Enfoque Vicentina 7

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Do chão batido ao asfalto, cria-se o bairro. Página 3

MATHEUS BECK

MILENA RIBOLI

MÁRCIA ÁVILA

HISTÓRIA

FUTEBOL SEM CAMPO

Gurizada bate bola na rua por não ter local para jogar. Páginas 13

VÓ DO LITRO

Idosa coleta papelão e garrafas PET para gerar renda. Páginas 14

ENFOQUE VICENTINA

EDIÇÃO

NICOLLE FRAPICCINI

SÃO LEOPOLDO / RS SETEMBRO DE 2015

MARCAS QUE FICAM

SINAIS DA ÚLTIMA ENCHENTE VÃO ALÉM DAS PAREDES E CRIAM INCERTEZA ENTRE MORADORES PÁGINAS 8 E 9

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2. EDITORIAL

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Solidariedade é marca do Vicentina

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proposta era chegarmos a um lugar desconhecido e procurarmos histórias ao acaso. Definimos que cada repórter, acompanhado por seu fotógrafo, caminharia por uma rua diferente, entregando a última edição do jornal Enfoque aos moradores que encontrasse. Com essa entrega e troca de palavras, histórias poderiam ser descobertas. E assim fomos com certo receio do desconhecido. A maioria nunca tinha estado no Vicentina antes. Chegando lá, descobrimos um bairro muito receptivo. Em plena manhã de sábado, muitos moradores já estavam acordados, realizando as mais diversas atividades. Mesmo com muitos jornais nas mãos e câmeras penduradas no pescoço, os moradores não se intimidaram com a nossa presença, muito pelo contrário: compartilharam suas histórias. Cada novo relato mostrou o Vicentina como um local em que cidadãos se apoiam e buscam ajudar seus vizinhos e familiares, reflexos de uma comunidade amigável. Esse fato ficou ainda mais em evidência após ouvirmos os relatos sobre a enchente ocorrida em julho desse ano. Como tantos outros locais no Rio Grande do Sul, a comunidade também foi atingida. Casas ficaram alagadas, móveis, roupas e eletrodomésticos foram perdidos; e o auxílio necessário veio daqueles que também passavam pela mesma situação. Pelo menos três moradores do Vicentina utilizaram seus barcos para transportar vizinhos

VITOR BRANDÃO

Se os efeitos devastadores da chuva afetam as casas e as vidas dos moradores, a mão amiga de quem mora perto ajuda a reconstruí-las

que haviam sido atingidos mais gravemente pela enchente. A fama de solidariedade no bairro já era conhecida e se confirmou para muitos de nós após aquela manhã quente. Conversando, ouvindo e observando a cada

fala a forma de viver e de conviver com o próximo, a amizade e a união ficaram como marcas em nossas matérias. Pessoas que viram o Vicentina nascer, que desenvolvem projetos, que brincam, que ajudam,

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(51) 3591 1122, ramal 1329

enfoquevicentina@gmail.com

Avenida Unisinos, 950 – Cristo Rei São Leopoldo – RS Cep: 93022 000 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

DATAS DE CIRCULAÇÃO 7

19 / 9 / 2015

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17 / 10 / 2015

que lutam, que sofrem, mas que não desistem para melhor suas vidas e o bairro. Essa é a comunidade que conhecemos. E é esse o Vicentina que retratamos nas páginas desta 7ª edição do Enfoque. Boa leitura!

NATÁLIA SCHOLZ PÂMELA OLIVEIRA ROBERTO CALONI TUANNY PRADO Editores

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade do bairro Vicentina, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é publicado a cada dois meses e distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo. EDIÇÃO E REPORTAGEM Disciplina Jornalismo Cidadão Orientação Sonia Montaño Edição de textos Natália Scholz Pâmela Oliveira Roberto Caloni Tuanny Prado Reportagem Adriana Corrêa Daniel Stein Rohr Dijair Brilhantes Emilene Lopes Fabiano Scheck Ferraz Jéssica Beltrame Jonara Cordova Luan Pazzini

Maria Eduarda de Lima Mariana Blauth Nathália Mendes Natália Scholz Pâmela Oliveira Pedro Kobielski Rafaela Amaral Rhian Berghetti Roberto Caloni Tuanny Prado FOTOGRAFIA Disciplina Fotojornalismo Orientação Flávio Dutra Fotos Bolívar Gomes Carolina Zeni

Cláudia Paes Émerson da Costa Fernanda Salla Josuel Maschke Khael Santos Laura Gallas Leonardo Ozório Lucas Weber Márcia Ávila Matheus Beck Matheus Vargas Milena Riboli Natália Collor Nicole Cavallin Nicolle Frapiccini Pedro Viero Tatiana Dege Thayná Bandasz Tiago Assis Vitor Brandão

ARTE Realização Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) / Unisinos São Leopoldo Projeto gráfico e arte-finalização Marcelo Garcia Diagramação Gabriele Menezes IMPRESSÃO Realização Grupo RBS Tiragem 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 000. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinícius Souza. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


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LEMBRANÇAS .3

Lar em construção PEDRO VIERO

Moradores testemunharam o crescimento do bairro em pequenas regiões

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Teresinha vive no Vicentina desde a época em que o local se chamava Vila Maria. Já Luís comprou um terreno sem antes conhecer o lugar MÁRCIA ÁVILA

ais do que a casa que mantém na rua Heitor Mendes Gonçalves, o Vicentina, por si só, é o que Teresinha Machado de Borba, 77 anos, reconhece como lar. Quando se mudou para cá, vinda do 1º Distrito de Santo Antônio da Patrulha – que depois se emanciparia município de Rolante –, o bairro nem bairro era. Chamava-se, ainda, Vila Maria. Coberta em lama, a região mais parecia esboço, o alicerce de uma estrutura por erguer. E foi ali, no banhado mesmo, que Teresinha firmou raiz. A relação dessa senhora com o Vicentina remete a 24 de agosto de 1954, data da mudança para a vila-que-seria-bairro. “Eu estava no trem, vindo para cá, e, de repente, tudo parou”, lembra ela. “As pessoas começaram a gritar ‘morreu Getúlio’ e nada mais funcionou até a manhã seguinte.” Era terça-feira, dia de começo para Teresinha e de fim para Getúlio Vargas, então presidente do Brasil. “Passei a noite no trem por conta da paralisação.” Quando chegou à residência da irmã, que seria também a sua por algum tempo, ela tinha 15 anos. Naquela época, a vila era quase nada além de barro, mesmo assim, já era lar. Dali em diante, a moradora viu melhorar o local. Primeiro, ele virou Vicentina, depois, foi tomando forma. O lamaçal deu lugar às ruas que, pouco a pouco, conectaram os pontos do bairro. Gente nova apareceu, tanto na vizinhança, quanto na família de Teresinha. Mãe de dois filhos e grávida do terceiro, por volta dos 30 anos, foi quando pôde comprar seu próprio cantinho. “Pedi ao Padre Reus e ele me atendeu. Tinha uma senhora que precisava de ajuda para trocar um botijão de gás lá na Rua Grande, meus meninos foram, ajudaram, e voltaram com uma quantia alta de dinheiro, que ela havia dado pelo serviço”, relata. Depois do estranhamento em função do valor, veio a gratidão. Só podia ser a oportunidade que esperava. Decidida, Teresinha foi até o homem que era seu chefe na época e perguntou se ele tinha um terreno para vender. Tinha, e a entrada que queria era, coincidentemente, a soma exata do pagamento recebido pelos filhos. Para levantar a casa, a família contou com o apoio dos vizinhos, que contribuíram com a compra dos materiais e a construção. Sem saber ler ou escrever, responsabilizar-se pelos 11 filhos que a vida lhe deu não foi

tarefa fácil. A eles, faltou estudo e sobrou trabalho. Chegaram a vender frutas na rua para complementar a renda no final do mês. Os oito ainda vivos estão, agora, bem encaminhados. “Graças à justiça divina”, diz a mãe, que fez faxina, cuidou de crianças e idosos e capinou para garantir o sustento da prole. “Deus nunca me negou amparo.” CHÃO BATIDO, RUA ASFALTADA Mais adiante no Vicentina, numa região consideravelmente nova do bairro, mora Luís Assis Castro Sousa, 54 anos, com esposa e dois filhos. Hoje, ele empurra a neta no carrinho de mão apenas por divertimento. Duas décadas atrás, fazia o movimento por necessidade, com material de construção para terminar a casa na Rua da Palma. Foi um dos primeiros a chegar ali. “Havia tropas de gado pela rua, se é que dá para chamar aquilo de rua”, diz, ao recordar da estrada de chão batido que interligava as poucas residências. Luís comprou o terreno sem antes conhecê-lo, pois trabalhava em Porto Alegre e não tinha tempo de ir até São Leopoldo. Quem fez os trâmites legais foi a esposa, Cleusa Egger. “Fiquei mais de ano pagando prestação sem ver a casa. Quando vi, me apavorei”, conta o marido. Apesar de situar-se em uma parte do bairro que já era chamada de Vicentina, a moradia não estava imune à ação das chuvas. Para poupá-la, foram necessárias 25 caçambas de terra que a levantassem o suficiente. Uma despesa a mais no orçamento da família. Quando ali chegaram, os Sousa tinham apenas um colchão para dormir. A cozinha resumia-se a um fogo improvisado nos fundos da

casa. Enquanto isso, o valor das prestações do terreno subia. Era período de alta na inflação e os rendimentos não davam conta das dívidas. A família pensou em desistir e se mudar, mas foi salva pelo Plano Cruzado de 1986, um conjunto de medidas econômicas que estabilizou o preço do imóvel. A situação melhorou e o lar pôde ser mantido, só que ainda havia muito a fazer. À época, aquela parte do bairro não possuía rede de esgoto. Para resolver o impasse, os vizinhos uniram-se e compraram canos com dinheiro de seus próprios bolsos. Quando a Prefeitura chegou, só teve de concluir a obra. A mesma parceria fez a Rua da Palma receber a atenção merecida. “Começaram a circular ônibus por aqui, o que foi bom para o transporte, mas ruim pela sujeira que eles trouxeram para dentro das casas”, constata Luís. A poeira levantada pelos coletivos terminou com a paciência dos moradores. O que eles fizeram? “Trancamos a rua onde ficava um mercado grande daqui, porque

era de bastante movimento e iria atrapalhar o trânsito.”Em resposta, conseguiram o calçamento. Hoje, o trecho está até asfaltado. Todas as pequenas reformas custaram mais do que a boa vontade de Luís. Em 24 anos trabalhando na mesma empresa, ele teve somente um mês de férias. “O resto vendi. Tinha que pagar as contas, não é?” O resultado de tanto esforço compensa. Hoje, é extrusorista em uma empresa de Sapiranga – transforma o polietileno em sacolas plásticas, filmes e derivados. A casa está quitada e a vida é tranquila. No terreno, tem espaço até para a criação de pato e galinhas, algo que sempre quis manter. Para ele, natural de São Gabriel, a vida interiorana é lembrança boa que os animais, seus companheiros, não o deixam esquecer. O QUE FALTA PARA AJEITAR A CASA Teresinha e Luís podem nem se conhecer, mas compartilham do mesmo lar e das mesmas

preocupações enquanto moradores do Vicentina. Ela tem pressão alta e labirintite, mas o posto de saúde fica longe, e a distância complica o tratamento. Ele lamenta a falta de segurança para as crianças brincarem na rua. Quem sente isso é a neta, Carolina Cleide da Rosa, 5 anos, que só passa pelo portão se for acompanhada de um adulto. O Vicentina cresceu bastante nos últimos anos e tem ainda mais potencial para continuar expandindo. Vale lembrar, porém, que mais do que aumentar em tamanho é preciso progredir em qualidade de vida. Os moradores querem, sim, mais espaço para compartilhar; mas querem, principalmente, espaços melhores. Praças tranquilas, escolas qualificadas, ruas asfaltadas. Afinal, nada como um cantinho bem organizado para fazer todos sentirem-se em casa. PÂMELA OLIVEIRA MÁRCIA ÁVILA PEDRO VIERO


