Enfoque Vicentina 11

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BRUNA MONIQUE

FELIPE MACHADO

EDUARDA MORAES

Adversidade

Moradores enfrentam dificuldades com o frio. Página 3

Amor

Unidos por um pé de bergamota Página 6

Trabalho

Dedicação é a chave para crescer no mercado profissional. Página 13

ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO / rs JUNHO DE 2016

EDIÇÃO

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GUSTAVO BAUER

Sonho realizado Após 4 anos de luta, Rute Ester orgulha-se de sua própria residência página 4


2. EDITORIAL

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Nosso olhar, sua história

T

odas as histórias são importantes. Todas merecem ser contadas. Com olhares atentos e sensíveis, adentramos mais uma vez o bairro Vicentina. Nossa proposta: encontrar as histórias nunca contadas. As felizes e as tristes, as de lutas e as de vitória. De um lado há o casal que se apaixona sob um pé de bergamota, de outro existe a mãe que só quer manter os filhos aquecidos no inverno. Enquanto isso, Xica, a porca de estimação, desfila com sua bela blusa verde. Recortes do cotidiano. Retratos de vida. A comunidade apresenta a vida em forma de narrativa, são diversas as experiências de pessoas como Eliandra, natural do Paraná, que veio encontrar seu destino no Vicentina. Vimos também o cuidado dos moradores com seus animais, que encontram, na Agropecuária de Sheila, o alimento necessário. E o que dizer do Pastor que professa sua fé independente de ter o dízimo, ou da persistência de Mário Henrique na busca por uma melhor colocação no mercado de trabalho? Contamos, também, a história de Nelio, homem cuja vida lhe incumbiu um outro destino, um que ele não planejava. Assim como relatamos a vida de Rute Esther, que após quatro anos de luta pela casa própria, agora tem um lar para chamar de seu. Conheceremos Humi, que, atualmente, tem uma batalha travada contra o diabetes e, também, Florentino, um dos homens mais ricos e

populares do Vicentina. Nesta edição, encontramos histórias de superação como a de Márcio e Solange, que para conseguirem dedicar tempo e amor a seu neto João - acometido de paralisia cerebral devido a um erro médico - abriram mão de

processar o hospital responsável pelo o que houve. Contamos os problemas de moradia enfrentados por moradores do bairro que residem na área da ocupação e de alagamentos. Alertamos para os cuidados necessários para quem tem animais em casa ou

cuida de pets comunitários. Acreditamos que todas as pessoas têm uma boa história e partimos para o bairro. Durante uma manhã, nós fizemos uma das melhores coisas que a nossa profissão pode proporcionar: contar histórias. Desde relatos

Aline Santos, Mailsom Portalete, Matheus Freitas, Michelle Oliveira e Pâmella Atkinson da Silva

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Avenida Unisinos, 950 – Cristo Rei São Leopoldo – RS Cep: 93022 750 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

DATAS DE CIRCULAÇÃO 12 Setembro / 2016 13

Outubro / 2016

de superação, como conquistar sua própria casa; emocionantes, como o caso de João Pedro; entre outras. Não importa quem for a pessoa, sempre haverá uma ótima história. E nessa edição, fizemos o nosso melhor para trazer as melhores.

KARINA DE FREITAS

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade do bairro Vicentina, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é publicado a cada dois meses e distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo.

EDI Ç Ã O E RE P OR T A G EM

FOTOGRAFIA

ARTE

IM P RESS Ã O

Disciplina: Jornalismo Cidadão. Orientação: Sonia Montaño Edição de textos: Aline Santos, Denise Morato, Karine Vasem Klein, Mailsom Portalete, Matheus Freitas, Michelle Oliveira e Pâmella Atkinson da Silva. Reportagem: Aline Santos, Ana Paula Zandoná, Bárbara Bengua, Bruna Mattana, Caubi Scarpato, David Farias, Denise Morato, Gabriel Machado Pureza, Gustavo Schenkel, Jayme Magalhães, Joyce Heurich, Karine Vasem Klein, Lucas Möller, Mailsom Portalete, Marcelli Pedroso, Matheus Beck, Matheus Freitas, Michelle Oliveira, Nicole Cavallin, Nicole Fritzen, Pâmella Atkinson da Silva, Priscila Serpa, Rafaela Dilly Kich, Thiago Greco e Victoria Silva.

Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia Diagramação: Mariana Matté

Disciplina: Fotojornalismo. Orientação: Flávio Dutra. Fotos: Amanda Oliveira, Aniele Cerutti, Bruna Monique, Caren Rodrigues, Dyessica Abadi, Eduarda Moraes, Ellen Renner, Eric Machado, Felipe Machado, Fernanda Stecanela, Franciele Costa, Gustavo Bauer, Jéssica Martins, Júlia Bozzetto, Julia Viana, Karina de Freitas, Karina Verona, Lidiane Bortoli, Lidiane Menezes, Liege Barcelos, Maquiel Santos, Maria Carolina de Melo, Maria Júlia Pozzobon, Nínive Girardi, Raique Ramos, Stefay Rocha, Tamires de Souza, Thais Montin e Thomas Graef.

Realização: Gráfica UMA / Grupo RBS Tiragem: 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 000. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinícius Souza. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


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MORADIA .3

Entre o calor e o tremor

Famílias improvisam formas de lidar com temperaturas extremamente altas e baixas

N

o Rio Grande do Sul, gotas de suor no corpo sob um sol escaldante não são mais exclusividade do verão, assim como camadas de agasalhos deixaram de ser aspecto característico do inverno. Em pleno outono, os termômetrossurpreendem. Segundo a Somar Meteorologia, abril registrou tanto as temperaturas mais altas referentes a esse mês, nos últimos 100 anos, quanto um frio de intensidade que não se sentia desde os anos 80. Os termômetros foram, em média, dos 38 a 1Cº em questão de duas semanas no estado. Para os moradores do Vicentina, lidar com as alterações climáticas bruscas nem sempre é tarefa fácil. Muitas vezes, driblar os desconfortos

proporcionados pelas intempéries do tempo exige improvisos. Quem parece sofrer mais são as crianças pequenas, cuja saúde é fortemente afetada com as mudanças impactantes. Na vida da doméstica Midiam de Oliveira dos Santos, 23 anos, o clima – principalmente a chuva - já proporcionou vários incômodos. Hoje, ela e sua família residem em um terreno mais elevado do bairro. “Conseguimos trocar a casa, pois a nossa antiga ficava junto de um banhado. Aí, toda vez que chovia tinha um alagamento”, recorda. Embora tenha conseguido superar essa situação, Midiam ainda enfrenta desafios toda vez que as chuvas assolam o Vicentina. “Temos frestas e goteiras na casa. Sempre que chove, temos que colocar baldes, usar panos e cortinas velhas para tapar as frestas da parede”, relata. Além disso, ela se depara com dificuldades de locomoção. “Não temos dinheiro para comprar

guarda-chuva para todo mundo. Daí não tenho como levar o meu pequeno na creche, né. Esses dias choveu e ele teve que faltar dois dias”, desabafa. Não são somente os períodos de chuvas, porém, que causam transtornos. A moradora tem três filhos: o pequeno Wesley Gabriel, de 1 ano e 9 meses, Yasmin Carolina dos Santos Aquino, de 5 anos e Ana Júlia dos Santos Aquino, de 7 anos. As mudanças de temperatura causam impacto direto na saúde deles. “No ano passado, a Ana Júlia teve uma bronquite que acabou evoluindo para uma pneumonia. No fim, a situação ficou muito grave e ela teve que fazer uma cirurgia por causa de acúmulo de água nos pulmões”, explica a mãe. As gripes, portanto, são motivo de temor para ela. Para complicar ainda mais, Midiam relata que é difícil conseguir atendimento na UBAM, o único posto de saúde do bairro. “São apenas 15 fichas para ter

atendimento com o pediatra. Se quiser, tem que acordar às 4h da manhã. Se chegar lá às 7h, já não tem mais”, explica. A alternativa que a mãe encontra para tratar os resfriados das crianças é caseira. “Faço chás para eles. Uso ingredientes como penicilina, camomila, agrião, guaco e mel”, esclarece. Diante da dificuldade de conseguir atendimento médico e acesso a remédios, essa foi a opção encontrada por ela. Nos dias frios, conseguir cobertores também exige trabalho. Mas Midiam garante que, solicitando auxílio de uma assistente social no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), é possível ter acesso a eles. Por isso, o ar gélido não os impede de conseguir dormir à noite. Já quando o calor toma conta, a solução é ficar dentro de casa por causa da falta de sombra no bairro - e beber muita água gelada. “Desde que tive o Wesley, comecei a ter problemas de queda de pressão no calor. Por

Previna-se Vacina contra a gripe H1N1 Em 2016, é necessário ter atenção redobrada com a gripe. Principalmente por conta do surto de casos de H1N1, causada pelo vírus influenza do tipo A. Característico do inverno, segundo a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, o vírus já ocasionou 36 óbitos no estado até o dia 6 de maio – ou seja, antes mesmo da chegada da estação mais fria do ano. Foram contabilizados, até esta data, 177 casos confirmados de influenza. A melhor forma de proteger as crianças é por meio da vacinação – fornecida gratuitamente pelo governo. A Campanha Nacional de Vacinação já começou e, para receber a dose, a orientação é procurar um posto de saúde.

Dicas para reduzir a umidade Se você sofre com a umidade dentro de casa, saiba que há algumas alternativas caseiras e baratas que podem ajudar a atenuar o incômodo. Uma delas é o bicarbonato de sódio, que auxilia na absorção do vapor. Basta encher um potinho aberto até a metade com o pó e colocar em diferentes cômodos. O próprio giz de lousa pode auxiliar. É só colocar um punhado de giz dentro de um pote sem tampa no local onde desejar. Quanto mais umidade, mais giz você deve usar. Se os ambientes estiverem mofados, a dica é borrifar um pouco de vinagre para reverter a situação.

Como driblar o frio? D Diante das temperaturas muito frias, vale contar com algumas dicas para evitar que o corpo fique gelado e com baixa imunidade. Para isso, o consumo de chás é bastante indicado. Além de esquentar o corpo, ingredientes como gengibre, hortelã, camomila e limão reforçam o sistema imunológico. Outra alternativa, para manter o corpo aquecido durante a noite, é um truque simples e antigo: usar um tijolo térmico, aquecido no forno. Basta colocar o item nos pés da cama, enrolado em uma toalha. Esquentar o ferro de passar roupa e alisar o lençol antes de deitar também é uma alternativa.

Cristiana e seus filhos, que ficam gripados com frequência. Abaixo, fogão à lenha aquece a família no frio

isso, a melhor opção é não sair de casa, onde é mais fresquinho”, percebe a moradora. Na casa da doméstica Cristiana Rodrigues, 29, a alternativa encontrada diante das ondas de calor também é improvisar. “Não tem arborização no bairro, daí a gente remenda umas piscinas usadas para as crianças se refrescarem”, relata. Já diante do frio, o maior problema na casa também é a gripe das crianças. Cristiana tem três filhos: Braian Rafael, de 11 meses, Luis Gabriel Rodrigues, 3 anos e Stephani Cristiane Rodrigues, 10 anos. “Sempre tem alguém gripado”, queixa-se ela. Mas há um utensílio na casa que ajuda a família a não passar frio: um fogão à lenha. “Ele esquenta bastante”, afirma a mãe. Por isso, o maior incômodo para ela se refere à umidade da casa, que gera ressecamento na pele, complicações alérgicas e respiratórias. Rafaela Dilly Kich Eduarda Moraes


4. MORADIA

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Lar, doce lar O programa Minha Casa Minha Vida foi a solução para que a família de Rute Ester conseguisse sair do aluguel

A

casa azul de número 130, na esquina do aterro no bairro Vicentina, foi a que Rute Ester, 50 anos, retirou no sorteio realizado na sede da Caixa Econômica Federal quando assinou o contrato da casa própria. Pequena, de paredes azuis, com várias marcas pessoais da dona, como fotos dos netos e filhos nas paredes, o local não sofreu modificações desde que foi entregue para ela. A ausência de um sofá não é problema, pois cadeiras de madeira com estampas coloridas, que demonstram a alegria que é vista no sorriso de Rute, bastam para acomodar ela e a família. Doméstica, ela está casada há 14 anos com Altair Lucas, 48 anos, que participou ao seu lado da luta para ter a moradia onde atualmente residem. Mãe de oito filhos, frutos de seu relacionamento anterior, ela não teve nenhum com o atual esposo. Hoje ela paga 32 reais por mês pelo domicílio que conquistou há três anos, por meio do programa federal Minha Casa Minha Vida. Para sair do aluguel, a moradora participou da ocupação no loteamento Cerâmica Anita, há sete anos. Foi um conhecido do casal que os convidou para a ocupação. “Nós alugávamos uma peça aqui

no Vicentina, então decidimos ir e montar um barraco no loteamento”, expõe Rute. Segundo ela, no começo, eram poucas famílias e ocorreram confrontos com quem tentava negociar a saída delas de lá. Foi isso que motivou a ida do grupo até o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Porto Alegre, para que aprendessem a organizar uma ocupação de forma pacífica. “Nós fomos até lá, passamos uma noite com eles vendo como funcionava. Também tivemos aulas de como falar com as autoridades e colocar as nossas reivindicações”, explica Rute. Foram quatro anos de luta e sufoco para conquistar o que ela diz ser hoje a realização de um sonho. Quando morava na ocupação, Rute ficava sem energia elétrica e água constantemente. Isso ocorria porque as empresas públicas cortavam os “gatos” realizados pelos moradores devido à irregularidade do local. Além do marido, viveram com Rute este período um dos oito filhos, Leonardo Gustavo de Souza, de 16 anos, e a neta Kauany, 9 anos. A menina foi a causa da doméstica ter vindo parar no Vicentina. Foi para salvar a vida dela que a avó saiu de Tramandaí.

