Enfoque Vicentina 04

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EDUARDO ZANOTTI

LUCAS RODRIGUES

SAÚDE

Mudança no local do posto de atendimento desagrada moradores. Página 4

A CARA DO VICENTINA

Mais do que casas e ruas, um bairro é feito de pessoas. Páginas 7 a 10

LUIZ SCHENKEL

MÃES EM LUTO

Mulheres lutam contra a dor de perder um filho para a violência. Página 12

ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO / RS ABRIL DE 2015

http://olharesevozes.wix.com/vicentina

EDIÇÃO

4

MARCELLI PEDROSO

COMO ANDA O VICENTINA? COM APENAS DUAS LINHAS DE ÔNIBUS E FALTA DE PONTUALIDADE NOS HORÁRIOS, MORADORES SÃO OBRIGADOS A PROCURAR ALTERNATIVAS DE TRANSPORTE. PÁGINA 5


2. RECADO DA REDAÇÃO

A

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O acender das luzes no Vicentina

parentemente, bairros e vilas são todos iguais. Há sempre um comerciante conhecido, um senhor ou uma senhora que mora há décadas no lugar e grupos de jovens ou adultos mais ou menos unidos em busca de um objetivo. Entre alegrias e tristezas, lutas e conquistas do dia a dia, figuram os moradores do Vicentina. Mesmo com uma economia promissora e uma infraestrutura que vêm recebendo investimentos consideráveis, nota-se que o bairro sofre de uma doença crônica que afeta os 18 mil habitantes: o tráfico de drogas. Todas as semanas, pessoas morrem devido à essa epidemia que, com o medo, contamina o ar. As medidas para tentar a cura são ineficazes e a prevenção contra o vírus não é vista. Falta educação, policiamento e entretenimento. As pessoas têm receio de circular pelo lugares mais infectados do bairro e não gostam nem ao menos de falar sobre o assunto. As autoridades apenas aceitam a condição de que este câncer não possui uma cura ao invés de lutar enfaticamente contra o problema.

Nesta quarta edição do Enfoque Vicentina identificamos sintomas desse e de outros problemas do bairro e reconhecemos que existem muitos outros caminhos. Os moradores do Vicentina nos mostram que o bairro se constrói nas muitas histórias que lhe dão vida. As narrativas aqui expostas, à primeira vista, podem parecer usuais, mas dentro de si carregam exemplos de coragem, perseverança e a esperança de pessoas que conseguem vencer suas lutas diárias. Apesar do nome, o Parque do Trabalhador abriga histórias de quem brinca à luz do dia e de quem trafica sob a escuridão da noite. Histórias de pessoas que só querem um espaço seguro para ficar com seus pequenos. O braço que já embalou os seus, hoje embala os filhos de outras mães. A vida de quem se dedica ao cuidado daqueles que representam hoje, o amanhã do Vicentina. Esperar. É o que mais fazem os moradores do Vicentina. Esperam pelo atendimento de qualidade no posto de saúde, esperam por mais segurança nas ruas e esperam pelos ônibus, que não respeitam os

horários previstos, nem tampouco seus passageiros. Percorrendo as ruas do bairro, descobrimos que há esperança através da arte, para quem tem fé. Seja fé católica ou evangélica, a juventude é recebida de braços abertos pelas igrejas da comunidade. A mão que costura roupas também põe cartas. Os olhos que veem o presente também vislumbram o futuro através da mediunidade. Sinais da pluralidade, quase sincretista, presente no Vicentina. Do padre à cartomante. Do pastor ao babalorixá. Cada relato é como uma nota que compõe uma melodia. Melodia essa que tentamos ir escutando cada vez mais e hoje transcrevemos a vocês nestas modestas linhas, redigidas pelos futuros jornalistas da Unisinos.

- BRUNA SCHNEIDER - JEAN PEIXOTO - THOMAS BAUER EDITORES

TUANNY PRADO

pequena à AManoela brinca

na parte que ainda está em boas condições de uso da precária pracinha do Parque do Trabalhador. Com pouco policiamento, a criminalidade tem inibido que mais crianças usufruam do espaço

ENFOQUE VICENTINA O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Vicentina, de São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo.

REDAÇÃO – Jornalismo Cidadão – Orientação: Sonia Montaño. Edição: Bruna Schneider, Jean Peixoto e Thomas Bauer. Reportagem: Anne Caroline Kunzler, Caroline Paiva, Dominique Nunes, Henrique Standt, Joellen Soares, Julia Viana, Karina de Freitas, Karla Oliveira, Larissa Hoffmeister, Paloma Griesang, Priscila Boeira, Rafaella Rosar, Thais Montin e Virgínia Machado. FOTOGRAFIA – Fotojornalismo – Orientação: Flávio Dutra. Fotos: Amanda Büneker, Anderson Azevedo, Andressa Dorneles, Andressa Puliesi, Bárbara Bengua, Bruna Arndt, Daniel Rohr, Denis Machado, Eduardo Zanotti, Elisa Ponciano, Emilene Lopes, Franciele Wenzel, Gabriela Stähler, Gabriela Wenzel, Joyce Heurich, Juliana Borgmann, Katerine Scholles, Kazumi Orita, Lucas Rodrigues, Luiz Schenkel, Marcelli Pedroso, Márcia Ribeiro, Pâmela Oliveira, Priscilla Mella, Rafaela Kich, Sabrina Martins, Rodrigo Freitas, Sabrina Martins, Thamyres Thomazini e Tuanny Prado. ARTE – Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) – Projeto gráfico e finalização: Marcelo Garcia. Diagramação: Gabriele Menezes. IMPRESSÃO – Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

FALE CONOSCO (51) 3591 1122, ramal 1329

enfoquevicentina@gmail.com

http://olharesevozes.wix.com/vicentina Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Bairro Três Figueiras – Porto Alegre/RS. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos. br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinicius Souza. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


INFÂNCIA .3

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A vontade de brincar não tem lugar

opção à Adeúnica lazer para

crianças até dez anos é o Parque do Trabalhador, que enfrenta problemas de estrutura e falta de segurança

I

nsegurança, aliada a livre atuação do tráfico de drogas e ao avanço das novas tecnologias, são os principais motivos que levam as mais de três mil crianças – de zero a 14 anos – do bairro Vicentina, a ficarem dentro de suas casas. Segundo os moradores, não existem projetos sociais ou de implantação de estruturas para o lazer dos pequenos. As ações do município, voltadas a eles, giram em torno de campanhas de vacinação infantil. A única opção para os pais levarem seus filhos para brincar é o Parque do Trabalhador. Lá, os menores podem correr, jogar futebol e brincar em uma pracinha feita para crianças de até dez anos de idade. Segundo a industriária Rubiana Aita, moradora do bairro há seis anos, o parque é o único lugar onde as crianças podem brincar à vontade, sem preocupação. Porém, há uma ressalva: “Durante o dia não tem problema. Mas conforme vai chegando a noite, já não podemos mais deixá-las brincando na rua, porque é perigoso”. Rubiana é mãe de uma menina de três anos que frequenta a pracinha do Parque do Trabalhador praticamente todos os dias, sempre acompanhada de um adulto.

Aos finais de semana, o fluxo de pessoas no local aumenta, e a atenção com as crianças tem de ser ainda maior. O local não conta com segurança organizada, guardas, ou qualquer sistema que o torne mais seguro. Dessa forma, mesmo sendo o único lugar do Vicentina onde as crianças podem brincar livremente, algumas famílias optam por se deslocar até outros bairros. É o caso do autônomo Rafael Lopes e da estudante Gabriela Chamaniego. O casal é padrinho de um menino de um ano de idade e, frequentemente, levam-no até o Parque Imperatriz, distante cerca de cinco quilômetros do Vicentina. “Falta empenho das autoridades para ajudar as crianças aqui do bairro. Não temos opções de locais onde possamos levá-los para brincar. Temos que sair para o centro”, relatou Rafael. Disse ainda que muitos usuários de drogas frequentam o parque e circulam livremente entre as crianças, sem que nada seja feito. Inaugurado em março de 1975, o Parque do Trabalhador é o principal local de lazer para os moradores do Vicentina. Originalmente administrado pelo governo do Estado, em 2014 o parque foi cedido ao município de São Leopoldo por um prazo de 20 anos em uma parceria que envolve ainda o Serviço Social da Indústria (SESI) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI). A praça, onde as crianças brincam, está em péssimas condições de uso. Balanços quebrados, correntes de proteção faltando, entre ou-

TUANNY PRADO

à Devido à falta

de opções e insegurança, a brincadeira dura enquanto houver sol

ANDRESSA PULIESI

tros problemas visíveis na localidade , levam os moradores a procurarem opções de lazer em outros pontos da cidade. Para os moradores, o que impede que bairro cresça e se torne um lugar mais harmonioso é a segurança. Rondas policiais são feitas com pouca frequência, segundo Rafael: “Raramente se vê uma viatura, aqui”, reclama. Casos de estupro, assalto e consumo de drogas são corriqueiros, entretanto, o apelo de alguns membros da comunidade é para que as crianças recebam mais atenção por parte dos governantes, pois elas são o futuro do bairro e, em larga escala, também do país.

- HENRIQUE STANDT

Mãe emprestada Há 25 anos Fabiane Leão da Costa é mãe. Desses, 19 foram dedicados aos filhos de outras mães. Ela faz parte de umas das tantas mulheres no Vicentina que trabalham cuidando de crianças, uma forma alternativa buscada por muitos pais que não têm onde deixar seus filhos. A Escola Municipal de Ensino Infantil Brinco de Princesa, inaugurada em abril do ano passado, não supre a carência de vagas do bairro. A rotina na casa começa cedo. Às 7h da manhã chega a primeira criança, um bebê de apenas um ano. Quando a mãe vai deixá-lo, Fabiane já está esperando com a mamadeira pronta. Além dele, outras cinco crianças, de um a nove anos, dividem a atenção das 7h às 23h do dia da mãe comunitária. “Fico tanto tempo com eles que até me chamam de mãe”, comenta. O valor pago pelas famílias auxilia nos gastos com alimentação, luz, água e ainda sobra para pagar as contas

pessoais. Para Fabiane, que sempre sustentou a filha assim, dá para viver tranquila. Inicialmente, ela trabalhava em uma creche do bairro, entretanto, após o seu fechamento, ficou sem condições financeiras e precisou buscar um trabalho onde pudesse levar a filha pequena, que naquela época tinha apenas 6 anos. O jeito foi abrir as portas de casa para receber os que ficaram sem atendimento.

dos menores, tempo que ela tem para organizar a casa. As tarefas eram divididas com a filha, que hoje casada, não pode mais ajudar. Em um terreno grande, com grama alta, Fabiana ocupa a terça parte de uma moradia simples e pequena, o resto fica com o irmão e o sobrinho. As despesas de

AMANDA BÜNEKER

LAR EMPRESTADO A rotina na creche improvisada não se diferencia muito das casas de mães com muitos filhos. A TV ligada na maior parte do tempo é o entretenimento dos pequenos enquanto Fabiane prepara o almoço. Ao mesmo tempo, ela auxilia as meninas maiores nas tarefas da escola. “Só pode brincar depois que fez o tema”, explica ela. Após a refeição, os mais velhos vão para a escola e chega a hora da soneca

água e luz são divididas pelos três. “Todos aqui ajudam a cuidar das crianças, meu irmão até ensina os pequenos a jogar quebra-cabeça e jogo da memória”, conta ela. Próximo às datas comemorativas, eles compram presentes para as crianças, mas todos iguais para que o mimo não cause conflitos.

