquia Nossa Senhora Medianeira, onde está desde o último mês de janeiro. Para ele, a morte é uma forma de vivenciar uma experiência de transformação. Segundo o padre, as pessoas com proximidade à vida religiosa encaram a perda de familiares e conhecidos como um ritual de passagem. “É lógico que há sofrimento. Elas choram, mas sem desespero. Já recebi moradores do Vicentina que
perderam entes queridos e quiseram conversar sobre isso”, explica. Pastor da Assembleia de Deus, Joel Ramão analisa o tema sob outro ponto de vista. Homem de fala tranquila, ao ser perguntado a respeito do que é a morte, ele não hesita: “A morte é o salário do pecado. Por pecar, a gente morre”. Há cinco anos no bairro e há seis como pastor, Ramão afirma que, durante atos fúnebres de sua religião, os cânticos são uma forma de amenizar a tristeza e diminuir as lágrimas. Em 2014, aliás, o pastor realizou o culto em homenagem à sua irmã, vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). “A gente explica para os familiares que o corpo é apenas a matéria. Com a morte, a alma e o espírito voltam para Cristo”, frisa. No bairro, o tema também é discutido por jovens. Marco Antonio Serdan Júnior, 16 anos, é integrante da Igreja Evangélica Quadrangular, da qual seus pais são pastores. Sentado em um dos bancos do local onde os cultos são realizados, ele pensa alguns segundos e resume: “A morte é quando a gente terá uma paz”. De acordo com Marco Antonio, cerca de 60 fiéis frequentam a igreja na comunidade. Antes de morar no bairro, o jovem e a família viveram em cidades da
fronteira do Estado, como Uruguaiana, e até no Mato Grosso do Sul em razão de compromissos religiosos. “Aqui na igreja, tentamos confortar as pessoas que perderam familiares. Dizemos que eles foram para um lugar melhor”, conta o jovem. No Vicentina, encontrar um local adequado e organizar os processos fúnebres podem ser tarefas difíceis a alguns
moradores. Aqueles que não possuem condições financeiras ou não desejam contratar os serviços de uma funerária têm que buscar outras soluções aos procedimentos. Uma delas, conforme José Goularte, que vive há quase 30 anos no bairro, é a realização de velórios nas próprias casas das famílias responsáveis. Já os sepultamentos podem ser realizados em outros
pontos da cidade: os três cemitérios municipais de São Leopoldo são opções. Enquanto a morte e os mistérios que a cercam são debatidos, o Vicentina segue o seu rumo e a sua rotina graças ao seu povo: homens, mulheres, crianças e jovens que, movidos por suas crenças, enchem o bairro de vida.
JÉSSICA ZANG
A perda de familiares e amigos é um tema abordado em igrejas
à
abriga à Vicentina diferentes
Fé para encarar a morte
- LEONARDO VIECELI
Cultivar o bem mildade, caridade e fé”. Gislaine Maria Flores de Moraes tem 55 anos e reside no bairro desde os seis. Para ela, a religião “é um dom que vem com a gente. Podemos ser filhos de religiosos e não necessariamente seguir aquilo que os pais creem”. Sua crença é na Umbanda, que antigamente era conhecida como a Umbanda Branca, cujo o foco é o benefício ao próximo, não existindo cobrança financeira, ou de qualquer outro tipo. “Existem muitas casas que cobram alguma coisa de quem a frequenta”, explica a religiosa que tem como profissão o artesanato. Não há placas em frente à casa de Gislaine que indiquem os atendimentos prestados a pessoas que necessitem de ajuda espiritual. Pelo contrário, flores e objetos artesanais decoram e colorem o local, tornando a entrada da residência simpática aos olhos daqueles que por ali passam. “Eu trabalho para
THACIANE DE MOURA
outros não”, esclarece. Os fundamentos pregados pela líder, que hoje é mãe de santo, são baseados na utilização de ervas e na preservação da natureza. “Usamos a natureza, mas sem agredi-la. Trabalhamos com a energia do Sol, da Lua, da terra e da água”, conta. CRENÇAS DISTINTAS E UM PRECONCEITO EM COMUM
a caridade, as benzeduras, o tratamento de dependente químico.Também fazemos festas, enchemos a casa com todos os tipos de pessoas”, comenta. Seu dom aflorou aos sete anos. “Por ser de uma família de Umbandistas, meu pai dizia que
me via brincando, conversando sozinha (aparentemente) e ali ele viu a mediunidade em mim. Fui entendida por eles e recebi todo atendimento para seguir evoluindo. É algo que nasce com a gente, alguns espíritos vêm ao mundo já evoluídos,
Os orixás ficam em um altar, com telha transparente para receber a luz do Sol na casa de Gislaine
à
Vivemos em um país marcado pela diversidade cultural e religiosa. O Rio de Janeiro é a cidade maravilhosa. São Paulo é a terra da garoa, e abriga todos os povos. A Bahia é de todos os santos. E no Rio Grande do Sul, onde tudo o que se planta cresce e o que mais floresce é o amor, está o bairro Vicentina, de São Leopoldo, que, assim como o estado baiano, também abriga uma variedade de crenças. Uma delas é a religião Umbanda, que – de caráter pluralista – é ocasionada através da união da cultura indígena e africana, e de elementos de outras religiões, como o catolicismo e espiritismo. Sua origem vem das senzalas, em reuniões onde os escravos vindos da África louvavam seus deuses através de cânticos e danças. Prega a paz e o respeito à natureza, Deus e ao ser humano. Compreende a diversidade e valoriza as diferenças, tendo como principal lema “dar de graça o que de graça receber com amor, hu-
Muitas vezes confundidas, o Candomblé e a Umbanda são crenças bem diferentes, tanto teologicamente quanto filosoficamente. Os candomblecistas são favoráveis ao credo africano que cultua, sem influências de outras culturas, os orixás. No entanto, tanto a Umbanda quanto o Candomblé possuem algo em comum: o olhar preconceituoso daqueles que não conhecem bem os fundamentos de cada uma.