4. POLICIAMENTO

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A violência é nossa vizinha De dentro dos portões, cidadãos assistem à falta de segurança nas comunidades do Vale do Sinos

A

resposta da moradora Sonia Emília Mattje sobre a segurança do bairro Vicentina pode ser engraçada, trivial, e até soar com naturalidade para os moradores daquelas ruas tranquilas e pouco pavimentadas do pequeno distrito na cidade de São Leopoldo. “Aqui atira quem quiser, e salve-se quem puder” grita aos ouvidos como uma realidade pedindo para ser ouvida. Da mesma forma clamam os números que traz a violência no Vale do Sinos, que não devem ser vistos com olhar desatento. Em segundo lugar na lista das cidades com o maior índice de homicídios da Região Metropolitana de Porto Alegre, a cidade de São Leopoldo aparece com taxa de 44,2 por ano na tabela que ilustra bem a realidade que vive a moradora Teresinha Silva, de 46 anos. Os dados são da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, para o ano de 2012. Residente do bairro há 36 anos, ela não sai com a filha à noite, e as brincadeiras de Ana, de nove anos, tiveram que ser limitadas para dentro de casa. “Hoje não se vê mais as crianças brincando na rua até tarde, até para a escola ela quer ir sozinha, mas eu não deixo. A maioria dos pais leva e busca os filhos, até aqueles que já são grandes”, desabafa. Do outro lado da rua, aos 24 anos, Anderson Souza não precisou ver os dados para conhecer sobre os fatos. Morador do Vicentina desde que nasceu, o jovem já perdeu amigos para a violência, e ilustra bem a diminuição de crianças e jovens pelas ruas, conforme o aumento dos números. “Antigamente brincava com meus amigos na rua, hoje não dá mais para ficar até tarde na frente de casa, está bem mais perigoso”, comenta. Em São Leopoldo, em 2012, a taxa de homicídio de jovens entre 15 e 29 anos foi de 73,8. Anderson é um jovem branco, mas os números do outro lado da tabela, que englobam o homicídio de jovens negros, apontam para uma taxa de 49,6. Os dados foram divulgados no Mapa da Violência, atualizado este ano pela Secretaria-Geral da Presidência da República. No ano passado, o Vale dos Sinos registrou 835 delitos relacionados a armas e munições, e um total de 3.524 casos relacionados à posse e tráfico de entorpecentes, segundo dados da SSP/RS.

Em meio aos números, tão cruéis quanto verdadeiros, está José Goularte, morador do bairro há mais de 25 anos, aposentado, e ex-presidente da associação dos moradores do local. Depois de criar o único filho, hoje com 25 anos, pelas ruas do Vicentina, o homem já viu a violência da janela de casa. Após dedicar anos pela formação do filho junto com a esposa, Vera Lucia Goularte, José deposita a esperança na próxima geração: “Vocês, os jovens, têm que tentar melhorar, se envolver na política, só vocês podem melhorar, lutem pelos filhos de vocês”, comenta. José, que estudou até a 4ª série do ensino fundamental, reproduz a ideia de pensadores e filósofos consagrados. A prática foi quem o ensinou, e a vivência pelas ruas, tranquilas só durante o dia, deu-lhe a certeza de que o descaso com a segurança, não apenas no seu bairro, é uma realidade no mínimo exaustiva. “Gastei um pedaço da minha vida tendo esperança. Desisti, agora vou viver para a minha família, passei a vida vivendo para os outros”, conta. José também conheceu na dificuldade a situação que afeta o país. “Justo não é, pelo que a gente paga de imposto, a gente merece segurança, mas nem isso temos, a comunidade que se vire”, reclama. A vida de José, dedicada muitas vezes aos vizinhos do

bairro, reflete bem a realidade do abandono, vivida por moradores do país inteiro. Na falta da segurança, que deveria ser oferecida pelo Estado, a comunidade se reorganiza como pode. “É só não se meter na vida dos outros que não acontece nada”, alega o morador. Neste contexto de executar uma justiça própria, o bairro abriga, de um lado, o problema, e do outro, a solução, ambos convivendo e se cruzando diariamente. “Não é vantagem se envolver, porque não temos como mudar, nem para onde correr”, acrescenta. Para a cozinheira Vera Lucia, mulher de José, as soluções adotadas pelos próprios moradores caminham em equilíbrio com a omissão do poder público. “Eles nem se escondem mais, todo mundo sabe quem faz o quê dentro do bairro, mas ninguém se mete. A polícia só vem quando acontece alguma coisa”, afirma a moradora. A última vez que a comunidade teve a quem pedir socorro em um local próximo, foi no ano de 2011, quando o único Posto da Brigada Militar foi retirado do bairro. Hoje, os moradores são dependentes, unicamente, do serviço do 190. Segundo José, a associação passou os anos seguintes da retirada do posto realizando reuniões com o Comando da Brigada, em Novo Hamburgo, para tentar reverter a situação. “Os moradores reclamaram, todo mundo se envolveu na questão

da segurança, mas depois de anos sem receber resposta, as pessoas acabaram desistindo. Tu não tem poder pra mudar, a justiça também não muda, até as armas tiraram de nós, cidadãos de bem”, comenta. A última frase deixada pelo morador José Goularte deixa clara a realidade que inunda as comunidades do país e respinga até às ruas do bairro Vicentina. Como alternativa para dialogar com os moradores dos pequenos subúrbios de um Brasil que vem elevando anualmente os números da violência, está o olhar do antropólogo e especialista em segurança pública, Luiz Eduardo Soares. Defensor da desmilitarização da polícia e do corpo de bombeiros, o professor reconhece um caminho para a solução através de uma polícia que tenha como missão identificar os problemas e as prioridades das regiões mais carentes. Para isso, o policiamento deveria ser feito de uma forma igualitária e livre de preconceitos, enxergando naqueles números os jovens pobres e negros destes bairros, e oferecendo-lhes, cima de tudo, segurança, que é direito básico de todos os cidadãos brasileiros. Aos olhos de Luiz Soares, a solução poderia estar pelas ruas do próprio bairro. Com investimento em iluminação de praças e quadras de esporte, crianças e jovens poderiam ter atividades com segurança até

durante a noite. Como disseram a mãe de Ana, o jovem Anderson, e o morador José Goularte, a população quer a polícia nas ruas, e a quer desta maneira, ao lado da comunidade. E mesmo que pareça banal a resposta da moradora Sonia sobre a violência, e que a fala dos moradores do Vicentina tenha um tom de quem já se conformou com a realidade, os números ainda existem. E são tão reais quanto as crianças que hoje brincam do lado de dentro dos portões, e dos jovens, representados em números nas tabelas do governo. NATHÁLIA MENDES MATHEUS VARGAS

Anderson costumava passar mais tempo nas ruas. Agora, teme o que pode acontecer ao sair de casa


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AUTORRETRATO .5

Pelos olhos de quem vive Histórias e percepções que os próprios moradores têm para contar sobre o bairro em que moram

A

o entrar no bairro Vicentina, mais especificamente na área próxima da barreira, e caminhar poucos metros, já é possível perceber características de um lugar diferente de outros. Pessoas andando de bicicleta, limpando e organizando os pátios de suas casas e um número surpreendente de carros de som, anunciantes dos mais diversos eventos, dão ao bairro um aspecto singular, semelhante ao de pequenas cidades do interior. Apesar das constantes reclamações do crescimento da violência, é nítido o carinho que os moradores têm pelo local em que residem. Para o operador de caldeira, Antonio Gonçalves Cardoso, de 54 anos, a amizade entre os vizinhos é a principal qualidade do local. “Aqui a maioria dos moradores se conhecem. Eu não saberia morar em outro bairro, já me mudei e aguentei apenas cinco meses, parecia que eu estava andando na contra mão, lá eu não conhecia ninguém e

aqui tenho muitos amigos e familiares”. Antonio tem três filhas, Daniela e Eduarda, que já são adultas, e Danielle, que tem apenas 4 anos. Para ele, é visível que o passar dos anos deixou o Vicentina um pouco mais perigoso, e que essa mudança impactou na diferença da criação de suas filhas, todas moradoras do local. “Com as minhas filhas mais velhas foi tudo mais tranquilo, elas puderam brincar na rua e ter muitos amigos, mas com a Dani estou tendo mais cuidado, ela vai na casa aqui da vizinha ou sempre anda com suas irmãs”. Na mesma rua, sentada na varanda bem no fundo do pátio da casa, atrás do portão que está fechado com um cadeado e tomando chimarrão, está Luciana Bleichvel, de 42 anos, secretaria de um escritório de advocacia. Antiga moradora da capital, ela diz que sente muita falta do lazer que lá encontrava, mas que já está acostumada a viver no Vicentina. “O bairro até tem um parque, mas ele está ali entregue, sem manutenção, cheio de mato. Isso é o que mais sinto falta de Porto Alegre”. “Moramos há 17 anos aqui, minha família usa o transporte público, chega tarde, vem a pé até

Luciana acredita que há certo preconceito por parte de quem não conhece o Vicentina

em casa e nunca acontece nada. Acho que os casos de violência no bairro são entre bandidos mesmo”, explica. Luciana também faz questão de enfatizar que os vizinhos são como uma família para ela. “Todos os meus vizinhos do lado moram aqui há mais de 10 anos. Nós chegamos todos praticamente juntos, somos bem próximos”. Segundo ela, é possível per-

