Enfoque Vicentina 8

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Os problemas do lixo nas ruas Página 6

NICOLLE FRAPICCINI

BOLÍVAR GOMES

LAURA GALLAS

DESCARTE IRREGULAR

MAL-ESTAR

Alterações climáticas e umidade afetam saúde dos moradores. Página 9

DIVERSIDADE

Cultura cigana presente no bairro Página 14

ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO / RS OUTUBRO DE 2015

APESAR DA CHUVA

CAROLINA ZENI

A INFÂNCIA DE CRIANÇAS QUE CRESCEM EM AMBIENTES ATINGIDOS POR ENCHENTES. PÁGINA 12

EDIÇÃO

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2. EDITORIAL

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Apesar do mau tempo, repórteres foram às ruas buscar histórias

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Debaixo de chuva ou de sol

esde o começo do curso de Jornalismo os alunos são alertados sobre as peculiaridades de ser repórter. “Quem não gostar de ler, escrever e não quer se sujar, está no curso errado”, já falaram muitos professores. Ao nos depararmos com bons repórteres, ouvimos os conselhos de que jornalista precisa ser “pé no barro” e que devemos ir atrás das boas histórias nos lugares mais difíceis. Para alguns estudantes isso é superado logo nas primeiras reportagens do curso, mas para os demais, a oportunidade

só aparece mais tarde. Essa é a principal questão por trás desta edição do Enfoque Vicentina. O jornal precisava ser feito e todos tiveram de buscar informações e fazer entrevistas mesmo debaixo de chuva. Alguns repórteres e fotógrafos não se importaram, mas para outros foi um desafio. A quantidade de barro que havia nos calçados no fim do tempo destinado para percorrer o bairro foi totalmente proporcional à quantidade de histórias interessantes que foram encontradas. Passado o primeiro desconforto da chuva, os estudantes focaram-

se em observar a comunidade e foram atrás de moradores para ouvir como chuva é o bairro Vicentina em tempos de chuva, tema único desta edição. Nesse momento, mais um aprendizado pôde ser adquirido: é preciso ter sensibilidade. Infelizmente, as chuvas provocaram enchentes na região e diversos problemas vieram à tona. Assim como não é possível realizar as matérias distante dos lugares, é quase impossível não se comover com a vida de quem enfrenta as dificuldades causadas pelos alagamentos. Diversos

colegas emocionaram-se com os relatos de moradores, algo que gera mais disposição para as nossa principal missão: ouvir as pessoas e dar a suas histórias visibilidade perante a sociedade. A experiência de fazer esse jornal foi muito enriquecedora. Nesta e em todas as outras edições, o objetivo maior foi atingido. Escrever cidadania. Mostrar as histórias do Vicentina, contadas por quem faz a vida do bairro acontecer: os moradores. Percorremos ruas, conhecemos pessoas incríveis, que nos contaram suas vidas, suas alegrias, seus

dilemas, suas demandas. Tudo isso, relacionamos com depoimentos de especialistas, fazendo alertas e dando dicas sobre os serviços públicos disponíveis. Enfim, esperamos que todos que tiveram seus relatos retratados ou não nessas páginas saibam que não estão sozinhos. Sempre haverá uma forma de resolver um problema, encontrar caminhos e seguir em frente. Que venham mais dias de sol. ADRIANA CORRÊA FABIANO SCHECK FERRAZ TIAGO ASSIS

ERRAMOS – Na capa da edição 6, de junho de 2015, a foto principal não foi creditada. A imagem foi produzida pela aluna Rafaela Kich.

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Avenida Unisinos, 950 – Cristo Rei São Leopoldo – RS Cep: 93022 000 – A/C Coordenação do Curso de Jornalismo

DATAS DE CIRCULAÇÃO 7

19 / 9 / 2015

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17 / 10 / 2015

QUEM FAZ O JORNAL O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade do bairro Vicentina, em São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é publicado a cada dois meses e distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo. EDIÇÃO E REPORTAGEM Disciplina Jornalismo Cidadão Orientação Sonia Montaño Edição de textos Fabiano Scheck Ferraz Adriana Corrêa Pedro Kobielski Nathália Mendes Reportagem Adriana Corrêa Daniel Stein Rohr Dijair Brilhantes Emilene Lopes Fabiano Scheck Ferraz Jéssica Beltrame Jonara Cordova Luan Pazzini

Maria Eduarda de Lima Mariana Blauth Nathália Mendes Natália Scholz Pâmela Oliveira Pedro Kobielski Rafaela Amaral Rhian Berghetti Roberto Caloni Tuanny Prado FOTOGRAFIA Disciplina Fotojornalismo Orientação Flávio Dutra Fotos Bolívar Gomes Carolina Zeni

Cláudia Paes Émerson da Costa Fernanda Salla Josuel Maschke Khael Santos Laura Gallas Leonardo Ozório Lucas Weber Márcia Ávila Matheus Beck Matheus Vargas Milena Riboli Natália Collor Nicole Cavallin Nicolle Frapiccini Pedro Viero Tatiana Dege Thayná Bandasz Tiago Assis Vitor Brandão

ARTE Realização Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) / Unisinos São Leopoldo Projeto gráfico e arte-finalização Marcelo Garcia Diagramação Gabriele Menezes IMPRESSÃO Realização Grupo RBS Tiragem 1.000 exemplares

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo (RS). Cep: 93022 000. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Vinícius Souza. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.