- BÁRBARA MÜLLER
6. SOLIDARIEDADE
ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO | NOVE
A multiplicação d
de trabalhadores à Grupo da comunidade põem
em funcionamento projeto social há mais de 20 anos
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ocalizada na Avenida João Corrêa, no bairro Vicentina, em São Leopoldo, a Turma do Sopão prepara comida para cerca de 80 crianças diariamente. Das 7h30 às 17h, enquanto os pais vão trabalhar, elas percorrem os ambientes da instituição. São quatro turmas de Educação Infantil orientadas por 16 professores pagos pela rede municipal de ensino. Com idades que variam entre 2 e 5 anos e 11 meses, os alunos permanecem no espaço em turno integral, recebendo ali educação, entretenimento e refeições. Depois que saem da Turma do Sopão, as crianças atendidas ali já vão direto para a escola, com a bagagem de solidariedade aprendida na convivência com a ONG.“É muito gratificante trabalhar nesse projeto. Para mim, é um desafio muito gostoso, tudo tem mais valor. As crianças tornam o que é simples em algo mágico. Aqui, a educação e o carinho fazem milagre”, diz Andréa Corrêa, 32 anos, professora no projeto. O terreno que hoje abriga os prédios foi conquistado em 2005. Pelos próximos 20 anos, segundo uma concordata feita entre o grupo e a gestão municipal, a área é de posse da Associação. A perspectiva de futuro mais esperançoso para as crianças foi o que encantou Marla Geovana Miranda de Almeida, 48 anos, diretora pedagógica da instituição. “Sempre tinha trabalhado em escolas particulares. A ideologia daqui mudou minha percepção de educação. No Sopão, a proposta pedagógica é tão eficiente quanto em outras escolas. Além disso, o envolvimento com a comunidade é bastante intenso e os familiares recebem apoio também”, explica a pedagoga. Ao entrar na sede da Turma do Sopão, observa-se um grande salão. Ao lado direito, enxergam-se três salas: o consultório da pediatra que cuida da saúde dos pequenos, a despensa ou sala de “gostosuras”, onde todos os alimentos guardados recebem uma etiqueta após conferência de uma nutricionista, e a sala da presidente da associação, Eliane Lopes Pereira, 42 anos. Ela relata que “o Sopão é mais visto como uma comunidade do que um lugar de trabalho, porque existe um vínculo e um apego entre todos. Aqui estou com minha família, é meu segundo lar desde 1994”, diz a presidente. O local acolhe ainda alguns moradores de rua. Cerca de 10 pessoas sem casa recebem café da manhã e almoço na sede da ONG. O projeto que surgiu na Vila Duque foi deslocado para o Vicentina em função das obras do trem Primeiro, por auxílio de uma instituição de trabalhadores voluntários, as sopas começaram a ser feitas de
15 em 15 dias para a população carente. Depois, para que o trabalho em prol das crianças tivesse continuidade, buscaram novas formas de conseguir recursos materiais e financeiros. Mas não apenas a infância é valorizada no trabalho do grupo, agora chamado oficialmente de Associação Turma do Sopão. Em função da burocracia para conseguir financiamento para as atividades, o vínculo com uma casa Espírita foi desfeito. Assim, conseguiram registrar a ONG e manter os trabalhos, que contam também coma recicladora ACEL, um brechó e a Escola de Educação Infantil “Segundo Lar”. RECICLANDO MATERIAIS PARA NOVOS INVESTIMENTOS Na Turma do Sopão, tudo vira fonte de renda para ajudar as crianças. Nesses 22 anos de existência, a Associação se mantém, além das doações de grandes empresários, de uma reciclagem que funciona no pavilhão ao lado do prédio principal. À primeira vista, o local parece uma bagunça. Uma mistura de móveis usados, eletrodomésticos, garrafas, papéis e tudo que atualmente é possível reciclar. Já na entrada do depósito, temos um mosaico de tábuas e janelas coloridas oriundas do início da construção do prédio com material doado pela antiga Companhia de Energia Elétrica (CEE). Ao adentrar no segundo pavilhão, onde estão as prensas e os fardos de material reciclado já prontos para a entrega, as pessoas se deparam com um container lotado de sucata, doado por grandes indústrias, e pilhas de equipamentos eletrônicos, uma diversidade de “quinquilharias” que ajudam a dar vida ao projeto. Seis pessoas são responsáveis por este trabalho. A ONG produz, em média, cinco toneladas de material reciclado por semana. Segundo Elio Pereira, 43 anos, coordenador do projeto, “é um volume pequeno se comparado com grandes recicladoras. Por este motivo, vendemos o que produzimos para outras empresas”, explica. Uma recicladora de médio porte produz cerca de 20 toneladas de material no