Laços de boa vizinhança Com sorriso fácil e simplicidade na fala, dona Chirlei Schultz não vacila ao demonstrar a felicidade que sente por morar em uma comunidade onde a boa vizinhança é cultivada. Sem pensar duas vezes, a aposentada de 69 anos, dos quais onze foram vividos no bairro Vicentina, descreve categoricamente: “É um lugar calmo, sem inimizades. Não posso me queixar de ninguém”. No Vicentina, ela mora com o marido, Fredolino Schultz, 76 anos, que precisa de um cuidado especial da esposa. Há 15 anos, ele sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), derrame que afetou a memória e ocasionou algumas dificuldades na rotina. Chirlei, então, é responsável por auxiliá-lo, mas, às vezes, ela também precisa de alguém que lhe estenda a mão. Ao longo de sua trajetória, a aposentada sofreu com os percalços da vida. Mãe de cinco filhos, Chirlei perdeu dois deles devido a doenças. Também viveu o luto do neto de oito anos, que morreu de pneumonia. Apesar dos obstáculos e da depressão

ocasionada por esses episódios, a solução foi seguir em frente: “É preciso ter coragem, desanimar é pior. Eu pensava que, um dia, Deus iria abrir o sol em minha porta. Ele é a segurança”, ameniza. Hoje em dia, em meio à rotina cheia de tarefas, que inclui o auxílio ao marido e os afazeres da casa, ela recebe o apoio da família, que também vive no Vicentina. Caso um dos dois precise de algo, sabem que podem contar com os filhos. No entanto,

Família Schultz gosta da calmaria do lugar

a ajuda não vem somente deles. Quando surge um imprevisto de saúde, ou quando o casal precisa de consultas médicas e prescrições de remédios, a ajuda vem da vizinha, Andréia Barbosa Pinheiro. Aos 34 anos, ela é agente comunitária de saúde no Centro Médico (UBAM) e auxilia moradores, entre eles o casal, que residem em uma das quatro ruas pelas quais ela é responsável. “Oriento eles sobre medicamentos, receitas médicas,

ceber um certo preconceito de quem não vive e não conhece o bairro.“Sinto que pessoas que não moram no bairro têm essa visão de que aqui é muito perigoso. Se preciso de alguma carona é muito difícil de conseguir porque todo mundo tem medo de entrar aqui.”. Também estudante de técnico em administração, Luciana conta que nos últimos anos o

comércio tem crescido bastante. “Antigamente não tínhamos mercado, padaria, salão de beleza, farmácia. Agora encontramos todos esses estabelecimentos aqui. Por isso, a gente procura sempre consumir tudo aqui no bairro, pra valorizar o local em que vivemos”.

horários de consultas. Crio amizade com essas pessoas”, conta. Além de agente de saúde, Andréia tem um minimercado com o marido, Adilson Goulart Ramires, 35 anos. Eles administram o empreendimento há quase um ano, mas não se esquecem de ajudar os moradores necessitados. Concedem alguns produtos e adiam a cobrança para quem não tem condições no momento. Andréia lembra que, por essa razão, o casal já perdeu dinheiro. No entanto, isso não faz com que mudem de ideia. “O reconhecimento não vem das pessoas, vem de Deus. Ele que

contempla e abençoa”, garante a moradora. Para Ramires, a vizinhança é batalhadora. “Há pessoas que lutam, mas têm dificuldades. Então, com uma ajuda que eu concedo, talvez elas possam ir pra frente”, reflete. De acordo com o comerciante, a troca de auxílio ocorre entre a maioria dos moradores, apesar de alguns deles se isolarem. No cotidiano, é possível perceber isso por meio de pequenas ações: as pessoas estão sempre vigilantes, alertando umas às outras sobre questões de segurança, e mobilizadas em meio a situações difíceis, como ocorreu nas últimas enchentes, por exemplo. Relações tão simples como a amizade entre vizinhos e o auxílio que prestam uns aos outros são capazes de mexer com a percepção dos moradores, o que os motiva a permanecerem no bairro. Em um local onde facilmente se percebe a desigualdade, as pessoas criam respostas positivas às condições de vida, desafiando o contexto no qual vivem de forma criativa e solidária.

RAFAELA AMARAL NICOLE CAVALLIN

MARIANA BLAUTH BOLÍVAR GOMES


6. LIDERANÇA

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Uma opção pela juventude Vice-presidente da Associação de Moradores aposta em novos projetos

Com os garotos do time de futebol do JUAD, Elias (ao centro) lembra de como era divertido participar de campeonatos junto ao grupo da Igreja Batista

E

leito, aos 22 anos, como vice-presidente da Associação de Moradores do Bairro Vicentina, Elias Cardoso Simão planeja atividades que integrem a comunidade e melhorem a qualidade de vida do bairro. “Precisamos criar uma consciência de que isso aqui é de toda a comunidade e, mesmo que tu não queira usufruir, é tua obrigação cuidar”, explica o rapaz se referindo a Associação. A Associação tem tido grande dificuldade em se aproximar dos moradores, pois muitos ainda têm um certo receio com relação à entidade e até mesmo desconfiança. O vice-presidente da associação destaca a importância da participação e da união da comunidade para a conquista de melhorias. Morador do Vicentina desde criança, Elias trabalha com o pai, que é caminhoneiro. Exemplo para os dois irmãos mais novos, o jovem é técnico em Mecânica, mas pensa em cursar faculdade de Psicologia. “Eu gosto de trabalhar com as pessoas, é isso que eu quero para a minha vida”, conta. Criado numa comunidade onde o contato com as drogas e a

criminalização é comum, o rapaz sempre participou de atividades da igreja e garante que a fé é um dos melhores meios para tirar o jovem da marginalidade. O Grupo de Juniores e Adolescentes, do Ministério Batista Cristo é a Vida (JUAD), do qual fez parte dos 8 aos 16 anos, foi o que o manteve afastado das ruas e de

suas possíveis consequências. Com atividades nos sábados à tarde, o JUAD busca formar bons cidadãos para a sociedade. Através de atividades criativas, inovadoras e diferenciadas, o grupo procura desenvolver um caráter cristão nos participantes. “Eu tenho Deus como referência e essa é a minha motivação”,

explica o jovem. “O que eu puder fazer para ajudar, eu vou fazer. Eu quero melhorar a comunidade onde eu moro”, relata. Todos os participantes da Associação de Moradores do Vicentina são voluntários que buscam fazer a diferença na comunidade.“O que mais paga é a satisfação de poder ajudar o próximo”, comenta Elias.

O descaso da prefeitura com os moradores é uma das ressalvas mais cobradas no Vicentina. “Eu conheço muitas mães que não podem trabalhar, pois não têm onde deixar seus filhos. Isso é um absurdo”, explica o vice-presidente da Associação, que garante que a união da comunidade para cobrar serviços básicos do governo, como creches e escolas, é essencial. Elias destaca que a conscientização dos moradores para manter os locais limpos é uma das bandeiras da Associação: “Muitas vezes a Associação abre um chamado na prefeitura, pedindo que seja realizada a coleta de lixo nas ruas, mas eles demoram muito a vir. E não adianta eles virem se no outro dia já está cheio de lixo novamente”. A entidade se coloca à disposição da comunidade e ressalta que as portas da Associação estão sempre abertas para ajudar a todos. JÉSSICA BELTRAME JOSUEL MASCHKE

“Prefeito”do Vicentina Prefeito é a definição de quem é responsável pela administração de um município, escolhido através do voto da população local. Embora não tenha sido esse o procedimento seguido por Valmor Gonçalves Ricardo, de 64 anos, ele virou mesmo assim o“Prefeito”; ou pelo menos é assim que os vizinhos o chamam. Com um sorriso largo no rosto e uma grande vontade de receber da melhor maneira possível quem o visita,Valmor conta que o apelido surgiu como uma brincadeira entre seus amigos do bairro. O motivo: ele estar sempre disposto a resolver os problemas da região. Há 18 anos morando no Vicentina, o “Prefeito”, que é originário da cidade de Torres, aceitou tão bem o apelido que abriu um estabelecimento comercial chamado “Bar do Prefeito”, em funcionamento há dois anos. Quem atende a clientela é a “Primeira-dama”,TerezinhaWebber Ricardo. Valmor fica encarregado de repor os produtos oferecidos: alimentos, bebidas, balas, entre outros. A porta do bar fica sempre fechada e o atendimento ocorre

através das grades. “Hoje em dia é muito perigoso”, comenta. Ele garante que nunca foi assaltado nesse período e o máximo que lhe aconteceu foi alguns rapazes pedindo mantimentos. “Eu acabo dando uma lata de refrigerante. Algo assim não vai me fazer falta e é melhor do que ser assaltado”, afirma. Mesmocomtodasuadisposição, as últimas semanas tornaram sua atividade comercial mais difícil do que o costume. A enchente que desabrigou muitas pessoas por todo o Rio Grande do Sul também afetou o Vicentina, deixando a casa de Valmor com água na altura dos joelhos. Porém, com a ajuda dos amigos, ele conta que conseguiu salvar alguns móveis e eletrodomésticos. As cheias são comuns na região, deixando a rua do Bar do Prefeito com inúmeros buracos. Antonio Carlos da Silva, 45 anos, dono de uma borracharia a poucos metros do estabelecimento, disse que é comum motoristas o procurarem por causa de rodas de carros tortas

em decorrência das fissuras na via. Laurindo Trombeta, 55 anos, acrescenta que existe muito lixo entupindo os bueiros da região, prejudicando o escoamento da água da chuva e o consequente aumento de buracos. Fazendo jus ao apelido que recebeu,“Prefeito” conta que ajudou a desentupir as ruas para que a água escorresse e baixasse seu nível, assim sendo possível avaliar suas perdas. O fato é que desde então, sua saúde não foi mais a mesma. Valmor sente desconforto em seu pescoço, mas mantém o bar funcionando, para bem atender seus amigos. Terezinha também começou a sentir uma dor muito forte em seu joelho, ainda sem

Proatividade é a marca registrada de Valmor e lhe rendeu o apelido

nenhum diagnóstico conclusivo por parte dos médicos, fazendo com que se afastasse dos serviços no estabelecimento. Eles não sabem ao certo se há alguma relação com a enchente, mas os problemas começaram logo após o incidente. Doenças em decorrência de alagamentos são comuns e pe-

rigosas, e podem ser contraídas, muitas vezes, pelo simples contato com a água contaminada. Entre as principais, está a leptospirose, as hepatites A e E, a febre tifoide, a cólera e a dengue. TUANNY PRADO LEONARDO OZÓRIO


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AMBIENTE .7 Fusão de paisagem rural e urbana caracteriza ruas do Vicentina