à Poucas vagas

nas escolas e condições financeiras fazem de Fabiane a segunda mãe das crianças da Vicentina

Completando a falta que a filha Gabriela, de 25 anos, faz em seu dia a dia, Fabiana é disputada entre as crianças. “Ensinei muitos deles a caminhar, a falar, fui eu que ouvi as primeiras palavras”, conta a mãe emprestada com brilho nos olhos. Os meninos e meninas ficam com ela até terem idade para ir e voltar sozinhos

da escola. “Muitas das crianças que cuidei, hoje já possuem filhos”, explica. Sua dedicação reflete na vida de seus “filhos”, como é o caso de Gabriel da Silveira, 20 anos, que ficou com Fabiane dos 9 aos 13 anos. Daquela época, Gabriel lembra com muito carinho, e quando perguntado sobre sua relação com Fabiane, ele nem precisa pensar: “é a minha segunda mãe, não tem outra definição.” Chamada de “tia Fabi” por ele até hoje, Gabriel lembra das brincadeiras, das traquinagens e até mesmo de um banquinho, que ela possui até hoje. “Para a Fabi nunca tinha dia ruim, não importa se acordava um dia feio, ou algo tinha acontecido, ela sempre estava sorrindo”, lembra, como se voltasse no tempo. “Ela entrou na minha vida para somar, e tudo que sou hoje, também posso atribuir à ela”, completa.

- VIRGÍNIA MACHADO


4. SAÚDE

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Desativação do posto gera reclamação

baixo à Ofluxo de

EDUARDO ZANOTTI

pessoas no antigo Centro motivou a Prefeitura a fechar o local e transferir os atendimentos para outra unidade

A

já que durante os finais de semana também abrigava festas da comunidade, sendo que a limpeza era feita pelos próprios funcionários. “Aquele era um modo arcaico de cuidar da saúde das pessoas. É normal que haja estranhamento e desagrado da comunidade diante da decisão. Quem não gostaria de ter um posto de saúde na esquina de sua casa?”, ponderou. DESINFORMAÇÃO Apesar das explicações, a comunidade do Vicentina ainda está intrigada e sem saber exatamente o porquê do fechamento. O ex-conselheiro fiscal e responsável pelo patrimônio da Ambavi, Rubem Elson Romes, 61 anos, no entanto, informa que a Prefeitura, logo após desativar a unidade, convocou uma reunião entre a Secretaria Municipal de Saúde e a comunidade. Apenas dez moradores teriam comparecido para o esclarecimento. No entendimento de Romes, as pessoas deveriam participar mais das atividades organizadas pela Ambavi, buscando melhorias para o bairro: “Uma semana antes da reunião, a associação pagou para que uma moto com alto-falantes percorresse por todo o bairro avisando do encontro, mas de nada adiantou”. MAIS AUTONOMIA PARA O HOSPITAL O presidente do Conselho Municipal de Saúde (CMS) de São Leopoldo, Jeisson Andrei Rex, que também preside o Sindicato dos Trabalhadores em Saúde de São Leopoldo (Sindisaúde), afirma que o assunto foi amplamente debatido com a comunidade e se mostra favorável à mu-

dança feita pela Secretaria Municipal de Saúde. “Todas essas manifestações foram registradas em ata. Havia baixo fluxo de atendimento noturno”, afirma Rex. O conselho, órgão deliberativo e fiscalizatório da execução das políticas públicas no âmbito dos municípios, tem a função básica de participação social e não mais apenas de controle social, que era o conceito anterior. “Proporciona que os atores sociais tenham protagonismo nas políticas públicas de saúde, em tudo que tem a ver com o gasto público, como as carências das regiões”, explica o presidente. Foi nesse contexto que se deu a discussão sobre o fechamento do Centro de Saúde do bairro Vicentina. “Eram dois postos próximos e com atendimento semelhante, a UBS Vicentina e o Centro de Saúde. Aglutinouse em um posto maior, e os profissionais foram distribuídos para outras unidades”, afirma Rex. O Vicentina fica a menos de dois quilômetros do Hospital Centenário, e o Centro de Saúde funcionava como pronto atendimento. “O centro acabava sendo subutilizado, porque as pessoas iam direito ao hospital”, ressalta o presidente. Esses números, conforme Rex, foram discutidos pelo conselho: “Vimos o que era melhor para a sociedade. Tratava-se de uma unidade sem resolutividade, com baixa demanda e com profissionais e havia outra que necessitava de mais profissionais”. Os prováveis desdobramentos do fechamento do Centro de Atendimento serão abordados nas próximas edições pelo Enfoque Vicentina.

- LARISSA HOFFMEISTER

UBS Vicentina passou a receber os pacientes do antigo posto. Apesar de ter uma estrutura melhor, moradores se queixam da dificuldade de locomoção, uma vez que a unidade fica duas quadras mais distante

à

decisão da Secretaria Municipal de Saúde de São Leopoldo de desativar o Centro de Atendimento desagradou moradores locais. Há mais de 20 anos que o centro funcionava, das 7h às 19h, na sede da Associação de Moradores do Bairro Vicentina (Ambavi). Com a mudança, as consultas agora são realizadas em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), que atende das 7h às 17h, distante duas quadras do antigo posto. A reclamação é de que a UBS passou a receber mais pacientes, mas com o mesmo número de profissionais. A alegação da Prefeitura é de que o número de consultas atendidas no plantão estava aquém do ideal para manter o atendimento no Centro de Saúde e que poucas pessoas estariam utilizando o serviço no período da noite. O fechamento se deu em janeiro último. O marceneiro Pedro Paulo Guimarães, 61 anos, lamentou o fechamento da unidade. Conforme ele, a dificuldade de locomoção até a Unidade Vicentina é o principal motivo da reclamação dos moradores. “Eu ainda tenho carro. Tem gente que não tem nem dinheiro para as passagens de ônibus, e o jeito é ir a pé mesmo”, disse. A aposentada Talila Heralt, 77 anos, sentiu o impacto do fechamento do posto. Ela precisa do auxílio de duas muletas para caminhar. Agora, sempre que seu genro não consegue levá-la de carro até o posto, ela tem de desembolsar pelo menos R$ 20 com táxi toda vez que precisa renovar as receitas da medicação para depressão e pressão alta. Conforme o secretário municipal de Saúde, Júlio Galperim, a redução de gastos foi o principal motivo para a desativação do Centro de Saúde. Galperim explica que, desde que as consultas com especialistas foram transferidas para o Centro Médico Capilé (no Centro), a demanda do local diminuiu. Dados da Secretaria de Saúde apontam que a procura por atendimento seria de 47 pacientes por dia, considerada baixa. Além disso, o governo federal deixou de repassar os recursos para os Centros de Atendimento, fazendo com que a Prefeitura concentrasse os atendimentos em um único local. O prédio, conforme Galperim, era impróprio para funcionar como posto de saúde,

SAIBA MAIS SOBRE O CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE: ENDEREÇO: Centro Capilé, Rua Conceição, 671 (onde é a central de consultas), São Leopoldo; TELEFONE: 3568-8763; REUNIÕES: realizadas a cada 15 dias (segundas e quartas). Quando há necessidade, são marcadas reuniões extraordinárias. Sempre no saguão de eventos da prefeitura, no Centro Administrativo; Das 18h15 até as 20h;

QUEM PODE PARTICIPAR: as reuniões são abertas ao público; OBJETIVO DO CONSELHO: atua junto à elaboração das leis orçamentárias, acompanhando os relatórios anuais de gestão. Interfere e acompanha a execução das políticas públicas em saúde, como representante da sociedade.


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demora das linhas, pedem mais horários e ônibus para circularem no bairro

P

edestres, carros e bicicletas são vistos com frequência no Vicentina, como em qualquer outro bairro. Mas, e os ônibus? Muito poucos. Essa é reclamação diária dos moradores do bairro, que utilizam apenas duas linhas do transporte público: Scharlau e Unisinos/Trem. Em uma manhã de sábado, mãe e filha chegam à parada por volta das 9h30, pois sabem que neste horário teria a opção de pegar a linha Sharlau ou Unisinos. Moradora do bairro há 15 anos, a mãe, que pediu para não ser identificada pela reportagem, acompanha sempre a demora das duas linhas disponíveis. “Só temos essas duas opções de ônibus e que eram para passar de 15 em 15 minutos, mas os horários nunca são respeitados”, reclama. A primeira linha a passar próxima do horário foi a Unisinos/Trem da empresa BEM. Para uma manhã de sábado, havia poucas pessoas naquele horário, uma média de vinte passageiros. Segundo o motorista, Lauro Miguel da Rosa, os itinerários sempre são cumpridos dentro dos horários estabelecidos. “Acontece que tem horários que não pegamos um grande número de passageiros, sendo assim, não cobrimos o nosso banco de dados, e por isso surgem as reclamações.”, explica. Os moradores do Vicentina só contam com algumas alternativas para se deslocarem do bairro para o centro, já que não existem no bairro pontos de táxis ou lotações. Para quem possui carro, maior facilidade de locomoção, caso contrário, o morador tem de se prevenir para não se atrasar. Acordar cedo, pegar um ônibus, um trem e por último mais um coletivo é a rotina de muitos moradores. E também é o caso do operador de máquinas, Luzardo Santos Brum, 58 anos. “Trabalho em Porto Alegre, e assim acordo às 6h para conseguir chegar às 8h no meu serviço. Na volta, às vezes prefiro descer na estação e vir a pé para casa, assim chego mais rápido que o ônibus.”, comenta. Como de costume, a doméstica Elza da Silva Duarte, 56 anos, utiliza o

Luta diária para ir e vir ônibus da Sinoscap, linha Scharlau, às 6h50. Segundo Elza, esta e a próxima linha são as únicas que respeitam o horário, ainda assim ambas também são lotadas pela quantidade de moradores que utilizam estas linhas. A reclamação fica pela restrição de alternativas para quem mora no bairro. Em casos de eventualidades, e não conseguir o transporte público, os habitantes recorrem à ajuda de vizinhos, com caronas ou em último caso, pedem um táxi. Segundo a dona de casa, Lorete Beatriz Rodrigues, 46 anos, os primeiros horários das linhas são lotados, e o mesmo ocorre no final da tarde, onde moradores ficam esperando por mais tempo nas paradas por não haver mais lugares dentro do ônibus.

MARCELLI PEDROSO

OUTRAS OPÇÕES Em vez de ficar esperando por ônibus, há quem utilize a bicicleta para se locomover dentro do bairro e até mesmo ir ao centro. Um exemplo é o ciclista Claudiomiro Lopes Reis, 45 anos. Além de ser dono de uma oficina de bicicletas, Claudiomiro realiza pagamentos de contas, vai em consultas médicas, o que precisar faz em duas rodas. “Tudo que eu faço é de bicicleta, apenas no final de semana para sair ou ir ao Padre Réus (Santuário da Igreja Católica localizado no bairro Pe. Réus de São Leopoldo), utilizo o ônibus”, explica. A manicure Camila Ferraz, 29 anos, deixou de utilizar os ônibus do bairro pela demora. Quando fazia um curso em Canoas, a manicure saía do Vicentina às 16h para chegar a tempo da aula, às 18h30. Atualmente, toda semana ela precisa fazer as compras de produtos para o salão, nesse caso, utiliza seu carro ou vai de bicicleta até o centro da cidade, mas não utiliza mais o transporte coletivo do bairro por sua demora.