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INSTABILIDADE .3

Cadê o sinal que estava aqui? Em dias de chuva, qualidade dos serviços de telecomunicação deixa a desejar

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e as nuvens carregadas preveem chuva para quem está na rua, dentro de casa, é o computador quem dá o alerta: conexão perdida, vem instabilidade por aí. Em dias de aguaceiro, bendito é o sinal de internet que consegue se manter sem oscilações. Nem sempre adianta reiniciar o sistema (ou dar tapinha no modem ou roteador). A água cai no lado de fora e o que escorrega é a qualidade dos serviços de telecomunicação no interior das residências. O comerciante Alex Sandro da Silva, 40, conhece a novela. Há cerca de dois anos, mantém o plano básico de internet banda larga da Blue Life e, recentemente, aderiu a um dos pacotes de TV por satélite da Sky. Se chove, volta e meia fica sem os dois serviços. “É complicado quando cai o sinal, só nos resta esperar que retorne em seguida”, comenta o morador do bairro Vicentina. Juntas, as assinaturas comprometem cerca de R$150 de sua renda mensal. De acordo com ele, o valor compensa, já que, sob condições normais, a entrega coincide com o que lhe fora prometido na contratação. O mesmo não pode dizer o auxiliar de logística Rodrigo da Rosa, 39. Ele também tem planos de internet e TV fechada – da Oi e da Embratel, respectivamente – e, assim como Alex Sandro, gasta em torno de R$150 com as conveniências. “A internet é boa de manhã, ruim à tarde e à noite, quando mais precisamos dela. O sinal da TV, então, raramente resiste à chuva”, destaca. O morador diz já ter entrado em contato com as operadoras para tentar solucionar o problema; sem sucesso até então: “A gente paga e recebe menos do que a metade do que foi contratado”. Apesar desses inconvenientes, o que mais causa transtorno aos residentes do Vicentina é a qualidade dos serviços de telefonia fixa e móvel, tanto que, em algumas regiões, “é preciso sair de casa para completar uma ligação telefônica”, afirma Rodrigo. Essa carência também é sentida no comércio. Luís Paulo Kreutz, 25, sócio do Mercado Aliança ao lado da irmã, Joseane de Fátima Martini, 35, conta que, em um ano e três meses de atividades, já deixou de vender em umas cinco ou seis ocasiões devido às condições climáticas. “Quando venta forte ou há relâmpagos, o sinal das máquinas de cartão cai. Já ficamos uma manhã intei-

Inconvenientes causados por condições climáticas prejudicam vendas a débito e crédito no Mercado Aliança, mas não é só das consequências do mau tempo que os moradores reclamam ra assim, sem ter o que fazer”, compartilha Luís. Nesse cenário de inconstâncias, sorte de quem reside ao lado da antena transmissora do sinal da internet. É o caso de Valtoir Ramos, 17, estudante, que mora com a mãe, Angelita Lopes Ramos, 47, costureira, a poucos metros de distância do dispositivo que repassa ondas de rádio para sua casa. A assinatura do plano de 2 megabytes (MB) de velocidade é mantida junto à empresa Pontocom. “Eles instalaram a antena lá pelo início de setembro e nós contratamos na mesma hora”, recorda Valtoir. Os possíveis primeiros clientes da rua dizem não notar diferença significativa na qualidade da prestação do serviço em dias de mau tempo. Mesmo com temporal, o sinal permanece estável – e, desse modo, faz valer os R$ 71 investidos mensalmente. SITUAÇÃO RECORRENTE Não é apenas das condições climáticas que se queixam os moradores do bairro Vicentina. Por volta de julho, Eliana Prestes de Moraes, 27 anos, do lar, teve o plano de TV por assinatura da Oi alterado, segundo ela, sem seu consentimento. De R$ 39, a mensalidade subiu para R$ 89. Descontente, a consumidora foi até uma autorizada da operadora em Novo Hamburgo. Chegando lá, descobriu que essas questões

só se resolvem por telefone. Eliana diz ter passado cerca de 20 minutos na linha apenas para descobrir que, como era cliente da empresa há mais de um ano, a promoção da qual participava tinha chegado ao fim. A essa altura, já havia recebido em casa duas faturas referentes ao mês de julho, uma no valor de R$ 79, outra, de R$ 97 – sendo que R$ 7 dos R$ 97 seriam uma multa por não ter mudado de plano. “Alteraram a assinatura sem avisar e me cobraram. Não faz sentido”, argumenta. De acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), antes de alterar planos de serviços, é dever das operadoras comunicar o fato ao consumidor com, no mínimo, 30 dias de antecedência. Até o fechamento desta reportagem, Eliana seguia tentando reverter a situação e a Oi, tendo sido procurada, não havia se manifestado a respeito. Quem também não parecia satisfeito com serviços de telecomunicação em meados de setembro, quando da produção desta matéria, era o casal Jorge, 56 anos, e Rosane Lima, 49, ele aposentado, ela cozinheira, ambos assinantes de um combo de telefone e internet da Oi. Na ocasião, estavam sem ambas as conveniências há, pelo menos, dois dias seguidos. “Quando conseguimos entrar em contato com a operadora, fomos informados de que cabos

haviam sido roubados e que isso estaria afetando cerca de 150 moradores do bairro”, relata a esposa. “A situação é ruim, porque, se precisamos do telefone para alguma emergência, só nos resta o celular.” Essa não foi a primeira vez que o casal se viu em meio a um impasse com a empresa. Hoje, eles contam com um plano de 5 MB de internet, mas queriam mesmo é o pacote de 10 MB

que a Oi chegou a oferecer. “Eles nos ligaram perguntando se aceitávamos, dissemos que sim, só que, quando vieram instalar, perceberam que não havia cobertura”, descreve Rosane. Como também não há alcance de outras operadoras no local, o jeito é seguir com a opção disponível. PÂMELA OLIVEIRA PEDRO VIERO

Como proceder São direitos do cliente: n Receber, no mínimo, 40% da velocidade de acesso à internet ofertada pela operadora; n Cancelar contratos a qualquer momento e por quaisquer motivos (em casos específicos, pode haver cobrança de multa). Condições ideais de uso n Clima seco e ameno, sem chuva ou qualquer outra intempérie. O que fazer se o sinal cair O site da Anatel traz recomendações sobre como proceder nesse caso: 1 - Fale primeiro com a sua operadora. Anote e guarde o protocolo de atendimento que ela lhe fornecer; 2 - Se a operadora não responder, ou se a resposta não for adequada, entre em contato com a Anatel. Anote e guarde o número que lhe será fornecido; 3 - Aguarde e acompanhe o prazo de cinco dias úteis para resposta

4 - A operadora não respondeu ou a resposta não foi adequada? Volte a entrar em contato com a agência. A quem recorrer Anatel: faz o meio de campo entre o cliente e a operadora e monitora as respostas para melhorar a prestação do serviço. Contato por telefone: 1331. Procon: analisa reclamações individualmente e propõe acordos que satisfaçam ambas as partes, sem necessidade de acionar a Justiça. Contato por telefone: (51) 3289-1774. Juizado Especial: inicia processos judiciais voltados aos direitos do consumidor – em muitos casos, sem necessidade de representação por advogado. Na página da agência (www.anatel. gov.br), há mais informações sobre direitos dos consumidores, deveres das operadoras, dúvidas frequentes e orientações.