A maternidade era problema Logo que engravidou, aos

21 anos, uma das filhas de Rute, Debora Graciele de Souza Bueno, agora com 30 anos, decidiu que não queria ter o bebê. Em busca de alternativas, fugiu para São Leopoldo, onde conseguiu remédios abortivos. Sua mãe, contraria ao aborto, se viu obrigada a deixar o litoral para impedi-la. Sem saber o que fazer para que a filha não abortasse, Rute fez uma proposta a ela. “Nós fizemos um acordo com a Debora, nós criaríamos a criança sem pedir nada se ela desistisse de abortar”, conta Rute. Nesse meio tempo ela também conseguiu auxílio judicial, como a filha já havia tomado remédios abortivos e estava no hospital, ela obteve um termo de guarda de feto, que garantia que Debora não fugisse e que o bebê fosse entregue diretamente para ela, que seria a responsável por ele. Altair havia ficado em Tramandaí para cuidar da casa, mas quando o dinheiro que Rute tinha para se manter em São Leopoldo acabou, ele teve que vir auxiliar a esposa. Após o nascimento da neta, o casal decidiu que era hora de voltar para o lar com ela, mas ao chegar lá foram surpreendidos. Haviam arrombado e roubado tudo que havia na casa. Foi assim que eles decidiram voltar para São Leopoldo. Quando a neta completou 7 anos, o pai decidiu pedir sua guarda na justiça. Ele alegou ter como dar melhores condições de vida à criança, e teve a apro-

vação da avó. Mas agora, com lágrimas nos olhos, Rute revela que é proibida pelo ex-genro de ver a menina. “Nós visitamos ela uma vez, então descobrimos que o pai dela mentiu para a juíza. Ele mostrou fotos de um quarto que, na verdade, é uma lavanderia, além disso minha neta é obrigada a fazer serviços de casa com a madrasta”, desabafa Rute. Ela e Altair aguardam uma nova audiência judicial, onde será revisada a situação da criança. De criança a dona de casa Rute é natural de São Leopoldo. A mãe dela vivia das lavagens de roupa que fazia para fora e o pai era sargento do exército. Quando Rute era criança, sua mãe sempre dizia a ela para estudar, pois não desejava destino igual à filha. “Me arrependo de não ter ouvido minha mãe”, lamenta a dona de casa. Ela conta isso porque aos 15 anos fugiu para se casar, foi nessa união que ela teve oito filhos, até que em 2000 se separou. O divórcio foi um consenso mas os filhos não acreditavam que iria se concretizar, já que Rute seguiu morando com o primeiro esposo por um tempo após se divorciar. Quando Leonardo, filho caçula do primeiro relacionamento, completou um ano, Rute conheceu outra pessoa e decidiu sair da casa do ex-marido. A maioria dos filhos não aceitou bem a nova relação e,

David Farias Gustavo Bauer Lucas Ott LUCAS OTT

GUSTAVO BAUER

GUSTAVO BAUER

Rute, mãe de oito filhos, comemora a conquista da casa própria depois de quatro anos de luta

com exceção de Leonardo, optaram por seguir na casa do pai. O início do atual casamento foi complicado. “Altair acha que os filhos têm que andar sozinho e eu sou muito mãe. Estou sempre presente”, expõe Rute, que percebe seu marido um tanto severo. Altair já tinha filhos quando se casou com ela, mas recentemente perdeu um deles. “Nós estávamos em casa quando nos chamaram de noite dizendo que o mais velho tinha sido morto. Ele estava envolvido com drogas”, relembra Rute. Agora ela teme que Leonardo, seu filho mais novo, se envolva com drogas também.“Estávamos sentados aqui dentro quando os amigos do Leonardo estavam aí na frente conversando com ele. Eles diziam que com esse tipo de negócio pode ter tênis de marca e que com trabalho demora muito”, desabafa Rute. Formado no ensino fundamental, o jovem não quer mais estudar. “O pai dele morreu faz dois meses, ele está abalado com isso ainda, mas os irmãos, que são mais velhos, estão ajudando. Mas agora ele recebe a pensão do pai e acha que pode fazer o que quer, sem dar explicações sobre onde vai e o que faz”, reclama a mãe. Ela conclui afirmando: “Essa juventude de hoje em dia está difícil de lidar”.


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Histórias de vida .5

Problemas com habitação preocupam moradores Enchentes e reintegração de posse estão entre as dificuldades enfrentadas no bairro

A

simpatia e receptividade da jovem Amelina Machado Pessoa contrastam com a precariedade do ambiente em que ela vive com o filho Douglas Rafael, de 6 anos. A estrutura frágil da pequena casa de madeira onde residem se opõe ao forte desejo de conseguir um lugar melhor para morar. Aos 23 anos, a moradora do Vicentina conta um pouco a respeito da preocupação diária com a questão habitacional. Apontando para os fundos do terreno onde mora, Amelina tenta mostrar o local exato onde ficava sua antiga casa. Com pesar, ela lembra o dia em que uma reintegração de posse executada pela Brigada Militar acabou com quase tudo que ela possuía. “Era por volta do meio dia e eu estava trabalhando em uma usina de reciclagem aqui perto. Quando cheguei em casa, as paredes estavam demolidas. Minha televisão e ventilador também estavam quebrados. Os policiais diziam que eu não podia reclamar, pois o terreno era invadido”, desabafa. Na ocasião, a jovem teve que ser amparada pela mãe, que

também reside no bairro. Onde reside, atualmente, a enchente é um grande problema a ser enfrentado. No início de 2016, ela e o filho tiveram que ficar hospedados por duas semanas na casa de uma vizinha, por conta da água que invadiu a residência. “Quando a água começou a subir, o assoalho da minha casa não resistiu e começou a cair”, recorda. Apesar da situação, a moradora não é contemplada com o“aluguel social”, benefício destinado a auxiliar pessoas vítimas de catástrofes naturais e que se encontram em situação de vulnerabilidade. Amelina diz ainda estar aguardando a remoção para um lugar adequado há mais de cinco anos. A dificuldade em caminhar expõe o motivo pelo qual Amelina teve que deixar o trabalho em uma usina de reciclagem de lixo no bairro, há cinco meses. Exibindo a palma das mãos com algumas feridas e pele ressecada, ela conta que teve que deixar as atividades de lado por consequência da dor que sente nas mãos e principalmente nos pés, onde apresenta quadro semelhante. Segundo a jovem, mesmo após realizar exames no Hospital Centenário, não foi dado um diagnóstico preciso sobre a situação que tira dela a possibilidade de trabalhar diariamente. Os R$ 142,00 que recebe

mensalmente do programa Bolsa Família acabam sendo a única fonte de renda. A família recebe ainda um rancho oferecido pelo Projeto Caminhar, que visita a região distribuindo roupas e alimentos. As dificuldades para criar o filho fazem com que Amelina não pense em dar à luz novamente. “Este aqui já me dá trabalho que correspondeháumascincocrianças”, brinca, referindo-se ao menino que não parou quieto durante um minuto sequer, brincando com os cachorros da família e com a câmera das fotógrafas do Enfoque. Ainda sobre o menino, ela afirma que deseja que ele siga um caminho digno na vida.“Espero que seja um trabalhador. Ele gosta muito de ajudar em tudo. Quando passa o caminhão de lixo na rua, ele sai correndo atrás ajudando os garis a juntar o lixo”, conta. Quando perguntada sobre o que gostaria de ganhar de Dia das Mães, Amelina tentou disfarçar a emoção. Talvez uma vida com tantas dificuldades limite a capacidade de pensar em receber um presente. Presente mesmo está a esperança de que dias melhores virão, motivada pela energia e alegria transmitidas por Douglas Rafael.

Melhorar suas condições de vida é o sonho de Amelina e o presente que quer dar ao seu filho Douglas

Lucas Möller Karina DE Freitas

Paixão pela religião Nas noites de terça, quinta e sábado, moradores do Vicentina se reúnem com o pastor Adair Moizinho da Cruz, 57 anos, na Igreja Apostólica do Nosso Senhor Jesus Cristo. O local é pequeno, com espaço para menos de trinta pessoas sentadas, mas é aconchegante. No púlpito, um homem de altura média e cabelo grisalho fala. Ele se veste com roupas simples e prega o evangelho com convicção. A igreja, criada pelo pastor com a missão de“salvar almas”há cerca de dois anos, não enche sempre, mas já lotou mais de uma vez. Adair mora no Vicentina há cinco anos. Diz que não prega pelo dinheiro, mas por amor.“Deus me disse que tenho uma missão aqui: ajudar a salvar a alma dos que sofrem”, revela. A relação com a igreja existe desde criança. Ele era católico. Foi coroinha em Roque Gonzales, no noroeste gaúcho,

onde nasceu. Aos 10, já trabalhava na construção civil. Por ter feito bicos boa parte da vida, não se aposentou até hoje e continua sem renda fixa, pois não pode ter um emprego de carteira assinada para cuidar da família.

acredita que a profecia se realizou:“Sete anos depois, um pastor me chamou para trabalhar com construção. Era um O pastor Adair, sua bom empregador, pagava certo e me esposa Vanessa e a filha Vitória vivem em chamavaparatomar chimarrão e comer uma casa na ocupação há cinco anos churrasco. Foi ele que me levou a trabalhar na igreja”. A escolha pela religião não veio sem dificuldades. Adair se separou da esposa logo depois. Haviam sido casados por 27 anos e tiveram dois filhos, hoje com suas próprias famílias, mas o trabalho religioso os afastou. Trabalhou na O rumo de sua história com a igreja, primeiro como ajudante e religião mudou há 20 anos, quando depois como pastor, Adair conheceu frequentava uma igreja evangélica. Vanessa da Rosa Caetano, 27 anos. Em um culto, um pastor lhe disse Casou com ela e teve uma filha que em sete anos, Deus iria lhe chamada Vitória, de 8. Se conhebuscar e ele seria um pastor. Ele ceram no Vicentina, mas moraram levou a sério aquelas palavras e por anos no bairro Charrua, onde

Adair era pastor. Por achar o lugar perigoso demais, decidiram se mudar. Foram viver na ocupação, onde não precisam pagar aluguel, luz ou água, mesmo que vivendo em um terreno irregular. Por causa da depressão da esposa, Adair não pode ter emprego fixo, mas faz bicos com construção civil. Vanessa perdeu uma criança aos 7 meses de gestação e vem tomando remédios desde então. O pastor diz que o dízimo não ajuda muito a sustentar a igreja e ele não faz questão de pedir. Ele sabe que elas ajudam como podem. Construiu ou comprou a maioria dos objetos da igreja, quase sempre com o dinheiro próprio, algumas vezes com ajuda dos fiéis. Adair diz que foi abençoado pela vida e a família que tem. Gabriel Machado Pureza Lidiane Menezes


6. Histórias de vida

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Daniel e Daniela casaram muito novos e esperam seu terceiro filho depois de resistir às mais diversas adversidades

O pé de bergamota, o amor e a porca com roupa As histórias e os causos do Vicentina vistas por alguém de fora do bairro

A

Aos três anos de idade, Daniel Heidt Rodrigues, hojecom28,desembarcou no Vicentina. Já Daniela Catiuça de Souza Lima, 25, nasceu e viveu a vida toda no bairro. Nesse espaço onde vivem mais de 10 mil moradores, segundo Censo 2010 e mais de 19 mil conforme a associação de moradores, eles se conheceram, casaram, separaram e estão juntos novamente. Antes de essa história virar amor, ela teve seus desafetos. Daniel e seus amigos costumavam caminhar pelo bairro em busca da famosa fruta de inverno dos gaúchos: a bergamota (ou vergamota, tecnicamente, os dois nomes são válidos). O problema é que uma dessas árvores, onde o fruto floresce, ficava no pátio da casa da mãe de Daniela. Quando a gurizada adquiria de forma gratuita, e sem permissão, a “berga” da família Souza Lima, ela corria para proteger o que era seu por direito e tacava-lhe pedra neles. Porém, o que Daniela não sus-

peitava era que a mãe de Daniel era amiga de sua tia. Em uma festa de família, a mãe dele foi convidada e o levou. E lá estavam os dois compartilhando o mesmo ambiente, mas sem pedradas. Haviam apaziguado a situação. E então o amor rolou no ar. No dia da festança, eles apenas conversaram, mas já foi o início de algo. Um ano depois, estavam juntos. A paixão adolescente, que começou em 2003, acabou gerando o primeiro de seus dois filhos: Erick Brayan Lima Rodrigues, 12 anos. Entretanto, o amor foi interrompido por tempo indeterminado por conflitos familiares. A mãe de Daniel não aceitava o namoro, então se separaram e seguiram rumos diferentes: ele arrumou uma namorada e ela um namorado. Mas já diz o ditado: o que a bergamota e a pedrada unem nada consegue separar. Dois anos se passaram e eles voltaram a ficar juntos. Assim que o amor voltou e o casal se juntou, a mãe de Daniela fez uma brincadeira: agora falta a Érica. E ela veio. Mal haviam retornado a relação e ela engravidou. A brincadeira tornou-se verdadeira e a Érica chegou: Erika Vitória Lima Rodrigues, 7 anos.