Usuários afirmam que só duas linhas passam no bairro, mas contrato determina que sejam seis

à

à Moradores reclamam da

TRANSPORTE .5

A CONTRADIÇÃO Segundo o Conselho Municipal de Transporte e Trânsito, as linhas de ônibus de São Leopoldo são regidas por concessão pública de execução do serviço público de transporte coletivo, através da empresa de Consórcio Operacional Leopoldense, desde 2011. No contrato, seis linhas deveriam operar no Bairro Vicentina: Feitoria Controil; Gedore; Jardim Luciana/Tirolesa; Vila Maria; Vila Maria/

Unisinos e Monte Blanco/ Vila Maria. Contudo, apenas duas linhas passam diariamente pelo bairro: Vila Maria e Vila Maria/Unisinos. O horário na tabela é para ser seguido pelos motoristas, de 30 em 30 minutos, de segunda a sexta-feira, já nos finais de semana o tempo se estende para cerca de uma hora.

- JOELLEN SOARES


6. CRENÇA

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A fé na arte

igrejas do à Nas Vicentina, a

RAFAELA KICH

expressão artística também faz parte da rotina dos devotos

Q

Folclore prepara encenações e dinâmicas. O trabalho artístico dos jovens concorre todo ano no Festival de Artes Cristãs (FAC). O resultado da dedicação está na estante da sala do CLJ: inúmeros troféus recebidos ao longo de 20 anos de grupo. César Pereira, coordenador da equipe de música, desempenha a função de jovem cristão há quatro anos. “Aqui é preciso ter iniciativa, fazer com que as pessoas se sintam bem”, explica. Em um bairro onde o

tráfico e o consumo de drogas têm presença constante, César lembra o quanto a arte religiosa é importante para auxiliar os jovens. “Aconselhamos muito os que chegam ao grupo. Procuramos primeiro saber como são suas famílias e sua criação. As aulas de canto e violão ajudam o jovem a não partir para o lado das drogas”, enfatiza. Além disso, o CLJ promove festas para angariar fundos para a paróquia e, no fim de todo ano, acontece o “piquinicão”, encontro que

ocorre em Canela e promove atividades esportivas, jogos de tabuleiro e brincadeiras recreativas. A poucas quadras da igreja católica está a Igreja Adventista do Sétimo Dia do Vicentina. Às 11 horas de um sábado de calor, o culto que iniciou às nove horas está chegando ao fim. De fora é possível ouvir que a música está presente tanto quanto a pregação do pastor. Desde 1984 como frequentador, Jorge Alberto Fiametti, 53

Música e teatro congregam jovens e divulgam filosofia de vida

à

uando chega o final de semana no Vicentina, os moradores procuram formas de escapar da rotina. A comunidade é conhecida pela variedade de crenças religiosas. Mas, o que muitos não sabem, é que as igrejas são usadas para além dos cultos. Grupos de música e teatro demonstram que a religiosidade não se expressa somente por meio de orações, mas também de arte. A paróquia de Nossa Senhora da Medianeira e a Igreja Adventista do Sétimo Dia possuem atividades artísticas voltadas principalmente para os jovens. Luana Leite Rodrigues, 18 anos, participa do Curso de Liderança Juvenil (CLJ) desde os 14. Entretanto, é o bastante para que a jovem ajoelhe-se e faça o sinal da cruz ao entrar e sair da igreja como sinal de devoção. “Cada paróquia tem um CLJ. Temos encontros de formação, aulas de canto e violão gratuitas que iniciaram em março. As apresentações ocorrem nas missas, reuniões e em festivais que participamos”, conta. Na Nossa Senhora da Medianeira, o Departamento de

anos, é ancião da igreja e acompanha o trabalho realizado ali. “Temos principalmente o grupo de jovens que trabalha com música e teatro. A arte é uma forma positiva de atrai-los para a igreja. Isto de certa forma nos ajuda a tirá-los do caminho da marginalidade”, avalia. Os ensaios de sexta-feira à noite na Igreja Central do bairro servem para que o grupo de cerca de 40 jovens se apresente em qualquer igreja de linha religiosa que os convide com antecedência. Rauana Soares, 18 anos, mora desde que nasceu no Vicentina, mas decidiu fazer parte do coral da igreja há apenas um ano. A jovem aliou a fé ao gosto pelo canto e ingressou no grupo. “É uma experiência muito boa mostrar o amor de Deus. Cantamos para ajudar as pessoas. Não fazemos isso com exibicionismo”, salienta. O Vicentina é um bairro de pluralidade. Com o objetivo de manter o equilíbrio e renovar a esperança na melhoria da qualidade de vida, os devotos utilizam a arte religiosa para fortalecer sua fé. Independente de suas crenças, Luana, César, Rauana e Jorge acreditam que a arte é capaz de auxiliar não somente os jovens, mas o bairro a tornar-se um ambiente mais leve.

- DOMINIQUE NUNES

Igrejas mantêm programação para jovens muito positivo. “Minha vida é melhor, agora tenho com o que me preocupar. Antes não tinha nenhuma responsabilidade”, diz. A menina valoriza os encontros e a fé, que para ela é fundamental. César Pereira, um dos coordenadores do CLJ, integra o Pós 2, que aborda assuntos como política, violência e outros temas da atualidade, de acordo com a fé. Além dos debates e reuniões, o grupo ajuda nas atividades das igrejas, como as missas e a limpeza da paróquia. Eles participam também de eventos de integração da diocese como o “Piquinicão”, que promove atividades esportivas e jogos, festas e festivais de arte. Ele acredita que tais atividades desmistificam a ideia de que a igreja é um lugar chato. EVANGÉLICOS TAMBÉM APOSTAM NA JUVENTUDE As igrejas evangélicas também demonstram preocupação com o cultivo da fé junto à juventude. Na Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ) as noites de sábado são

de culto feito especialmente para eles. O Grupo “Missionário de Jovens” busca promover um culto atrativo para a juventude. Segundo Nerli Sabino, 21 anos, filho do pastor da igreja e integrante do grupo, o culto inicia com músicas e brincadeiras, para depois se discutir a Bíblia. Durante a pregação são levantados temas como drogas, vida sexual e violência. Eles buscam esclarecer dúvidas e ensinar de acordo com a visão da igreja. “É um debate, todos podem opinar e dar seu ponto de vista. Depois alguém mais experiente dá uma orientação”, explica. Segundo ele, o espaço é bastante livre para críticas e dúvidas. Sabino destaca também o trabalho da igreja no combate às drogas.“Realizamos trabalhos de evangelização em grupo. Saímos em duplas falando, convidando e tentando ganhar esses jovens. Às vezes não conseguimos, mas vamos tentando”, conclui. Segundo o jovem, há casos de ex-usuários de drogas que, aos poucos, vão deixando o vício e se integrando ao grupo.

- PALOMA GRIESANG

JULIANA BORGEMANN

GABRIELA STÄHLER

Movimento juvenil abre espaço para compartilhar vivências

à

Dentro do bairro Vicentina é possível identificar várias igrejas, cada uma com sua crença e particularidade. Em comum está o intuito de atrair mais fiéis, entre eles os jovens, que buscam as instituições procurando um espaço para vivenciar sua fé. Igrejas católicas e evangélicas tentam atrair esse público de forma diferenciada. Entre as opções estão os grupos de jovens, um espaço onde eles podem compartilhar e aprender mais sobre a religião e sobre assuntos da atualidade. Na Paróquia Nossa Senhora Medianeira, todos os sábados os jovens se reúnem através do Curso de Liderança Juvenil (CLJ). Níveis diferenciados são oferecidos. Os iniciantes fazem parte do Pré-CLJ, recebem ensinamentos a respeito dos assuntos religiosos. Ingrid Goetems, 13 anos, participa há dois meses do movimento e é uma das integrantes da turma pré. A menina veio até o grupo a convite de amigos, gostou e permaneceu. “Não fazia nada durante a tarde, então decidi participar e fiquei. Eu gosto”, conta. Para Ingrid, participar do grupo teve um impacto


PERSONAGENS .7

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Ave Mariazinha do Vicentina

história de uma à Acaminhante quase

indigente que é feliz por que não precisa de muito para viver

A

rotina se repete quase todos os dias e no sábado não é diferente. Sob um sol nada amistoso, Mariazinha caminha em um compasso quase ritualístico. As passadas são vagarosas, mas decididas. O corpo pequeno e aparentemente debilitado não deixa de transparecer a força de alguém que descobriu a própria liberdade. Curvada, parece que o peso da garrafa depositada em seus braços enrugados é que a carrega para casa, ou melhor, para uma das muitas residências que possui. Mariazinha é do mundo e o mundo é dela. Aos 77 anos, Maria Derli, nome de batismo, não sabe dizer a própria idade ou local de nascimento. Aliás, pouco se sabe da história da Mariazinha, como ficou conhecida no bairro Vicentina. Porém, a cena dela percorrendo vagarosamente pelas ruas do bairro se tornou frequente. Oficialmente ela é moradora do Asilo São Francisco, na Av. Theodomiro Porto da Fonseca, do lado do Hospital Centenário de São Leopoldo. Mas segurá-la no local de repouso parece impossível. “Não gosto de ficar presa num lugar só. Gosto de sair por aí e conversar com as pessoas. Sou feliz assim”, enfatiza. No resto do tempo, ela caminha pelo bairro, onde recolhe materiais recicláveis e os armazena em um cômodo da casa que aluga com parte da aposentadoria. “Eu recolho essas coisas e os carroceiros vêm buscar, gosto de ajudar eles”, conta ela enquanto aponta para uma bagunça organizada que contém latas e garrafas multicoloridas, sofás velhos e toda bugiganga descartada pelas pessoas. Repousando tranquilamente em uma cama abandonada no canto da sala está a companheira inseparável de Mariazinha. “A Mitian é minha gatinha, que nunca me deixa sozinha. Vai me encontrar no caminho e esses dias até quis pegar o ônibus comigo”, lembra a idosa. O carinho pelo felino é tanto que ela só a trata com salsicha e carne moída. A gata acaba se alimentando melhor do que a dona, que tem uma dieta afetada pelos graves problemas de estômago e diz comer só aquilo que gosta: bolachas, salgadinhos e guaraná. O amor da senhorinha pelos animais é notável. Ela

recolhe os bichinhos que são abandonados e sempre manifesta sua raiva contra aqueles que cometeram a barbárie de deixá-los ao relento. “Tem muita gente ruim no mundo! Imagina só, abandonam os bichinhos sem comida. Tem uns que envenenam”, desabafa a velhinha. Sem filhos ou família, dona Mariazinha conta com uma amizade que vai além do que a memória consegue se lembrar. Iracema dos Santos, 74 anos, é a pessoa mais próxima de um parente para Mariazinha. É na casa de “dona Sema” que Mariazinha passa a maioria das noites. “Ela sempre está por aqui e acaba ficando. De manhã eu dou um café e agasalho se está frio, mas depois ela sai por ai, ninguém segura”, conta Sema. Católica fervorosa, Sema relata que as duas costumam olhar programas cristãos e também que reza muito por Mariazinha. “Ela é muito teimosa, não escuta a gente. A gente faz pelo bem dela”, afirma dona Sema, revelando um dos traços fortes da amiga. Mesmo que não tenha muitos pertences, Mariazinha valoriza tudo o que tem. Cada coisa que possui tem peso de ouro na vida, que apesar de longa, foi sofrida, com várias internações em três hospitais da capital devidos às dores do estômago. Talvez por ter permanecido tanto tempo presa a uma cama, ela não consegue mais ficar parada. Embora seja dona de uma história atravessada pela dor, Mariazinha é feliz. Ela parece ter se esquecido de que os anos correram e, sem noção do tempo apenas tem vagas memórias de tudo pelo que passou. Talvez esse seja o segredo. Ela segue em frente, caminhando decidida a ser quem ela é.