4. SUPERAÇÃO

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A única alternativa é ser forte Famílias contam os dramas vividos quando a chuva não dá trégua

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s 125 milímetros de chuva que caíram em seis horas no Vale dos Sinos, em julho, atingiram em cheio os residentes do Bairro Vicentina. Essa não foi a primeira vez que os moradores, principalmente os ribeirinhos, viram suas casas serem tomadas pela enchente e, provavelmente, não será a última. Com medo que as cheias se repitam, ao som das primeiras trovejadas, Raquel Melo Alves reza para que a água não invada sua casa novamente. “Quando fui dormir estava tudo normal, eu sabia que algumas residências mais próximas ao dique já estavam inundadas, mas não pensei que pudesse chegar tão rápido aqui”, conta a professora, que, numa das madrugadas mais frias do inverno, acordou com a água invadindo sua casa. “Eu gritei, entrei em desespero. Meu marido, Oziel, não estava em casa, estava só eu e meu filho Nicolas. A água vertia do chão, cada vez tinha mais e eu não sabia de onde vinha e nem o que fazer”, relata a moradora. Há famílias que perderam tudo, não só pelos danos materiais causados pela enchente, mas também pelos roubos. “Tem gente que perdeu tudo, que quando voltou pra casa os ladrões já tinham levado o que sobrou. Até de bote eles estavam saqueando”, conta Raquel. Segundo ela, o medo de voltar pra casa e ver os bens que a chuva não estragou saqueados, fez com que ela retornasse rapidamente para a residência. Orientada por um amigo bombeiro a não comprar móveis novos, pois as cheias poderiam se repetir, a professora ainda mantém os tijolos embaixo dos móveis que sobraram, como uma maneira de se prevenir caso a água suba novamente. A angustia de perder tudo que conquistou, faz com que Raquel desperte apreensiva todas as noites para verificar se a casa está realmente seca. “Com essa chuva toda que tá fazendo de novo, toda vez que acordo na madrugada tenho a sensação de que aquela noite vai se repetir, que eu vou levantar e vai ter água dentro da minha casa novamente”, preocupa-se. UNIÃO PARA SEGUIR EM FRENTE Em momentos de dificuldades os moradores do Bairro Vicentina mostram a importância da união para alcançar a superação. A ajuda da Igreja Batista, muito atuante

na comunidade, foi essencial no auxilio aos mais atingidos. Os vizinhos também se uniram para juntar mantimentos. Raquel, mesmo com sua casa alagada, não mediu esforços para ajudar quem mais precisava. Como foi o caso da vizinha Fabiana Pereira Teixeira e sua família. Grávida de nove meses de seu quarto filho, Fabiana passou por maus bocados e contou com esta solidariedade. Na noite da enxurrada, ela foi às pressas para o Hospital Centenário, em São Leopoldo. Sua filha mais nova, Carolina, de três anos, estava convulsionando de febre. Ao chegar no hospital constataram que o bebê estava passando da hora de nascer. Na indução do parto, o pequeno Gabriel teve uma parada cardíaca, ainda no útero da mãe, que precisou enfrentar uma cesárea de emergência.

Durante o procedimento, por erro médico, o recém-nascido quebrou uma das pernas em três lugares. Ele precisou ficar internado por 20 dias na UTI neonatal e dois meses com o gesso. Como se já não fosse difícil passar por uma cirurgia de emergência e retornar para casa sem seu bebê, Fabiana teve que encontrar forças para, ao lado do marido Carlos e das três filhas pequenas, recuperar a casa e os móveis que a água havia destruído. “Quando cheguei em casa tinha água pela cintura. Roupas boiando, minha geladeira boiando. Nossas comidas estragando, o mofo e a umidade tomando conta de tudo”, recorda emocionada. Para limpar o estrago causado pelas chuvas, a moradora precisou deixar o repouso pós-operatório de lado, o que lhe causou uma

infecção nos pontos da cirurgia. “Não tem como não fazer nada, é a casa da gente, eu precisava limpar, precisava arrumar e ver o que ainda prestava”, lamenta. Para que a situação não se repita, a família de Fabiana pediu a ajuda da Prefeitura para levantar uma mureta de contenção em frente à casa. “Os tijolos nós compramos, mas o aterro é mais caro, nós não temos condições de comprar”, conta. Eles ainda não obtiveram uma resposta do Município para o pedido. “A gente vai levando. Agora começa a chover forte e eu já fico com medo que a água vá subir e inundar tudo de novo”, Fabiana mostra os estragos causados pelo temporal de granizo da noite anterior e as marcas da enchente de julho, que ainda não conseguiram reparar. “Ficamos com medo e rezamos para não passar por tudo aquilo de novo. No bom e velho português, eu poderia apenas dizer que foi um inferno”, desabafa. De licença maternidade do frigorífico onde trabalha, ela diz que vai aproveitar o tempo livre não para descansar, mas para “colocar a casa em ordem”. Ainda agradece toda a ajuda que recebeu dos vizinhos e conta que ganhou muita coisa, inclusive roupas para as crianças e colchão, “é a união que faz a força”, ressalta. JÉSSICA BELTRAME LEONARDO OZÓRIO

As filhas de Fabiana aprendem desde pequenas a lidar com as perdas provocadas pelas enchentes

Riscos aos animais Entre as vítimas afetadas pelas enchentes, estão também os animais de estimação, cães e gatos principalmente. Assim foi o caso da Bolinha, a cachorrinha das meninas Jéssica, Gabriela e Carolina, que morreu afogada quando a água invadiu a morada da família. Quando Fabiana retornou do hospital com o marido e as filhas, constataram que Bolinha tinha morrido. Ela havia ficado dentro de casa. “Não sei direito o que aconteceu, só que quando nós voltamos ela já estava morta”, lamenta a mãe das crianças. É comum a morte de cães e gatos em situações de enchentes, caso eles fiquem presos ou restritos em áreas de rápido alagamento e na ausência de seus donos, pois não conseguem ajuda para se salvar. O indicado é deixar os animais em locais seguros, altos, com água e comida.