Hoje, Daniel e Daniela continuam juntos. Ela está no sétimo mês de gestação. Vem aí Rebeka Shayane Lima Rodrigues. Eles vivem na rua Divina D, na parte chamada de Ocupação Cerâmica Anita. Segundo o casal, existem boatos de que aquela localização seria uma praça, no entanto, houve desvio de dinheiro e o local ficou vazio. As dificuldades por viverem no local são visíveis: o esgoto da casa cai direto na rua. Eles desistiram de pedir ajuda para a prefeitura. Disseram que já foi difícil as autoridades do municí-

pio agilizarem a rede de esgoto daquela região. O casal decidiu que irão por o restante do encanamento por conta própria. Mas apesar dos percalços, eles são felizes. Daniel é jardineiro e Danielaajudanarendacomoserviço de reciclagem. Quando Rebeka chegar ao mundo, poderá ouvir a história de sua família e descobrir que tudo começou por conta de bergamotas e pedradas. E a porca com roupa? Enquanto este que vos escreve caminhava pelo entorno do Vicen-

tina, antes de ir para a Divina D, acabou indo parar na rua Travessa C1. A via é calma, assim como a maioria do bairro. Ali existem alguns cachorros que latem e tentam morder você a todo o momento, moradores conversando em frente a suas casas etc. Porém, há uma coisa que chama a atenção: Xica. Não dá para saber ao certo se o nome dela é com X ou com CH porque ela não fala a mesma língua que o ser humano. Elaconvivebemcomoscachorros (os mesmo que latem quando você passa por eles), com os gatos e dá para perceber que Xica é adorável. Até aí tudo bem, se não fosse o fato dela ser uma porca. Xica, como foi dito que era o seu nome (às crianças que informaram o nome não quiseram conversar sobre a Xica), se protege do frio assim como qualquer outro. Ela gosta de andar na rua, cavoucar na areia, brincar com os cachorros e gatos e faz tudo isso vestindo uma estilosa blusa verde limão. Então,casoalguémnãoconheça umaporcacomroupa,váatéruaTravessaC1edêumOláparaXica. Matheus Freitas Felipe Machado


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histórias de vida .7

Muitas casas, um só lar

Após viajar pelo RS, Maria Celina encontrou no bairro um local para construir sua vida

E

m uma roda de chimarrão com a família no pátio de casa, Maria Celina Rodrigues, 64 anos, relembra seus primeiros anos no Vicentina. Filhas e netas escutam com espanto os “perrengues” que a mãe já passou na vida. Sem lembranças de data, a moradora não deixa dúvidas: depois de rodar o estado do Rio Grande do Sul, não sentiu-se em casa em nenhum lugar além do bairro. Quando a família chegou no Vicentina, quase não havia moradores. “O valão nem existia e eram raras as casas que possuíam energia elétrica ou água encanada”, lembra Maria. Na sua casa, não havia nem um, nem outro. A água vinha, em galões, das casas daqueles vizinhos que possuíam encanamento e ajudavam os demais. Para banhos quentes, era necessário esquentar bacias com água no fogão a lenha e, durante a noite, toda a iluminação da casa provinha de velas. Hoje a realidade é outra, o Vicentina cresceu. “Tem energia elétrica, encanamento, esgoto, tudo certinho. Tem creche e escola para todo mundo, coleta de lixo, tem ônibus, tudo que a gente precisa”, afirma a moradora. Nascida em Santa Cruz do Sul, Maria saiu de sua cidade natal aos 13 anos de idade, acompanhada de seu primeiro marido, Edgar de Leite. A família da jovem queria casá-la com um rico fazendeiro da região, mas Maria Celina não gostava dele e decidiu fugir com Edgar, seu namorado. Ela estava grávida da primeira filha do casal quando decidiram partir em busca de melhores oportunidades de vida. Sem rumo definido, a família, que era muito pobre, rodou o estado como andarilhos, até chegarem em Novo Machado, uma pequena cidade do Rio Grande

A família de Maria reúne-se para relembrar as histórias vividas no Vicentina

do Sul que faz divisa com a Argentina pelo rio Uruguai. A viagem foi longa e cansativa. O casal precisou dormir na beira da estrada, na carroça mesmo, e por muitas vezes passou fome. Dona Maria lembra com tristeza de uma situação durante a viagem: “Eu já estava há três ou quatro dias sem comer nada e passamos por uma fazenda muito grande, com uma plantação enorme de aipim. Eu disse para pararmos e pedir um pouquinho de comida. Podiam me dar só aipim mesmo, que com a fome que eu estava eu não me importava. Mas quando falamos com o fazendeiro, ele disse que não podia dar porque a plantação toda de aipim era para alimentar seus porcos e ele não ia tirar da comida dos bichos. Nos mandou embora com fome mesmo”, denuncia a dona de casa. Maria ficou desolada por causa da renúncia do fazendeiro em ajudá-los. Eles não conheciam a estrada e não faziam ideia de quando chegariam na próxima cidade ou fazenda. Entre trancos e barrancos, a família conseguiu chegar a Novo Machado e recomeçar lá a sua vida. Edgar trocou a carroça e o cavalo por um terreno próximo ao rio Uruguai. Ele não podia trabalhar, nasceu com os pés tortos congênitos (má formação genética em que os pés são tortos e, nos piores

casos – como o de Edgar –, são virados para trás), então, Maria é quem trazia a renda para o lar. Ela se revezava trabalhando na lida em plantações e fazendo a travessia de pessoas de caiaque para a Argentina pelo rio. Não sabia nadar e sequer tinha proteção para o serviço, mas precisava do trabalho para complementar sua renda. Depois de alguns anos, Edgar deixou a família por outra mulher. À época ele e Maria tinham dois filhos, ambos ainda eram crianças quando a separação ocorreu. Após o abandono pelo marido, Maria ficou muito triste e desanimada. Já tinha decidido voltar para Santa Cruz do Sul, quando conheceu Eduardo Rodrigues, seu segundo esposo. Eduardo estendeu a mão e cuidou de Maria e seus filhos, ajudando a jovem de 21 anos a reconstruir a vida. Logo, eles estavam casados e juntos tiveram mais nove filhos. Eduardo sempre foi trabalhador, relata Maria. “Ele era servente de pedreiro, depois virou mestre de obras, trabalhou também como vigilante... Eu era quem cuidava da educação das crianças sozinha, mas ele sempre trabalhou muito para sustentar a família, disso não posso me queixar”, conta a dona de casa. De Novo Machado, a família migrou para outras cidades, fazendo morada em Tucunduva, Santa Rosa e Novo Hamburgo.

Depois, a família seguiu para São Leopoldo. Ao chegar na cidade, foram parar direto no bairro Vicentina, há algumas décadas Maria Celina mora há tanto tempo no bairro que já não se lembra do ano em que mudou-se. A vida no bairro nunca foi fácil, mas a família sempre conseguiu se virar. Eduardo batalhava trabalhando fora e Maria sempre ajudou a complementar a renda. Era cuidadora de crianças em sua própria casa. O casal chegou a abrir seu próprio negócio, um armazém. Na época era o único de todo o Vicentina, mas o empreendedorismo não era para a família e o minimercado acabou fechando as portas. O segundo casamento de Maria também acabou não dando certo. Eduardo largou a família por outra mulher. “Nunca tive sorte para homens, mas quem sabe um dia”, ela brinca. Hoje, a renda de Maria Celina vem da pensão que recebe desde que Eduardo faleceu há quatro anos. Apesar de não morarem mais juntos, o casal nunca se divorciou e sempre manteve uma boa relação de amizade. Após a separação, Maria ficou morando com dois de seus filhos (os demais já haviam casado ou se mudado). Porém, ambos eram usuários de drogas e começaram a vender as coisas de Maria para sustentar seus vícios. “Eu fiz tudo o que podia para ajudar, mas

nada adiantou. Eles ainda estão nessa vida, eu cuido, quando eles vêm me ver dou comida, ajudo, mas é só o que dá para fazer agora. A gente cria os filhos até certo ponto, depois eles fazem suas próprias escolhas”, lamenta a moradora. Há sete anos, Maria saiu de sua própria casa, pois não tinha mais condições de conviver com os rapazes, quase já não havia móveis na residência. A partir daí foi morando com os demais filhos, um pouco com cada um, até ser contemplada com um apartamento do programa Minha Casa, Minha Vida no bairro Charrua, há cinco anos. “O apartamento era lindo, todo ajeitadinho, a prestação era baixinha, era ótimo. Mas eu me sentia lá como um passarinho preso na gaiola. Gosto de ter meu pátio, minhas plantinhas, ter cachorro, e lá não podia nada disso”, diz. Então, Maria trocou o apartamento pela casa de uma de suas filhas e voltou a morar no bairro Vicentina. Agora, Maria vive sozinha em sua casa, mas isso não é sinônimo de solidão. Os filhos e netos estão sempre ao redor da matriarca. Na roda de conversas, todos os assuntos estão presentes: a rotina das crianças na escola, a novela, o cenário político do país, mas, principalmente, como o bairro mudou e cresceu ao longo das décadas, desde que a família instalou-se no Vicentina. Maria Celina tem um amor muito grande por esse lugar que acolheu ela e todos os seus filhos tão carinhosamente. Os tempos podem ter mudado no Vicentina, mas a gratidão de quem veio de um lugar tão distante para refazer a vida é a mesma de décadas atrás. Pâmella Atkinson Tamires Souza


8. HISTÓRIAS DE VIDA

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO / 2016

Cultivando raízes Casal construiu uma das primeiras casas da ocupação e depois de algumas idas e vindas, escolheu o Vicentina como lar

A

inda na década de 1980 que seu Ari Ortis, 60 anos, e dona Vanilda Ortis, 56 anos, chegaram à rodoviária de Novo Hamburgo com apenas algumas sacolas e seis filhos ainda pequenos. Oriundos de São Miguel do Oeste, Santa Catarina, vieram em busca de melhores condições de vida e de emprego, o que faltava na região de onde moravam. Depois de dez anos morando no bairro Rincão, em Novo Hamburgo, onde trabalhavam catando lixo, com o irmão de Vanilda, chegaram ao Vicentina. Ela conta que foi fácil conseguir um lugar para morar no bairro: “Trocamos o terreno por uma TV e uma bicicleta, e construímos a casa com tabuas que encontramos no lixo”, explica Vanilda. A casa construída pelo casal foi a quarta residência do que hoje é a rua Cometa 1, umas das precursoras da ocupação Cerâmica Anita. Hoje em dia, essa não é mais a morada da família Ortis, que se mudou de lá faz dois anos. A primeira residência foi utilizada pela família por dez anos. Dona Vanilda teve um infarto há cerca de dez anos e conseguiu prioridade para a concessão de uma casa do projeto habitacional da prefeitura. O novo lar fica bem pertinho do antigo, na Rua Cometa 2. No entanto, esse é de alvenaria e pintado, graças aos esforços do seu Ari que conseguiu juntar latas de tinta descartadas no lixo. Aliás, quase todos os itens de decoração da casa são objetos que os outros não querem mais e foram muito bem aproveitados pela família. Esses e outros utensílios que seu Ari aproveita resultam de seu trabalho como catador. Mas nem sempre essa foi sua ocupação. Durante quase todo tempo que morou no Vicentina, ele trabalhou nas cooperativas que limpavam as ruas de São Leopoldo e de outras cidades do Vale dos Sinos. Seu Ari relata que nos primeiros anos ganhava só uma cesta básica.“Trabalhava só pela sacola, subíamos em um caminhão e íamos limpar outras cidades”, lembra. Trabalhou até quase completar 60 anos de idade, mas começou a perder a visão. Depois disso, não conseguiu mais emprego formal e agora tenta sobreviver somente com o que consegue no lixo. O casal garante que, apesar da renda da coleta de lixo ser pouca, é o suficiente: “Não