mesmo período. O valor dos fardos depende muito já que alguns produtos são muito baratos. Mesmo produzindo pouca quantidade, ela foi suficiente para comprar dois caminhões, que são utilizados no recolhimento das doações de materiais. O valor proveniente da reciclagem também é utilizado para o pagamento dos funcionários e do motorista. A ONG também possui um lugar destinado ao recebimento de roupas doadas às crianças e seus familiares. As peças são “restauradas” por uma funcionária contratada pela Associação, que cuida do que eles chamam de “rouparia”. O que não é destinado às crianças, é comercializado. “Vendemos as peças por um valor simbólico, que pode ser de 10 a 50 centavos”, conta o coordena-
dor do projeto. O objetivo, além de arrecadar fundos, é fazer com que as pessoas deem valor para as roupas. “Até um tempo atrás, fazíamos doação, mas as pessoas vinham e levavam sacos com muitos itens, que encontrávamos no dia seguinte atiradas na beira da estrada”, lembra responsável. Crianças precisam de roupas, alimento, carinho e diversão. Os brinquedos da Turma do Sopão vêm de doações. Um dos colaboradores é a Receita Federal, que destina uma parte das mercadorias apreendidas para a Instituição. “A ONG fez o cadastro com a Receita para receber os brinquedos que podem ser aproveitados pelas crianças. As mercadorias que, de alguma forma, são consideradas prejudiciais para a saúde dos pequenos já são enviadas destruídas, então utilizamos na reciclagem”, conta Elio. Entidades sem fins lucrativos podem fazer a solicitação de doação através do preenchimento de formulário disponível no site da Receita Federal (www.receita.fazenda.gov. br). É possível solicitar bens que possam ser utilizados ou consumidos pela entidade, em quantidades e tipos compatíveis com a sua necessidade ou com o público alvo ao qual se propõe a prestar assistência. UM CARA SOLIDÁRIO Trabalhando no projeto desde que teve início, Elio Pereira lembra da trajetória do Sopão. “Fazemos tudo com muito carinho e dedicação”, diz ele. Mas nem só de carinho sobrevive uma ONG. Uma das razões para o projeto dar certo é o desprendimento de quem trabalha no local. Eletricista de profissão, Elio começou o trabalho na instituição ainda antes dos 25 anos de idade. Hoje, aos 43, tem consciência de que muitas coisas foram colocadas de lado em prol do bem comum. Casado e pai de quatro filhos, mora no pátio da instituição para cuidar do local e divide o seu tempo entre os compromissos familiares e a coordenação da Associação e da reciclagem. “Sou o mais velho do grupo, em termos de tempo de serviço”, revela.
- JÚNIOR MELO DA LUZ - VITÓRIA BRITO SANTOS RENATA CARDOSO
(à direita) fundou à Elio o projeto que é seu
trabalho e sua vida. Eliane, presidente da Turma do Sopão, alterna o carinho com as crianças e a administração da ONG. Além da aula, as crianças também desfrutam do espaço para brincar e da merenda, que deu origem à Associação
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da sopa
O MASCOTE DE TODOS
Enquanto esperávamos por Elio no pátio da Turma do Sopão, escutamos um miado. Logo, apareceu uma criaturinha pequena de pelo branco. Arqueando as costas enquanto desfilava em nossa direção, o gatinho já chegava ronronando. Quando finalmente parou próximo aos meus pés, eu chamei: “oi, gatinho”. Não precisou mais para que ele começasse a dar pulos. Abaixei-me para acariciá-lo enquanto ele mordia a ponta dos meus dedos. Juntando as patinhas em frente ao fucinho, ele se direcionou para Vitória, que o pegou e pôs no colo. Aninhado
ali, ele não parava de miar baixinho. Renata então chamou o bichinho, que foi até ela sem mostrar as unhas em sequer um momento. Limpo e nada arisco, ele se interessou pelos visitantes, nos recepcionando com carinho. Poucos gatos param na sede da Turma do Sopão, mas ele ficou. A docilidade do animal encantou a filha de Elio, Dafhinny de Deus Pereira. A garotinha de 4 anos fez do gato seu bichinho de estimação. Há seis meses, ele chegou “minguadinho” e filhote na casa da família. Durante o dia, o “bichano” fica preso em casa
para não interferir nos trabalhos com as crianças. Mas ele não se importa com isso porque, durante a noite, pode fazer a festa no pátio e brincar com sua amiga. Com ração à vontade, ele faz amizade até mesmo com os cães do local – de vez em quando até compartilhando comida com eles. O gato não tem nome. Como o mascote de Audrey Hepburn no filme Bonequinha de Luxo, ele é livre. A personagem de cinema diria: “Não tenho direito de lhe dar um nome, não pertencemos um ao outro”. E assim é a relação com o gato da Turma do Sopão.