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PSICOLOGIA .5

Quem tem medo da chuva? Os efeitos das mudanças climáticas são motivo de incerteza e pânico entre os vizinhos

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clima era de tensão no dia anterior à ida das turmas de Jornalismo para o bairro Vicentina. O motivo era a chuva que já vinha marcando os dias daquela semana e que prometia continuar, pelo menos, até o fim do mês. Mas este sentimento de apreensão teve de ficar de lado para que se conhecesse o verdadeiro motivo de preocupação que a chuva traz para os moradores do local. Ao questioná-los se eles tinham medo do fênomeno, as respostas seguiam um padrão: o que assustava, mesmo, eram as consequências dele, como as tão temidas enchentes. Ketlin Girolde, de 15 anos, sentava na varanda observando a chuva que naquele momento se reiniciava. “Quando começa, já me vem medo da água. Esses dias chegou até o pátio”, conta. Os trovões também a assustam, pois, segundo ela, parece que algo mais grave está prestes a acontecer. Além disso, a chuva é também um fator que a impede de sair de casa e se divertir com seus amigos. Max Gonçalves, dono de uma agropecuária no bairro, carrega tristes lembranças que a chuva proporcionou em sua vida. “Quando eu tinha uns 7 anos minha casa alagou e perdemos tudo”. Apesar de o episódio ter ocorrido há tantos anos, ele ainda lembra nitidamente do desespero que sua mãe a avó sentiram na ocasião. Hoje Max tem dois filhos, uma menina de 8 e um menino de 4 anos. Ambos também sentem

Max conforta os filhos com histórias em dias de tempestades medo nos dias de chuva, mas por outros motivos. “Graças a Deus eles nunca passaram por uma situação de alagamento”, afirma o pai. Muito disso se deve às precauções tomadas por ele e sua família na construção de seu

lar, como a altura da estrutura em relação à rua. De qualquer forma, os pequenos sentem medo ao ouvir os trovões e correm para o quarto dos pais em busca de conforto.“Quando isso acontece, eu e minha esposa contamos histórias para eles sobre a natureza, de que esses momentos são normais e vão passar”, explica Max. Quem não se assusta com a chuva - muito pelo contrário - são os canários que Max vende em

seu estabelecimento. “Quando colocamos a gaiola deles na rua, eles ficam faceiros e gostam de olhar a chuva”, comenta. Já os cachorros, que chegam ali para serem ajeitados no banho e tosa, ficam agitados nesses dias. O medo da chuva, porém, não é exclusivo a pessoas que passaram por situações de enchentes. Ele até pode se tornar uma fobia, chamada de “ombrofobia”. Esses casos - mais extremos e

sem explicações racionais - são pouco comuns, porém existem. Essa fobia causa ansiedade e pode ter uma ligação forte com a depressão, uma doença cada vez mais comum em nossa sociedade. Nestes casos, recomenda-se o acompanhamento de profissionais da saúde para obter o tratamento adequado. NATÁLIA SCHOLZ KHAEL SANTOS

Situação limite Stress intenso e repentino, como os provocados por tragédias produzidas por fenômenos naturais, violência generalizada ou acidentes que causam grandes estragos, geram extrema ansiedade às pessoas que vivenciaram. Muitas vezes evoluindo para transtornos psíquicos, como por exemplo, o transtorno de stress pós-traumático que consiste em distúrbios de ansiedade caracterizados por um conjunto de sinais e sintomas físicos, psíquicos e emocionais. Ou síndrome do pânico, onde também há um transtorno de ansiedade no qual ocorrem crises inesperadas de desespero e medo intenso de que algo ruim aconteça. O transtorno obsessi-

vo-compulsivo também pode se manifestar, onde a pessoa é aprisionada por um padrão de pensamentos e comportamentos repetitivos. Assim como a fobia social em que o individuo se isola e evita interações sociais ao máximo por medo. Além desses, outros transtornos também podem se apresentar. O atendimento a uma pessoa que passa por situações desta natureza requer sensibilidade do psicólogo para identificar a gravidade do caso. Em casos não tão graves, o profissional deve buscar respeitar a dor da pessoa, deixar que ela fale sobre a situação no seu tempo, agindo apenas como um facilitador, sem

focar no episódio traumático em si, mas sempre no sentimento da pessoa em relação ao ocorrido. O acolhimento do sentimento, e não se deixar tomar pelo sentimento de pena, por exemplo, é essencial para que o acompanhamento ajude na melhora da pessoa. Para o psicólogo Pedro Henrique Centeno Tavares, especialista clínico em Psicologia Humanista formado pela PUCRS a intervenção logo após a ocorrência do trauma é bem importante “A breve intervenção tende a amenizar futuras influências do episódio, especialmente no caso de crianças. Os medos e fobias que carregamos na vida adulta geralmente decorrem de

traumas que vivenciamos e não tratamos/cuidamos na sua raiz, na infância” relata. Se engana quem pensa que o profissional é frio e jamais sofre com as histórias de seus pacientes. O importante ao terapeuta é ter consciência do porquê tem esses sentimentos consigo e cuidar para que isso não atrapalhe o atendimento, não influencie na evolução do paciente. Para Tavares a autoconfiança é um ponto importante para a recuperação do paciente, “Da minha experiência clínica, vejo que as pessoas necessitam confiar na sua capacidade e na busca do sentido da sua vida para viver com saúde mental. Autoconhe-

cimento é a chave para confiar no poder de superação, e só um estágio de superação permite que a pessoa se erga após situações catastróficas”finaliza o psicólogo. No município de São Leopoldo, contamos com o Centro de Referência e Assistência Social (CRASS), um espaço com profissionais que prestam atendimento psicossocial para moradores que possuem baixa renda. O centro fica localizado na Rua Oswaldo Aranha, número 56, no centro da cidade. O horário de atendimento ao público é de segunda a quinta das 8h às 12h e das 13h às 17h e sextas feiras das 13h às 17h. MARIA EDUARDA DE LIMA