DANIEL ROHR

à

Mariazinha, 74 anos, é conhecida por suas andanças no Bairro Vicentina

- THOMAS BAUER PRISCILLA MELLA

DANIEL ROHR


8. PERSONAGENS

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Agulhas, cartas e benzeduras

popular no Vicentina, principalmente pelas atividades que faz

M

oradora doVicentina há 34 anos, Miguelina Moreira, 64, viu, de uma hora para outra, o espaço de área verde receber casas e uma nova vizinhança. Mas além de presenciar o crescimento do bairro, Miguelina pode também ver o futuro através das cartas. “Aprendi com uma tia minha”, conta ela, enquanto se dirige até a sala de sua casa, segurando uma mesinha branca dobrável, com o caminhar lento e cansado. Ela começa a abrir as cartas, uma a uma, contando o que elas dizem. A cartomante também benze, costura, é amante de Fuscas e torcedora do Corinthians: “Troco a novela pelo futebol”, orgulha-se. “Muitas pessoas vão até ela para fazer reparos em roupas e pedir uma benzedura, principalmente mães que desejam abençoar seus filhos.” A cartomante, costureira e benzedeira deu à luz quatro crianças, mas hoje convive com três de seus filhos, dois homens e uma mulher. “Eu perdi um filho quando ele tinha só nove anos, e foi na véspera de Natal”, ela diz,

BRUNA ARNDT

parando para respirar e conter as lágrimas que lhe enchiam os olhos e molhavam o rosto. Miguelina conhece quase todos os moradores. Entre uma pergunta e outra, um vizinho passa na rua e grita: “Oi, Dona Miguelina!”, enquanto outro já se sente em casa ao atravessar o portão. E o carinho dos vizinhos está sempre presente. “As meninas vêm aqui e fazem faxina pra mim de graça”, conta ela se referindo a duas de suas vizinhas.

A cartomante Miguelina e o comerciante Valdomiro são moradores do bairro há mais de 30 anos

à

à Miguelina Moreira é muito

VENDEDOR, AMIGO E DISPONÍVEL Andando alguns passos mais à frente da casa de Dona Miguelina é possível conhecer Valdomiro Gonçalves Ricardo, ou melhor Valdo, nome pelo qual a vizinhança o conhece. Ele tem 65 anos e mora com a companheira, Maria do Nascimento Ricardo, há 42 anos no Vicentina e há 27 anos eles têm um pequeno mercado que “está sempre aberto, entre as sete e as vinte e duas”, como ele mesmo fala. O casal simples é conhecido justamente por estarem “sempre abertos”, mas mesmo a amizade com a vizinhança não os deixou longe da criminalidade que maltrata o bairro. O comerciante conta, mostrando as grades que fecham as janelas e portas do mercadinho,

que já foi assaltado pelo menos três vezes. Assim como todo bairro tem os moradores mais “famosos”, o Vicentina também tem os seus, seja por serem donos do mercadinho ou por afastarem o mal com uma bênção e ver o futuro nas cartas, mas acima de tudo pelo carinho que têm com seus vizinhos. Dona Miguelina, por exemplo, além de suas várias “profissões”, é conhecida, principalmente, pela maneira como trata aqueles que vivem nas casas vizinhas. “Eu trato todo mundo bem”, conta ela com um sorriso.

- JULIA VIANA

Tradição gaúcha: de filha para mãe de sua rotina. Para ela, foi o exemplo da filha que transformou toda a família. “Meu marido antes não frequentava e nem tinha contato com nenhum Centro Tradicionalista, mas passou a ir depois que eu e minha filha começamos a conviver mais com este movimento”, conta. A coordenadora do Departamento Cultural do CTG Tapera Velha ainda lembra que a paixão da filha pelas tradições também ultrapassou as paredes de casa. “O namorado dela começou a ir às apresentações do grupo de dança primeiramente para acompanhá-la, mas hoje já participa ativamente dos eventos que o CTG promove”, ressalta Rosane. Durante todos os anos em que frequenta o meio tradicionalista, a massoterapeuta pode constatar uma grande ascensão da participação feminina no ambiente, que antes era dominado pelos homens. Rosane remete aos filhos o motivo do crescimento do número de mulheres que integram os CTG’s. “Normalmente são os filhos que trazem as mães e os pais para acompanhar as apresentações e isso pode

despertar um interesse neles pelo movimento”, conta. Ela ainda lembra que o ambiente do CTG com músicas, jantas e eventos voltados às mães, por exemplo, acaba tornandose favorável e atrativo para o público feminino.

ELISA PONCIANO

O VICENTINA COMO PROTAGONISTA Há 52 anos, com a criação do CTG Tapera Velha, o Vicentina passou a ser protagonista no meio tradicionalista gaúcho, participando de eventos e dos principais concursos da área, como o Encontro de Artes e Tradições Gaúchas (Enart), realizado anualmente. Desde então, a agenda do Centro de Tradições do Vicentina é lotada. De segunda a sábado há ensaios dos grupos de dança mirim e adulto, além de aulas de declamação de poesia e grupos de estudo sobre o Rio Grande do Sul. No domingo o Tapera Velha abre suas portas para promover curso de fandango e também ensaios do grupo de dança Xirú. Todas essas ações são feitas de forma voluntária, ou seja, todos os que cooperam na organização

das jantas de sexta à noite, por exemplo, fazem o trabalho “de coração”. “A maioria do pessoal que tem ajudado a manter o funcionamento do CTG não ganha nada por isso. A paixão pela cultura fala tão alto, que muitos abdicam de usar o tempo disponível que

têm para nos auxiliar de alguma forma”, lembra Rosane. Ela também destaca que o senso de comprometimento e disciplina que envolve os colaboradores é uma das características de quem decide viver este estilo de vida.

- RAFAELLA ROSAR

Orgulhosa, Rosane mostra uma foto do grupo de dança Xirú, do qual participa desde 2003

à

De pai para filho ou de filho para pai? Quando o assunto é relacionado à transmissão da cultura e dos valores tradicionalistas gaúchos entre as gerações, a ordem dos fatores não altera o produto. Foi o que aconteceu com a massoterapeuta Rosane Terezinha da Costa, 50 anos, que passou a frequentar o CTG Tapera Velha, no bairro Vicentina, em São Leopoldo, por influência de sua filha, na época com seis anos, que participava do grupo de dança mirim do Centro Tradicionalista. Hoje, Rosane, o marido, Antônio, 49 anos, e a filha Aracely, 18, participam dos grupos de dança e de outras atividades culturais promovidas pelo CTG Tapera Velha. A massoterapeuta, que também concilia a profissão com as suas funções no Departamento Cultural do Centro de Tradições, vê no CTG do Vicentina uma boa oportunidade de unir a comunidade com as famílias. Em 2003, quando levou a filha para participar do grupo mirim pela primeira vez, Rosane não imaginava o quanto o percurso de sua casa até o CTG do bairro faria parte


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PERSONAGENS .9

Um carrinho cheio de esforço

à Aposentado, Celso teve que

KATERINE SCHOLLES

voltar a trabalhar para sobreviver

A

PÂMELA OLIVEIRA

fica surpreso ao pensar na possibilidade de ter netos. “Netos? Se tenho, não sei!”, declara com um sorriso atrapalhado. Não vê o filho mais velho há 15 anos e garante que os mais novos, Júlio César de 25 e Erick com 10, não têm filhos. Com um misto de nostalgia e tristeza, ele lembra: “O Mateus foi para o Mato Grosso com a ex-mulher, nunca mais vi ele”. Celso é discreto, reservado, não gosta de dar muitos detalhes sobre sua vida, afinal para ele, “não tem nada de interessante”. Mas a realidade acaba contrariando sua própria fala. Ele já foi caminhoneiro, motorista particular e inclusive ajudou na construção do campus São Leopoldo da Unisinos. “Cortei muito basalto para fazer corredores e escadas. Hoje, nem sei mais como é o lugar”, afirma. Morou em Lajeado, antes de vir para o Vicentina e quando chegou em 1970 no bairro, em suas palavras, tudo ainda era mato, não tinha nada. “Hoje, a realidade é diferente”, comenta ao olhar para o filho de 10 anos que segura nas mãos um tablet como brinquedo. Seu Celso, não deixa de demonstrar sua boa vontade, faz questão de oferecer sofá, bolachas e o refrigerante para quem o visita. Mesmo falando pouco, o olhar do aposentado transmite uma vida inteira de quem nunca

conseguiu parar de batalhar, e a casa é um exemplo disso. Com reformas inacabadas, ela reflete o que ainda falta conquistar, mas estampa em suas paredes, quadros esperançosos. Eles trazem uma leveza ao ambiente, remetem à tranquilidade que ainda falta na vida do aposentado. Chega a hora do almoço, mas o tempo é breve. Durante a tarde, Celso percorrerá mais ruas do bairro para fazer a coleta na companhia de seu carrinho. “O que vou fazer depois?”, repete o aposentado ao ser questionado sobre sua rotina. Abaixa, levanta, estica, joga, empurra. “Tudo de novo”, completa.