8. COMUNIDADE
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Um Natal à altura do Vicentina
crianças à Ajudar e dar a elas
um Natal melhor é o objetivo do Voluntários da Paz, liderado por Dona Solange
O
filósofo francês Gaston Bachelard afirmava que, para ser feliz, é necessário pensar na felicidade do outro. Talvez a Dona Solange não saiba quem foi Bachelard, mas, sem dúvidas, segue ao pé da letra a frase. Solange Regina Correa, 55 anos, é pensionista e figura conhecida no Vicentina. Há 16 anos, promove ações em datas comemorativas, para alegrar a vida das crianças da comunidade. Dona Solange conta que desde a infância viu o pai ajudando outras pessoas. “Começou em um Natal, quando ele deu presente para mim e também para os filhos dos vizinhos, que não tinham condições de comprar brinquedos na época”, recorda. A iniciativa surgiu após o falecimento do pai. No início, atendia a poucas crianças, mas, com o passar do tempo e a divulgação do trabalho, passou a ganhar ajuda de outras pessoas. Com o grupo Voluntários da Paz, Solange realiza
a festa natalina no bairro, sempre um domingo antes ao dia 25 de dezembro. “Antes fazíamos festa de Páscoa, São João, Dia das Crianças e Natal, mas acabou ficando pesado para o pessoal ajudar”, lamenta. Solange mostra as fotos das festas anteriores. Inicialmente, o cenário da festividade era sempre o mesmo: o pátio de sua casa. Porém, a cada evento o número de crianças foi aumentando e surgiu a necessidade de utilizar toda a rua para realizar as comemorações. “No Natal recebemos cerca de 250 crianças. Todas ganham cachorro quente, refrigerante e um brinquedo, de acordo com sua idade”, destaca. Ela conta que no Dia das Crianças deste ano levou brinquedos para os pequenos moradores de uma área invadida, próxima ao bairro. Sem muitas condições, tirou os brinquedos da loja de bazar que tem em uma peça na frente de sua casa. “Vi que não iria conseguir ajuda, então, em outubro, eu não vendi os brinquedos aqui da loja. Guardei 40 deles e, no dia 12, entreguei para as crianças”, conta. Além dessas datas, Dona Solange compra a cada 15 dias vários pacotes de bolachas e distribui para famílias mais necessitadas. O dinheiro para essa compra
à Moradora relembra
KARINE DALLA VALLE
todas as festas realizadas com o grupo que lidera
é tirado do próprio bolso. Agora, ela está se preparando para o Natal. Já começou a listar o que vai precisar para realizar a tão tradicional festa. Em um caderno, faz apontamentos e redige manualmente os ofícios que envia para o comércio da região, solicitando ajuda. Para Solange, realizar esse trabalho é muito gratificante e afirma que enquanto tiver saúde, continuará fazendo não só a festa de Natal, mas também ajudando os que precisam. PARA AJUDAR A Dona Solange aceita doações de brinquedos e também de ingredientes para o cachorro-quente da festa de Natal. O endereço para doações é Rua Salseiro, nº 503, bairro Vicentina. Caso prefira ligar, o número é (51) 9610-4940.
- DIOVANA DORNELES
A arte como empreendedorismo Usar recursos naturais, como barro, couro, pedra, folhas e madeiras entre outros, é de fundamental importância para quem quer abrir o seu próprio atelier. O número de interessados em aprender novas técnicas para desenvolver a atividade cresce constantemente. Moradora do bairro Vicentina há mais de uma década, Regina Pinheiro Guimarães, 57 anos, escolheu a região, por ser um lugar tranquilo para estabelecer seu próprio negócio, o atelier RP ARTE. A atividade a acompanha desde os 14 anos, quando, ainda estudante, fez um curso de pintura. “O meu amor pela arte começou no tempo do colégio, quando fazia educação artística, onde comecei a fazer artesanato”, relata. No trabalho, conta com a ajuda da filha, Rosane Pinheiro Guimarães, 23 anos. Há seis anos, a jovem começou a auxiliar e ambas já têm as carteiras de artesãs desde 2013. O esposo, Pedro Paulo Guimarães, 61 anos, é quem faz os artesanatos, enquanto mãe e filha pintam. A renda familiar vem desta atividade, e todos os trabalhos são vendidos sob encomenda para Porto Alegre e região Metropolitana. Algumas quadras depois, encontra-se outra artesã, a Janaina
Azevedo dos Santos, 50 anos, dona do Janartes. Ela trabalha neste ramo há oito anos, e quem ensinou a profissão foi Regina Pinheiro, indicada por uma amiga, dona Elza, sua vizinha. A artesã diz que foi um ótimo aprendizado as aulas com Regina, que ensinou tudo para ela, ajudando a revelar seu talento, que a tornou uma profissional da arte. “O artesanato é a realização profissional dela”, ressalta Janaina, falando da sua professora. Embora sua remuneração não seja muita, consegue manter-se apenas deste trabalho. A Lei Complementar nº 128, de 19/12/2008, criou condições especiais para o trabalhador conhecido como informal. Pessoas que trabalham por conta própria, como as artesãs desta matéria, podem se formalizar como Microempreendedor Individual (MEI), que é o caso das artesãs aqui citadas. Os interessados em formalizar seu trabalho criando sua própria empresa de modo acessível e com imposto bem reduzido podem fazê-lo através do site do microempreendedor (www.portaldoempreendedor.gov. br/mei-microempreendedor-individual).
- CINTHIA RICHTER
(acima) à Regina conta com
a ajuda da filha, Rosane. Janaina (ao lado) trabalha no ramo há oito anos CASSIANO CARDOSO
LUIZA VEBER
SEGURANÇA .9
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realidade no bairro Vicentina
C
onte até 15. Esse é o tempo que leva para uma mulher sofrer violência no Brasil. Em São Leopoldo, a cada dia, aproximadamente, cinco mulheres são agredidas pelo seu parceiro. Os números são maiores, porém o medo e a insegurança, muitas vezes, não deixam o pedido de ajuda sair da garganta. Esses dados que podem ser confirmados no Observatório da realidade e das Políticas Públicas do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos não são diferentes no bairro Vicentina. Basta alguns minutos de conversa para que as moradoras comecem a contar sobre os casos de agressão que presenciam na vizinhança. “O que mais tem aqui é mulher que apanha de marido”, revela uma das residentes da área, com pouca esperança de que essa situação mude. As histórias assustam pelo nível de agressividade. São casos de mulheres e, às vezes, até de meninas menores de idade, que recebem de seus companheiros, no lugar de carinho e afeto,tapas, socos e pontapés. FEMINICÍDIO Infelizmente, alguns casos de violência contra à mulher chegam ao extremo, e muitas perdem a vida nas mãos de seus companheiros. No Brasil, a cada duas horas uma mulher é morta, a maioria assassinada dentro de casa, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). Em São Leopoldo, ano passado, foram registrados três feminicídos, é como são chamados os homicídios de pessoas do sexo feminino.Em 2012, o Vicentina foi cenário de um desses crimes brutais. João, de 35 anos (usamos aqui nomes falsos para expor o problema, e não vidas), já tinha no seu histórico casos de agressão contra a esposa Maria. Em uma das surras, ela garantiu uma medida protetiva, prevista na Lei Maria da Penha, que garante distância do agressor. O casal ainda se separou e se reconciliou várias vezes, até que um dia, João, movido pelo ciúmes, atingiu Maria com duas facadas, depois de ter a espancado. A filha do casal, Ana, na época com 9 anos, presenciou a briga e tentou buscar ajuda, em vão. Maria, que tinha 32 anos, não resistiu e morreu no hospital. O caso foi julgado e João foi condenado, mas
a mãe de Ana não voltou mais para casa.