6. AMBIENTE

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O feitiço contra o feiticeiro O que fazer com o lixo

Moradores do Vicentina convivem com as consequências do descarte irregular de lixo

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m dos principais passeios públicos, localizado próximo ao arroio que corta o bairro parece um campo minado. Por lá, o que se vê são amontoados de lixos e entulhos, o que deixa a rua com um péssimo visual. Mesmo com alguns serviços oferecidos pela Prefeitura de São Leopoldo, o descarte irregular na Vicentina causa transtornos e, segundo moradores, os infratores deveriam ser punidos. Com a chegada da primavera, onde mudanças bruscas de temperatura acontecem, os odores são mais intensos e o corpo fica mais vulnerável a doenças. O mau cheiro dos dejetos que são queimados é percebido com facilidade. Infinidades de cores se misturam entre tralhas e descartes. Caos instalado. Gionei Souza, 34 anos, não gosta do lixo que vê na frente da sua casa. “Vem gente de outros locais para colocar lixo aqui. Virou um depósito de sujeira, um transtorno para todo mundo. Faltam placas proibindo”, reclama o morador. A Coleta Seletiva ocorre nos bairros de São Leopoldo uma vez por semana. No Vicentina, a partir das 8h das quintasfeiras, caminhões recolhem o lixo doméstico e destinam a

Além da coleta de lixo domiciliar, são oferecidos aos moradores alguns canais atendimento. O Enfoque apresenta dicas que podem ajudar a evitar futuras situações de calamidade. A Prefeitura de São Leopoldo disponibiliza os seguintes meios para contato do cidadão:

Acúmulo de dejetos atrapalha vias e polui solo locais próprios para reciclagem. Atualmente seis cooperativas mantém convênio com o município, sendo uma delas a Aturoi Vitoria, localizada no bairro. Residindo há aproximadamente três anos no local, a empregada doméstica Angela da Silva lembra que, se a população fizesse o descarte do lixo de forma correta, evitaria as enchentes que acontecem com frequência no bairro. “Acho horrível esse terreno aqui em frente. O mau cheiro atrai mos-

cas, mosquitos, baratas e ratos. Moradores irregulares queimam entulhos”, desabafa a moradora. Já para Lucas Goulart, 20 anos, que retorna para a casa no final do dia, a insegurança é maior. “É muita sobra de resíduos, muitos móveis e restos de concreto que, unidos às casas construídas de forma irregular, servem de armadilhas em benefício dos ladrões”, alerta. O lixo que para muitos é a solução, no bairro se transforma em problema. Enquanto

garante a sobrevivência de uns, é parte da indignação social de outros. Para muitos moradores, o descarte incorreto está relacionado à falta de responsabilidade e bom senso das pessoas. Enquanto isso, quem passa próximo aos locais de descarte irregular, vê a cena que contrasta com as paisagens existentes no bairro. Caos e irresponsabilidade. LUAN PAZZINI CLÁUDIA PAES

Fala São Leo 156 Através do número 156 o morador poderá solicitar serviços como: poda de árvores, limpeza de praças e calçadas públicas, reparos de buracos e calçamento, desobstrução de bueiros, consertos na iluminação, manutenção de sinalizações, limpeza dos cemitérios municipais, patrolamento e ensaibramento. Atendimento Telefones: 3526 5142 - 3526 5143 3526 5144 - 3526 5308 - 3526 5309 Presencial: Av. Dom João Becker, 754 – Térreo CEP: 93010-010 Horário de expediente: 7h às 13h E-mail: 156@saoleopoldo.rs.gov.br Internet: www.facebook.com/ouvidoriamunicipalsaoleopoldo www.saoleopoldo.rs.gov.br

Mau cheiro que preocupa “Sempre que chove, é isso aí. O esgoto transborda e fica esse mau cheiro”. O relato de Alberi Borges, 46 anos, traduz o sentimento de todos os moradores da última quadra da rua Manoel dos Passos Figueroa, pouco antes do arroio que costeia o Vicentina. A rotina se repete com certa frequência para Alberi e seus vizinhos: chove, o encanamento entope e as bocas de lobo expelem o esgoto para a rua, deixando um rastro de água malcheirosa e suja na viapública.Issoincomodaepreocupa os cidadãos, quanto aos problemas gerados à sua saúde, e a de inúmeras crianças que habitam o local. O metalúrgico Marcos Enildo, 40 anos, teme pelo mal-estar do filho Bryan.“A gurizada brinca aqui direto. Tem como não ficar preocupado?”, indaga, com a tradicional cautela paterna. Marcos afirma que a prefeitura já foi contatada e que“já vieram ver o que era e não fizeram nada”. Cassiano Souza, 20 anos, com-

partilha dos mesmos anseios de Marcos. Pai de Pedro, 1, e Nicolas, 2, o servente conta que problemas de saúdecomascriançassãorecorrentes, e que o esgoto que transborda em todas as chuvas afeta a saúde de sua família. “Chegou ao ponto de o esgoto invadir a casa da vizinha da frente. É muito ruim a situação”. AdonadecasaMarisaSouzaNunes, 50, entrou várias vezes em contato comasautoridadescompetentespara tentar resolver o problema. Marisa não conseguiu encontrar soluções para a situação que assola parte da população do Vicentina. Em dado momento,foialegadoqueumaárvore na calçada estaria impedindo o fluxo docano,equeocortedotroncoseria dificultado pela questão ambiental, necessitando de uma liberação da Secretaria de Meio Ambiente. Segundo a Prefeitura Municipal de São Leopoldo, o bairroVicentina foi o mais afetado pelas cheias de julho. Para os moradores da Manoel

Esgoto corre pela rua quando chove dos Passos Figueroa, o problema é agravado pela existência do esgoto que invade a rua. Marisa conta que faltou muito pouco para que a água invadisse a sua casa. Com o dedo indicador direito,aponta comexatidão o tanto que restou para que a água contaminadapeloesgotoadentrasse os quartos de seus netos.“A minha

cozinha, por exemplo, foi tomada pelaágua”,conta,preocupada,Marisa. CONTATO COM ESGOTO PODE CAUSAR DOENÇAS Inúmeras doenças podem ser adquiridas através do contato com o esgoto. A maioria dos problemas