Vanilda e Ari Ortis se instalaram no bairro após adquirir o terreno que trocaram por uma TV e uma bicicleta

precisamos de muito, vivemos com o que conseguimos”, afirma o catador. Seu Ari diz que sempre busca os materiais que são mais valiosos. “O que é ouro para nós é o cobre, um quilo dá mais de 12 reais”, explica. Ele consegue o material em aparelhos de TVs velhos e motores de geladeiras estragadas. A maior parte da renda que

a família tem hoje vem de dona Vanilda. Como ela teve um infarto, recebe auxílio doença do INSS e ainda consegue ajudar seu Ari não no trabalho de coleta do lixo - mas na separação dos objetos que o marido traz para casa. Uma das atividades mais sagradas para os dois são os cultos da igreja Deus é Amor, que frequentam três vezes por

semana: às terças, quartas e aos domingos. Eles passaram a frequentar o local por indicação da filha, Célia de Fátima Ortis, 43 anos, um dos orgulhos da mãe. “Ela é tão crente, que já é quase pastora”, emociona-se donaVanilda. Seu Ari tem outra fé bem particular: “Acredito primeiro em Deus e depois na Tele Sena”, comenta. Ele compra o título de

capitalização todos os meses e não perde um sorteio. Mesmo sendo analfabeto, entende os números e os marca sempre com muita esperança. “Se algum dia eu ganhar os R$ 500 mil, quero comprarumacasabemgrande,para receber toda família”, sonha. O casal não conseguiu se alfabetizar, apesar de conseguir escrever os próprios nomes. A infância foi marcada por muito trabalho. Os dois, cada um com sua família, moravam em terras afastadas e não tiveram a oportunidade de frequentar a escola. Mesmodepoisdecasados,aprender a ler e escrever nunca foi uma prioridade do casal, por terem que se dedicar ao trabalho. Vanilda até tentou ler no período em que a família viveu em Garibaldi, na Serra, com dois de seus filhos, mas não conseguiu compreender mais que seu nome. Ela e a família recebiam a visita de pessoas ligadas à igreja, que tentavam auxiliá-los no aprendizado da escrita e da leitura. Ari, diz conhecer todas as letras, mas não consegue juntá-las para formar palavras e completa: “Sei escrever meu nome porque são só três letras, então é fácil”. Juntos há 44 anos, o casal começou a namorar quando ele tinha 16 e ela apenas 12, o que foi um problema para Ari: “Tive que esperar ela fazer 17 para poder casar, e ainda assim precisamos de uma autorização por escrito do pai dela”, comenta. A filha, Eliane Ortiz, 34 anos, comenta que o casamento dos pais está realmente baseado no amor. “Para se aguentarem 44 anos!”, brinca a dona de casa, que afirma gostar mais do pai agora, já que ele parou de beber. O casal chegou a sair duas vezes do Vicentina. Além de Garibaldi, passaram também um curto período na Vila Farrapos, em Porto Alegre, por conta de um emprego que Ari conseguiu em uma empresa que plantava e trabalhava com eucaliptos. No entanto, mesmo com tantas andanças, foi o Vicentina que eles escolheram. E agora que realizaram o sonho da casa própria, não pretendem mais sair do bairro. “Pretendo ficar aqui o tempo que Deus deixar”, comenta seu Ari. Mesmo tendo que enfrentar diversas adversidades, o casal afirma terpermanecidograçasaféemDeus e o amor que um tem pelo outro. E esses são os valores perfeitos que seuAriedonaVanildafazemquestão de transmitir para seu seis filhos, dez netos e um bisneto. JAYME MAGALHÃES Liege Barcelos


Enfoquinho CADERNO ESPECIAL - ENFOQUE VICENTINA

EDIÇÃO 11 - JUNHO/2016

Fala aí,

criançada! “Queria que as pessoas parassem de colocar geladeira no rio, porque, quando chove, enche o rio e alaga minha casa”

Se você pudesse dizer para os moradores do seu bairro alguma coisa, o que você diria? Os pequenos da Casa da Criança e do Adolescente (CCA) responderam essa pergunta. Dá só uma olhada no que eles disseram!

Talyta Diana de Limas, 14 anos

“Queria que alguns vizinhos parassem de usar drogas, porque fica um cheiro ruim na minha casa”

Marcelo Gustavo de Oliveira, 13 anos

Maria de Lourdes, 10 anos

“Gosto de brincar de pega-pega, esconde-esconde, mas na rua ou no pátio, porque estragaram a praça, quebraram os brinquedos e ninguém corta o mato”

“O bairro é bom de viver. Algumas coisas poderiam melhorar, como, por exemplo, o posto de saúde. Não tem médico. E também não temos mais merenda nas escolas”

Ingrid Rafaela de Macedo Elvira, 7 anos

BRUNA MATTANA

“Não pode deixar água parada, porque tem mosquito da dengue”

“A gente gosta de andar de bicicleta, de skate, mas não tem muitos lugares para andar, daí a gente anda pertinho da calçada”

Luis Felipe Salles dos Santos, 7 anos, e David da Silva de Borba, 6 anos

Mariele Talita Ferreira, 7 anos


Enfoq ANA PAULA ZANDONÁ E NICOLE

“T

CAVALLIN

CAREN RODRIGUES

u tem que chutar três vezes. Se errar uma, está fora”. O jogo “Três Um, Três Fora” é narrado com detalhes por Andrei Farias Cardoso, de 11 anos, enquanto tenta disputar atenção com outros meninos e meninas em uma roda de conversa. Curiosos, os pequenos começam a se aproximar e, no fim, somaram-se 14 crianças animadas para responder a perguntas sobre a sua rotina. O que a gente mais queria saber era: “O que é ser criança no Vicentina?” Quando chegamos ao bairro, caminhamos em direção à Ocupação Cerâmica Anita para descobrir mais sobre a vida dos pequenos moradores de lá. Ao chegar, encontramos os primos Andrei Farias Cardoso, de 11 anos, e Elizandro Maesque Cardoso, de 8, e os convidamos para serem repórteres com a gente.“Vamos, galera?”, perguntamos.“Vamos! Vou chamar meus amigos” foi a resposta de Andrei. E lá estávamos nós: cercadas de 14 crianças cheias de personalidade prontas para contar as aventuras de suas vidas. Mesmo que os pequenos brinquem na rua e ajam como crianças, mostraram muita maturidade e compreensão sobre assuntos sérios como violência, drogas, religião e importância da escola. A roda de conversa durou cerca de uma hora, o que fez com que nós, repórteres do Enfoque, aprendêssemos muito com as crianças, repórteres do dia a dia do Vicentina. Conheçam os pequenos!

c e d a d Ro Sobre Deus: “Deus é a vida e também o criador da Terra. Eu agradeço porque Deus deu uma casa para nós e colocou comida na nossa mesa. Antes meu pai catava lixo e agora temos uma casa”

Sobre violência: “É porque tem ladrão. Só p a casa da minha amig lado, a Fernanda (Gon de 11 anos), até às 21h” “Acredito em

Sobre religião: “Rezo todos os dias antes de dormir”. Sobre futuro: “Quero muito ser modelo e professora”

Sobre brincadeiras: “O que eu mais gosto de brincar é de boneca!”

Atrás: Fernanda Gonçalves, 11 anos, Ana Paula da Silva Cruz, 8 anos, She Frente: Carina da Silva Cruz,


quinho

a s r e v n co

perigoso aqui, posso frequentar ga que mora ao nçalves, também ”. Sobre religião: m Deus”

Sobre violência: “Sempre temos medo e corremos para dentro de casa quando ouvimos tiros”. Sobre escola: “Não gosto de português, sou ruim, odeio fazer as redações no colégio. Mas sei que não posso brincar sem fazer os temas de casa - já até fiquei de castigo por causa disso” Sobre brincadeiras: “Brincamos bastante de salão de beleza e de escolinha”. Sobre escola: “Eu amo a educação física na escola, jogo vôlei!”

Sobre violência: “As professoras sempre dizem que a gente não deve se envolver com drogas ou com pessoas estranhas. Não pode entrar nessa vida. Ou tu anda no caminho de Deus ou tu vai para a sepultura”. Sobre escola: “Sei que é importante ir para a escola e fazer os temas. Tem coisas que eu não gosto de fazer na aula, mas é preciso. Sei disso!”

Sobre brincadeiras: “Jogar futebol e dar mortal são as coisas que eu mais gosto de fazer”

Sobre futuro: “Quando eu crescer, quero ser jogador de futebol. Que nem o Messi e o Neymar”

Sobre violência: “Odeio violência, por isso, quero ser policial”

Sobre futuro: “Quero ser pastor porque gosto do pastor da minha igreja”

Sobre brincadeiras: “Eu amo parque de diversões. E jogar no gol! Eu sou muito bom no gol”. Sobre futuro: “Sabe o que eu sonho em fazer? Quartel”

eron Nogueira, 11 anos , Shaiane Nogueira, 8 anos, Gustavo Fonseca e Silva, 8 anos, Andrei Farias Cardoso, 11 anos, Elizandro Maesque Cardoso, 8 anos. 6 anos, Mateus Salazar, 6 anos, Ariel Maesque Cardoso, 6 anos, Eduardo Nogueira, 6 anos, Cauã Souza, 6 anos.


Enfoquinho Opinião de Kevin Eduardo Knewitz

Opinião de Larissa Costa Moraes

O meio ambiente no Vicentina

As condições do nosso bairro

O Vicentina é um bairro tranquilo. Quando não acontece uma morte lá às vezes. Mas o pior de tudo é o meio ambiente deste bairro: é lixo para um lado, é lixo para o outro, com acúmulo de entulhos em certas esquinas. As pessoas que moram lá sabem como é isso. De vez em quando, tem pessoas que tentam ajudar, recolhendo o lixo e separando cada tipo em seu lugar. Mas sempre tem aqueles que não pensam que o que estão fazendo pode prejudicar não só a comunidade, como também eles mesmos e, assim, vão despejando o lixo em tudo que é parte. Eu só espero que essas pessoas que estão tentando ajudar nosso bairro não desistam dele, pois essa guerra é grande e nós só conseguiremos vencê-la juntos, ainda que estejamos em menor número. Precisamos vencer! Não cuidando apenas do Vicentina, mas do mundo.

Falar sobre as condições do lugar onde a gente vive é sempre bom, porque muitas pessoas não sabem como ele está, se numa condição boa ou ruim. Hoje em dia, o Vicentina se encontra numa condição não muito boa. Temos lixo depositado na beira do rio, nas esquinas, além de esgotos a céu aberto. Mas isso não é a única coisa, o que mais prejudica o bairro é o valão, afinal, toda vez que chove, ele enche. E como ninguém liga as bombas que puxam água, ele transborda em várias casas. Só que não adianta ficarmos apenas falando se ninguém se sensibilizar e mudar as coisas. Mudando nossas atitudes e fazendo a nossa parte, tornaremos o Vicentina melhor do que é agora.

THIAGO GRECO

THIAGO GRECO

Para brincar e aprender Ei! O que você faz antes de ir para a escola? Ou quando sai da escola? Em São Leopoldo, tem uma série de oficinas e atividades para se divertir e aprender entre amigos no horário livre e de graça. Leia e peça para a sua mãe, o seu pai, a sua avó, ou o seu tio para participar!

horário em que você não estiver na escola. Como faço para me inscrever? Entre em contato pelo número (51) 3590-8228, ou mande um e-mail para orquestra@ unisinos.br.

Centro Medianeira

O que é isso? Aqui você vai ter contato com a cultura e o esporte, vai aprender a se expressar, interagir e aprender a viver em comunidade,tudoisso,rodeadodeamigos. Onde? Rua Alfredo Gerhardt, nº 891, bairro São Miguel. Quando? Se você vai para a escola à tarde, pode visitar esse espaço pela manhã. Se vocêvaiàescolademanhã,podefrequentar esse lugar durante a tarde. Comofaçoparameinscrever?Entreemcontato pelos números (51) 3554-0996 ou (51) 9116-5120.

O que é isso? É um espaço que recebe até 100 crianças ao longo do ano. Lá você vai ter direito a uma refeição e vai participar de atividades divertidas para aprender a trabalhar em grupo e valorizar a família e a comunidade. Onde? Núcleo Parque do Trabalhador - Rua VicentinaMariaFidélis,nº350,bairroVicentina. Quando? Se você vai para a escola à tarde, pode visitar esse espaço pela manhã. Se você vai à escola de manhã, pode conhecer esse lugar durante a tarde. Fica aberto de segunda à sexta-feira. Como faço para me inscrever? Entre em contato pelo número (51) 3589-6874.

Instituto Lenon Joel pela Paz O que é isso? Aqui você vai encontrar esporte, lazer, cultura, oficinas e projetos de capacitação. Ah, e tem também a Ludoteca, para o momento da leitura, e a musicoterapia, que une música e comunicação. Legal, né? Crianças e adolescentes são bem-vindos. Tem espaço para 230 participantes. Onde? Rua Alfredo Gerhardt, nº 788, bairro São Miguel. Quando? Se você vai para a escola à tarde,

Casa da Criança e do Adolescente – CCA

pode visitar esse espaço pela manhã. Se você vai à escola de manhã, pode conhecer esse lugar durante a tarde. Como faço para me inscrever? Entre em contato pelo número (51) 3572-4505.

Iniciação Esportiva – Sesc Oqueéisso?Temidadeentre1e14anos?Então, você está convidado a participar do grupo de iniciação esportiva. Além do esporte, tem também atividades recreativas. E você pode até participar de torneios no futuro. Já pensou? Tem artes marciais, basquete, brincadeiras como amarelinha, cabra-cega, esconde-esconde,danças,cantigasderoda e jogos, futebol, ginástica, ioga, natação, peteca, pólo aquático, tênis e vôlei. Onde? Rua Marquês do Herval, nº 784, Centro. Quando? Se você vai para a escola à tarde, Karine Vasem Klein

Enfoquinho

pode visitar esse espaço pela manhã. Se você vai à escola de manhã, pode conhecer esse lugar durante a tarde. Funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 20h e nos sábados, das 8h às 13h. Como faço para me inscrever? Entre em contato pelos números (51) 3592-2129 ou 3590-3466.

Projeto “Vida com Arte” Oque é isso?Você gosta de música? Já pensou em aprender a tocar um instrumento? Esse projeto da Unisinos te convida a ter aulas de música três vezes por semana. Você só precisa estudar em uma escola pública. São 240 jovens que podem ter essa oportunidade sem gastar nada. Onde?AvenidaUnisinos,nº950,bairroCristoRei. Quando? Ocorre três vezes na semana, no

Instituto Educacional, Social e Terapêutico Juadi O que é isso? O espaço é dividido em três projetos diferentes: Projeto Visão Para o Futuro, Escola de Educação Infantil e Grupo de Escoteiros. ¬Não está se saindo bem nas notas? Aqui você pode fazer um reforço escolar.Tem também atividades esportivas. Recebe 180 crianças. Onde? Rua da Palma, nº 322, bairro Vicentina. Quando? Se você vai para a escola à tarde, pode visitar esse espaço pela manhã. Se vocêvaiàescolademanhã,podefrequentar esse lugar durante a tarde. Como faço para me inscrever? Entre em contato pelo número (51) 3554-0738.