CAROLINA TEIXEIRA LIMA
CULTURA MACHISTA “Ela gosta de apanhar”. Muitas pessoas utilizam essa frase para justificar a permanência das mulheres nas situações de agressão doméstica. Para a professora, doutora em psicologia social da Unisinos, Marília Verrissimo Veronese, essa postura é resultado dos costumes que vivemos. “Não existe mulher que gosta de apanhar. Isso é fruto da cultura machista e patriarcal que ainda predomina na sociedade. A mulher acaba absorvendo e reproduzindo essa postura”, explica a professora sobre a cultura onde o homem é colocado em uma posição de dominação e superioridade sobre a mulher. Marília esclarece que são vários os motivos que levam as vítimas a continuarem em relações violentas. “Há dependências psicossociais, onde a mulher ameaçada tem medo de sair de casa e ser morta pelo companheiro; dependência econômica, onde ela não tem opção de moradia e de sustento e a cultural, onde ela usa a negação como mecanismo de defesa”. Além disso, Marília adverte que em muitos casos a vítima acredita nas promessas do agressor. “O homem faz juras, pede desculpas e diz que não vai mais acontecer, a mulher acredita e perdoa. Esse jogo vira um ciclo, onde passam um tempo em ‘luade-mel’, mas as agressões voltam”. A solução segundo a profissional é o empoderamento das mulheres, através de redes de proteção, grupos e coletivos. Maria Claudete Souza Coelho, 47 anos, mediadora de conflitos e integrante da ONG Casa da Rose, que atua no bairro desde 2011, confirma que na maioria dos casos o pedido de apoio vem daquelas que sofrem com a pressão psicológica. “A mulher não chega aqui roxa, depois de apanhar, mas com o sofrimento da violência do dia a dia”. Claudete explica que a instituição realiza trabalhos com crianças e, com isso, a mãe também se aproxima e acaba expondo seus problemas. “Como a gente é da comunidade, as pessoas se sentem mais à vontade, encorajadas para tentar uma fala. Nós fazemos um primeiro acolhimento e tentamos ajudar”. A instituição ainda realiza cursos em parcerias com outras entidades para as mães das crianças. “Elas se sentem valorizadas, dá uma guinada na vida delas. A maioria é dona de casa e busca algum trabalho ou
atividade depois de participar dos cursos”, afirma Claudete sobre as mudanças depois da aproximação das mulheres com as atividades da ONG. VIDA NOVA Com voz confiante, batom nos lábios e sorriso no rosto Lídia apareceu animada no portão de sua casa. Atrás de toda confiança, demostrada em sua fala e em sua postura, está uma história de violência, drogas e resistência. Ela tem 42 anos, mas aparenta ter bem menos idade.Mãe de três filhos e desempregada,sofreu nas mãos de seu ex-namorado. Ela não nega o gosto que tinha pela bebida e pela noite. “Sempre bebi, tomei minha cerveja, e como estava na noite, conheci um rapaz que usava drogas e eu comecei a usar junto”. Não demorou muito para ela perceber que o namorado ficava agressivo quando se negava aacompanhá-lo no uso dos entorpecentes. Depois de três meses de namoro, já trocando o dia pela noite, veio a má surpresa. “Para mim foi um susto, ele nunca havia me agredido, nem verbalmente, mas naquele dia ele me deu três socos na cabeça. Era lutador de jiu-jitsu e sabia bater onde não ficava marca”, lamenta Lídia sobre sua primeira surra e pelo fato de ter perdoado a atitude.
As agressões e saídas noturnas continuaram. Até que a jovem percebeu seu distanciamento da família e resolveu parar de se drogar, entretanto, sem evitar que seu namorado continuasse a usar drogas, até mesmo escondido dentro de sua casa. Ela resolveu dar um basta quando foi espancada por ele dentro de um motel. “Da última vez que ele me bateu deixou marca, deu um soco na minha boca. Eu não estava mais usando drogas. Estávamos em um motel e chamei a polícia”. Desta vez, Lídia teve coragem de pedir ajuda, mas as marcas ficaram. “Ele me judiou muito. A gente fica moralmente abalada, perde a autoestima, pois é teu parceiro. Nem meu pai me batia.” Hoje Lídia está limpa das drogas e tem um novo companheiro. Ela fala com carinho dos que lhe estenderam a mão quando precisou, como a sua família, a Casa da Rose e o Centro Jacobina,que atende mulheres que sofrem violência, no centro de São Leopoldo. Uma medida preventiva lhe dá a segurança que o homem que a agrediu não lhe encostará mais. Porém, o receio permanece. “Ele ainda passa na frente da minha casa. Tenho medo, não saio à noite sozinha”. Com esperança e sentimento de superação, a moradora do Vicentina acre-
dita que a mudança deve começar por nós mesmos. “Se a gente não se cuidar, ninguém vai. Primeiro a gente tem que querer o nosso bem”.