é de fácil tratamento para adultos, mas crianças de menos de cinco anos podem ter complicações fatais, como a diarreia. Entre as doenças causadas pelo contato com a água contaminada,estãoacólera,adengue, elefantíase, febre amarela, hepatite, infecções na pele e nos olhos, leptospirose e malária. Deacordocomdadosde2013da Funasa(FundaçãoNacionaldeSaúde), cada R$ 1 gastos com tratamento correto do esgoto economizam R$ 4 em gastos com saúde pública. O Brasil ocupa a 112ª posição mundial no atendimento do saneamento básico,segundoestudorealizadopela Pastoral da Criança. Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, conclui que o país precisa investir R$ 313 bilhões até 2033 para atingir o nível ideal de infraestrutura de esgotos. PEDRO KOBIELSKI NATÁLIA COLLOR


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CIDADANIA .7

De braços abertos TATIANA DEGE

A Casa da Criança e do Adolescente atende jovens e famílias da comunidade em busca de formação integral e acompanhamento personalizado

No pátio da CCA, crianças se divertem durante o intervalo. Os educadores Eder e Janine (abaixo) são responsáveis pela ONG que também oferece um ateliê de costuras no qual se reúnem as mulheres do bairro

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e portas abertas e prontos para atender quem precisa, existe um espaço acolhedor no bairro São Miguel, vizinho e muito próximo do bairro Vicentina. A Casa da Criança e do Adolescente (CCA), atende jovens de 6 a 15 anos com o objetivo de desenvolver habilidades através do contato com a arte, reciclagem, oficinas de expressão corporal e reeducação alimentar. Atualmente o local conta com 80 crianças inscritas, que frequentam as atividades nos turnos da manhã e da tarde, de segunda a quinta-feira. Apesar de estar localizada no bairro vizinho, a CCA tem 50 jovens do bairro Vicentina, a maioria dos alunos. Segundo a Educadora Social Janine da Silva Demenighi, o espaço procura trabalhar muito além da educação dos jovens. “Nós não inscrevemos apenas a criança no projeto, mas sim sua família inteira. Buscamos conhecer afundo essa família, entender suas necessidades e realidades para assim fazer um acompanhamento muito mais completo”. Através de um mapeamento de locais que também possuem projetos sociais, e que sejam próximos à comunidade, os educadores vêm trabalhando com a ideia de “Rede”. Essa Rede consolida a possibilidade de manter contato e de trocar as informações de cada espaço, para assim manter projetos que se complementem e que trabalhem juntos para o desenvolvimento desses bairros. Para a Educadora de Turno Integral, Gisele Fidelis, é importante desenvolver a autoestima desses jovens.“É possível trabalhar o potencial do bairro, fazendo com que as crianças percebam a importância do local em que vivem e se sintam parte dessa comunidade, com orgulho disso e não com vergonha”, ressalta a educadora. O BAIRRO VICENTINA Ao olhar para o mapa do Vicentina é fácil localizar o Parque do Trabalhador e perceber como ele é grande. Foi assim, analisando o mapa para desenvolver a Rede, que os educadores se deram conta das possibilidades que existe naquele local. Para Janine, o espaço está sendo desperdiçado.“Existe ali uma área muito grande que possui biodiversidade, lazer, qualidade de vida e que não é usada. Acredito que

JOSUEL MASCHKE

JOSUEL MASCHKE

existe um baita potencial ali. Tem o rio que corre lá no fundo. Acho que o desafio é olhar com outros olhos para esse lugar e tentar se apropriar dele, que está ali para a comunidade”, acredita a educadora. Gisele aponta para a possibilidade de o local deixar de ser do Governo do Estado e passar a ser do Município e como essa mudança poderia trazer esperanças. Todas as quartas-feiras as atividades da CCA são realizadas no Parque, com o objetivo de incentivar o uso do espaço. “Possuímos horário fixo com o ginásio que tem lá e utilizamos a pracinha também, chamamos esse de Dia do Lazer e optamos por realizar em um espaço da comunidade exatamente visando à valorização desse local”, explica. Outro dado apontado pelo Coordenador Pedagógico da CCA Eder dos Santos Bastos é a violência doméstica que existe nos dois bairros. Ao identificar esse dado foi criado o Grupo Renovação, que busca valorizar as mulheres dos bairros. Nele

elas costuram utilizando materiais reciclados. “O grupo tem total autonomia, nós sedemos o espaço e disponibilizamos uma educadora que ensina a parte da costura, mas elas têm se desenvolvido e crescido por conta própria”, destaca. Aproximar-se das famílias também não foi tarefa fácil, foi necessária muita dedicação, segundo Eder. “Muita gente olha para as famílias daqui e acha que elas são acomodadas, mas precisamos entender a história delas. Às vezes vejo isso na comunidade, tu acaba rotulando essas pessoas e desistindo de trabalhar com elas, ao invés de aprofundar mais na história de cada um. Por isso optamos por acompanhar cada família que entra na Rede. Tu precisa incentivar, ligar, convidar e não distanciar essas pessoas”, avalia. Para que os encontros de famílias acontecessem, proposta da CCA para reunir os responsáveis dos alunos, foi preciso um trabalho intenso, segundo

Janine. “Buscamos mostrar para eles que o objetivo não é mais uma reunião, como as de colégio, mas sim para que aconteça uma troca entre eles e para que eles se conheçam. A maioria dos pais que temos é do Vicentina e hoje podemos dizer que pelo menos aumentou a procura desses pais nesses nossos espaços”, conclui. CIRCULO OPERÁRIO A CCA faz parte do Circulo Operário Leopoldense (COL) junto com outros espaços que complementam o atendimento, como a Escola de Educação Infantil Nossa Senhora Medianeira (EEI) e o Centro de Atendimento de Semiliberdade (CAS). O Movimento Circulista do Brasil teve seu início com a fundação do Círculo Operário Pelotense (COP), em 1932. Com o objetivo de solucionar problemas sociais, principalmente os relacionados ao mundo do trabalho e à questão do operariado. Com o passar dos anos o

CO acabou expandindo seus lugares de atuação e atualmente tem atendido diversas realidades, como é o caso do COL que atende famílias independente de suas profissões. O COL foi criado em 1935 e em 2015 comemora 80 anos de história. Na agenda de comemorações esteve o lançamento do livro “Circulo Operário Leopoldense – 80 anos de história” que teve para seu desenvolvimento a parceria do Programa de Pós Graduação em História da Unisinos e que foi lançado no dia 30 de setembro.