NÍNIVE GIRARDI

Expediente – Produção e Reportagem: Ana Paula Zandoná, Bruna Mattana, Karine Vasem Klein, Nicole Cavallin e Thiago Greco. Edição: Joyce Heurich. Diagramação: Marcelo Garcia. Supervisão: Sonia Montaño.


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO / 2016 |

hISTÓRIAS DE VIDA .9

Amor de vizinho Muitas famílias chegaram de diversas partes do Estado e até mesmo de fora dele para buscar uma nova vida no Vicentina

Capítulo da ansiedade

E

les não imaginavam. Ela de olhos claros, lá do Paraná. Ele com retinas escuras, gaúcho, mas de Júlio de Castilhos. Os quilômetros de distância talvez nunca os aproximassem, entretanto, as dificuldades semelhantes unem pessoas que poderiam sequer se cruzar por esse extenso Brasil. Eliandra Dutra dos Santos, 35, há cinco anos, era casada e tinha as filhas Karine da Silva, 13 e Nicole Santos da Silva, 9. Entretanto, seu relacionamento teve um fim. Josemar Padilha, 37, também tivera filhos, mas anda pelo mundo há mais tempo, pois não vive com seus herdeiros. Em busca de trabalho, esteve em Triunfo e, depois, com oportunidade de emprego em solo leopoldense, veio para o Vicentina. A distância dos dois, no início das vidas de cada um, era imensa. Há pouco tempo, no entanto, ela fora encurtada para muito menos das fronteiras estaduais. Uma rua, ou melhor, algumas casas. Os vizinhos, que já se conheciam, sempre foram acostumados a circular pela frente da residência um do outro.A vergonha talvez tenha sido o principal empecilho para que as conversas nunca

Eliandra se apaixonou por seu vizinho, Josemar, e de ambos nasceu o pequeno Daniel

tenham avançado. Até que, nesse momento, entrou Karine e Nicole com as flechas em mãos. As meninas serviram como cupido para formar o novo casal do bairro. Claro que não foi de um dia para o outro, as conversas seguiram, aos poucos eles se aproximaram e, agora, o ventre de Eliandra fora responsável pelo reforço da relação dos dois. Daniel Santos Padilha, de

um ano e nove meses, ou, como costumam chamar pelas redondezas, “Nego”. “Tenho que ficar de olho nele o tempo todo. Ele se dá bem com todo mundo. Não estranha ninguém e só quer brincar na rua”, conta a mãe que também reitera a preferência do menino de muita energia pela rua, mais distante da televisão e computadores. Ele está sempre rodeado de amigos e irmãos

mais velhos emprestados, responsáveis por segurar sua mão quando carros circulam pela rua. Toda a acelerada forma do guri do Vicentina, talvez seja o combustível que mantêm o casal firme. Escutar uma música ao final de semana é um dos poucos entretenimentos dos novos cônjuges que lutam contra a falta de oportunidade para manter o pão de cada dia em casa.

As dificuldades do casal seguem em outro rumo. As mesmas moças que sacramentaram o novo amor para Eliandra, atualmente, partem o coração da mesma. Segundo a moradora do Vicentina de 35 anos, Karine e Nicole foram passar as férias na casa do pai, em Sobradinho, em dezembro do ano passado.O fato é corriqueiro, a moradora afirma confiar no seu antigo companheiro, no entanto, até então, elas ainda não retornaram. “Ligo e cai na caixa postal. Estou quase entrando em depressão, pois não consigo contato com elas desde então. Elas sempre iam para lá e retornavam no início das aulas. Estou desesperada e já entrei em contato com o fórum para ver se consigo reencontrá-las”, disse Eliandra, no mês de abril mais nervoso de sua vida, devido à falta das filhas. A ansiedade é outro sentimento que sobrevoa o olhar pouco movimentado da mãe de família que, mais do que retornar para o Paraná, seu estado natal para o qual nunca retornara há 30 anos, deseja rever as moças responsáveis pela retomada do amor em sua vida. Matheus Beck Karina Verona

Além dos limites “Cada dia da minha vida é um desafio”, essa é a forma como Nélio Pinheiro Fernandes, 40 anos, se define. Quando novo, tinha o sonho de ser um grande jogador de futebol – inclusive fez parte de algumas escolinhas na infância. Eis que os desafios começaram a aparecer. “Acabei estourando (fazendo referência a uma lesão) e não pude mais jogar bola”, lembra. Com o diagnóstico, a depressão e a rebeldia chegaram até ele. E com elas, o vício em drogas e bebidas alcoólicas. Desacreditado por todos a sua volta, após 15 anos internado em umaclínicadereabilitação,percebeu que precisava se ajudar. Depois de enfrentar diversos desafios na vida, passar por tratamento e algumas recaídas, botou na cabeça que precisava mudar. E mudou. Algum tempo se passou – que já não sabe precisar o quanto –

buscando uma nova vida, afirma ter encontrado seu rumo ao lado de Deus: “Tomei muitas decisões erradas. A gente se dá conta que sozinho não conseguiremos seguir. Então busquei conforto em algum

diretrizes evangélicas. A última, foi construída em dezembro de 2015, com materiais doados e mão de obra voluntária Desde a inauguração, todos os sábados, a igreja promove um encontro com alimentação e atrações especiais, como teatro, com as crianças do bairro.“A gente realiza isso há dois anos. Já são mais de 80 jovens todos os sábados com a gente. Para algumas, lá é a única refeição da semana”, comenta, orgulhoso, Joel, que O pastor Joel e sua coordena o profamília ajudaram Nélio a melhorar de vida jeto. Ele ressalta que o objetivo é realizar a ação quatro vezes na semana e atenlugar e achei”, comenta. der até 200 crianças. A acolhida veio do pastor da Na igreja de Joel, Nélio enconAssembleia de Deus Vila Maria, trou abrigo, carinho e um novo Joel Ramão, 59 anos. Ele pratica o sentido para sua vida. Trabalha lá sacerdócio nas igrejas Vila Maria, há um ano e meio e com muito Visconde e Salseiro, todas com esforço já conseguiu adquirir uma

casa para morar. Enquanto contava sua história de vida, Nélio assava um galeto comunitário em uma grande churrasqueira no salão de festas da Igreja. O objetivo do almoço é angariar fundos para realização de obras na igreja Salseiro, onde as crianças são atendidas aos sábados. Como foi construída recentemente, faltam alguns detalhes para a conclusão da obra, como uma grade, por exemplo.“É questão de segurança. Como falei, são quase 100 crianças no mesmo lugar. Elas brincam, correm. A grade evitará que elas saiam de dentro do pátio da igreja”, explica o Pastor Joel. Todos os convites, no valor de R$ 15,00, foram vendidos antecipadamente. Segundo ele, a ação vai alcançar 80% do valor total da obra. Thiago Greco Júlia Viana


10. HISTÓRIAS DE VIDA

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO / 2016

Com paralisia cerebral, João Pedro é cheio de energia e alegra a vida da avó

E

le não caminha, não senta com equilíbrio, não fala, não segura objetos sozinho e se comunica somente com o olhar. Mesmo com as dificuldades que já teve em sua curta vida, ele possui um sorriso terno, cativante, espontâneo e sincero como toda criança. Devido a um erro médico ao nascer, João Pedro Langner Barros, 5 anos, possui paralisia cerebral. Segundo o Ministério da Saúde, no Brasil, são mais de 150 mil casos por ano. No momento do parto, que estava sendo realizado de forma normal contra a vontade da mãe, João ficou cerca de 20 minutos“entalado”. Isso fez com que faltasse oxigênio em seu cérebro e os médicos tiveram que terminar o parto com uma cesariana. Solange Langner, 40 anos, comerciante e avó de João, conta que, durante a gravidez, estava tudo bem com o bebê, já havia até uma cesariana marcada, mas o João quis nascer um pouco antes do previsto.“O médico que ia fazer a cesárea que estava marcada não estava no hospital. Não deixaram ela fazer a cesariana, disseram que não tinha necessidade, só se tivesse algo grave”, relembra. O avô Marcio Pereira, 45 anos, comenta: “Ele nasceu praticamente morto. Foi um milagre”. A criança passou seu primeiro mês na UTI. A paralisia cerebral ocorre devido ao desenvolvimento anormal do cérebro, geralmente antes do nascimento, mas também pode se desenvolver no momento do parto, como é o caso de João, ou até dois anos após o nascimento. Neste último caso, a lesão pode ser provocada por traumatismo, envenenamentooudoençasgraves, como sarampo e meningite. A principal característica da paralisia cerebral é a espasticidade, um desequilíbrio no controle muscular que causa tensão e inclui dificuldades de força e equilíbrio. Em alguns casos podem ocorrer crises convulsivas, dificuldades visuais e de fala, problemas para alimentação e função respiratória, deficiência auditiva, deficiência mental, ente outros. Porém, é importante ressaltar que a lesão cerebral não significa, necessariamente, danos intelectuais, embora a deficiência mental ocorra em 30% a 70% dos pacientes, segundo dados do Ministério da Saúde. Felizmente, João não se encaixa nessa porcentagem. Conforme sua avó, a doença não afetou seu raciocínio. “Ele é muito inteligente, ouve até o que não deve e adora comer”, enfatiza Solange. “Ele é bom de boca, não gosta de prato vazio. Adora feijão, polenta e moranga. Só não come carne, por que se afoga, mas isso melhora com o tempo”,

Um sorriso encantador

complementa Márcio. Márcio e Solange contam que decidiram não processar o hospital. “Seria uma briga a mais. O tempo gasto com um processo, é um tempo que podemos usar para ficar com ele”. O hospital apenas auxiliou com os papéis necessários para encaminhar João para as instituições que hoje ajudam a criança. João utiliza uma cadeira de rodas e órteses, que são uma espécie de tala para evitar contração muscular nos pés e nas mãos. “A do pé ele deixa colocar direitinho, mas a da mão é uma briga. Acho que deve incomodar um pouco”, diz Solange. Os equipamentos foram doados pela Associação Canoense de Deficientes Físicos (ACADEF), onde João realiza atividades para estimular a coordenação motora. João também frequenta o Centro de Educação e Reabilitação Vida Nova, em São Leopoldo. O Centro é mantido pela Associação Vida Nova, instituição filantrópica que faz um trabalho importante de inclusão social na comunidade.

“No Vida Nova ele faz fisioterapia e tem acompanhamento com a fonoaudióloga, a psicóloga e a psicopedagoga”,informaSolange. Além dos cuidados dos avós, João também conta com os cuidados do irmão mais novo Matheus Langner Barros, 4 anos. “Quando o João começou a usar o andador com rodinha, o Matheus ajudava o irmão empurrando o andador”, lembra a avó. Conforme Solange, eles brincam e se divertem bastante. Em novembro de 2015, João presenciou a morte dos pais. O avô Márcio relata que o menino era muito apegado a eles.“Ele não aceita que a gente venda o carro que era dos pais dele. Todo dia ele olha no lugar onde fica a chave para ver se ela ainda está lá. Também não gosta de ir na casa onde moravam”. Hoje, João e Matheus estão sob a guarda dos avós. Solange volta a falar no Vida Nova e diz que são muito atenciosos com o neto. “Ele gosta de ficar lá. Quando os pais do João morreram, eles pediram para levar o irmão dele junto durante um

mês para o João não se sentir sozinho. Não cobraram nada pelo Matheus estar lá também”. Márcio diz que João fica agitado quando passa próximo ao cemitério onde seus pais foram enterrados. “Mesmo sem ter ido ao enterro, ele passa perto e fica olhando lá para dentro querendo entrar. Demoramos 20 dias para leva-lo no cemitério. Ele entra e fica suspirando”. Os avós evitam passar por onde os pais de João morreram, pois o garoto gravou o local e também se agita se está lá por perto. Todo o mês, quando chega próximo a data do falecimento, João fica triste. “Os médicos disseram que não é nada da doença, é algo dele. Parece que ele sabe quando foi o dia”, desabafa Márcio. “Pensei que ele fosse regredir com a morte dos pais, mas não. Ele é o xodó da Vila. Todo mundo sabe quem é o João Pedro”, comenta Solange. “Todo dia levo ele para a rua antes de dormir para conversar com o papai e a mamãe”, complementa. Para João, os pais viraram estrelas. Quando

perguntam onde está o pai e a mãe, ele olha para o céu. Hoje, João também faz hidroterapia. “Minha filha sempre trabalhou de carteira assinada, então consegui uma pensão para eles e uso esse dinheiro para investir na melhora do João”, diz Solange. Os avós de João e Matheus são donos de um Bazar no Vicentina e sempre trabalharam com o comércio para sustentar a família. Com a guarda dos netos a rotina mudou completamente. “Eles viraram minha vida do avesso”, conta Solange. Os médicos animam a família e dizem que João irá melhorar. Solange fala com esperança: “Ele está começando a fazer coisas de uma criança de 2 anos, mas com o tempo ele vai fazer tudo”. Quando Solange fala sobre as dificuldades que enfrenta com a doença do neto, ameniza: “A maior dificuldade é que ele está ficando pesado”. João tem muita vontade de correr com seu irmão. O que ele mais gosta é de jogar em seu tablete, assistir desenho e jogar bola com o auxílio dos avós que o seguram e incentivam os primeiros chutes. Quando Solange diz que João ficará bom e será jogador de futebol, o garoto abre um sorriso encantador.Quandoaavócompleta que ele será jogador do Internacional, ele sorri ainda mais. Solange conta que ela e seu esposo fizeram uma promessa. “Até o final do ano ele vai estar caminhando. Aí vamos subir a escada do Padre Réus. Estamos batalhando para isso”. E, se tudo der certo, eles irão conseguir. Priscila Serpa Fernanda Stecanela