Do céu à terra Problemas ambientais afetam moradores do bairro

C

aminhar na área perto do valão do bairro Vicentina em dias de muito sol pode ser desconfortável. O motivo? Faltam árvores que façam sombra e fontes de água para matar a sede. Em dias de chuva, a situação pode ficar ainda mais incômodo: há o risco de inundações e as ruas não asfaltadas se transformam em barro. Outras questões sobre o meio ambiente incomodam a quem vive ali. Às vezes o vento propaga um mau cheiro. “Tem dias que me tapo de nojo e não dá pra ficar na rua”, reclama Astor Fernandes da Rosa, morador do bairro há 31 anos, descontente com os odores. Isso se deve principalmente às criações de animais, como porcos e galinhas, em terrenos vizinhos. Cavalos também são facilmente encontrados pelos arredores, criando um misto de rural e urbano nessa região. O resultado são materiais orgânicos que provocam cheiros fortes e reclamações de quem apenas mora ali, sem bichos. UMA QUESTÃO MUNDIAL E LOCAL Aumento das temperaturas, alagamentos, poluição e desma-

tamento. Esses são problemas que ocorrem no mundo inteiro, porém cada comunidade com sua particularidade. No caso do Vicentina, há duas questões que necessitam de uma maior atenção: queimadas de lixo e aterramento irregular. Na área verde, que fica logo atrás do dique, encontram-se vestígios de materiais que foram queimados. Atear fogo de maneira descontrolada pode gerar grandes incêndios, além de destruir parte da vegetação. “Eu sempre vejo gente que é paga pra levar lixo embora, mas que, na verdade, atravessa o valão e queima tudo lá”, revela um morador que preferiu não ser identificado. Essa prática acontece próxima às casas e a fumaça se alastra pelo ar. O aterramento irregular, que é muito baixo, é uma das razões para acontecerem as inundações quando chove. O lixo jogado nas ruas entope bueiros, sendo mais um fator que contribui para os alagamentos. Assim como não se deve queimar, também não se pode largar resíduos em qualquer lugar. O ideal é levar o lixo para o seu destino correto. A reciclagem é fonte de renda de diversos moradores do Vicentina e uma opção é dar os materiais recicláveis para a Cooper Vitória, localizada na Rua do Carmo, próxima à BR 116. O restante do lixo deve

ser coletado pelos caminhões da prefeitura de São Leopoldo. Mais do que problemas pontuais, essas mesmas questões ambientais estão diretamente ligadas com a saúde das pessoas. Inalar fumaça é prejudicial para o sistema respiratório. Os buracos das ruas, que contém água parada, podem virar foco de vírus e bactérias que causam doenças na população. Pelo bairro, crianças brincam e caminham descalças, um grande perigo para um local que possui residências com animais que produzem resíduos orgânicos. ATIVISMO AMBIENTAL NO VICENTINA Os problemas ambientais no bairro são vários, mas houve um tempo em que eles eram mais. Segundo Eva Gonchoroski, moradora do bairro há 13 anos e conhecida como “Tia Eva” pela comunidade, a situação melhorou bastante. “Não tinha nada, era tudo mato”, comenta a senhora de 61 anos, sobre a época em que chegou no Vicentina. Em uma das ruas sem calçamento e repleta de poças d’água, fica a casa de Tia Eva. Varrendo a calçada, ela tenta limpar e impedir a entrada da poeira que vem da rua. Uma moradora humilde, contente com a casa que possui, mas que ainda não está satisfeita e luta por mudanças.

Tia Eva se considera uma líder ambiental para o bairro e esse título não é à toa. Apesar de ter estudado até a segunda série do Ensino Fundamental, recentemente ela participou de cursos sobre meio ambiente, oficinas de informações regionais e reuniões ecológicas. Engajada na causa natural, diversas vezes conclamou os vizinhos, fez pesquisas e conseguiu levar autoridades para mostrar a situação do local. O ativismo ambiental da moradora já demonstrou resultados. Ela revela que quando chegou no Vicentina, em 2002, a área em que escolheu para viver não possuía esgoto tratado e a coleta de lixo não era eficaz. Diante disso, foi atrás de melhorias. “Tudo que tem na comunidade, essa velhinha aqui batalhou junto”, explica em um tom animado acompanhado de um gesto divertido, batendo a mão no peito. Agora o lixo é recolhido três vezes por semana e existe saneamento básico. Porém, essas são questões parcialmente resolvidas, já que ainda existem pessoas que jogam coisas no chão e contribuem para o entupimento das bocas de lobo. Para o futuro, Tia Eva pretende continuar ajudando a transformar a região. Em sua casa, ela guarda todos os certificados de cursos e atividades que re-

alizou. Todos com temas que podem ajudar a comunidade, como habitação e o combate à violência contra a mulher, além da questão ambiental. Sua atual grande luta é por asfalto. “Já era pra estar pronto isso aqui, a prefeitura anterior deixou um projeto aprovado, mas não teve continuidade. No momento está complicada a situação, outras partes do bairro já estão totalmente asfaltadas, mas aqui, apenas as avenidas principais”, relata a ativista. Areia, terra, pedras e alguns trechos de asfalto desenham os caminhos do Vicentina próximos ao valão. Uma mistura de avanços e retrocessos caracteriza essa paisagem. Andar por algumas ruas é acessível, mas por outras, não há como sair sem ficar sujo da poeira. As previsões de chuva deixam todos em estado de alerta, porém, em um dia de sol, é possível contemplar o céu e se esquecer dos problemas por alguns instantes. Sem grandes prédios, a região evidencia paisagens naturais e percebemos um certo encanto puro, como na música “Boa pessoa”, composta por Luiz Felipe Leprevost e Thiago Chaves e interpretada pela A Banda Mais Bonita da Cidade, “e o azul do céu é de uma beleza que caçoa”. FABIANO SCHECK FERRAZ LUCAS WEBER


8. MEDO

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Temor de novas inundações Para prevenir enchentes

Após verem seus pertences sendo levados pela enxurrada, moradores convivem com pavor

Cuide do seu lixo

A

s consequências das fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul, em julho, ainda provocam reações de pânico nos moradores do bairro Vicentina. A intensidade e a velocidade com a qual a água invadiu diversas casas no local geraram perdas, decepção e temor. “É só o tempo se armar pra chuva, que já sentimos medo. Foram momentos muito difíceis. Tivemos que sair de casa em plena madrugada com as crianças, abaixo de chuva, dentro d’água”, lembra Sandra da Silva Ribeiro, 35 anos. Ela mora há 13 anos no bairro, com o marido e quatro filhos e teve que abandonar tudo às pressas, partindo para a casa de uma amiga, na noite em que perdeu o que tinha por causa da inundação. Sandra e seus familiares contaram com a ajuda de vizinhos para serem resgatados da enchente. Após a água baixar, receberam muitas doações de móveis, roupas e alimentos. No entanto, ela diz que foi difícil ter motivação para enfrentar a situação que encontrou quando retornou ao lar. “Nada nos aconteceu de pior, mas doeu muito abrir a porta e ver tudo o que demoramos e passamos tanto trabalho para construir, estragado, quebrado, sujo, tudo perdido”, desabafa. Mesmo assim, junto da família e com apoio de algumas entidades locais, conseguiu reorganizar sua casa. Eles limparam o que se salvou, reaproveitaram e improvisaram alguns móveis e ganharam outros. O que ficou foi o receio de uma nova enchente e a dúvida quanto aos reparos na drenagem do bairro. Segundo ela, somente informaram que as bombas estavam estragadas por causa do acúmulo de lixo nas águas do arroio, mas não deram notícias sobre o conserto e nem realizaram a limpeza dos bueiros. Outra moradora afetada pela inundação foi Solange Regina Corrêa, 55 anos. Residente do local há 25 anos, diz que, em todo esse tempo, nunca havia presenciado uma enchente tão intensa. “Já tivemos alagamentos de encher as ruas, mas de entrar água nas casas, nunca. Foi horrível acordar, dentro d’água”, descreve. Solange também viveu momentos de pânico e perdeu quase tudo que tinha. Ela teve que comprar tudo novo e lamenta pela falta de assistência do poder público. “A ajuda surgiu dos próprios moradores para retirar

Não jogue lixo no chão ou em terrenos vazios. Tudo o que é jogado na rua vai parar em bueiros, arroios e riachos, impedindo o escoamento da água das chuvas.

Separe o lixo reciclável

A separação do lixo orgânico e dos recicláveis em sacolas diferentes é importante, pois quando esse material reaproveitável é depositado diretamente no meio ambiente, pode contaminar a água e o solo, e acabar servindo de abrigo para animais e insetos transmissores de doenças. No bairro Vicentina a coleta seletiva é realizada sempre nas quintas-feiras, a partir das 8h. A Prefeitura orienta sobre o que selecionar: – Papéis, papelões, plásticos, metais, isopor e vidros. Quando quebrados, os vidros devem ser embrulhados em papel ou papelão. É importante identificá-los. – Óleo de cozinha: colocar em um recipiente descartável sem vazamento (ex. garrafas PET) e entregar separadamente dos demais recicláveis para o caminhão da coleta.

Descarte incorreto do lixo contribui para novas enchentes. Família de Sandra perdeu tudo com as chuvas de julho

Cuide das áreas comuns da sua comunidade

Mantenha limpas as descidas de água, escadarias e outros meios de drenagem ou escoamento. Não jogue lixo, galhos, móveis, ou sobras de obra.

Esteja atento à ocupação responsável do solo

pessoas em piores situações de casa. Não quis sair, pois fiquei com medo de perder o pouco que não se estragou. Também não recebemos uma cesta básica, nada. Material de limpeza, botas e luvas, tudo isso, tivemos que comprar depois que parou a chuva, ou ficávamos no meio da sujeira”, explica. Para ela, a situação foi agravada no local, em função da má condução da obra no arroio João Corrêa, que termina na casa de bombas do Vicentina e os moradores não receberam nenhuma informação da Prefeitura, após a enchente. “Fizeram a obra e não adequaram o encanamento das ruas. As bombas também não funcionam, por isso sofremos tanto com essa cheia. Além disso, não vieram aqui nos dizer o que causou isso, se vão arrumar, ou se já arrumaram”, queixa-se. Comerciantes da região tam-

bém sofreram prejuízo em função da enchente. Silvan Fraga, 54, é morador da comunidade há 30 anos e proprietário de um mercado no local há 13 anos. Na entrada do seu comércio, a água chegou a uma altura aproximada de um metro e só se acessava o ponto comercial de barco. Além disso, ficou sem fornecimento de energia elétrica, por causa das chuvas. Assim, teve que fechar as portas e esperar a água baixar. Com um prejuízo de cerca de 40% nas vendas, ele fala sobre a situação do bairro. “Já tivemos alagamentos, mas uma enchente dessas, nunca se viu”, relata. SOMOS TODOS RESPONSÁVEIS O poder público tem suas atribuições legais, mas todos nós temos uma parcela de res-

ponsabilidade no que diz respeito ao cuidado com o meio ambiente para evitar situações de alagamentos como os que acompanhamos recentemente. De um lado, pesquisas têm identificado o aumento do aquecimento global, causado pela emissão de gases poluentes, do aumento da umidade e, por consequência, do maior volume de chuvas, tempestades e catástrofes consideradas naturais. De outro lado, vem o crescimento de população junto a áreas de risco, a falta de preocupação com a poluição e o descuido com o descarte correto do nosso lixo. Por isso o Enfoque traz algumas dicas bem fáceis de serem adotadas, que podem ajudar muito o meio ambiente e evitar futuras situações de calamidade. ADRIANA CORRÊA NICOLLE FRAPICCINI

Programas de moradia adequada, mapeamento de áreas vulneráveis, liberação de loteamentos em áreas apropriadas para habitação segura, são alguns deveres do poder público, que precisa fazer essas informações chegarem à população. Ainda é preciso transformar o que está construído e mudar as regras para novas edificações. Muitas vezes, os moradores não são avisados de que estão em área de risco.