- KARLA OLIVEIRA PÂMELA OLIVEIRA

Celso caminha todos os dias pelo Vicentina para recolher materiais recicláveis

à

baixa, levanta, estica, joga, empurra. Esses verbos poderiam formar um melô de academia, ou, quem sabe, ser o próximo hit do verão no ritmo do arrocha. Mas na vida de Celso Clóvis Schiincke, as palavras significam uma forma sistemática de garantir o sustento. Celso, com o corpo cansado de 72 anos, trabalha todos os dias. Das seis horas da manhã até o entardecer, ele repete esses movimentos enquanto percorre as ruas do Vicentina. O trabalho consiste em recolher garrafas pets, latinhas, papelão e outros materiais que enchem um carrinho para serem revendidos. Essa rotina começou há cerca de um ano, “para não passar fome”, já que a pensão da aposentadoria não era o suficiente para manter a família. Entre passos apressados e pequenas paradas, Celso junta o que lhe renderá quase um salário mínimo por mês. De bermuda, camisa social aberta e chinelos, ele recebe o material das mãos dos próprios vizinhos com um jeito tímido simpático. “Já deixamos tudo separado para ele. É muito bom, assim o lixo não fica espalhado pela rua”, conta Maria Ângela da Graça, dona de uma mercearia e conhecida há anos do aposentado. Celso não vê seu exercício diário como uma contribuição para o bairro. “Tenho que trabalhar né?!”, fala. Sua “obrigação” é uma pequena ajuda para evitar a poluição que ocupa alguns terrenos baldios do Vicentina, pois mesmo com a coleta seletiva parte da população acaba descartando seu lixo em lugares não apropriados. Há 40 anos morando no bairro, o descendente de alemães e natural de Rio Pardo, está acostumado com o cenário do lugar. Ao refletir sobre o bairro, empurrando seu carrinho, não cria muitas exceptivas para possíveis mudanças. “Para mim está bom, está normal! Já estou acostumado”, revela o morador sem muita expressão. O único momento do dia em que Celso se permite uma pausa é na hora de almoçar. Porém, o caminho até os limites da Vicentina é longo. Casado e pai de três filhos,


10. SUPERAÇÃO

ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO | Abril / 2015 | http://olharesevozes.wix.com/vicentina JOYCE HEURICH

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Devido aos poucos sintomas que apresenta, Lorenzo teve o autismo detectado somente após a visita a vários profissionais. Hoje, faz tratamento, vai à escola e participa de aulas de natação

Quando o amor não tem medidas como à Histórias a da família

Oliveira mostram o caráter superador dos moradores do Vicentina

L

orenzo observa o movimento na vila, do lado de dentro do portão de casa. Sentado sozinho, o menino de 12 anos cumprimenta com alegria os vizinhos que passam pela residência. A mãe, Norma Oliveira, limpa a casa durante a folga do trabalho de programadora em uma empresa que produz roupas de chuva. O que muitos não percebem ao observar a rotina dos dois é a dura realidade enfrentada pela família: Lorenzo tem picos de autismo e foi diagnosticado com atraso mental. De acordo com Norma, as dificuldades tiveram início quando, com apenas 23 anos, ela resolveu sair de Cruz Alta para procurar uma vida melhor em São Leopoldo. O filho mais velho, hoje com 19 anos, nasceu pouco tempo de-

pois da mudança. “Eu era menina do interior, sempre fui muito inocente”, narrou. Sete anos depois nasceu Lorenzo, trazendo ao lar responsabilidades diferentes das que ela estava acostumada a ter. “Enquanto tu não tem a ferida, ela não te dói”, comentou, olhando com amor para o caçula. O autismo, transtorno de desenvolvimento que geralmente aparece nos três primeiros anos de vida, compromete as habilidades de comunicação e interação social. Foi pelo atraso e dificuldade na fala que Norma percebeu que Lorenzo precisava de ajuda. “Corri por diversas cidades e profissionais, e foi muito difícil descobrir a doença, pois ele não aparenta muitos sintomas”, esclareceu a mãe. O menino, após receber a atenção de profissionais da fonoaudiologia, já apresentou melhora, mas ainda tem problemas na dicção e na formação de frases. “É normal ele conversar com os vizinhos, mas a maior parte do tempo ele passa quietinho, no cantinho dele”, completou.

Embora tenha passado por tempos ruins, Norma se alegra com o que já foi conquistado. “Hoje temos a nossa casa, ele faz tratamento, vai à escola e participa de aulas de natação”, comemorou a mãe. Mas Lorenzo, devido às suas condições, precisa frequentar uma instituição de ensino especial, localizada em um bairro mais distante. “Tive muito medo, pois já ouvi de alunos da escola da vizinhança que sofreram preconceito lá dentro. Ele não aprende no mesmo ritmo que as outras crianças, não queria que sofresse bullying”, explicou. Atualmente, Lorenzo é estudante da Escola Estadual Especial Aracy de Paula Hofmann. Lá, segundo Norma, existem diversos alunos com Síndrome de Down e autismo completamente alfabetizados. Seu sonho é que o filho, que aprendeu a caminhar e andar de bicicleta com tanta facilidade, também tenha a possibilidade de desenvolver a escrita e a leitura como as outras crianças. “Tem coisas que

ele ainda precisa de ajuda para fazer”, comentou. Mas a dedicação e o carinho são dados aos dois filhos da mesma forma. “Trato ele normalmente. Se precisar de umas chineladas eu dou, porque ele também tem que entender que tudo tem limite”, declarou a dona de casa, com ar de brincadeira. Torcedor do Internacional, o filho mais novo adora futebol. Como presente de aniversário, em maio, quer um uniforme novo do time e uma festa com telemensagem. “E eu vou atrás. Qual mãe não faz tudo pelo filho?”, questionou Norma, que sempre deixou claro aos dois meninos que o mais importante na vida é seguir o caminho certo, longe das drogas e do crime. Ao mais velho, Norma deseja uma boa educação e um emprego digno. Para Lorenzo, sonha que as mesmas oportunidades sejam oferecidas, em um mundo conhecido por não aceitar as diferenças.

- THAIS MONTIN

ONDE PROCURAR AJUDA ASSOCIAÇÃO MANTENEDORA PANDORGA A Pandorga é uma associação beneficente que, desde 1999, propõe-se a auxiliar a sociedade na compreensão do autismo. A instituição promove cursos, oficinas e palestras sobre os diversos aspectos do distúrbio, além de contribuir para a formação de redes e apoiar a luta pelos direitos dos autistas. A associação trabalha com crianças, adolescentes e jovens adultos com autismo grave, oferecendo assistência a eles e às suas famílias. A sede da Pandorga localiza-se na Rua Pedro Peres, 141, Bairro Rio Branco, em São Leopoldo, e pode ser contatada através do telefone (51) 3588-7799 ou do e-mail apandorga@ terra.com.br. APAE SÃO LEOPOLDO A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de São Leopoldo também oferece assistência aos autistas. Os programas oferecidos incluem fonoaudiologia, psicologia, neurologia, nutrição e tratamentos em diversas outras áreas. A APAE fica na Avenida Theodomiro Porto da Fonseca, 264, no centro de São Leopoldo. É possível entrar em contato através do telefone (51) 35921401 ou do e-mail saoleopoldo@apaebrasil.org.br.


SUSTENTO .11

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O aperto do bolso dói no peito MÁRCIA RIBEIRO

na realidade dos moradores do bairro Vicentina pode não ser tarefa tão fácil

A

tentas aos desenhos da televisão, três crianças passam a manhã de sábado pulando entre um sofá e outro. Concentradas nos personagens que trazem a risada inocente que toma conta da casa de cinco cômodos da habitação Minha Casa Minha Vida, no bairro Vicentina. A jovem mãe, de 22 anos, Grazieli Machado Maiske, desempregada, com pouco estudo e sem conseguir uma creche para deixar os dois filhos menores, recebe o sustento da família através do programa Bolsa Família. Mãe aos 15 anos, precisou assumir desde cedo a responsabilidade de cuidar de uma nova vida em seus braços. Hoje, a responsabilidade triplicou e os gastos precisam ser controlados. Com três filhos para cuidar ela recebe R$ 35 de auxílio para cada. O apertado orçamento de R$ 105,00 não permite que a mãe realize os desejos dos pequenos que pedem roupas novas e brinquedos que assistem nos comerciais. Morando há oito anos no bairro, mudou-se para a

casa sem muitos acabamentos desde que sua mãe foi embora para Cachoeirinha com seus cinco irmãos. Ao contar sua história, aflorou o amor de mãe e não segurou as lágrimas ao dizer que seu sonho é: “melhorar a vida dos filhos, poder dar o que eles pedem, fazer o melhor para que eles tenham conforto e um bom futuro”. A realidade de Grazieli também repete-se com outras famílias do Vicentina que vivem com o benefício. Não muito longe dali, na avenida

principal do loteamento, uma placa de “vende-se sacolé” escrita à mão chama atenção da garotada que passa em frente à casa. Dona Eli, também vende os cosméticos da Natura buscando uma renda extra para manter o lar. Moradora há quatro anos do Vicentina, saiu da cidade de Santo Augusto, a 438 km da Capital. A vinda para São Leopoldo foi motivada pela busca de novas oportunidades no mercado de trabalho com o sonho de melhorar a vida dos filhos.

Deixou o marido no interior que uma vez por mês enfrenta a viagem de quase seis horas para matar a saudade da família. Há três anos fora do mercado de trabalho em virtude da gravidez e depois de um ano e oito meses do nascimento do filho, Eli Batista Bueno, 39 anos, aguarda uma vaga na creche municipal. Somente com a matrícula do caçula, poderá voltar a trabalhar como doméstica. A casa de seis peças

acomoda bem a família que construiu o terceiro quarto nos fundos da moradia. Na residência vivem Eli e suas filhas, Jussara, de 18 anos, Cinara, 11 anos, a neta de dois anos e dois meses e o filho caçula de um ano e oito meses. O orçamento de um salário mínimo e mais R$ 147 reais do programa assistencial resultam em R$ 935 para manter cinco pessoas por mês. As despesas de água, luz e o pagamento da prestação do financiamento habitacional

Venda de sacolés e produtos de beleza, além do Bolsa Família, auxiliam Eli a manter seus filhos e neta

à

à Sustentar uma família

comprometem R$ 230 reais. Criado em 2003, o programa Bolsa Família é parte do Plano Brasil Sem Miséria, do Governo Federal. Considerado uma referência em assistência social, beneficia mais de 14 milhões de lares brasileiros, com o incentivo de retirá-las da extrema pobreza. As famílias recebem o valor de R$ 35 por criança, limitando o valor de até R$ 175 do benefício.

- KARINA DE FREITAS

O sonho da casa própria só começou mentar a renda é fabricar picolés caseiros e vender em casa. “O dinheiro está ajudando nas reformas. Pegamos empréstimo no banco para fazer a garagem e fechar os fundos da casa com um muro alto. É o jeito”, dá de ombros, resignada. Com as mãos na cintura, olhando fixamente para o terreno, ela recorda: “Se não fosse assim, já tinham levado tudo. Nos primeiros dias morando aqui quase levaram minha máquina de lavar roupa”, conta, deixando escapar um sorriso tímido. Virando a esquina, à direita, moram Terezinha da Silva, 66 anos, e José Matias, de 62 anos. O casal sobrevive com a curta aposentadoria por invalidez de Terezinha e do dinheiro da reciclagem de lixo. A aposentada sofre de ataques epiléticos. O companheiro é doente do coração e desmaia repentinamente, mesmo assim não conseguiu comprovar ao governo sua impossibilidade de trabalhar formalmente. A fachada da casa virou um depósito de entulhos com sacos, madeira e eletrodomésticos por todos os cantos. Apesar da vida dura, não esmorecem. “Agente quer ter uma vida digna, viver

LUCAS RODRIGUES

bem, ampliar a casa. Parar de sofrer e viver o que resta dessa vida maldita em que a gente só trabalha, trabalha e paga contas”, desabafa Terezinha. Duas casas ao lado mora Raquel Ribeiro, de 37 anos e seus dois filhos: Vitor, de um ano e quatro meses e Jéferson, de 17 anos. O pátio da casa foi todo cercado. A entrada está assegurada por um portão eletrônico e os planos de Raquel não param por aí. As pilhas de tijolos bordeando o quintal denunciam uma futura obra. “Pretendo fazer um piso, co-

locar cerâmica e levantar um muro no lado da casa. Acho que vou precisar de uns R$ 20 mil”, calcula. O sonho de ter uma casa exatamente como sonhava nos tempos em que vivia de aluguel, enfrentando alagamentos à beira do dique, no bairro Beiramar, está aos poucos se transformando em realidade. “Aqui está muito bom de morar. Lá era uma bagunça, gente barulhenta, briguenta. Os vizinhos aqui são bem tranquilos. Só tem família”, avalia.