A marca da violência pode ser na pele ou na alma
à
agressão à Adoméstica é uma
Mulheres Marcadas
- SABRINA STIELER
LEI MARIA DA PENHA Criada em 2006, a Lei 11.340 recebeu o nome da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica durante 23 anos que esteve casada. O marido tentou assassiná-la duas vezes. Na primeira, com arma de fogo, deixando-a paraplégica, e, na segunda, por eletrocussão e afogamento. Ele só foi punido depois de 19 anos e ficou apenas dois em regime fechado. O fato fez com que Maria, revoltada com o poder público, lutasse pela aprovação de uma lei que de fato punisse os agressores e protegesse os direitos da mulher. Com a Lei Maria da Penha, houve um avanço na definição do que é violência doméstica, incluindo não apenas as agressões físicas e
sexuais, como também as psicológicas, morais e patrimoniais. ONDE PEDIR AJUDA? Central de Atendimento à Mulher – Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República Ligue 180. As ligações são gratuitas e podem ser feitas em qualquer telefone. ONG Casa da Rose Endereço: Parque do Trabalhador. Vicenitna, São Leopoldo Contato: (51) 35904140 Centro Jacobina – Atendimento e apoio à mulher. Rua Tiradentes, 119. Centro, São Leopoldo. Horário de atendimento: 8h30 às 17h. Contato: (51) 35888224.
10. EDUCAÇÃO
conquistaram um diploma comentam sobre a experiência do ensino superior
J
aqueline Guedes estava com quase 30 anos quando decidiu trabalhar com educação. Cursou Magistério, mas logo percebeu a necessidade de formação superior. Tentou a faculdade presencial, porém as despesas eram altas e em pouco tempo teve de abandonar as aulas. Então ficou sabendo do curso de Pedagogia na modalidade de estudos a distância, e em 2012 a moradora do bairro Vicentina, em São Leopoldo, se formava no curso universitário. A jovem faz parte de um grupo que em 2011, segundo dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) representava 11% da população do país:os brasileiros com diploma universitário Na comunidade do Vicentina esse grupo tem outros membros, como Amanda Dalmoilinr, 26 anos, que
Atrás de um sonho trocou a faculdade de Enfermagem por Nutrição. Hoje, quase três anos depois de concluir o curso, Amanda conta sobre os benefícios desse tipo de ensino: “O nível cultural das pessoas que moram aqui muda ao cursar a faculdade. O curso vai somando no nosso aprendizado”, explica. Já a professora do ensino fundamental Raquel Camboim, 41 anos, que mora e trabalha no Vicentina, foi além da formação superior. Com pós-graduação em Ludo Pedagogia, área voltada a recreadores, educadores e coordenadores pedagógicos, ela comenta suas motivações pelo ensino superior: “Ao me formar em Magistério quis enriquecer meu trabalho para conseguir transmitir algo melhor às crianças. O ensino superior trouxe conhecimentos para que eu pudesse passar à comunidade”, avalia. Há ainda quem esteja realizando a formação superior, como a estudante de Pedagogia da Unisinos, Larissa da Silveira de 18 anos. Trabalhando atualmente na área de educação infantil, ela comenta sobre
CAROLINA TEIXEIRA LIMA
o processo: “No início do ano comecei a faculdade presencial, mas acabei mudando para a modalidade à distância, porque era mais em conta”, disse. Um dado do Censo da Educação Superior, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), confirma a tendência das nossas entrevistadas. A faculdade de Pedagogia foi
a formação com maior numero de mulheres inscritas nas universidades do Brasil em 2013, com mais de 568 mil matriculas. Além disso, a maioria dos moradores do Vicentina, encontrados para tratar do tema entre universitários e graduados formados, eram mulheres. Um fato reforçado pelo Inep, que apresenta uma taxa de 55,5% de pessoas do sexo
feminino matriculadas no ensino superior, números que aumentam no fim do processo de graduação, com uma taxa de 59,2% de mulheres concluintes no total de formandos desse nível de ensino em 2013. Ainda Jaqueline, que durante o curso universitário trabalhou na ONG Medianeira, localizada dentro do Parque do Trabalhador, a formação é uma forma
Jaqueline trabalha há mais de dez anos como professora no ensino fundamental
à
à Moradoras do bairro que
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de auxiliar as crianças da comunidade. “Cresci muito com o estudo, apesar de a teoria ser diferente da prática. Ele me ensinou como trabalhar com questões de vulnerabilidade infantil, crianças com deficit de atenção e os pequenos com necessidades especiais”, destaca. Mesmo já tendo concluído a formação superior, a pedagoga não pensa em parar de estudar. No final do ano pretende realizar as provas do Enem com o objetivo de conseguir uma bolsa para o curso de Assistente Social. “Meu sonho é trabalhar em uma ONG como assistente social, orientar os país no cuidado com os filhos e auxiliar as crianças aqui da comunidade”, conclui.