No caso de enchentes, siga as orientações da Defesa Civil

l Se a sua moradia está em local de

risco, retire imediatamente sua família. l Busque auxílio com familiares ou amigos em locais sem perigo de escorregamentos ou inundações. l Comunique à Defesa Civil quando observar sinais de risco ou alguma situação que possa resultar em acidente. l Não utilize alimentos que tenham tido contato com água contaminada pela inundação, nem use para beber ou cozinhar alimentos. l Limpe com água sanitária os utensílios que possam ter sido contaminados. l Não permita que crianças brinquem nas águas das cheias. l Caso alguém de sua família apresente sintomas de vômito ou diarreia, procure a unidade de saúde mais próxima.


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UNIÃO .9

Enchente de solidariedade O apoio mútuo entre vizinhos ajuda a superar adversidades e revela a força da comunidade

É

madrugada de segundafeira. No interior da casa da família Correa, em São Leopoldo, no bairro Vicentina, ninguém consegue dormir. No exterior, a chuva que castiga a região não dá sinais de trégua. Preocupados com a possibilidade de ver a casa invadida pela água, pai, mãe e filho fazem vigília: a aflição é grande demais para que alguém consiga repousar com tranquilidade. A água continua subindo, e os moradores do bairro percebem o inevitável: as vias não têm capacidade para escoar o volume de chuva acumulado. Antes que seja possível decidir o que fazer, a energia elétrica é cortada. A escuridão abrupta em meio ao temporal funciona como um gatilho para que o vigilante Jorge Correa, pai de Vitor, saia pelos fundos da casa e passe a trabalhar para remover as amarras que prendem o barco de pesca da família ao reboque. Com uma lanterna em mãos, a dupla se despede da mãe/esposa e coloca o barco em movimento. A missão é socorrer os vizinhos de menos sorte, cujas casas foram alagadas pela enchente. Não demora muito para que os primeiros gritos sejam ouvidos: nas ruas transversais, pessoas com água acima do joelho solicitam resgate. A quatro quadras dali, Cesinho, como é conhecido no Vicentina, toma a mesma decisão. Com seu barco de pesca, socorre os vizinhos mais próximos, que não contam com um muro de contenção como o dele e que, por isso, têm suas

casas mais suscetíveis a alagamentos. Com movimentos ágeis, ele ajuda os moradores a recolher o que há de valor e manobra o barco para um local seguro – e tão seco quanto possível. Embora não se conheçam, Cesinho e Jorge têm muito em comum. Além de viverem no mesmo bairro, os dois cultivam o hábito da pesca por lazer e têm barcos apropriados para a prática. As coincidências, porém, não param por aí: naquela noite de 13 de julho, nenhum deles teve a casa afetada de

forma significativa pela água da chuva, mas ambos se sentiram obrigados a ajudar os vizinhos. Por quê? MOVIDOS PELA EMPATIA

Quando a necessidade aparece, todos os meios de transporte dão carona para a cooperação

“A amizade aqui é grande. Eu me dou com todo mundo. Posso não conhecer pelo nome, mas são todos vizinhos. Todo mundo se ajuda”, resume Moisés da Silva Dias, morador do Vicentina há mais de 20 anos. Na ocasião da enchente, seu Moisés dormia dentro da Kombi com a qual faz fretes no dia a dia. A decisão de passar a noite no automóvel se justifica pela altura dos quartos em relação à rua: o cômodo que ele usualmente divide com a esposa é do mesmo nível da via. Assim, para evitar a infiltração iminente, sua mulher foi para um quarto menor e mais elevado, e ele, para a garagem. Quando amanheceu, a Kombi deixou de ser dormitório para voltar a cumprir sua função de transporte. Naquela manhã, o frete foi solidário: seu Moisés ajudou alguns vizinhos no remanejo de colchões, sofás e roupas. A tarefa era proteger os bens da enchente e afastá-los da zona de perigo. Parentes, amigos e, é claro, vizinhos cederam espaço para acomodar os móveis. De acordo com informações da Prefeitura de São Leopoldo, choveu 125 milímetros em apenas seis horas naquela madrugada,

um volume que supera a média para todo o mês de julho na cidade. Justificado, em parte, pela gravidade da situação, o comportamento solidário fortalece o coletivo da comunidade e ameniza as consequências da enchente. Mas a cultura da ajuda mútua não fica restrita a intempéries. Seu Moisés explica que recorre à vizinhança quando sua mulher precisa ir ao centro fazer exames e ele não tem condições de acompanhá-la: “Eu peço para um vizinho ou outro levar, e eles levam. Aqui é assim. A gente se ajuda”. A explicação para esse fenômeno pode estar em um fator conhecido como coesão comunitária. De acordo com um relatório sobre as favelas cariocas publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 2013, a coesão contribui para o sentimento de pertencimento entre os moradores. É isso que explicaria, por exemplo, práticas como o mutirão, em que esforços coletivos são empregados para construir casas, limpar áreas públicas e atuar onde o Estado é ausente. Não é à toa, portanto, que a união da comunidade é elencada pelos próprios moradores como um dos fatores que justificam o apego ao bairro. A pé, de Kombi ou de barco, a amizade é o combustível que move o Vicentina. DANIEL STEIN ROHR ÉMERSON DA COSTA


10. FAMÍLIA

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A vida continua Aposentado perdeu filhos para a brutalidade nas ruas e encontra no bairro novos sentidos para seu cotidiano

N

ascido em Sapucaia do Sul, Luís de Oliveira Farias é morador antigo do bairro Vicentina. Há 30 anos, ele conta que o terreno em que mora até hoje é fruto de ocupação. Depois de um mês morando irregularmente, Luís e outros moradores ganharam a causa na justiça. O antigo morador conta que já viveu momentos importantes no bairro, como o seu casamento, os 12 filhos e o nascimento dos netos.. Hoje, aos 70 anos, Luís é divorciado e divide o lugar onde mora com o seu sobrinho, que ele chama de Joãozinho, mas apesar do apelido sugerir ser uma criança, ele já é um adulto que dizem ter mais de 40 anos.

O sobrinho vive da venda de materiais recicláveis. O lugar onde moram tem mais de uma utilidade e foi organizado para satisfazer os dois moradores: é depósito e casa. A fachada é de alvenaria. O interior é de chão batido e tem um amplo espaço que abriga o cavalo de seu Luís, o material reciclável e um quarto onde Joãozinho dorme. Uma escada de madeira leva para o andar de cima, onde tábuas dão forma a uma pequena cozinha e o quarto do idoso. Ao lado da casa, mora uma parte da família Farias: sua ex-mulher, a filha Cibeli e três netas. Os demais

Morador antigo do Vicentina, Luís gosta de passear de charrete nos finais de semana

filhos também moram próximos do bairro. Vez ou outra, todos se reúnem e, eventualmente, desentendem-se também. Luís fala, orgulhoso, da quantidade de filhos e netos, mesmo que as vezes não lembre de seus nomes, somente dos apelidos de cada um. Contudo, quando pensa nos filhos, uma sombra aparece na expressão do idoso. A violência levou quatro de seus filhos e deixou a família menor. Entre eles, estão Ederson e Everton, gêmeos idênticos que foram assassinados no bairro. Tudo começou com uma discussão entre Luís e um outro morador do bairro. Por causa disso, ele encarou a morte e escapou de três tiros que dispararam contra ele. Depois dessa tentativa de matar seu pai, Ederson foi tirar satisfações e também foi condenado a morte. Em um sábado, às 18h, quando voltava de um aniversário, Luís viu um filho ser assassinado em frente à sua casa.

O homem que passou de moto alvejou Everton pensando ser Ederson. O gêmeo que morreu tinha problemas mentais e morreu por um engano. O pai não acompanhou o velório e não lembra exatamente do momento, pois entrou em choque e passou mal. “Eu morri com ele”, afirma. Mas Ederson perdeu a vida pouco tempo depois, vítima de uma ação policial. Luís conta que o filho aceitou o convite de amigos para passear no bairro, de carro. O que ele não sabia é que o carro era roubado e que policiais estavam atrás deles. Ao serem parados, os amigos se jogaram no chão e Ederson, instintivamente, saiu correndo. O rapaz foi baleado pela polícia, ficou meses internado e acabou falecendo. Os filhos que Luís perdeu para a violência não chegaram aos 30 anos. Todas as mortes foram registradas na polícia pela família, mas nunca foram investigadas.

“Eles têm mais poder que a gente. A gente tem que aceitar que é assim. Eu já larguei na mão de Deus”, lamenta Luis. Mesmo com as perdas, o aposentado tenta levar uma vida tranquila: cuida da casa, limpa o depósito de recicláveis do sobrinho e cozinha durante a semana. Nos finais de semana se dá ao luxo de comprar uma comida pronta para dar mais tempo de fazer as visitas aos amigos de charrete. Costumam dizer que a dor envelhece, mas parece que isso não se aplica a Luís. O discreto - e permanente sorriso no rosto e a facilidade em falar sobre a vida tiram o peso da idade. O idoso que nunca aprendeu a ler, consegue, entretanto, fazer boas leituras da vida. Nos olhos está uma esperança de quem não desistiu da vida, mesmo quando se faz amarga. EMILENE LOPES THAYNÁ BRANDASZ


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RELIGIÃO .11

Compromisso divino Número de igrejas neopentecostais cresce no Vicentina, enquanto opiniões de fiéis sobre o dízimo diverge