Serviço Gostou? Quer participar? A Casa da Criança e do Adolescente fica na Rua Alfredo Gerhard, 891 – São Miguel – São Leopoldo/ RS Telefone: (51) 3575 4850 RAFAELA AMARAL JOSUEL MASCHKE TATIANA DEGE


8. ECONOMIA

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Gotas que fecham torneiras Hábito de coletar água da chuva ganha adesão dos moradores e garante economia no bolso e no meio ambiente

A

prática adotada pela moradora Dalva Pereira, de 55 anos, no pátio de casa, apesar de corriqueira, pode ser uma alternativa de grande importância para quem deseja economizar a água da torneira. Há um ano, sempre que chove, a dona de casa coloca os baldes e um latão de metal para coletar a água da chuva. O destino dessa água vai para a lavagem do pátio, dos panos dos cachorros, da calçada, e para regar as plantas. Para a moradora, é um jeito de aproveitar uma água que seria descartada pelos bueiros do bairro Vicentina. “Dificilmente ligo a mangueira, já que tem essa água né, temos que aproveitar o que tem, até a água da máquina eu uso para lavar o pátio”, conta. A economia, principalmente na questão ambiental, foi fator importante para a adesão da moradora a essa prática. “Estou desempregada agora, mas faço para não faltar água, se faltar já viu, a gente não faz nada sem água”, conclui. Entre os municípios brasileiros, 84% precisam de investimentos em água até o ano de 2025, sendo que 55% desses locais poderão apresentar déficit no abastecimento urbano. Na região do Vale do Sinos, 80% dos municípios necessitam de investimentos referentes ao fornecimento de água. Os dados são da Associação Nacional de Águas (ANA), para o ano de 2010. Em São Leopoldo, a demanda urbana para o abastecimento de água é de 922 L/s, o que deixa o município entre os que apresentam maior índice de consumo, juntamente com as cidades de Canoas e Novo Hamburgo. Com população urbana de 213.238, o município apresenta a maior taxa de consumo por habitante da região. Os dados são do Censo 2010, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mesmo sem acessar os dados, o aposentado Orlando Alves, de 57 anos, conhece bem a importância de evitar o uso da torneira, quando possível. Desde que começou a construir a casa, onde mora com a esposa, Lucinda, e os dois filhos, o morador usa a água da chuva para a lavagem da rua e outras necessidades da casa.“Aproveito como economia, daí não uso a água da torneira”, relata. Durante a construção, sempre que chovia, o morador costumava deixar galões e baldes na rua para acumular a água nos recipientes.

No Brasil, estudos sugerem que a captação da água da chuva pode gerar uma economia significativa nas residências urbanas. Alguns sistemas para a coleta dessa água podem ser feitos por meio de calhas, que escoam a água da chuva para tubos, acoplados no telhado de casa. Esta alternativa, por meio da instalação de uma cisterna (sistema de captação com bomba, canos e filtros), pode render uma economia de até 60% ao mês na conta de água. Pesquisas mostram que um sistema com capacidade de armazenamento para 1.000 litros de água da chuva pode variar entre R$ 1.800 e R$ 2.000. Com as chuvas que atingiram o Estado nas últimas semanas, a moradora Ilva Levis, de 55 anos, mal termina de lavar o chão de casa, e já volta a coletar a água da chuva em um galão deixado no pátio. Residente do Vicentina há 35 anos, Ilva acredita na economia de água quando recebe a conta. Após construir a casa e a piscina, no ano passado, a moradora começou a adotar essa prática para aproveitar a água da chuva nas atividades diárias. “Com essa chuvarada toda, uso para lavar o pátio, regar as plantas, termino de lavar e já chove mais”, conta.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), são necessários 80 litros de água por dia, por pessoa, para se sustentar a vida humana. Porém, a realidade no Brasil apresenta um gasto de 40 litros por dia nas periferias, e um consumo de até 400 litros por dia nas áreas habitadas pela população com alto poder aquisitivo. Informações apresentadas pelos relatórios da Organização mostram que nos países em desenvolvimento, como o Brasil, 90% da água utilizada é devolvida à natureza sem tratamento, contribuindo para a deterioração de rios, lagos e lençóis subterrâneos. Em meio às informações, apresentadas pelas entidades responsáveis, se faz necessário, dentro das comunidades, uma política pública de utilização da água. Para a engenheira ambiental Vanessa Ferraz, esta é a forma mais eficaz de se alcançar bons resultados. “Se os moradores soubessem da economia que podem proporcionar os sistemas de captação, esta prática seria mais disseminada dentro dos bairros. O que falta, muitas vezes, é informação, algumas pessoas não sabem que podem utilizar a água da chuva para a descarga do banheiro, por exemplo”, afirma.