- THIAGO SANTOS
Estrelando: a Vicentina ao bairro. De acordo com Rita Amorim Fidelis, viúva de Orlando, a primeira forma de sustento da família foi um tambo de leite. Depois, fecharam o estabelecimento e iniciaram uma olaria. Com o barro tirado das margens do rio, faziam tijolos. Tijolos, inclusive, que usaram para construir sua casa e a igreja da Paróquia Nossa Senhora Medianeira. Ela descreve a época: “Tinham funcionários que trabalhavam com a gente. Eles iam até o rio e traziam tudo com tratores pra depois fazerem os tijolos”. Rita, que tem 82 anos, relembra da época sem se preocupar com a exatidão das datas. Ela explica que, no início, foi erguida apenas
uma capela de madeira. Parte do terreno foi doada por eles e o restante pela família Gomes, que também detinha um lote no local. Com o dinheiro arrecadado em festas que ela e seus familiares promoviam, levantaram a igreja atual. Desde então, trabalham como voluntários no local. A primeira casa do casal fundador do bairro ficava onde hoje é a empresa de ferramentas Gedore. Depois que o terreno foi vendido, eles se mudaram para onde, atualmente é a casa de Rita. Depois que os sogros faleceram, Rita e o marido passaram a viver ali. É dessa casa, aliás, que Juliana Fidelis, uma das bisnetas de Vicentina e Abílio, diz ter suas lembranças da infância. Segundo ela, a união da
família ficava evidente nas reuniões feitas aos fins de semana. Ela estima que hoje haja entre 50 e 70 pessoas com o nome vivendo no Vicentina. Rita reforça a ideia ao contar que quase todos os Fidelis (ou Fidélis, com acento, pois a grafia varia) vivem em ruas próximas. Isso porque, antigamente, eles ocupavam um mesmo lote de terras que depois foram desmembradas. Rita lembra também que havia apenas uma rua que ligava o bairro no início do loteamento. Na década de 1940, quando ela chegou ao bairro, tudo era um campo. A parte mais próxima do rio, entretanto, era um banhado e, até hoje, ainda tem problemas de alagamento. Contudo, como moram em
um local mais alto, não sofrem mais com isso desde a construção do dique. Atualmente, há três logradouros que levam o sobrenome da família. Além da rua Vicentina Maria Fidélis, existem as ruas Abílio Fidélis e Almerinda Gentila Fidélis. Almerinda foi a segunda mulher de Abílio e também teve filhos com ele. Rita menciona que todos se conhecem e que sua família é sempre lembrada com carinho, mesmo que o bairro tenha mudado bastante. Hoje, bem mais populoso e maior em território, ainda mantém laços adquiridos no início de sua existência. Uma herança da Vicentina para o Vicentina.
- THACIANE DE MOURA
Rita Amorim Fidelis ao lado dos retratos de família. Orlando e Abílio Fidélis (direita), filhos de Vicentina, responsáveis por dar nome ao bairro
à
Vicentina Maria Fidélis. O nome de rua é, na verdade, da fundadora do bairro. Seu marido, Abílio, foi o primeiro dono das terras que hoje compreendem o espaço da Rua do Carioca à Avenida João Correia. Abílio e Vicentina vieram de Glorinha para iniciarem o bairro que hoje leva, em várias ruas, seu sobrenome. O casal teve cinco filhos. Os dois homens, Abílio e Orlando, foram os responsáveis de levar à Prefeitura de São Leopoldo a solicitação de loteamento da área. Eles compraram parte dos terrenos das irmãs e pouco tempo depois, as primeiras ruas foram abertas. Se encarregaram, também, de homenagear a mãe, dando o nome de Vicentina
THACIANE DE MOURA
EXPECTATIVAS .11
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das melhoras dos últimos anos no Vicentina
J
á diria a famosa música: “que tudo se realize no ano que vai nascer”. Os moradores do Vicentina acreditam em melhorias, principalmente nas áreas da saúde e segurança. Enquanto a comunidade sonha com 2015, as lembranças sobre 2014 não são das melhores. Tanto é que as reclamações giram em torno das mesmas áreas nas quais eles pedem por avanços. A reclamação pela falta de segurança é tanto relativa aos casos de assaltos no bairro, quanto aos casos de violência no abandonado Parque do Trabalhador. “Temos que ficar trancados, enquanto aqueles que estão fazendo o mal têm toda a liberdade. O parque, que é o único lugar para lazer, está muito atirado”, declarou a comerciante, Maria do Nascimento Ricardo, 62 anos, que já foi vítima de assalto. Outra mercadora, Silvana Carvalho Dal Toé, 39 anos, também contou que foi assaltada e destaca a falta de segurança. “Gosto de morar aqui, moro desde os meus dez meses de vida. Para mim sempre foi bom, mas acho que está faltando segurança”, relatou. Ainda entre as reclamações e solicitações de melhorias para 2015, estão as filas do posto de saúde que funciona na sede da Associação dos Moradores do bairro Vicentina (Ambavi). “Eu não vou muito ao posto, porque tenho convênio, mas as outras pessoas que vão, a gente sabe que passam dificuldades para se consultar com um especialista”, conta a dona de casa Irma Ferreira
de Oliveira, de 64 anos. Por outro lado, alguns moradores ressaltaram pontos positivos em 2014 e novas expectativas para o próximo ano. “A água melhorou bastante, antes faltava. Algumas ruas também foram asfaltadas. As coisas estão mais ou menos, tem muita melhora a ser feita. Espero mais asfaltamentos nas ruas, porque está cheio de buracos.. A esperança é a última que morre”, argumentou o aposentado Adão Odécio Fontoura, 70 anos. O autônomo Romildo Simão, 45 anos, destacou ainda as melhorias no saneamento básico e nas escolas. “Coisas ruins todo mundo passa, mas acredito que aqui, por ser um bairro pequeno, houve uma melhoria. As pessoas estão um pouco mais inseridas nos problemas do Vicentina. É uma vila boa, moro aqui há 30 anos e gosto muito de morar aqui”, disse. Já o atendente Alisson Duarte, 16 anos, segue na expectativa de que o bairro melhore. “É muito assalto. Tinha o Parque (do Trabalhador) onde a polícia ficava e agora não está mais. Antes era uma área de lazer para caminhar e fazer seus exercícios, agora não tem mais como fazer”, comentou. Apesar das lembranças e expectativas não serem as mais positivas, a esperança ainda sopra nos corações e nas ruas do Vicentina. Talvez, o próximo ano traga mais acontecimentos positivos para a comunidade com a polícia retornando ao Parque do Trabalhador ou com um posto de saúde construído no bairro. Talvez, tudo será possível no ano que vem, quem sabe com “muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”.