J

aime está cheio de energia. São 10h da manhã de um sábado ensolarado no bairro Vicentina, e os bancos daquilo que em breve será uma igreja evangélica já estão sendo pintados por esse senhor de aperto de mão suave e fala mansa. Junto de Jaime Mattos, 54 anos, estão outros homens com a mesma faixa etária, que também estão trabalhando voluntariamente na construção de mais um templo da Assembleia de Deus no Vicentina. “Nós estamos passando por um momento de mudança no mundo”, diz o convicto Jaime. De fato, no que se refere ao crescimento das igrejas neopentecostais no Brasil, ele está certo: dados do IBGE de 2012 mostram que o número de evangélicos no país subiu mais de 60% nos últimos 10 anos. Com uma relação mais próxima estabelecida entre as “graças” conquistadas (como melhorias das condições sociais) e a contribuição financeira por parte dos fiéis, estabelecida por algumas religiões protestantes, muito se debate nas universidades e na mídia sobre o impacto social causado pelo aumento das igrejas neopentecostais no país. O novo templo da Assembleia de Deus no Vicentina tem previsão de inauguração para o fim do ano. Jaime e os outros fiéis trabalham apenas aos fins de semana nos retoques do novo templo, que está sendo erguido às margens do arroio, entre as duas ocupações que chegaram recentemente ao local. “Sou fiel há mais de 20 anos”, brada, orgulhoso, Jaime, que afirma que a sua vida é “abençoada pela graça de Deus”. O senhor de cabelos brancos não relaciona diretamente a felicidade de sua vida com o dízimo, visão compartilhada por seus “irmãos” da Assembleia de Deus. Mas isto não chega a ser um consenso entre os fiéis de igrejas neopentecostais. Membro da igreja“Avivamento para as nações”há mais de quatro anos, a dona de casa Simone Pereira, 35 anos, garante que o dízimo é “bíblico”. Ela afirma que a sua vida e a de sua família tiveram uma mudança drástica depois da conversão à religião: “Não foi nem uma mudança de 360°, foi de 380° . Eu tinha uma família desestruturada, mas desde que voltamos para a igreja tudo está melhor”. Simone diz que membros de sua família não estavam participando dos cultos antes da conversão,

Jaime (à esquerda) descansa depois de pintar os bancos do novo templo da Assembleia de Deus. Evaldir e Janete exibem os pães que chamam a atenção no Vicentina mas que agora, “graças a Deus”, deixaram de frequentar outras religiões. Bruna Silveira, 19 anos, caminha pelas ruas da Vicentina com o pequeno Victor, de pouco mais de um ano, no colo. Ela acredita, assim como Simone, que as contribuições financeiras tem relação direta com as “graças” obtidas em vida. “Se tu doar, está agradecendo a Deus tudo o que tem”, afirma, sem pestanejar. Bruna participa da Igreja “Cristo é Vida” há quatro anos, e, apesar da opinião simpática às doações, não se declara dizimista. O cheiro das cucas e dos pães caseiros toma conta da garagem de Evaldir e Janete da Cruz. As iguarias, expostas no portão de casa, chamam a atenção na rua Manoel dos Passos Figuerôa, quase esquina com a Salseiro. De antemão, o católico Evaldir estabelece sua relação com o dízimo: “Se fosse como estava no antigo testamento, que dizia que o dízimo era obrigatório e quem não pagasse não alcançaria o paraíso, não seria bom ”. Os católicos ainda são maioria no Brasil: mais de 64% da população se declara fiel à religião do Vaticano. Seu Evaldir não consegue esconder a sua incomodação com a igreja evangélica neopentecostal recém construída em frente à sua casa. Apesar do cuidado para não ofender os vizinhos, ele afirma não concordar com a maneira como as igrejas neopentecostais que conhece impõem a necessidade de doação, chegando a citar os famigerados “10%” – porcentagem de rendimentos exigida por algumas igrejas aos seus fiéis para o atingimento das graças desejadas.

Apesar da posição firme a respeito da relação das igrejas neopentecostais com o dinheiro, Evaldir também se declara dizimista: “Acredito que se você doa com amor, sem sentir remorso, tem mais valor”. FENÔMENO DAS NEOPENTECOSTAIS O sociólogo e professor da USP Antônio Flávio Pierucci, especialista em religião, analisou os últimos dados coletados pelo IBGE e concluiu que a maior taxa de crescimento vem se dando com as igrejas que pregam a “teologia da prosperidade”, que é como ficou conhecida a forma de pregação e ação de boa parte das igrejas neopentecostais. Pierucci constata que o crescimento da importância do dinheiro

nas religiões é notória nesta nova fase pelo qual o país passa: “É a primeira vez na história que uma igreja valoriza o dinheiro a tal ponto que o fato de seus líderes exibirem mansões é visto como sinal positivo”, diz Pierucci. “Também é a primeira igreja onde os fiéis são incentivados a cobrar de Deus, já que ‘eu dei tudo o que tinha, agora você terá de me ajudar’.” Com essa pregação, os pastores“ganharam o direito”, também inédito, de transformar doações de fiéis em mansões para si próprios”. Com o crescimento parco do catolicismo, que cresceu 2,5% entre 1991 e 2000, quase nada em relação aos 681,5% atestados pela Igreja Universal, por exemplo, o Brasil caminha para o que Pierucci chama de uma“cara pentecostal”: mais conservadora nos posicio-

namentos morais, e voltada à ascensão social e econômica. Independente da posição de críticos às religiões neopentecostais, o fato é que os fiéis dessas religiões estão crescendo cada vez mais, se organizando e elegendo representantes para tomar decisões importantes para os rumos do país – como atesta o crescimento da “bancada evangélica” no congresso nacional, que cresceu 14% em relação à eleição anterior, elegendo 69 deputados federais, de um total de 513. Gostando ou não, não podemos negar que a “sociedade pentecostal” chegou, e ainda deve permanecer por um bom tempo tendo influência no país. PEDRO KOBIELSKI NATÁLIA COLLOR


12. COMUNIDADE

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Por trás das cordas Manuel alegra as tardes de amigos e vizinhos com sua música

A

os 81 anos, sem uma audição perfeita ou timidez, seu Manuel não perde a pose e arrisca suas antigas músicas gaúchas em um violão com cordas quase estouradas devido à idade. Emocionado, fala com orgulho sobre os filhos e sua história, que fez com que o músico aprendesse a lidar com as dificuldades da vida. Calmo e com certo receio de se aproximar, seu Manuel Pedro de Mello nos convida para entrar e sentar. “Se eu não morrer até segunda-feira, terei 82 anos”, sorriu o idoso. Locomovia-se com dificuldade, tocava acordes a todo volume e cantarolava antigas músicas gaúchas do seu repertório de quando ainda tocava em dupla pelos cantos de Santa Cruz. Morador há 30 anos do bairro Vicentina, já percorreu diversas cidades do Rio Grande do Sul, mas foi em São Leopoldo onde guardou as malas e resolveu se fixar. Por muitos anos, tocou o instrumento na companhia do seu primo, época em que a música era parte do seu ganha-pão. Manuel não economiza palavras para relembrar os tempos em que

a música estava mais presente do que nunca no seu dia a dia. “Sinto saudades desses dias, tenho ótimas lembranças”, relata. Mesmo com dificuldade para ouvir, seu Manuel tocou e cantou por volta de 15 minutos até resolver que seria o momento para contar sua história. Ganhou um cavaquinho ainda quando pequeno, tinha apenas seis anos de idade. Com o passar do tempo,

foi se interessando por demais instrumentos e aprendeu a tocar violão e gaita. Quando completou 19 anos, sua mãe faleceu e, na época, o luto era algo que simbolizava muito além da tristeza. O músico vendeu todos seus instrumentos e ficou por anos sem tocar, até começar a trabalhar em uma plantação de fumo. “Ficava horas e horas sem ter o que fazer enquanto monitorava

as plantações, nesses momentos tocava violão para Deus”, conta. Casou-se em julho de 1956 e mudou-se para a costa do Uruguai em 1965, onde passou muito trabalho. “Lembro-me de enchentes em que carreguei meus filhos no pescoço até a escola para que pudessem estudar”, relata o aposentado. Devido a uma cirurgia complicada que sua mulher necessitava,

Manuel precisou vender tudo e vir para o bairro onde está até hoje e de onde não pretende sair. A esposa de Manuel morreu tempo depois de chegar ao Brasil, mas ele não se deixou vencer pela tristeza. Logo, restabeleceu-se e voltou ao seu trabalho e à rotina normal. “Quando vejo, estou com Deus”, afirma ao lembrar que hoje mora sozinho e seus filhos apenas o visitam no fim do dia. “Benção pai”, interrompe Maria de Mello, sua filha mais nova. Manuel sorri contente e conta que seus filhos sempre estão em volta e que o fato de todos morarem no bairro ajuda para que estejam sempre unidos e felizes. “Gosto muito daqui o pessoal é muito bom para mim”, afirmava constantemente. MARIA EDUARDA DE LIMA TIAGO ASSIS

Ao som do antigo violão, Manuel conta sua história de vida

A goleada dos pequenos cidadãos A uma quadra de distância, já se escutavam os gritos de euforia e diversão. No local, centenas de crianças e adolescentes estavam entre os que chutavam a bola em busca de gols e os que torciam pela equipe preferida. Até o sol colaborou para uma linda manhã naquele sábado, dia 21 de agosto de 2015, na Copa de Futsal do grupo de Juniores e Adolescentes (JUAD), ocorrida no Parque do Trabalhador, no bairro Vicentina. O JUAD, localizado na Igreja do Ministério Batista Cristo é a Vida (Rua da Palma, 322 - Vicentina), realiza a Copa de Futsal anualmente. Além de oferecer diversas atividades de socialização e educação para crianças e adolescentes, em todos os sábados à tarde e sem qualquer custo, o grupo tem como missão formar bons cidadãos para a sociedade. Dênis Silveira, de 17 anos, que aguardava o horário em que sua equipe entraria em quadra, contou que, desde os 12

Jovens participam de Copa de Futsal do JUAD anos, faz parte da base de São Leopoldo do JUAD. Em uma das atividades oferecidas pela organização, o garoto descobriu a sua paixão pela automação. Atualmente, ele está finalizando o curso técnico em Automação Industrial, no Centro Tecnológico de Mecânica e Precisão (Cetemp), em São Leopoldo. Além disso, ele realizou um curso de formação para líderes e estagia no JUAD. “Já fiz muitas amizades no grupo, tanto na base de São Leopoldo, quanto nas outras que visitei”, comentou. Durante a Copa de Futsal, bolo, cachorro quente e outras gostosuras eram vendidos para alimentar os jogadores e a plateia. O dedicado trabalho é realizado pelo grupo de Pais e Amigos do JUAD, que presta apoio à

organização. “O suporte que nós damos é muito importante, porque deixa os líderes com mais tempo para fazer as atividades com as crianças”, explicou Luiz Henicka, um dos pais que faz parte do grupo. Réges Wickert assistia aos jogos da Copa de Futsal com a sua filha caçula no colo. Além dela, ele tem mais duas meninas, que participavam do campeonato. Todas integram o JUAD, cada

uma no grupo direcionado para a sua idade: Letícia, de 8 anos, está no Júnior 1; Marília, de 12 anos, está no Júnior 2; Gabrielle, de 15 anos, está no Adolescente. “O JUAD é muito bom para as minhas filhas, porque faz com que elas se enturmem com outras crianças e ensina os princípios de Deus”, declarou o pai. Ao longo dos jogos, os times permaneciam animados. Não é para menos, afinal, a torcida não

parava de cantar, batucar instrumentos e demonstrar apoio às equipes. Um grupo de meninas que sacudiam pompons contou que veio da base do JUAD de Lomba Grande, em Novo Hamburgo, especialmente para acompanhar o time delas. O torneio anual cria uma interação entre jovens de vários locais.“Só aqui, na Copa de Futsal, temos 10 bases participando, com cerca de 400 crianças e adolescentes”, afirmou a pastora Cássia Pires, chefe funcional do JUAD. No total, há diversas bases em sete países: África do Sul, Angola, Bolívia, Brasil, Moçambique, Papua Nova Guiné e Paraguai. Para a pastora, esse contato social, realizado pelo JUAD, por meio de aulas, brincadeiras e campeonatos, como a Copa de Futsal, acaba resgatando muitos jovens, que têm a oportunidade de tornarem-se bons cidadãos. JONARA CORDOVA TATIANE DEGE