- PRISCILA BOEIRA

O pátio da casa de Raquel foi todo cercado e a entrada está assegurada por um portão eletrônico

à

Ana, Raquel, Terezinha e José são novatos neste universo de 18 mil habitantes chamado Vicentina. Os moradores do complexo habitacional Minha Casa, Minha Vida estão aos poucos reconstruindo suas vidas em uma das pontas do bairro. São trajetórias marcadas pela pobreza, doenças e histórias de superação. Esses moradores há pouco tempo conquistaram o desejo mais presente no âmago dos brasileiros. De acordo com o Relatório Gem Brasil 2013, o sonho maior da população é comprar a casa própria. Em segundo lugar vem “viajar” e em terceiro “ter seu próprio negócio”. Ana Graziela do Amaral Mallmamm Naybert, de 34 anos, deixa a emoção transbordar, em um largo sorriso, ao lembrar que no dia 28 de fevereiro completou um ano morando sob um teto finalmente seu. As reformas na casa começaram logo que ela obteve licença para se mudar. Com o marido recebendo auxílio doença por ser impossibilitado de trabalhar, devido ao problema de hérnia de disco, a saída encontrada para incre-


12. DRAMA

tráfico de drogas e a violência

O

sofrimento, a falta, as lágrimas, a violência. Tais características poderiam facilmente compor um filme de drama digno de um Oscar, mas é “apenas” a realidade de muitos moradores do bairro Vicentina. Em meio a um cenário onde a violência faz vítimas diariamente, a dor maior sobra para quem fica à mercê de tudo isto, lutando para sobreviver ao luto diário de perder alguém para brutalidade. Sandra Silveira, de 48 anos, ainda vive uma ferida aberta deixada pela falta que seu filho Tiago faz. Há cerca de um mês, o então taxista de 26 anos, foi baleado em frente à casa da família por duas pessoas encapuzadas em uma bicicleta. Ele chegou a ser socorrido com vida, mas não resistiu aos ferimentos e morreu a caminho do hospital. Fazia pouco tempo que Tiago havia deixado a cadeia. Acusado de participar de um sequestro, ficou preso por mais de um ano e conseguiu a liberdade condicional. Usando a tornozeleira eletrônica, era possível controlar cada passo seu, que estava proibido de ir além de 300 me-

Do luto à luta tros da residência. É isto que causa estranhamento à Sandra. “Se meu filho não podia sair de perto dos limites da nossa casa, como ele poderia ter feito algo de ruim? Este crime não tem explicação. O pior de tudo é não saber quem fez isso com o meu filho e quais os seus motivos”, lamenta. É no apoio do marido e do outro filho que a mãe busca forças para continuar. Ao lembrar do filho e de toda a tragédia que aconteceu bem perto dela, no portão de casa, as palavras não saem, os olhos marejam em lágrimas, e o aperto no coração fica visível através do seu olhar de dor, de uma mãe que perdeu uma das pessoas que mais amava para a violência. Segundo ela, Tiago era “meio inconsequente, irresponsável”, mas que enfim estava mudando após as lições que a vida havia lhe imposto. “Ele estava se comportando, tomando juízo e fazendo planos para quando tirasse a tornozeleira. Era uma pessoa muito alegre, de bem com a vida, tinha o dom de nos fazer sempre sorrir”, lembra Sandra. Além do apoio da família, ela encontrou refúgio na fé. Evangélica, depositou nas mãos de Jesus o seu sofrimento: “A Bíblia diz que devemos colocar os nossos fardos sobre Cristo, que Ele nos ajuda-

LUIZ SCHENKEL

rá. É o que estou fazendo, pois é muito doloroso perder um filho, principalmente da maneira como foi”, afirma. “Agora o que resta é confiar em Deus e na justiça, pois quero que quem fez isto com meu filho, pague pelos seus atos”, finaliza a mãe de Tiago.

A HERANÇA DA VIOLÊNCIA Sandra não foi a primeira, nem será a última a perder um filho para a violência no bairro Vicentina. Há oito anos Dona Aldir Oliveira, 64 anos, sabe como é conviver com a falta de um ente querido. Uma década antes da tragédia ela já havia perdido outro filho para o câncer. Segundo ela, o filho Alcebides, de 34 anos, foi assassinado por um amigo de infância depois de uma noite regada a bebidas e drogas. Uma discussão fez com que ele fosse ferido com um tiro na perna, perto de sua casa, acabando não apenas com a própria vida, mas deixando o sofrimento para a mãe e as duas filhas que deixara. Antes disso, ele já havia sido preso por envolvimento com drogas. Dona Aldir lembra que a dor nunca é superável. Contudo, ela tentou. “Naquele momento eu já estava divorciada e tive que carregar sozinha a dor que é perder um filho”, sublinha. Apesar de fazer tantos anos, o luto ainda permanece. “O tempo ajuda a curar, sabe? Não dá para se atirar na tristeza. Eu sei que cada um reage à sua maneira com algo assim, mas eu optei por ser forte e confiar no

Sandra (ao lado) e Aldir (acima) convivem diariamente com a dor da perda

à

perdem à Mães os filhos para o

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tempo, que ajudou a curar pelo menos um pouco do meu sofrimento”, ressalta a mãe, que apesar da postura forte, não consegue esconder a falta que Alcebides faz. Esta ausência é parcialmente substituída pela presença das netas e dos bisnetos. Tanto é que ela não pestaneja em mostrar as fotos dos pequenos estampadas em xícaras e ímãs de geladeira. “São muito sapecas! Às vezes eles vêm aqui em casa e fazem uma bagunça que só eles! Isso é muito bom, eles me trazem muita alegria”, comenta, sorrindo, apagando uma parte do passado que tanto lhe machuca, mas que deixou belos – e bagunceiros – presentes. O bairro Vicentina é apenas um grão de areia no mapa da violência do país. Segundo dados da última edição do Anuário de Segurança Pública, a cada dez minutos uma pessoa é assassinada no Brasil. E um estudo produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, afirma que houve um aumento de 18,4% no número de homicídios entre 2002 e 2012. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem a 11ª maior taxa de homicídios do mundo, com a média de 32,4 assassinatos a cada 100 mil habitantes, sendo cinco vezes a média mundial, que é de 6,7, e nove vezes a média dos países ricos, 3,8. O estudo, que investiga dados de 2012 e que foi divulgado no ano passado, informa que 64.357 mil pessoas foram

assassinadas no país, utilizando em sua contagem um conceito mais amplo de homicídio, como aqueles que resultam de latrocínios e de lesões corporais. Mesmo triplicando os gastos com segurança, o Rio Grande do Sul ainda encara altos índices de homicídios. Entre 2005 e 2014 houve um avanço de 68,6%, com taxa de 20,9 crimes a cada 100 mil habitantes. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o índice acima de 10 é considerado como epidemia de mortes. Ou seja, o estado já ultrapassou o dobro do limite considerado. No ranking das cidades gaúchas mais violentas, São Leopoldo está em segundo lugar, atrás apenas de Alvorada e à frente de Porto Alegre, Viamão e Novo Hamburgo. O índice de homicídios a cada 100 mil habitantes chega a 50, mais que o dobro da média nacional. O bairro Vicentina tem papel importante no cálculo destes números e a violência é tema presente em conversas entre moradores. Mais do que isso: é um medo recorrente. Câmeras de vigilância e grades são parte do cenário do local, uma espécie de “salve-se quem puder”. E quem não consegue se salvar, lida com a dor da perda e da impotência perante a violência. Mães como Sandra e Aldir são o retrato de uma população que clama não apenas por segurança, mas também por paz.

- BRUNA SCHNEIDER


MUDANÇA .13

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voluntários à Pais do Vicentina

Jogando contra as drogas EMILENE LOPES

procuram oferecer alternativas no esporte para combater os entorpecentes

O

SABRINA MARTINS

ma aula de lutas marciais. Os maiores também gostam de lutas e lamentam não haver outras opções de divertimento. Durante a conversa, os meninos citam a “vila” várias vezes. Perguntados sobre o lugar, eles contam que assim é chamado o ponto de venda de drogas no bairro. Segundo Fabrício Orlando, 14, ele e os amigos costumam ir ao shopping nos finais de semana, para ocupar o tempo, e diz nunca ter tido contato ou ser apresentado às drogas. Mas admite conhecer rapazes, menores de idade, envolvidos com elas. De acordo com os moradores, a “vila” é formada por um conjunto habitacional de baixa renda onde, frequentemente, ocorrem disputas entre traficantes. “Os meninos vão crescendo e desejando coisas que muitas vezes não possuem condições de comprar. Isso os leva a entrar para o mundo das drogas, onde aparentemente conseguem o que querem com facilidade, sem se dar conta do perigo. Os depoimentos mostram ainda que as crianças são frequentemente usadas para cometer crimes graves, iniciadas nesse cenário em torno dos doze anos. Isso se deve ao fato de que menores de idade são detidos por um curto período e logo liberados. FALTA DE INCENTIVO Caminhando pela vila, encontro Lucas da Silva, 13 anos, e Fabrício Júnior, 10. Eles não frequentam a Escolinha, mas jogam bola todos os dias na rua em frente de casa, além de jogar videogame. O pai de Lucas, Ronaldo Canosa, lamenta que a pracinha e o parque estejam sempre ocupados pelos adultos que

“incomodam”. Júnior, como gosta de ser chamado, conta que o pai não o deixa jogar lá, mas que gosta muito de luta e já chegou a praticar capoeira por três anos. Junto com eles, encontro também Herik Vinicius, 10 anos, e seu primo Jeferson dos Santos Júnior, 17. Os dois usam luvas de boxe e muai thay e, curiosa para saber aonde vão, peço permissão para acompanhá-los. Chegamos à rua Divina, número 141, lar de Luana da Silva, 28 anos, dona de casa, casada e mãe de quatro filhos. Ela também cria a irmã Mariele, de 13 anos, que sai muito pouco de casa por falta de opção. “De noite é muito perigoso ficar na rua por aqui. Deixo os meninos brincando dentro do pátio e toda sexta-feira eles se unem para brincar de luta. Aqui eles brincam, mas não sabem a hora de parar ou até onde podem lutar sem se machucar”, explica Luana. Segundo ela, a vontade era que pudessem frequentar uma aula de luta de verdade, onde tudo seja monitorado por alguém que entenda da atividade. Uma das filhas fazia balé na escola, mas quando a atividade foi encerrada não havia condições de pagar aulas particulares. Em frente à residência da Luana conquistada através do programa Federal Minha Casa Minha Vida, há um enorme terreno que, de acordo com a dona de casa, seria usado pela prefeitura para implantar um campinho e uma praça. Hoje o que se vê são muitas casas em condições irregulares, a maioria de ocupação. É em muitos deles que o tráfico se estabelece. Luana está ciente de que vive em lugar onde essa atividade é perigo constante e diz que faz o possível para

manter o filho Herik longe desses problemas. “A polícia está sempre andando por aqui, acho que mais para evitar alguma confusão, mas de vez em quando acontecem tragédias”, ressaltou. Antes de encerrar a conversa, a dona de casa relata com tristeza o caso de um menino, de 14 anos, que entrou para esse mundo aos oito. “Ele não tinha família, não tinha ninguém. Vivia por aí com o que davam para ele. É assim

que começa, uma troca de favores, um prato de comida ou a oferta de um teto para morar”. Ela lamenta que, hoje, ele esteja em coma no hospital Centenário, em São Leopoldo, devido a um acidente. “Se muitos desses jovens tivessem uma ocupação, alguma alternativa melhor do que essas que são oferecidas, eles teriam a chance de uma vida melhor”, conclui.