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO / 2016 |

Histórias de vida .11

Corpo encarcerado; mente livre

Mesmo após a cegueira, Humi sabe que pode contar sempre com o amor, carinho e compreensão dos netos

Após anos de trabalho e luta, a idosa Humi Borges agora não pode fazer nada sozinha

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Apesar de belos, aqueles olhos azuis já não conseguem enxergar a realidade; pernas que uma vez andaram, mas já não seguem mais o ritmo do corpo. O passar do tempo a levou a depender dos filhos para basicamente tudo. Esta tem sido a realidade da aposentada Humi Borges, de 70 anos, que há 38 vive uma guerra contra o Diabetes. Humi veio de Camaquã para morar no Vicentina quando iniciou o tratamento contra a cegueira, causada pelo Diabetes. “Eu consultava no Hospital de Clínicas, fazia tratamento a laser no meu olho direito, que foi onde tudo começou. Mas ir de Camaquã até Porto Alegre era muito longe. Eu já tinha um irmão que morava em São Leopoldo e, então, eu e meu marido viemos pra cá”, explica. A idosa conta que sua visão passou a piorar novamente quando o marido a proibiu de ir ao Hospital para o tratamen-

to. “Ele não queria mais que eu saísse de casa. Queria que eu só ficasse com as crianças”, lembra. E foi o que Humi fez. A cegueira roubou seus olhos e fez com que a idosa passasse a depender dos filhos para qualquer coisa. “Perder a visão aos poucos foi desesperador. Quando meus olhos me abandonaram de vez, eu surtei. Só sabia chorar. Foi muito difícil aceitar”, revela ela. Após a cegueira dela, o marido de Humi faleceu também por complicações causadas pelo diabetes.“Ele teve um derrame. Se alimentava por sonda e só ficava de cama. Acabou criando umas feridas no corpo e o Diabetes não deixava curar”, conta. Aceitar a nova condição foi muito complicado para a idosa, o que a deixou inconformada. Um dia, Humi decidiu que tomaria banho sozinha. “Não foi uma ideia boa. Cega e com o banheiro úmido, acabei resvalando e caí”. O resultado? Duas vértebras quebradas. Apesar da dor, Humi não queria ir ao médico. “Passei 15 dias em casa, morrendo de dor. Um dia vomitei, pois a dor era muito forte, então fui obrigada a ir ao hospital. Fiquei entre a vida e a

morte”. Desde então, ela não se locomove sozinha. “Consigo dar uns passinhos, mas sempre preciso de alguém para me levantar e me segurar”, afirma. Atualmente, a idosa tem dependido dos filhos para qualquer coisa. “É muito triste precisar dos filhos para fazer tudo. Até para um copo d’água”. Hoje, a idosa mora com a família de um dos cinco filhos. Quanto aos medicamentos, a dona de casa Rita de Cássia Borges, 28 anos, nora de Humi, explica que a dificuldade é grande.“Passamos necessidades e a aposentadoria da vó dá apertado pros remédios. Gastamos R$ 400,00 por mês só com os remédios. Ela também usa fraldas. Costumamos buscar no Ginásio, que a Prefeitura dá, mas muitas vezes não tem. Quando não tem, a gente tem que comprar. Daí aperta ainda mais. Ela sente muita dor. Toma remédio pros nervos, e pra dor, e, como toma remédio demais, afeta o estômago”, relata ela. A idosa também não tem cadeira de rodas, o que dificulta as idas às consultas e a locomoção dentro de casa. “Preciso de táxi para ir no médico, e táxi não é barato”, conta a avó. Quanto à distração, Humi

diz não gostar de ouvir rádio ou televisão. Prefere passar os dias deitada, quieta. “Às vezes, meus netos vêm ficar comigo, deitam e conversam comigo. No verão, eu sentava na varanda e ficava ali”, relata. Murilo Borges, 10 anos, neto de Humi, conta que sempre fica com a avó. “Muitas vezes durmo aqui com ela. Nós conversamos a noite toda. Conto segredos para ela”, afirma o menino sorridente. A idosa também conta não saber de notícias. “Eu só sei o que me contam. Tenho um irmão que me liga e me conta tudo”. Por que a Diabetes pode cegar? Quando o Diabetes não é controlada adequadamente, com cuidados na alimentação ou com a ingestão dos remédios receitados pelo médico, como as injeções de insulina, os níveis de açúcar no sangue podem ficar elevados durante muito tempo, provocando lesões progressivas na retina e nos vasos sanguíneos dos olhos, que leva a dificuldade para enxergar e, nos casos mais avançados, cegueira, que leva dificuldade

para enxergar e, nos casos mais avançados, cegueira. Que pode ser reversível ou irreversível. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que três quartos (75%) dos casos de cegueira no mundo são tratáveis ou preveníveis. Ir ao oftalmologista regularmente é uma das melhores formas de prevenir doenças que causam a cegueira. De acordo com dados da Sociedade Brasileira de Oftalmologia, estima-se que existam 37 milhões de cegos no mundo. E 82% das pessoas que vivem com a cegueira têm mais de 50 anos, de acordo com a OMS. Os brasileiros que sofrem com o diabetes podem usufruir dos benefícios da Lei Federal 11.347, publicada no Diário Oficial da União em setembro de 2006. Esta lei determina que os portadores de diabetes devem receber gratuitamente por meio do Sistema Único de Saúde, os medicamentos necessários para o tratamento de sua doença e os materiais necessários à sua aplicação e à monitoração da glicemia capilar. MICHELLE OLIVEIRA eLLEN RENNER


12. Histórias de vida

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO / 2016

O homem que conquistou o Vicentina Gaúcho de nascimento e paranaense de coração, Florentino afirma nunca ter sonhado que chegaria tão longe

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uem não tem cabeça não precisa de chapéu”. De acordo com Florentino da Silva, 63, o provérbio carrega uma mensagem simples: pouco adiantam grandes recursos, se não houver sabedoria para administrá-los. Florentino é um homem sábio. Sábio e trabalhador. Poucos minutos de conversa com o aposentado bastam para constatar tais atributos. Não apenas pela idade que, tradicionalmente, traz consigo a experiência ou por causa de suas posses resultantes de anos de trabalho duro. Mas, Florentino carrega, na própria história, um incontestável atestado de sucesso e competência. Gaúcho de nascimento, aos cinco anos de idade, o pequeno Florentino mudou-se para o Paraná. Deixando para trás Soledade – a cidade em que nasceu -, mal sabia que logo quem ficaria para trás era ele próprio. “Aos sete, dois anos após nos mudarmos do Rio Grande do Sul, meu pai nos abandonou. Foi a última vez que o vi”, relembra. A mãe passou a

fazer os dois papéis e a cuidar sozinha dele e de mais quatro irmãos. A infância foi terminando, a juventude se foi e chegou a vida adulta. A esperança de se reencontrar com o pai mantinhase, mas, infelizmente fora em vão. “Depois que meu pai nos deixou nunca mais soube dele. A única notícia que fui ter chegou quando eu já era um homem feito. E chegou muito tarde: descobri que ele havia falecido. E a notícia chegou só 20 anos depois de sua morte”, enfatiza ele. Porém, não foi a falta do pai que impediu o jovem Florentino de buscar seu espaço no mundo. Antes de completar a maioridade, uniu-se a Lourdes Santos da Silva, 61, sua esposa e fiel companheira de caminhada nos últimos 47 anos. Junto a ela, às custas de muito trabalho, conseguiu comprar uma certa quantia de terras. Passaram, ambos, a trabalhar na lavoura, os filhos foram nascendo, crescendo e, aos poucos, também ajudando no serviço dos pais. Entretanto, anos mais tarde a maré começou a virar e o sustento, que antes garantia o pão, agora gerava dores de cabeça.“Em uma certa altura a coisa ficou difícil. Os filhos foram crescendo, as contas apertando e uma hora não deu mais”, lamenta. A família bem que tentou pedir ajuda e, então, conseguir

um financiamento. Se por um lado o Banco cooperou, a plantação, de sorgo e milho, não. “As safras vinham sendo fracas. Se eu pagava a prestação do empréstimo faltava para comer. Chegou um dia que eu falei para a Lourdes: ‘Mulher, vamos embora daqui antes que o Banco tome a nossa terra e fiquemos sem nada’ ”. A solução foi voltar para o Rio Grande do Sul, e, encontrar em São Leopoldo um novo lar. “Para a nossa sorte, quando já não tínhamos de onde tirar, a safra foi boa. Naquele ano eu vendi a terra, paguei tudo que devia ao Banco e comprei um terreno aqui na Vicentina”, relata. Na terra Capilé, Florentino, a mulher e os filhos logo arrumaram emprego. Dos cinco filhos, três estavam em idade de trabalhar e rapidamente já pegaram no batente. “A Lourdes arrumou emprego num restaurante, trabalhou lá por 18 anos. Só saiu porque se aposentou. Nesse mesmo lugar, agora, trabalha uma de minhas filhas, há 16 anos já”, argumenta o homem, orgulhoso. Apesar de ter se criado e vivido boa parte da vida no Paraná, Florentino não consegue considerar nenhum lugar, além do Vicentina, como seu lar.“Vez em quando viajo pra lá, fico uns três ou quatro dias e não aguento mais. Me dá uma agonia, uma vontade louca de voltar para cá”, confessa.

Seu primeiro emprego na cidade foi no chamado Papelão Justo, fábrica em que trabalhou por 10 anos. O filho mais velho acabou trilhando os passos do pai e também, na fábrica de papel, empregou-se por 12 anos. Após sair do Papelão, Florentino teve mais dois empregos, um deles num curtume. Ao sair do último, decidiu, mais uma vez, mudar o rumo de sua vida. “Foi então que eu já havia conseguido juntar um dinheiro e comprei a minha primeira casa”, conta o operário que, anos mais tarde, viria a ser dono de 11 residências no Vicentina, além de uma na Vila Paim, esta última comprada há cerca de cinco anos Já a compra da casa em que ele mora se deu há 16 anos. O lugar era composto, além da residência, por uma cancha de bocha e um salão de festas. Florentino tentou investir no negócio, mas nem os jogos e nem os bailes deram resultado. “Eu até que fiz na época umas jantas de casal, mas não deram muito certo. Aí depois eu parei ”, confidencia. O jeito foi investir no ramo que ele, há tempos já domina, o aluguel. Transformou o prédio para que abrigasse, além de sua casa, outras três salas – uma está alugada para igreja, nas outras duas o morador instalou dois pontos comerciais, barbearia e loja de roupas. E como o morador não

desperdiça nada, até reservou um pequeno espaço para montar um barzinho. “Eu fiquei com o boteco aqui para me entreter aos finais de semana”, dispara. O local não deixa, é claro, de ser ponto de encontro com os amigos. A reforma do prédio foi concluída há cerca de cinco meses. É difícil, quase impossível, manter uma conversa com ele, sem ser interrompido. Sentado em frente de casa, o sábio demonstra conhecer todos que cruzam sua rua. Ele cumprimenta a maioria dos transeuntes e, a muitos destes, dedica alguns minutos de atenção. Um ou outro lhe pede informações de onde fica este ou aquele lugar. Morador do bairro há mais de duas décadas, o aposentado facilmente instrui o caminho certo a ser seguido. Além de tudo, mesmo que não aparente, Florentino também é avô. Os nove netos completam a família da qual ele não esconde o orgulho.“Agora estou aí, enraizado, com os filhos todos já criados. E nenhum deles está desempregado”, destaca. Entretanto, o que realmente chama a atenção é o sorriso de Florentino. O homem que soube trilhar o caminho correto do esforço e do trabalho duro, além da Vicentina e de seus sonhos, conquistou a felicidade. Mailsom Portalete Stefany Rocha

Florentino ao lado do patrimônio conquistado com trabalho duro


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO / 2016 |

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O valor do trabalho digno Moradores falam sobre a satisfação que suas tarefas proporcionam diariamente