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO / 2015 |

INFÂNCIA .13

Uma quadra chamada rua Devido à falta de praças e de quadras para brincarem, crianças driblam entre os veículos para se divertirem

E

ntre os números 311 e 354, na Rua Afonso Linck, fica a quadra de futebol oficial das crianças. Não pense que se trata de uma praça ou um terreno com um campinho. A quadra onde a gurizada brinca e se diverte é a rua mesmo. Os cordões delimitam o campo e as goleiras são improvisadas com dois pares de chinelo. Entre um passe e outro, crianças jogam futebol e driblam os adversários do outro time e, de vez em quando, também os veículos que por ali passam. O grupo, de quase 10 amigos, joga de segunda a segunda, nos horários em que não estão em aula. As partidas começam cedo e sem hora para terminar. Alguém traz a bola e eles se dividem. Alguns de tênis, outros de chinelo, e uns de pés descalços mesmo, porque alguém tem de ceder os calçados para as goleiras. Três para cada lado e o jogo começa. Os que não estão jogando fazem a torcida e avisam quando um carro, uma moto ou um caminhão se aproxima. “Olha o carro”, alguém grita. O jogo para momentaneamente e logo recomeça. Um deles cai e rala o joelho, parece não se importar e a partida continua. As regras do jogo eles que criaram. Os times são formados de, no máximo, quatro pessoas, porque “cinco já é demais”. Sem tempo para acabar. Ganha o time que fizer três gols primeiro. Passou das goleiras é fora. Não vale mão, a não ser que você seja o goleiro. Os times são mistos, meninos e meninas jogam juntos. “Todo mundo vem aqui para brincar. A gente tem medo dos carros ou de quebrar alguma coisa com a bola, mas por aqui não tem uma praça e o parque é muito longe”, comenta Rayane, 11 anos. O Parque do Trabalhador, que tem campo de futebol, fica a dois quilômetros de distância. São mais de 20 minutos de caminhada “e ainda podemos chegar lá e a quadra estar lotada. Não vale a pena ir”, reclama Amanda, 11 anos. Além da distância, as meninas têm medo de serem atacadas no local. “Estão falando que algumas meninas foram atacadas lá no bosque que fica no parque”, relata Amanda. “Queríamos fazer um campinho ali na‘divisa’, mas jogam muito lixo, não tem como fazer ou brincar lá”, conta Ronald, 12 anos. A divisa é como eles chamam a área verde que fica logo após as casas, mas que é usada por muitos como depósito de lixo.

Amigos da Rua Afonso Link improvisam a quadra que eles não têm para jogar futebol

trompete), dança, artesanato e teatro. Além delas, há outros projetos, como o contraturno integral, em que crianças e adolescentes têm a oportunidade de desfrutar de diferentes atividades desenvolvidas por educadores. O Instituto Lenon está localizado na Rua Alfredo Gerhardt, 750, no bairro São Miguel. OUTRAS BRINCADEIRAS

PERIGOS DA RUA Próximoda“quadra”ondejogam, a rua faz uma curva, o que dificulta para ver se há veículos se aproximando. Há bastante movimento na estrada, e, às vezes, as crianças não conseguem sair totalmente da rua. “Uma vez, um carro bateu em um amigo meu e ele voou por cima do carro, mas não se machucou muito. Mesmo assim, a gente cuida”, conta Felipe, 11 anos. Erick, 6 anos, o mais novo do grupo, tem medo dos carros, mas não deixa de se divertir.“Os carros passam bem pertinho, mas nós somos rápidos”, conta. O menino diz querer ser bombeiro. Pelo menos, coragem o pequeno já tem. Além dos carros e motos, as crianças precisam ter outros cuidados. Perto dali, há bueiros que

estão abertos. “Temos que cuidar para a bola não cair lá, senão já era. Já perdemos uma bola novinha”, relata Estevan, 12 anos. O bueiro foi aberto na última enchente que aconteceu, e ainda não o fecharam. Felipe conta que eles tinham um campinho ali perto, mas pegaram as goleiras para fazer um galinheiro. Eles não jogam mais no antigo terreno, porque ele fica de frente para o “valão”, e a facilidade de a bola cair lá os fez voltar para a rua. “Faz um tempo que uma criança se afogou ali, e também tem muitas cobras e ratos”, comenta Amanda. BRINCADEIRA LEVADA A SÉRIO Estevan e Ronald levam o esporte a sério também. Todas as

terças e quintas os dois vão até o Instituto Lenon Joel pela Paz para treinar futebol e aprender mais sobre o esporte. “É bem legal ir lá. Ganhamos chuteira e tudo para poder treinar”, conta Estevan. O Instituto Lenon é uma ONG que funciona desde 2006 e trabalha para proporcionar à comunidade dos bairros Vicentina e São Miguel um espaço de promoção e discussão da cultura de paz através do esporte, cultura e lazer. Colabora para a diminuição da violência, formando crianças e adolescentes cientes de seus direitos e deveres como cidadãos, promotores de paz e protagonistas de suas histórias. Entre as oficinas realizadas pelo Instituto estão a de futebol, música (bateria, flauta, violão, teclado, baixo, guitarra, sax e

Além do futebol, o grupo também gosta de brincar de outras coisas, como esconde-esconde, pega-pega e vôlei. “Vôlei jogamos na outra rua, porque passa menos carros e vem mais gente brincar”, relata Gabriel, 11 anos. Skate é outro esporte praticado, mas não é a preferência. Um pedido que é unânime entre eles é: “Queremos uma praça para brincar ou um campo para poder jogar bola”. Mas claro que alguns pensam grande.“Bem que podíamos ter um parque de diversão aqui, mas isso já é pedir demais”, brincou Ronald. Mesmo com todos os riscos que correm, as crianças precisam brincar, pois é por meio de brincadeiras que elas interagem com o mundo ao seu redor. São expressões desse mundo. Um mundo onde joelhos ralados e alguns machucados são como medalhas que relembram grandes partidas, até mesmo, daquelas que aconteceram na rua. ROBERTO CALONI MILENA RIBOLI


14. COTIDIANO

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Onde mora a felicidade Após uma longa jornada de trabalho, recicladora encontra conforto no universo doméstico

O

despertador toca fielmente de segunda a sexta, às 5h da manhã, quando a recicladora Magéria Alves, 57 anos, começa seu processo“de embelezamento”, como costuma dizer, para, só mais tarde, sair de casa em direção à van escolar responsável por levar os 13 funcionários até o destino final. Eles assumem o seu posto às 8h. Orgulhosa, a moradora conta que todos os funcionários pagam INSS mensalmente e que os lucros gerados durante o mês são divididos de forma igual entre todos. Embora ela diz não gostar de sair de casa, nem mesmo para tomar café com a família, não dispensa um bom baile da terceira idade nos sábados à noite. Incansável, a moradora cuida do marido, que sofreu um acidente

vascular cerebral (AVC) há dois anos. O casal teve três filhos, uma das filhas ainda mora com os pais e os outros dois moram com suas famílias no mesmo bairro. Magéria recorda com orgulho que, antes de trabalhar como

coordenadora de uma Associação de Recicladores, localizada fora do Vicentina, tinha uma carreta, que puxava pelas ruas do bairro, onde recolhia material para reciclagem. Trabalhar é algo que começou cedo na vida dela. Com

12 anos já lavava roupa para os vizinhos e, em troca, ganhava banana e pão, para ajudar no sustento de casa. Amoradoradesorrisosimpático, que balança o corpo no portão de casa ao som das músicas dos

Com um olhar curioso, Magéria Alves acompanha a movimentação da rua

vizinhos, tem uma rotina igual à de qualquer outra pessoa que acorda cedo para trabalhar e, no fim do dia, assume as tarefas de dona de casa. Vendo o otimismo que a Magéria transparece, é difícil imaginar que viveu uma forte depressão. Já se foram 40 anos residindo no Vicentina e mais de 10 de recicladora. Sua casa é um reflexo de sua profissão e de tantas outras coisas que aprendeu com a vida. Ela guarda nos fundos de casa os materiais recolhidos. No canteiro podemos ver os pés de radite, que consome nas refeições e o chá de poejo, que ela diz “ser bom para curar qualquer dor de barriga”. O canto dos pássaros de espécies como Canário Belga, Calafati e um exemplar raro de Azulão cria uma sinfonia que contrasta com o som dos carros na rua. Seguidamente ela ocupa seu lugar na porta de casa e, com um olhar curioso, acompanha a circulação de pessoas pelo bairro e o movimento da rua. Cabelos brancos presos com uma borrachinha preta de penas brancas dão um charme inigualável. Os braços escorados na cerca de madeira e os dedos repletos de anéis ajudam a revelar o prazer da moradora, que contempla o movimento da rua. Ela gosta de seu bairro, de sua rua, de sua vida. LUAN PAZZINI CLÁUDIA PAES

Vó do Litro: dos jardins para as ruas Em uma ensolarada manhã de sábado, enquanto muitos ainda não haviam acordado, nas andanças pelas ruas do bairro Vicentina, estava uma senhora puxando um carrinho, carregado de papelão e garrafas PET: “Me chamem de Vó do Litro, meu nome verdadeiro eu não vou falar, as crianças me conhecem assim”, apresentou-se. Um tanto quanto impaciente, parou por alguns minutos, pediu para que não demorássemos com as perguntas, queria continuar sua caminhada. “Eu saio duas vezes por semana para juntar papelão e garrafas PET, faço isso para passar meu tempo”, falou a catadora. Ao contrário da rotina da maioria dos catadores de material reciclável, a Vó do Litro não tem o trabalho de arrecadação nas ruas como sua única renda. Aposentada há 20 anos, a catadora passou parte da vida trabalhando como jardineira.“Eu era jardineira

Material arrecadado nas ruas ajuda na renda profissional, mas comecei a sentir muitas dores nos braços. Quando vim para São Leopoldo, comecei a trabalhar como catadora”, lembra a idosa, que diz ter um acréscimo de 200 reais mensais como complemento da renda. A cada 15 dias, um senhor proprietário de um depósito de recicláveis vai até a casa da catadora buscar

o material arrecadado em suas andanças pelo Vicentina. Com um sorriso no rosto, Vó do Litro diz que a opção pela coleta de materiais recicláveis se deu devido à falta de o que fazer. Ao mesmo tempo que ela consegue aumentar a renda, utiliza o trabalho como uma atividade física.