- FRANCINE MALESSA
CAMILA MORAES
à
básico é à Saneamento apontado como uma
De olho em 2015
Romildo Simão Autônomo
Silvana Carvalho Dal Toé Comerciante
Maria de Nascimento Ricardo Comerciante
Adão Odécio Fontoura Aposentado
Embora as lembranças de 2014 não sejam tão boas, comunidade não perde a esperança de um novo ano melhor
A rua que parece a Lua torista que vai desviar do buraco, acabar pegando alguém”, disse. Os moradores da região já presenciaram acidentes ocasionados pelos desgastes da pavimentação e algumas pessoas acabam sendo vítimas. É o caso da comerciante Andrelisa dos Santos, 35 anos, que teve prejuízo com o carro que utiliza no trabalho. O veículo estava estacionado em frente à sua agropecuária e acabou sendo atingido por outro automóvel no momento em que o condutor tentou desviar de um dos buracos da Capitão Armindo Bier. “A situação aqui é bem complicada. Quando bateram no meu carro, tive que arcar com os prejuízos, pois o outro condutor se negou a pagar”, afirma Andrelisa. Além dos acidentes constantes, os buracos também causam estragos aos carros. Antônio da Sil-
va, 44 anos, é mecânico no Vicentina. Segundo ele, semanalmente recebe em sua oficina mais de cinco carros que foram danificados ao passar pela rua. “Geralmente recebo carros com a suspensão estragada, com pneus furados e aros quebrados, tudo por causa dos buracos aqui da rua”, explica o mecânico. O comerciante Silvan Franga, 53 anos, relembra que antigamente a rua era de chão batido. Apreensivo com as proporções das crateras da via, ele e outros moradores tentaram, em vão, preencher os espaços com cimento, pois sempre após fortes chuvas, novos buracos aparecem. Tentando encontrar uma solução, Silvan chegou a ir até a Câmara de Vereadores e conversou com um parlamentar, que por sua vez protocolou um pedido solicitando o fim dos bura-
cos da rua. O comerciante afirma que já se passaram 90 dias e nenhuma ação foi realizada para acabar com o problema. Além disso, os moradores do local acreditam KARINE DALLA VALLE
que o intenso fluxo de veículos de grande porte, como caminhões e ônibus acabam agravando ainda mais a situação.
- DIOVANA DORNELES
Moradores estão preocupados com a situação. No local já aconteceu acidentes devido aos buracos
à
Trefegar pela rua Capitão Armindo Bier é tarefa complicada para moradores do Vicentina. A via de paralelepípedo está com uma série de grandes buracos, que mais parecem crateras da Lua. Em vários pontos da rua é possível perceber a presença de buracos, mas especialmente no encontro com a Alberto Linck é que a situação acaba ficando mais crítica. Os desníveis obrigam os motoristas a dirigir em zigue-zague, muitas vezes quase batendo em pessoas que transitam próximo ao meio fio. Para a aposentada Edite Lucas de Aguiar, 72 anos, e moradora do Vicentina há 13, a grande preocupação são as crianças que transitam no local e que muitas vezes estão perto da rua. “As crianças ficam na beirinha, é perigoso um mo-
ENFOQUE VICENTINA
SÃO LEOPOLDO / RS NOVEMBRO DE 2014
http://olharesevozes.wix.com/vicentina
O
Até logo
segundo semestre de 2014 foi desafiante para os estudantes de Jornalismo da Unisinos. Iniciamos um novo projeto, mais próximo da comunidade, em um bairro que, ainda para muitos, era desconhecido. Acreditamos que a chegada do Enfoque Vicentina proporcionou à vocês a oportunidade narrar e dar visibilidade a suas próprias histórias. Sim, é um jornal feito para vocês e com vocês. Afinal, de nada
adiantariam as nossas visitas se não pudéssemos contar as histórias que rondam o bairro e seus moradores. O semestre chegou ao fim. Para nós, mais uma disciplina se encerra, para vocês um projeto inicia. O jornal não vai acabar aqui. Ele seguirá! Torcemos que por muito tempo, pois acreditamos que ainda há muito a ser contado e esperamos que vocês mesmos continuem o projeto. Outros jovens estudantes terão a oportunidade de conhecer a
EDIÇÃO
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PRISCILA BOEIRA
receptividade, o carinho e a atenção de vocês no próximo ano. Podem ter certeza que as visitas ao bairro, às suas casas, fazendas, parque, escolas, comércios foram essenciais para a nossa formação. Aprendemos a olhar para lugares que muitas vezes passam despercebidos da grande mídia, que geralmente vão aos bairros para retratar apenas aspectos negativos. Mal sabem eles a riqueza de histórias que se escondem em cada rua do Vicentina.
CAROLINA TEIXEIRA
JULIA RAMONA JÉSSICA LUANA ZANG
MICHELLE OLIVEIRA
LAURA PAVESSI
KARINE DALLA VALLE