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aço frete”, “vende-se sacolé”, etc. As plaquinhas mostram como a comunidade do Vicentina se vira na criação de diferentes rotinas de trabalho, assim como algumas pessoas exercem suas funções em reformas, obras e limpeza para melhorias na infraestrutura local de suas residências. A dinâmica do bairro é muito ativa mesmo aos finais de semana. O comércio fervilha com trabalhadores apressados em prestar serviços aos clientes que aguardam atendimento. Quem fica em casa, se preocupa com as tarefas domésticas, organizando o lar e cuidando da família que reside junto ou vem para visitar. Próximo a um morro de areia na calçada, transferindo o conteúdo para dentro do pátio, está o fiscal de caixa Mário Henrique Nass, 19 anos. “A areia estava começando a ocupar o lado do vizinho, estou recolhendo para não atrapalhar”, explica. O jovem trabalha há dois anos em uma grande rede de supermercados da cidade, inicia sua jornada às 14h e encerra às 22h com direito a uma folga semanal. “Estou muito satisfeito com o serviço, entrei lá como empacotador, depois passei à caixa e hoje sou fiscal. Me interesso em aprender e aproveito os treinamentos dados pela empresa”, relata. Nass concilia o emprego com as aulas na Escola Estadual Cristo Rei, onde atualmente cursa o terceiro ano do ensino médio no turno da manhã. O rapaz considera que os estudos são uma grande base para seu crescimento profissional e pessoal, tanto que pretende ingressar no ensino técnico após a conclusão escolar. “Eu não sei exatamente qual técnico fazer, mas tenho interesse em continuar estudando para poder conseguir empregos melhores no futuro, pois não pretendo ficar para sempre no comércio. Após o técnico, eu gostaria de fazer faculdade de Artes Cênicas, porque gosto de exercícios de voz e quero treinar mais isso. Acho importante me manter ativo”, fala. Nos dias de folga, o estudante auxilia a mãe, Márcia Nass, com as tarefas de casa e pequenas reformas, procurando manter o local em ordem nas horas vagas. “Não sou muito bom em cozinhar, mas ajudo a mãe com a louça, com a limpeza e organização dos cômodos. Em breve quero

pintar o portão, deixar a fachada mais bonita”, promete. Aprendizado para a vida A preocupação com um futuro melhor e auxílio com o próximo, revela a personalidade pró-ativa de Mário Henrique, que afirma ter aprendido os valores da gratidão e dedicação com a mãe e um professor de filosofia da escola. Segundo o jovem, agradecer é umatoessencialaserexercitadopara que as coisas permaneçam bem na vida. A prática que Mário Henrique aplica em seu cotidiano, vem ao encontrodopensamentodofilósofo francês, André Comte-Sponville, em seu livro“Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”. Na publicação, o autor trata sobre a gratidão e a reconhece como o ato de ser grato sem querer nada em troca, estar satisfeito sem exigir um pagamento. Consciente de suas responsabilidades e planejamento para o futuro, Nass preocupa-se também com o que acontece ao seu redor. “Fico pensativo quando vejo alguns jovens da minha idade sem interesse em ter uma ocupação. Mesmo que não tenha emprego, pelo menos deve ajudar em casa, ter cabeça boa e ser grato pelo que os pais fizeram por eles, acho que é o mínimo para uma boa convivência”, desabafa.

A dona de casa Elisandra Couto Borges (acima) transformou sua casa em local de trabalho. Mário Henrique Nass começou como empacotador de supermercado e já é fiscal

Rotinas de trabalho no lar A três quadras da casa de Mário Henrique, reside a dona

Saiba mais Programas e instituições que oferecem cursos técnicos e de capacitação gratuitos

PRONATEC É um programa do governo federal que incentiva a educação técnica gratuita no território nacional. Para se inscrever nos cursos do Pronatec, o jovem deve estar cursando ou ter concluído o ensino médio na rede pública. O interessado pode consultar o site oficial para acompanhar a divulgação das datas de inscrição para 2016: http:// pronatec.mec.gov.br/. Para mais informações, entre em contato com as instituições de ensino parceiras (SENAC e SENAI):

SENAC Rua: Lindolfo Collor, 835 Fone: (51) 3590-3060 n Site: www.senac.br n Alguns dos cursos oferecidos: - Técnico em administração - Técnico em enfermagem n n

SENAI (Unidade Lindolfo Collor) Rua: Theodomiro Porto da Fonseca, 706 n Fone: (51) 3904-2710 n Alguns cursos oferecidos: - Eletricista instalador predial - Auxiliar de linha de produção n

A prefeitura de São Leopoldo também oferece cursos gratuitos pelos Centros de referência de assistência social (CRAS), basta entrar em contato com o CRAS Vicentina para obter informações: CRAS Vicentina Travessa Paulo Couto, 125 Fone: (51) 3592-8467. n Alguns cursos oferecidos: - Técnico em administração - Técnico em enfermagem n n

de casa Elisandra Couto Borges, 46 anos. Ela, que mora somente com o marido, administra a casa exercendo diferentes atividades durante a semana. “Eu já trabalhei fora como vendedora em um shopping e de cozinheira também, mas optei por permanecer em casa porque ajudo meus familiares nas atividades deles, como por exemplo o meu filho que tem uma elétrica, e na organização da casa”, diz. A dona de casa recebe bandejas de ovos de um fornecedor local e vende para a vizinhança, obtendo assim sua própria renda. “Muita gente da comunidade vem comprar de mim, faço por um valor mais acessível”, salienta. Das funções que Elisandra realiza, a que mais gosta é cozinhar. Segundo ela, a família adora sua comida e o prato mais pedido em diferentes ocasiões é o famoso macarrão. “Como já trabalhei de cozinheira, a gente acaba pegando mais

prática”, relata orgulhosa. Outra atividade com a qual a dona de casa se envolve na maior parte do tempo livre é o artesanato. Dentre seus talentos, está a costura e o tricô, que tem aprimorado constantemente e hoje produz até mesmo capas para fogões e liquidificadores. “Eu gosto destas atividades manuais e aprender sobre isso, é importante para a gente ocupar a cabeça também. Cheguei a participar de um projeto na Sociedade Espírita em que a gente fazia agendas e calendários personalizados. Só não comecei a vender ainda”, conta. Elisandra diz que está satisfeita com sua rotina e que de momento não pretende trabalhar fora. Conforme a moradora, suas tarefas suprem tanto as necessidades dela, quanto da família que conta com seu auxílio. Aline Santos Bruna Monique


14. trabalho

| ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO / 2016

Casa pequena, coração grande A relação de amor dos moradores com seus bichinhos de estimação

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nome dela é Maria Chiquinha”, começa Luciana Nunes, apontando para uma pequena cadelinha. A dona de casa de 37 anos é casada e tem dois filhos – cinco, se for contar os bichinhos de estimação dos quais cuida como parte da família. Maria Chiquinha faz companhia ao “Costela”, batizado assim porque, segundo a dona, quando encontraram o cachorro, era “tão magrinho que dava para enxergar as costelinhas. E tem o gato também”, acrescenta. Luciana faz parte de uma maioria no Vicentina, que, apesar das dificuldades, acolhe animais em casa. “A gente não leva ao veterinário, porque não tem condição, mas a gente cuida, né”. Tem gente que não tem sentimento com os bichos”, diz a irmã, também dona de casa, Maria Nunes, 28 anos, contando que já “deu de mamar”, com uma seringa, a um filhote de cachorro encontrado no mato. O cuidado e atenção destinados aos bichinhos pelos moradores do

bairro ficam ainda mais evidentes ao se perceber que, em uma rua próxima à casa de Luciana, fica uma agropecuária de tamanho maior que muitas das casas da região. Sheila Garcia, 26 anos, dona do estabelecimento, conta que o movimento é grande, tendo maior saída as rações para cachorro e para gato.“Em épocas tipo final de ano, tem bastante gente atrás de bichinhos. Na Páscoa, muitos vieram atrás de coelho, para dar às crianças”, relata a proprietária. Outro animal fora do comum que as pessoas costumam comprar no local é o porquinho da índia, mas galinhas, calopsitas e periquitos também são vistos por ali, em gaiolas penduradas pelo teto e espalhadas pelo chão. THA

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Mãe de dois filhos, Sheila é casada com Gilson de Moraes, metalúrgico de 44anos, que administra a agropecuária junto da esposa. Chamada Paulo Couto, o nome da loja indica a rua onde fica localizada – para alguns, Rua Principal. Apesar da escolha pouco convencional de empreendimento, ela confessa que não é “muito dos bichinhos”: “Não tenho paciência. Eu acho que se é para tu comprar, é para O trabalho para cuidar e, muitas vezes, resgatar animais em situação de vulnerabilidade é uma das marcas dos moradores do bairro

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cuidar. Se for pegar para maltratar, aí nem pegue”, sinaliza. A ideia de abrir o espaço foi do marido, que, segundo Sheila, é apaixonado por animais. Ela explica que, à época, havia dado à luz o primeiro filho, e decidiram abrir um negócio para que ela pudesse cuidar do bebê e ainda trabalhar, tirando uma renda extra. O abandono no bairro ainda sobressai aos olhos mais preocupados, mas o trabalho para cuidar e, muitas vezes, resgatar esses animais em situação de vulnerabilidade é uma das marcas dos moradores. “Muitos vêm comprar ração para dar para os cachorros de rua”, diz a comerciária. Raça? Não, os clientes wnão se importam com isso. Sheila declara que vários procuram ela THA

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perguntando se não há gatos ou cachorros para adoção. Outro exemplo de solidariedade é visto na casa em frente à agropecuária: um cão com um tumor recebe os cuidados dos vizinhos. “Ela [a cadela] agora está bonitinha, está bem… as pessoas se ajudam, né”, envolvese na conversa Eloá Terezinha Taube, que tomava chimarrão com Sheila. Com uma mão, Dona Eloá segurava a cuia, com a outra, acariciava um gato que se esfregava entre suas pernas.“Esta aqui é a Neguinha”, apresenta o bichano, acrescentando que a gata a acompanha em todas as atividades de seu dia. “Ela até dorme comigo”, brinca. A dona de casa de 59 anos comenta que adora animais e que já teve vários, mas que se apega demais, chegando a ficar doente quando eles morrem. “Fui parar no hospital, me atacou os nervos. Eu brinco que se eu ganhasse na mega, eu ia comprar um sítio só para cuidar desse bicharedo. Mas a gente não tem nem pra gente, né”, desabafa uma moradora cuja casa é pequena, mas o coração é grande. VICTORIA SILVA JÉSSICA MARTINS THAIS MONTIN

Receitas que dão lucro Uma placa localizada na frente de casa já anunciava um dos passatempos da costureira Indianara Jaqueline Rodrigues Muniz. “Vendo sacolé e sorvete”, dizia o anúncio. Aos 39 anos, é assim que ela passa grande parte do dia: cuidando da família e unindo dois empregos. Além de costurar, também dedica-se a fazer doces e salgados. O gosto pela culinária surgiu há nove anos, quando ainda trabalhava como assistente de padaria. Na época, ela era funcionária da confeitaria Gomes, localizada em São Leopoldo. A empreendedora explica que aprendeu a botar a “mão na massa” quando o padeiro teve que ficar afastado do cargo. “Como ele não estava, eu acabei o substituindo. Comecei a fazer as receitas e a me virar na cozinha”, afirma.

Hoje, ela usa as técnicas de culinária que aprendeu para ajudar no sustento da família. Tornou-se conhecida no bairro Vicentina por seus bolos, salgados, sacolés e sorvetes. “No inverno a venda de sorvetes e sacolés diminui consideravelmente, o que já é esperado. Mas continuo vendendo os salgados, o que me ajuda a tirar um dinheiro extra”, comenta. Casada há 10 anos com Roberto Carlos Olmedo Pintos e mãe de três filhos, Indianara sente a necessidade de ter uma renda extra para se manter longe das dívidas. Trabalhando durante todo o dia como costureira em um atelier do bairro, ela concilia os dois empregos de acordo com os momentos livres e a quantidade de encomendas. Segundo ela, muitos mo-

A necessidade gera criatividade. Indianara vende sacolé, sorvete, doces, salgados e costura para fora

radores também adotaram o “bico” como forma de garantir maior apoio financeiro. “Ainda assim, tem dias que faço grandes quantidades e não tem lucro nenhum”, aponta.

Ao ser questionada sobre qual a receita preparada pela mãe que ela mais gostava, a pequena Larissa, 9 anos, foi enfática: “Eu gosto é do bolo”, responde, mostrando uma foto no celular de uma torta com a imagem do desenho Frozen. Um dos momentos preferidos de Indianara é na hora de decorar o bolo: “Para mim, é uma terapia”, relata. Indianara reconhece que a falta dos estudos é um grande empecilho na hora de procurar um cargo mais rentável, mas aconselha: “Sempre digo aos meus filhos para estudarem. Quando temos força de vontade, fazemos qualquer coisa. Sentar e ficar parado não vale a pena, é preciso ir à luta”, argumenta. nicole fritzen aniele cerutti


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | JUNHO / 2016 |

bichos .15

Paixão animal Moradores do bairro convivem com animais de estimação e confessam seu amor pelos bichanos

“Quem tem animalzinho, tem que cuidar”, observa. Por isso, ele afirma que os alimenta com ração e, às vezes, ossos de churrasco.“Eles são muito brincalhões e nunca morderam ninguém”, reforça. “Os cachorros são gente como a gente”, finaliza. Por isso, quem tem animais de estimação precisa tratá-los com amor e carinho e fazer sempre o possível para que eles estejam bem. Afinal, trata-se de uma vida como qualquer outra que merece ser respeitada.