- ANNE CAROLINE KUNZLER

Enquanto algumas crianças participam de atividades recreativas, outras não têm a mesma sorte

à

que parece ser só mais uma partida de futebol em um sábado como todos os outros, na verdade é um campo repleto de histórias e força de vontade. Tudo começa com Jairo Lima, treinador da Escolinha de Futebol Tricolor. O motorista de 43 anos dedica todas as suas manhãs de sábado para treinar 50 garotos do bairro Vicentina, que tem entre 7 e 14 anos. Divididos em duas categorias, os meninos treinam por três horas sob a orientação de Jairo e os olhares dos pais que os acompanham. Com poucas opções de entretenimento, as crianças se contentam em jogar futebol, vôlei e handebol nas quadras das três escolas existentes e a bater uma bola no campinho do bairro. A escolinha, que funciona há três anos, é mantida por doações e arrecadações através de rifas. Estas iniciativas contam com o apoio dos pais e do treinador, que é voluntário na missão de oferecer às crianças uma alternativa de recreação. Segundo Jairo, o bairro possui uma sede com um bom espaço para a realização de atividades mas, infelizmente, não há oferta. O dinheiro arrecadado é usado para manter a compra de uniformes, bolas e o lanche que é oferecido nos treinos. No uniforme, lê-se nas costas o lema “Tricolor, perto da família e longe das drogas”, incentivo que Jairo passa insistentemente, já que a localidade sofre com o problema do tráfico e mortes recorrentes dessa atividade ilegal. Jairo admite que sua maior preocupação é que os jovens possam ficar tentados pelo mundo das drogas. Casado e com dois filhos, ele desabafa: “Tento ocupar esses meninos o máximo possível, pois o perigo está ali do lado”. Magnus Coimbra é pai do pequeno Pedro Henrique, de 8 anos, e observa da cerca o filho jogando bola com os amiguinhos. Ele confessa a preocupação constante e confessa que junto com sua esposa mantêm o filho ciente da situação para que ele entenda desde pequeno os perigos desse mundo. Magnus conta ainda que não pretendem ter outros filhos: “Criar e educar uma criança é uma responsabilidade muito grande. Pensamos em proporcionar, primeiramente, toda a estrutura de que o Pedro precisa”. Elisandro Mendes, 11 anos, e Daniel da Rosa, 6, contam que eles e os amigos gostariam, além de jogar futebol, poder frequentar algu-


14. RELIGIÃO

ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO | Abril / 2015 | http://olharesevozes.wix.com/vicentina

A matriz africana no Vicentina

da à Apesar predominância

GABRIELA WENZEL

GABRIELA WENZEL

católica e evangélica, as religiões da matriz africana também têm seu espaço garantido no bairro

à Entidades e objetos das religiões afro representam forças da natureza que ligam os seres humanos ao mundo espiritual

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A DETURPAÇÃO DOS CULTOS AFROS Fundado em 2003, no bairro Vila Teresa, o terreiro Ilê Oxalá Olocum desde 2009 funciona no Vicentina. Pai Fabiano conta que nos primeiros anos não houve reações contrárias ao seu funcionamento, na comunidade. No entanto, atônito ao recordar, ele relata aquele, que para ele, foi um dos momentos mais complicados desde sua instalação no bairro. Idosa, evangélica e mãe de dois jovens dependentes químicos, a vizinha, moradora da casa dos fundos, certa vez manifestou seu descontentamento com o som dos tambores utilizados nas celebrações. “Ela mandou os dois filhos no portão da minha casa para reclamarem do barulho. Vieram e me ameaçaram”, relata

THAMYRES THOMAZINI

Fabiano. Contudo, ele afirma que não retribuiu a hostilidade. “Quem tem axé não bate boca”, conclui, bem humorado. Cerca de um ano após o ocorrido, a vizinha se mudou e vendeu seu terreno para o pai de santo. Terreno este, onde hoje está alocado o terreiro. Pai Fabiano acredita que houve um aumento exponencial nos níveis de intolerância religiosa. “Hoje em dia o preconceito contra umbandistas está muito maior”, disse. Credita esse crescimento, principalmente à multiplicação da quantidade de igrejas evangélicas com posicionamentos conservado-

res, em atividade no país. O Rio Grande do Sul é um dos estados com mais pessoas declaradamente adeptas à Umbanda e ao Candomblé. Conforme dados do Censo Demográfico de 2010, mais de 150 mil gaúchos são membros de religiões da matriz africana. “O que ocorre hoje é um exagero na imagem de alguns centros”, afirma Pai Fabiano sobre os templos umbandistas que funcionam em casarões em áreas nobres da cidade. Ele diz que no desejo de viver apenas da religião, alguns “filhos” — como são chamados os frequentadores das terreiras — optam por abrir sua

própria casa sem ter o preparo necessário. “É onde começam os problemas”, alerta. Até se tornar Babalorixá — pai de santo — Fabiano conta que passou por um extenso e lento processo de aprendizado. Foram 11 anos de preparação até abrir seu próprio centro. DEBATE SOBRE O SACRIFÍCIO DE ANIMAIS No dia 3 de fevereiro, na primeira sessão do ano na Assembleia Legislativa, a deputada estadual Regina Becker Fortunati (PDT) apresentou o projeto de lei que pretende GABRIELA WENZEL

GABRIELA WENZEL

proibir o sacrifício de animais em rituais de Umbanda e demais religiões afro. Segundo a parlamentar, o sacrifício não se justifica — “porque a humanidade cada vez se empenha mais na proteção dos animais e do ambiente”. O projeto propõe a exclusão do Artigo 2º do Código Estadual de Proteção aos Animais, de 2003, que autoriza o abate de animais para religiões de matriz africana. Caso a permissão seja revogada, volta a valer a redação original da lei Uma das diferenças essenciais apontadas por Pai Fabiano é que o rito de sacralização, ou seja, o sacrifício de animais, não ocorre na Umbanda, somente nas cerimônias da Nação Cabinda. O religioso afirma que os animais são sacrificados com o máximo de respeito e gratidão. Sem sofrimento. Conta ainda, que toda a carne é consumida após o ritual. “Sacralização não é desperdício, nem crueldade”, defende. Para ele, trata-se de uma oferenda à divindade, o Orixá, em troca de saúde e prosperidade.

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obre o asfalto tremulam ondas de calor. É o prenúncio de mais um sábado ensolarado que desponta no horizonte de São Leopoldo. Pelas ruas, só o silêncio. Na pequena estrada asfaltada que atravessa o Vicentina, um grupo de homens bebe em um bar. Alguns metros à frente, uma igreja evangélica. Adiante, do outro lado da rua, uma igreja católica. Em meio a elas, o terreiro Ilê Oxalá Olocum. Atrás do muro baixo com pequenos gradis, a modesta casa de alvenaria onde vive Fabiano Gross, o Pai Fabiano de Oxalá. Hospitaleiro, ele recebe a todos que ali procuram respostas, conselhos e orientação espiritual. Casado e pai de dois filhos, Fabiano viveu 21 dos seus 40 anos de idade dentro da Umbanda. Nem todas as religiões da matriz africana se resumem a Umbanda ou Candomblé. O pai de santo afirma que na casa dele também se pratica Umbanda, mas que o cerne de suas atividades está na Nação Cabinda, uma vertente do Candomblé. Pontua uma série de diferenças entre ambas. “A Umbanda é uma religião de origem brasileira. As entidades nela cultuadas, como caboclos e pretos-velhos são espíritos de escravos, índios ou crianças que viveram e após a sua morte se tornaram divindades”, explica. Já a Nação Cabinda, originária da Angola primitiva, cultua os Orixás Iorubas, que, liderados por Olorum — autoridade máxima do universo — são reverenciados como reis, heróis e guerreiros, considerados deuses.

Pai Fabiano de Oxalá defende que o sacrifício de animais não é desperdício, nem crueldade

Ativistas e representantes de entidades defensoras dos animais se posicionam a favor da medida, pelo fim dos sacrifícios. Em entrevista ao jornal Zero Hora, Maria Luiza Nunes, diretora do Movimento Gaúcho de Defesa Animal (MGDA) alega que pretende poupar cabras, cordeiros, galinhas, marrecos, patos e pombas. Ressalta que os bichos sofrem com os batuques e a atmosfera de cânticos, além de morrerem lentamente por hemorragia. Em janeiro, conselheiros de cultos afros tiveram uma audiência com o Governador José Ivo Sartori para buscar resoluções judiciais. O encontro se deu antes da deputada Regina Becker entrar com o pedido para o fim da prática. No propósito de sustentar a legitimidade dos rituais de imolação, sem contrapor nenhum setor da sociedade, argumentaram que todos os dias, agricultores abatem galinhas e porcos para consumo, assim como nos cultos. Lembram que o sangue não é consumido e que as sobras são distribuídas para outras pessoas. Segundo Pai Clovis de Xangô, conselheiro-geral do Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros (CEUCAB), fundado há 62 anos, “quem expõe os animais em via pública está equivocado”. Segundo os preceitos da religião, a cerimônia deve ser em local reservado.

- JEAN PEIXOTO


COMUNIDADE .15

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Vestindo as pessoas com caridade

do à Mulheres bairro recolhem

DANIEL ROHR

donativos para ajudar famílias carentes. Gesto multiplica bondade entre os moradores da região

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Grupo de amigas realiza Brechó Solidário há 15 anos

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á 15 anos um grupo de cinco donas de casa se reuniu para tentar fazer algo diferente dentro da comunidade onde vivem. Enelina, Olga, Zoeti, Neli e Loreni juntaram-se à Caritas – entidade da Igreja Católica dedicada ao auxílio humanitário – e passaram a recolher roupas e alimentos para doar a famílias carentes do bairro Vicentina. Desde então, não pararam mais. Elas separam as roupas que chegam aos montes na secretaria da Igreja Nossa Senhora Medianeira e as encaminham para entidades como o Lar de Crianças Casa Aberta, a Liga Feminina de combate ao câncer e a Associação Leopoldense de Deficientes Físicos (ALDEF). “Não recebemos nada em troca por isso. Fizemos por puro amor”, conta Eleni Santos de Oliveira, 62 anos, que é a porta voz do grupo. Apesar da abundância de peças, poucas são aproveitadas por estarem aos trapos. “A maioria das coisas não tem como doarmos. Vem um sapato de cada pé e peças que estão quase se desfazendo”, explica Eleni. Esse não é o único desafio

enfrentado pelas senhoras. A ignorância de algumas pessoas também prejudica o trabalho realizado por elas “Tem muitos que não precisam e que vem pedir coisas. Para não nos incomodarmos, acabamos entregando a doação, mas isso tira de quem precisa no bairro”, relata. Outro problema, é que chegam poucos alimentos, suplemento que é mais urgente na maioria das famílias em situações de risco. Como diz Eleni, a ajuda muitas vezes nem é o diferencial na vida das famílias, mas sem ela, as coisas seriam muito piores. “São famílias com muitos filhos, então os alimentos não duram muito

tempo”, estima. Para ajudar a arrecadar fundos e comprar os alimentos, o grupo começou um Brechó Solidário que é realizado algumas vezes durante o ano. A lógica é simples, você escolhe algumas peças e faz uma doação simbólica em dinheiro. A ação se tornou tradicional na paróquia e iniciou uma corrente que vai além do simples ato de comprar as roupas por um preço muito barato. Uma das “clientes solidárias”, Eraldi Ditadi, 68 anos, sempre visita o brechó com a intenção de ajudar a quem mais precisa. “É gesto pequeno, mas que pode ajudar alguém. Já o retorno disso para gen-

te não tem preço, doar é algo que faz nos sentirmos bem”, comenta. Garimpando em meio às muitas peças armazenadas em uma sala ao lado da secretaria da igreja, a artesã Juraci Rotta, 51 anos, tenta encontrar peças que possam se transformar em arte. Trabalhando na Casa do Artesão de São Leopoldo, ela faz com que coisas descartadas virem artigos que ajudam na renda familiar. “Pego calças e transformo em bolsas, por exemplo. Tem algumas peças tão bonitas, que mal preciso decorá-las e vendem muito facilmente”, explica.