Sob a aba de um chapéu de palha, que a Vó do Litro usa para se proteger do sol, esconde-se um olhar distante. Mesmo aos 73 anos, ela fala da vida com entusiasmo. “Sou feliz, tenho uma vila que me ajuda, eu caminho duas quadras e arrecado tudo isso”, diz a idosa, apontando para o carrinho cheio. Às vésperas de completar mais um ano de vida, ela conta que gostaria de ganhar um buquê de flores em seu aniversário.“Amanhã é meu aniversário, gostaria de ganhar flores, mas é difícil, as coisas estão muito difíceis hoje em dia”, fala a catadora. Uma rosa artificial enfeita o carrinho que ela usa para transportar o que arrecada. Uma toalha para secar o suor, uma garrafa de água e uma faca usada para descascar uma fruta. Estes são os três itens indispensáveis no dia de trabalho da Vó do Litro. “Como eu sempre vou às mesmas casas, porque são as

pessoas que guardam o material pra mim, eles às vezes me dão uma fruta, daí eu uso a minha faquinha para descascar e já como”, conta a catadora. SOLIDÃO AVó do Litro rebate a impressão de solidão dos catadores de papel. Mãe de três filhos - os netos ela já perdeu a conta de quantos tem -, a moradora da Vicentina mora sozinha em uma das casas do bairro onde diz ser feliz. “Eu me separei muito cedo, ele (ex-marido) não gostava de trabalhar. Hoje eu trabalho e moro com Deus, tem coisa melhor que isso?”, brinca. Com essa pergunta, a entrevistada levanta a cabeça, coloca as mãos sobre o carrinho, despede-se e segue em frente. DIJAIR BRILHANTES MATHEUS BECK


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | SETEMBRO / 2015 |

EMPREENDEDORISMO .15

Na toca do coelho Lanchonete é opção para boa comida e cerveja sempre gelada

E

m 1865 Lewis Carroll publicou a história de uma menina chamada Alice, que, após cair em uma toca de coelho, descobriu um mundo fantástico e cheio de aventuras. Mais recentemente, há dois anos, o bairro Vicentina também topou com a Toca do Coelho. Dessa vez sem fantasias, mas sim com lanches, bebidas e um espaço para relaxar depois de um dia de trabalho. Patricia Elaine Dias, dona do empreendimento, conta que tudo começou quando ela quis deixar seu trabalho como secretária para ficar em casa e cuidar de seus dois filhos. “Primeiro vendia sacolé. Depois comprei o freezer grande e pensei que tinha que ter mais coisas ali, então comecei a vender sorvete”, relata. Com o sucesso, ela e a família resolveram expandir os negócios e acrescentaram lanches - xis, cachorro quente e batata frita - no cardápio. O nome foi inspirado no coelho que a filha de Patricia, Vanessa, tinha, a Molly. O bichinho de estimação vivia no pátio da família e chamava a atenção dos que passavam pela rua. A ideia de abrir a Toca do Coelho também surgiu da necessidade de um local para comer lanches no bairro.“Não tem muita opção aqui. Quando queríamos comer algo diferente, tínhamos

Patricia espera expandir o negócio em um futuro próximo

que ir para a Campina”, afirma. Na época, o maior desafio de Patricia foi aprender a fazer os lanches, além de conhecer todos os detalhes sobre fornecedores e relacionamentos com clientes. Nos primeiros meses, o estabelecimento foi divulgado com panfletos. Hoje, sua reputação de ter uma cerveja sempre bem gelada e um bom atendimento já atrai a clientela sem precisar fazer muita propaganda. A Toca do Coelho está aberta de segunda a segunda, servindo

lanches a partir das 18h até às 23h e permitiu à Patricia, que mora no bairro há 15 anos, conhecer melhor seus vizinhos. “Antes eu não conhecia direito nem as pessoas que moravam na minha rua. Hoje é diferente”, comenta. Para não ter desculpas para o famoso “fiado”, Patricia investiu em uma “Moderninha”, uma máquina de cartão de débito e crédito que não cobra aluguel e não tem taxa de adesão. O investimento tem relação com os planos para o

futuro: “Queremos reformar aqui. Com a crise ainda não deu, mas até o fim do ano pretendemos ampliar a lanchonete e registrá-la”, conta. Com isso feito, o plano é expandir o cardápio também. Dentre as novas opções de lanche, Patricia garante que vai ter pastel, sim! No bairro, não muito distante da Toca do Coelho, há outros estabelecimentos para curtir com os amigos, como o “Bar do Pedro”, que existe há seis anos. Pedro Chardosi Damasio se apo-

sentou e resolveu ter seu próprio negócio, juntamente com sua esposa Enedina. Sua motivação para abrir o bar transcende a questão financeira. Segundo ele, seu empreendimento é uma forma de se entreter, pois seus clientes são, em sua grande maioria, seus amigos. Ali, o fiado até é permitido, pois Pedro conta que nunca levou um calote. “É tudo gente boa!”, garante. NATÁLIA SCHOLZ KHAEL SANTOS

Uma cabeleireira com força e fé Quem caminha na rua Manoel dos Passos Figueroa, no bairro Vicentina, na cidade de São Leopoldo, pode se deparar com um estabelecimento laranja escondido atrás das árvores, onde funciona um salão de cabeleireira no número 748. É ali que Dinelsi da Silva, 53 anos, passa os dias, há quase 25 anos, cortando o cabelo de vizinhos e amigos. Moradora do bairro há 35 anos, natural de São Martin no interior do estado, ela conta que veio jovem para a região metropolitana com o objetivo de concluir os estudos, algo que infelizmente não ocorreu, pois teve de trabalhar para se sustentar. Em seu salão de beleza, existem muitas imagens de figuras religiosas como os santinhos do Padre Reus e de Nossa Senhora Aparecida no espelho. Ao falar de sua religiosidade, Dinelsi enche os olhos de lágrima e atribui a Deus muitas vitórias pessoais em sua vida.

Dinelsi toma seu chimarrão esperando os clientes

Ela fala que costuma atender pessoas de todas as idades, criando um carinho especial com os clientes mais velhos, que ela muitas vezes atende a domicilio. Apesar das dificuldades, Dinelsi cobra apenas dez reais pelo corte de cabelo, um

valor baixo comparado aos outros salões de beleza da região metropolitana . Mas segundo ela, é o preço que acha justo. Certa vez uma cliente não tinha como lhe pagar em dinheiro e a pagava pagou em quantias de chuchu. “Depois

que essa cliente se aposentou, veio toda orgulhosa trazendo o dinheirinho para pagar o corte”, lembra emocionada e conclui, “é por essas coisas que eu acho que não custa nada ajudar, para cortar cabelo eu só preciso das minhas mãos, uma tesoura e mais nada”. Antes de ser cabeleireira, Dinelsi trabalhavatambémcomomanicure, mas por recomendações médicas teve de abandonar o trabalho com as unhas para não prejudicar sua coluna e se dedicar apenas ao corte de cabelo. Dinelsi é mãe de dois filhos, um é Jonatahn, de 23 anos, que é carpinteiro e outro rapaz, chamado Douglas, mas que não mora mais com eles. Nos fundos do pátio ela mora junto de seu filho mais novo, na casa que foi construída por seu marido, que morreu vítima de um AVC há sete anos. Écomumveracabeleireirasentada emsuacadeiradepraiaacompanhada

de sua cuia de chimarrão em frente ao salão, sempre na presença de uma amiga ou vizinha. Foi dali que ela viu a Vicentina se transformar, ganhar asfaltoediversasoutrascasas e comércios . Segundo ela, quando chegou no bairro muita coisa era diferente, mas com o passar dos anos foi ganhando forma. Ao ser questionada se ela pensa em se mudar daVicentina, a resposta énegativaeelaaindacompleta“Aqui eu tenho meus amigos, meus vizinhos que eu considero uma família, não me imagino sem eles na minha vida”. A simplicidade dos gestos de Dinelsi não parece ser afetada pelos problemas que a vida lhe impõe. E entre um corte de cabelo e outro, entre uma visita de uma amiga e outra, Dinelsi da Silva vai levando a vida, tranquila e calma, como uma manhã de domingo ensolarada. RHIAN BERGHETTI FERNANDA SALLA


ENFOQUE VICENTINA OLHAR DE REPÓRTER

VITOR BRANDÁO

AMANDA CUNHA

VITOR BRANDÁO

A

SÃO LEOPOLDO (RS) SETEMBRO DE 2015

EDIÇÃO

7

EDUARDO BRANDELLI

Primeiros passos

o caminhar pelo Vicentinaàprocura deumapautapara a sétima edição do Enfoque, imaginei que a principal dificuldade seria encontrarumahistóriainédita e interessante. Não foi. Com uma breve troca de palavras, os membros da comunidade prontamente revelaram suas inquietações e aspirações: o que gera indignação no dia a dia e o que, apesar de qualquer coisa, os prende ao bairro. Não demorou para que essa disposição em nos ajudar acabasse se refletindo nas histórias contadas pelos moradores. O maior desafio,

portanto, foi traduzir em palavras o que percebemos ali: generosidadeesolidariedade unem o Vicentina quando a necessidade aparece. Mais do que exercitar a técnicaeateoriaestudadasao longo do curso, escrever para oVicentinaétentarcumprir a função social do jornalismo. Não podemos nem temos atribuição para transformar a comunidade, mas talvez possamos contribuir para que ela se torne ainda mais engajadaemtornodaprópria causa.Documentarissoéum pequenopasso,mastodacaminhadaprecisadeuminício.

AMANDA CUNHA

EDUARDO BRANDELLI

DANIEL STEIN ROHR

OLHAR DE FOTÓGRAFO

VITOR BRANDÁO

Ao encontro do inesperado

C ÉDERSON SILVA

VITOR BRANDÁO

onfesso que, no começo, eu não estava muito animadopararealizara saída de campo no sábado, mas, no final, a experiência acabou sendo sensacional e mudou completamente minha visão. Além de proporcionar conhecimentos práticos de como ir buscar a informação, apurar e construir a reportagem, a atividade também trouxe um olhar diferente sobre o jornalismo cidadão e sua importância. Ter contato com histórias de vida emocionantes, como foi o caso da pauta do meu grupo, reafirmou

minha vontade de trabalhar nessa área. Jornalismo não é apenas relatar fatos que acontecem no dia a dia, mas é também saber ver, ouvir e contar histórias que continuam vivas apenas na memória das pessoas de uma forma fidedigna. Acredito também que sair pelas ruas do Vicentina e conversar com pessoas que eu nunca tinha visto, em um lugar que eu nunca tinha ouvido falar, foi apenas uma pequena “pincelada” de algumas experiências que o jornalismo pode proporcionar.

EDUARDO BRANDELLI

VITOR BRANDÁO

PEDRO VIERO

VITOR BRANDÁO

AMANDA CUNHA


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