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undialmente, os cachorros são conhecidos como os melhores amigos do homem. No Vicentina, não é diferente. Inclusive, é impossível andar pelas ruas do bairro sem avistar algum bichano – seja brincando na calçada, asfalto, ou mesmo dentro das casas. Sempre alegres e abanando o rabo, eles são adorados por praticamente toda a população. Na casa da desempregada Emília Rosângela dos Santos, 40 anos, por exemplo, são nove cães. “Eu sou apaixonada por eles”, garante. Com seis filhos – sendo que apenas três ainda vivem em sua residência -, a moradora do Vicentina não mede esforços para cuidar de sua “matilha”. “Eu compro a carne descartada do açougue que tem aqui perto, cozinho e dou para eles comerem. Acredita que eles não gostam de ração?”, surpreende-se Emília. Ela compartilha todo esse amor por animais com o filho de 9 anos, Halisson Guilherme Vieira. “Muitos de nossos cachorros foi ele quem pegou na rua e trouxe. E, quando ele traz e eu vejo o cãozinho, não tem como recusar”, afirma a moradora. Segundo ela, a maioria dos cães que tem foram adotados. Emília ganhou apenas três. “O Quebra-Osso é um Pitbull de 4 anos que eu ganhei dos donos de uma fábrica onde trabalhava. Ele e o outro cachorro que morava lá brigavam muito”, justifica. A Linda, uma mestiça de Pinscher com Vira-Lata também foi um presente de amigos, assim como a Diana, uma bela cadela de olhos azuis, que ganhou quando ainda era filhote. Já o Vira-Lata Rabito, a Pretinha, a Branca, o Tufus, o Bob e a Penélope, ela ou o filho encontraram na rua e adotaram. “Nós não vamos deixar os bichinhos na rua para morrer, né?”, enfatiza Emília. Contudo, em alguns casos, a moradora do bairro acredita que os animaizinhos estejam perdidos e os pega para cuidar enquanto o dono não aparece. “Se o cachorro tiver dono, é claro que eu vou entregar para quem perdeu”, destaca, ressaltando que ela nunca esconde seus cães e, se tiver resgatado algum que estava perdido, ela devolve sem maiores problemas.

Castração

Bicharada por todos os lados Comprovando que é uma defensora de todos os animais, Emília ainda tem espaço para cinco gatos – Rosinha, Preto, Cinzinha, e dois que ainda não têm nome, pois são filhotes. “Eles ficam dentro de casa e são muito dóceis”, argumenta. Além deles, ela tem um passarinho periquito, uma galinha e um porquinho-da-índia. “Nós amamos os animais”, resume. Porém, nem tudo são flores. Segundo Emília, ela já perdeu cachorros por conta de alguns vizinhos, que não possuem carinho pelos bichanos, e os envenenaram. “É preciso ter cuidado. As pessoas que não gostam de bichinhos fazem maldades sem motivo. Uns quatro cães meus morreram envenenados – colocaram na comida – e outros levaram pedradas e chutes”, la-

menta. Ela ainda garante que nenhum de seus animais causou problemas pois todos são tranquilos e carinhosos. Cuidado coletivo Mas a boa notícia é que os casos de envenenamento e maus tratos parecem ser exceções no Vicentina. Isso porque a maioria dos moradores cuida e gosta dos bichinhos. É o caso de Neli de Oliveira Paz, 61 anos, que recebe o auxílio-saúde pelo INSS. Ela possui uma cachorrinha que mora na sua casa, a Belinha. A Vira-Lata vive“passeando”pelo bairro, mas sempre volta. Enquanto isso, uma cadela de porte grande, mãe de um filhote de cerca de 4 meses, fica com o seu bebê ao redor do pátio de Neli. “Ninguém é dono delas e a grandona apareceu aqui antes de ter o filhote”, recorda. Por isso, na sua rua, todos cuidam da mãe e da filha, dando-lhes co-

mida, água e carinho. “Eu e meus vizinhos adoramos cachorros. Gostamos de tê-los por perto”, confessa. Inclusive, ela expressou sua vontade dar um nome para essas duas cachorrinhas. Dono de dois cães – Bobinho e Pretinha -, o aposentado Dirceu Gonçalves Cardoso, 56 anos, não mede esforços para garantir o bem-estar de seus animais. “O primeiro amigo do cara são os cachorros”, opina. Por isso, quando Bobinho passou por um problema de saúde, ele comprou o cicatrizante conhecido popularmente como“Azulão”. Ele foi namorar em um outro bairro e, quando voltou, estava com problemas nas partes íntimas. Achei que ia perdê-lo, mas fiquei muito feliz quando passei o remédio e ele se curou”, lembra. A Pretinha, no entanto, estava com princípio de sarna e, na tarde em que concedeu a entrevista, Cardoso iria comprar a injeção.

No município de São Leopoldo, a Secretaria Municipal de Proteção Animal (Sempa) oferece, desde maio de 2015, serviços de castração dos animais de rua, bichinhos resgatados por protetoras ou de pessoas carentes (renda de até um salário mínimo). O local onde ocorre o procedimento é junto ao Ginásio Celso Morbach e tem capacidade para operar cerca de 8 a 10 animais por dia, entre cães e gatos. É importante destacar ainda que é preciso fazer um agendamento prévio para a operação. Para isso, basta preencher uma ficha, que está disponível tanto no site (http:// bit.ly/1VTb0xS) quanto na sede da Sempa, e leva-la até a Secretaria, localizada na Rua São Caetano, nº 1030, Centro. Comprovante de endereço e cópia da carteira de identidade também precisam ser apresentados no local. Além disso, a Blitz Animal, colocada em prática no segundo semestre do ano passado, também passa pelos bairros onde há a maior concentração de bichanos em situação de abandono. Eles são identificados, castrados e recebem atendimento clínico. Maus-tratos Em caso de maus-tratos, é imprescindível realizar uma denúncia formal. Isso pode ser feito, durante os dias de semana, através da Sempa, que atende das 8h às 17h no local ou por telefone (3592-9981). Nos fins de semana, casos graves devem ser informados à Guarda Civil Municipal, pelo 153. Para que a denúncia seja levada adiante, é recomendado, ainda, fazer levantamento fotográfico, realizar um Boletim de Ocorrência, contar com um laudo veterinário (a Sempa fornece quando vai ao local) e depoimento de testemunhas. Lembre-se: maus-tratos é crime, faça a sua parte e denuncie! Bárbara Bengua Thomas Graef


ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO (RS) JUNHO DE 2016

EDIÇÃO

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As vozes do bairro A importância do Enfoque para os moradores do Vicentina

C

om o objetivo de buscar histórias do cotidiano do Vicentina, estudantes de jornalismo da Unisinos encontram-se em um sábado de cada mês para ir até o bairro. Os estudantes das turmas de Jornalismo Cidadão, ministrada pela professora Sônia Montaño, têm a missãodedescreverdeformatextual histórias envolventes que estão por trás dos moradores do bairro. Os alunos de Fotojornalismo, ao lado do professor Flávio Dutra, devem ilustrar as reportagens com as fotos realizadas no local. Em 10 edições do EnfoqueVicentina, os mais diversos relatos já foram contados. Com o Enfoque pronto, é hora de entregar os exemplares aos entrevistados do bairro. A empolgação de encontrar-se numa página ou, até mesmo, encontrar um vizinho costuma ser a mesma em todo o morador.“Olha eu aqui”, ou“olha a filha de fulano”,“Viu o vizinho aqui?”. A alegria de ver seu bairro sendo o foco de um jornal inteiro é visível nos olhos de cada um.“É muito bom ver as coisas boas que acontecem por aqui. Em outros noticiários só vemos coisas ruins”, opinaValdemar do Amaral, 36 anos, morador do Vicentina desde os 9. Essa também é a opinião de Nelson de Menezes, 51 anos, ele acredita que o Enfoque pode dar mais força ao bairro.

“O trabalho prestado no jornal é bom para todos nós, pois assim o bairro pode crescer cada vez mais, como já está acontecendo”, conta relembrando algumas mudanças que o local vem passando. Um dos pontos mais interessantes do Enfoque Vicentina, para alguns dos moradores, é conhecer a real história dos vizinhos, como conta Leidaiane Costa, 24 anos, moradora do bairro há 20. “Acho muito legal a ideia do jornal, pois assim podemos conhecer melhor a história do pessoal”, destaca. Um exemplo que a moça citou foi a história da vizinha Taís de Azevedo, 17 anos - mãe da pequena Amanda, de 2 anos - contada um ano atrás quando ainda estava grávida de seu segundo filho. A matéria trazia como tema as inseguranças e dúvidas de jovens grávidas e foi publicada na edição cinco. Outra história que Leidaiane achou interessante conhecer foi de Janaína Beatriz da Costa, 40 anos, que luta, ao lado de sua mãe Maria Elizabete da Costa, 58 anos, com uma doença que a faz viver, forçadamente, a infância até os dias de hoje. Essa reportagem foi publicada na primeira saída deste ano, a edição nove. Mas não foram apenas estas narrativas que chamaram atenção. Para alguns pode ser que essas matérias interessem mais, assim como para outros pode ter sido a história de dona Terezinha da Silva, 66 anos - também contada

Nossas histórias Na terceira e última visita ao bairro neste semestre, a fim de produzir mais uma edição do Enfoque Vicentina, tivemos a ideia de mudar um pouco a sistemática com a qual vínhamos trabalhando nos jornais anteriores. Tanto em relação à pauta, quanto com a própria maneira de construir nossa matéria. Desde que as atividades desta disciplina começaram a ser realizadas no bairro, resolvemos não apenas contar as histórias dos moradores do Vicentina através da nossa ótica, mas, sim, dar voz aos próprios habitantes do bairro. Nesta ocasião, aproveitando o fato de que estávamos entregando justamente a edição de número dez do jornal, pedimos que comentassem o que foi produzido até aqui e como acham que suas histórias estão sendo contadas no jornal. A exemplo das saídas de cam-

po anteriores, fomos novamente muito bem recebidos pelos moradores e, para nossa alegria, todas as pessoas consultadas afirmaram que a experiência tem sido muito positiva para elas e para o bairro. O reconhecimento ocorre, principalmente, porque o Enfoque, segundo eles, dá voz a população do bairro e mostra iniciativas positivas encontradas no local - diferentemente do que costuma ocorrer em relação a outros veículos de comunicação da região, nas quais o Vicentina costuma aparecer quando ocorrem crimes violentos. A experiência, neste sentido, contribui não apenas para a veiculação de informações sobre os assuntos do local, mas, mais do que isso, para a própria autoestima e cidadania de seus moradores. Foi possível perceber que os moradores ainda esperam do Enfoque, no entanto, uma maior

na edição cinco - que pode não ter muito em casa, mas seu coração gigante está sempre agindo na missão de fazer o bem ao próximo. A mulher é catadora, vendedora de doces coloniais e material de tricô e ainda ajuda crianças carentes, além dos animais que leva para casa para cuidar. Para muitos, a importância de conhecer a rádio comunitária do Vicentina por meio do jornal foi importante para o bairro. Porém, têm também aqueles que chamam a atenção para os assuntos mais comentados pelas redondezas como os alagamentos, o transporte público, os empreendedores (sejam os pequenos ou médios) do bairro, até a luta por moradia - como sendo histórias de alta relevância para serem contadas. Em 10 edições, muitas histórias já foram narradas e muitos protagonistas já foram descobertos, entretanto, ainda há muito por vir em mais três edições do Enfoque.

Vizinhos se empolgam ao ver suas histórias nas páginas de um jornal

O que torna o trabalho mais fácil é a receptividade ofertada pelos moradores aos alunos. E assim, a busca pelas histórias de vida vai se tornando mais fácil. Cada visita realizada, o bom humor e a simpatia de quem lá mora envolve os alunos. Seja com os convites para entrar em suas casas e conhecer de perto suas vidas, numa conversa na frente da

residência, ou de outros modos. Em uma hora com estes protagonistas já é possível sentir-se quase como parte da família. Parte da família de alguém que compartilhou sua história não só com os estudantes, mascomtodosquefazemparte,seja escrevendooulendoojornal. Algumas vezes isso pode ocorrer mesmo, ao invés de em casa, num bar, e ao invés de sentir-se da família, podemos nos sentir como membro de uma boa e velha roda de amigos. Na edição 10, um grupo que costuma se encontrar num bar para prosear foi entrevistado. Ao receberem o jornal, o pessoal ficou animado vendo a trupe toda estampada naquela página.“Vocês são pessoas boas. Esse serviço que vocês fazem é muito bom”, comentou Luiz Fernando da Silva, 44

anos. Notar a felicidade estampada em quem costuma ver seu bairro apenas em matérias que não são tão boas assim não tem preço. E a prova de que o trabalho dos estudantes vem sendo bem desenvolvido, ao longo de cada edição é a gratidão em resposta na hora da despedida. “Voltem sempre aqui. Vocês serão sempre bem-vindos”, acrescenta Luiz Fernando. Ainda temos algumas idas ao Vicentina, Luiz Fernando, mas precisamos conversar sobre modos em que a própria comunidade crie suas formas de comunicação e dê visibilidade a tantas histórias. Afinal, já deu para notar que interesse nisso o bairro tem.

capacidade de dar vazão e voz aos problemas existentes no bairro, sobretudo em questões ligadas à moradia, saúde e saneamento básico. O jornal pode dar o salto definitivo de reconhecimento por parte dos moradores a partir do momento que conseguir canalizar demandas para além das fronteiras do Vicentina,

além de continuar relatando e propagando os bons exemplos lá encontrados. Acreditamos, ainda, que o Enforque cumprirá seu papel junto à comunidade a partir do momento em que conseguir incentivar os moradores a se organizarem em iniciativas coletivas e locais, pelas quais possam canalizar reivindicações

da comunidade junto ao poder público e entidades responsáveis em cada questão. Para saber um pouco mais sobre o exercício que realizamos, especialmente, para esta edição número onze do Enfoque, preparamos um material complementar em vídeo contando com a participação de moradores e dos próprios repórteres, analisando a experiência a partir destas duas óticas, distintas e complementares. O material pode ser acessado através do canal‘EnfoqueVicentina’ no Youtube.com e na página do Facebook do jornal, através do link : https://www.facebook.com/ enfoquevicentina/?fref=ts.

A facilidade de aproximação torna tudo mais agradável

MARCELLI PEDROSO franciele costa

Caubi Scarpato Eric Machado

Entrevistados reconhecem no Enfoque um veículo para as iniciativas positivas do bairro


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