- THOMAS BAUER

A SOLIDARIEDADE QUE TRANSCENDE O número de meninas grávidas no bairro é alarmante. Muitas vezes são garotas que não têm a experiência necessária para cuidar de um filho e muito menos as condições financeiras para sustentá-los. A dona de casa Geneci Morais, 63 anos, vasculha os montes de roupas à procura de pequeninas peças que serão doadas para essas jovens. “Eu compro essas roupinhas de neném que são pouco usadas e repasso para as mamães que precisam”, relata. Essa é uma das formas de prolongar a corrente do

bem iniciada pelo grupo de mulheres do brechó e mostra o quanto de solidariedade existe nos lugares que às vezes mais carecem de atenção. Como diz a sabedoria popular de dona Geneci, olhar para o irmão que está do lado pode ajudar a enfrentar a realidade de uma sociedade egoísta no qual estamos inseridos. “Não somos nada no mundo, temos que ajudar quem tem um pouco menos que nós para seguirmos em frente”, filosofa. E é assim, na colaboração de alguns de seus membros, que o Vicentina vai se mantendo de pé a cada dia.

18 mil ouvidos a postos São 10h30. Júlio Ubiratan de Almeida entra no ar. “Alô, alô. Bom Dia com a Studio. Temperatura de 24 graus”. O locutor divulga o telefone e o WhatsApp da rádio, faz a propaganda do comércio local, aumenta o som e manda música para a povo. É neste pequeno espaço, entre a casa e a oficina mecânica de Júlio, que fica a Studio FM 87,7. Foi pensando nos anos de experiência em rádios comerciais e no registro de radialista profissional, que Júlio, de 56 anos, resolveu montar a própria emissora. “Esse é meu lazer, meu esporte”, brinca. Além de ser algo que ele gosta, a rádio surgiu também para divulgar as necessidades locais e levar entretenimento para a comunidade. O estilo musical da rádio é essencialmente sertanejo. Segundo o diretor, é o que a população escuta. “Os ouvintes do Vicentina geralmente são pessoas demais idade, trabalhadores e donas de casa. Os jovens hoje

estão no computador, celular, então não ouvem muito rádio”, acredita. Já no final de semana roda um estilo diferente, onde um programa especial toca músicas dos anos 80 e 90. MICROFONE LIGADO PARA O VICENTINA A rádio atualmente conta com uma licença emitida pela Anatel, enquanto aguarda a liberação pelo Ministério das Comunicações. “Existe muita burocracia e não temos incentivo do Governo Federal”, desabafa Júlio. O locutor, que muitas vezes mantém a rádio com recursos de sua própria oficina mecânica, conta com o apoio da comunidade. “É feita uma troca, uma parceria. Divulgamos o comércio local e o comerciante ajuda com o que puder”, afirma. E de fato é assim. Paulo Ricardo de Sá, o Paulinho da Chapeação, já divulga na rádio há cerca de quatro anos. “Além de ajudar no desenvol-

vimento do bairro, recebemos um retorno positivo dos clientes”, comenta. Paulo, que já tem a oficina de Chapeação e Pintura há mais de 30 anos no Vicentina, conta que auxilia a rádio com cerca de R$ 40 por mês e em troca recebe anúncios diários de hora em hora. “Também divulgamos nossos churrascos do time de futebol e pedimos música na programação”, relata. A Studio FM 87,7 possui cerca de 20 apoiadores entre os comerciantes do bairro. Mas e se alguém da comunidade precisar de doador de sangue, de cesta básica, ou qualquer outro auxílio? Júlio enfatiza: a rádio está aberta. “Não são somente bandas que vêm aqui e divulgam seu trabalho, também temos espaço para as igrejas anunciarem eventos, mas principalmente para os moradores. Já conseguimos arrecadar fraldas, cadeiras de rodas, tudo através da rádio”, conclui.

- CAROLINE PAIVA

DENIS MACHADO

à AFMStudio

87.7 abre espaço para moradores interagirem, além de divulgar as necessidades locais


ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO (RS) ABRIL DE 2015

EDIÇÃO

PALAVRA DE REPÓRTER, OLHAR DE FOTÓGRAFO

Um menino sentado na varanda

C

onfesso que fui apresentada à realidade de alguns bairros de São Leopoldo pela ótica dos jornais da região, apesar de ser leopoldense e viver na cidade há, pelo menos, 21 anos. As reportagens que lia, em sua maioria, eram vinculadas ao tráfico de drogas ou à violência. Quando tive a oportunidade de conversar com os membros da Associação de Moradores do Vicentina, em uma aula de Fotojornalismo, as expectativas se confirmaram – de fato, a comunidade era assolada por problemas de todas as ordens. Pois bem, estava lançado o desafio: descobrir o que há de positivo no bairro e que fica escondido sob os descontentamentos dos moradores. Lançar novos olhares e ajudar a comunidade a construir uma nova imagem sobre si própria. Um jornal, como o Enfoque, que circula dentro da Vicentina, tem também esse papel – ir além do senso comum e ressignificar o espaço. Nem todas as pautas propostas pelos repórteres tinham esse objetivo, não podíamos ignorar o precário sistema de saúde, ou de transporte público. Portanto, foi a partir da afinidade com os temas que a parceria entre repórter e fotógrafo começou a surgir. Tínhamos uma ideia sobre o assunto que iríamos abordar, mas sabíamos que teríamos imprevistos no caminho. A história que contamos - eu, Thais Montin e Andressa Dorneles – apareceu por acaso, foi uma surpresa e tanto. Trata da realidade de uma moradora, cujo filho foi diagnosticado com autismo. O nosso entrosamento enquanto equipe foi fundamental no desenvolvimento do produto

ANDRESSA DORNELES

final. Mesmo assumindo a tarefa de fotografar, não me contive no momento da entrevista e soltei algumas perguntas. Apesar de ser um tema delicado e, à primeira vista, difícil de ser contado através de imagens, ficamos felizes com o resultado. Um olhar perdido, um menino sentado na varanda de casa, um portão que separa o menino da vida que passa lá fora, um beijo de mãe espontâneo que expressa sentimentos não revelados, explicitamente, através das palavras. Detalhes. Falamos de inclusão e educação dando voz a uma personagem forte, que supera os percalços impostos pela rotina de forma digna. A experiência de fazer fotos na Vicentina e ver os registros dos colegas, no retorno para a redação, provou que nenhuma pessoa é igual a outra na maneira de fotografar, nem de deixar ser fotografada. Nenhum lugar é sempre igual, nenhuma situação se repete. Tudo é transitório e se transforma à medida que entre em contato com o olhar e sensibilidade do fotógrafo.

- JOYCE HEURICH REPÓRTER FOTOGRÁFICA

“Apesar do autismo ser um tema delicado e, à primeira vista, difícil de ser contado através de imagens, ficamos felizes com o resultado.”

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A realidade dói outras duas crianças curiosas apareceram na porta. O mais velho nos olhava como se perguntasse o que fazíamos ali. A menina não se preocupava com isso e mostrava um largo sorriso. Quando a mãe das crianças apareceu, nos apresentamos, e ela prontamente abriu o portão de madeira, pedindo para não reparar na bagunça. Com um ano de diferença da minha idade, Grazieli, de 22 anos, tinha gerado três vidas em seu ventre. Naquele momento passou um filme na minha cabeça, de todos os objetivos da minha vida. Nesse instante tive a certeza que encontrei a história que ia contar. Perguntei da sua profissão, o que fazia e ela começou a contar sua história. As crianças curiosas olhavam para nós e tinham esquecido do desenho que assistiam na televisão quando chegamos. O aparelho foi desligado, suponho para não atrapalhar a nossa conversa. Desempregada e com três filhos para criar somente com o valor recebido pelo programa Bolsa Família. A situação da família era difícil. Enquanto respondia minhas perguntas ou dizia frases espontâneas, Grazieli procurava com o olhar a fotógrafa. Talvez, buscando coragem para continuar a entrevista. Uma das perguntas foi a mais marcante para mim, qual era maior sonho daquela mãe. Quando terminei a pergunta olhei para ela, que em silêncio

“Quando terminei a pergunta olhei para ela (Grazieli, acima), que em silêncio deixava as lágrimas rolarem pelo rosto. As crianças vendo que a mãe chorava correram para os braços dela.”

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O sol ainda não havia aparecido naquela manhã de sábado, as ruas do loteamento Minha Casa Minha Vida do bairro Vicentina estavam quase desertas. Poucas janelas abertas e os moradores começavam lentamente o dia. As casas geminadas coloridas abrigam famílias que escondem suas histórias e o meu desafio era contar um pouco da vida dos moradores de um daqueles lares. Parando em cada casa que encontrava algum residente no pátio me apresentava, junto com a minha fotógrafa Márcia Souza Ribeiro e contava o nosso objetivo. Algumas famílias chamavam para entrar, contavam um pouco da sua vida, como estava ali, de onde tinha vindo, o que fazia .... Mas entre três ou quatro histórias ainda não havia encontrado aquele relato que balançasse o meu faro de repórter estreante no Vicentina. Em uma daquelas ruas paralelas à avenida principal, a porta aberta de uma casa chamava atenção pelo volume da televisão e os risos que saiam de um dos cômodos da moradia. A cerca de madeira e umas pedras levavam até o caminho da entrada do humilde lar, de cor amarela meio desbotada. Um menino sem chinelos apontou na porta quando batemos palmas chamando os moradores. Com um olhar desconfiado o menino não falou nada. Perguntei de sua mãe e ele foi chamar. Enquanto esperávamos a dona de casa,

MÁRCIA RIBEIRO

deixava as lágrimas rolarem pelo rosto. As crianças vendo que a mãe chorava correram para os braços dela. Foi aí que veio a resposta: “viver para dar uma vida para os meus filhos”. Não precisava de mais nenhuma declaração, aquela cena me parou. Meus olhos também queriam chorar pensado em todos os desafios que aquela mãe ainda enfrentaria. O abraço apertado nas crianças, certamente, era o que mais valia para aquela mãe cheia de sonhos de um futuro melhor para sua família.

- KARINA DE FREITAS REPÓRTER

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