COMO UTILIZAR A ÁGUA DA CHUVA Quem não possui condições para investir em um sistema de captação de água mais elaborado, pode obter os mesmos resultados utilizando baldes, tonéis, barris, latas, galões ou outros recipientes disponíveis em casa. Pode-se colocar o balde direto na chuva, ou coletar a água que cai das telhas, porém essa água deve ser armazenada após cerca de 15 minutos depois de começar a escorrer, visto que nos primeiros minutos, a água que cairá estará tirando a sujeira acumulada no telhado. Após a coleta, é indicado que a água seja utilizada imediatamente, para evitar que ela fique parada nos recipientes. Se a água não for utilizada logo após a coleta, é importante que os locais de armazenamento possuam tampas, para conservar a água longe do mosquito da dengue. Após estocar a água, ela pode ser utilizada em diversas práticas domésticas. Ela servirá para a irrigação de plantas, descarga de banheiros, limpeza dos pátios, das calçadas, de carros e pisos, evitando, assim, o uso de mangueiras. Ao utilizar um balde de água da chuva para lavar a

calçada durante 15 minutos, por exemplo, estima-se que uma pessoa pode economizar até 279 litros de água da torneira. Porém, é importante lembrar que a água da chuva jamais deve ser utilizada para lavar roupas, tomar banho, cozinhar ou beber. Isso porque, nas grandes cidades, a chuva pode ter vários contaminantes e, ao cair, minúsculos grãos de poeira, fuligem, e até mesmo vírus e bactérias, podem se infiltrar nas gotículas de água. NATHÁLIA MENDES MATHEUS VARGAS

Aproveitamento da água da chuva pode ser feito de forma simples e eficiente


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SAÚDE .9

Alerta contra enfermidades Frio e chuvas constantes afetam imunidade dos moradores, principalmente devido a doenças respiratórias

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spirros, dores de garganta, tosses, irritação no nariz. Esses sintomas estão atrelados a doenças fortemente ligadas às alterações climáticas e à alta umidade do ar, fatores que têm castigado os gaúchos neste inverno. Porta de entrada para problemas de saúde, principalmente os respiratórios, as chuvas em excesso e o frio desencadeiam incômodos para a população que, muitas vezes, não tem dinheiro para pagar pelos tratamentos. No bairro Vicentina, os moradores vivem em estado de alerta, torcendo para que não ocorram novas enchentes. Afinal, além de elas trazerem danos às suas casas, colocam as pessoas em situação de vulnerabilidade. Quando a chuvarada chega, é comum que elas tenham que andar na água que inunda os lares e as ruas, enquanto o frio e a umidade afetam o organismo. Com esse cenário, fica difícil resistir com a saúde ilesa. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o nível de umidade do ar ideal para o corpo humano é de 40% a 70%. Em São Leopoldo, durante períodos de chuva, esse índice oscila, chegando a 100% em algumas ocasiões. Pode ser que a comerciante Maria Ângela Grasel, que mora no Vicentina com o marido, Luíz Celso Grasel, e a neta de 12 anos, não saiba qual é o índice adequado, mas entende que o tempo úmido piora seu quadro de saúde. Aos 47 anos, ela tem reumatismo nos ossos e no sangue, artrose e, desde julho, uma gripe mal curada - resultado da última enchente. Na época, a casa e o minimercado de sua família foram alagados, fazendo com que ela e o esposo tivessem que caminhar por alguns dias na água. Ele, apesar de também ter ficado gripado, se curou. Mas Maria não teve a mesma sorte: desde então, não consegue tratar o problema. A situação financeira da família dificulta a compra de todos os remédios necessários. Além disso, ela precisa lidar com o aumento dos sintomas do reumatismo, que são potencializados em dias chuvosos. “A umidade e o frio pioram as minhas dores nos ossos, nervos e juntas”, lamenta. Sinal evidente das consequências do tempo úmido são os dedos inchados das mãos de Maria, que, ocasionalmente, ficam assim, mesmo com o tratamento médico da doença.

Ruas alagadas colocam as pessoas em risco pelo contato com a água

A família Grasel, no entanto, não é um caso isolado noVicentina. Fabricante de sacolas plásticas, Janaina Correa, 40 anos, também adquiriu uma gripe em julho devido ao contato com a chuva, além da baixa temperatura. Era início da semana quando a moradora voltava do trabalho de bicicleta. Ao longo do percurso para casa, precisou descer do veículo a fim de poder passar pela água nas ruas. “Larguei minha bicicleta, arregacei as calças, tirei as botinas e fiquei com os pés descalços”, recorda ela, que finalizou o trajeto a pé. A gripe é uma das principais enfermidades associadas ao inverno. Apesar disso, as mudanças climáticas constantes são capazes de provocar outros diversos reflexos no corpo, e as reações alérgicas no sistema respiratório comprovam isso. Jorge Shrimer Brum, morador do Vicentina há 26 anos, sabe do que se trata. Quando chega o inverno e a umidade do ar sofre alterações, ele já espera os sintomas da bronquite e da rinite alérgica, que também atinge seu filho de 26 anos e a filha de 13. Para Brum, que aos 52 anos trabalha na Portaria de Novo Hamburgo,

essas manifestações causam incômodos no dia a dia, atrapalhando na hora de recepcionar as pessoas. “Recebo visitantes, estou conversando e, daqui a pouco, sou interrompido”, se queixa, mencionando as reações que surgem. O QUE GERA AS DOENÇAS No Brasil, 40 milhões de pessoas convivem com a rinite alérgica, segundo a Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia (Asbai). Não é à toa que os sintomas atrapalham a rotina, pois eles incluem obstrução nasal, espirros, coriza, coceiras na garganta, nariz, céu da boca e olhos. Essa doença resulta do contato do nariz com agentes alérgenos, como os ácaros, a poeira e as bactérias, por exemplo. Para se defender dessas substâncias, o nariz utiliza um mecanismo de defesa exagerado e produz anticorpos, o que causa os sintomas no corpo. O quadro piora no inverno, já que a permanência das pessoas em locais fechados e o uso de roupas que estavam guardadas aumentam o contato com as substâncias consideradas tóxicas pelo corpo. Enquanto as temperaturas

ficam baixas, a variação climática também agrava o problema, pois provoca ainda mais irritação na mucosa nasal. As gripes e resfriados, por sua vez, também são enfermidades que afetam as vias respiratórias. Mas eles não são a mesma coisa. Com sintomas mais brandos no corpo, os resfriados são causados por vírus que entram no organismo através do nariz, olhos e boca. Eles se manifestam por meio de cansaço leve, tosse, espirros, secreção nasal e febre baixa. Diferente do resfriado, a gripe gera sintomas mais fortes: febre acima de 38º C, mal estar, dores no corpo e de cabeça são comuns. Ela é ocasionada pelo vírus influenza, que é inalado pelas vias respiratórias quando o ar está infectado. Se a doença não apresenta complicações, o indivíduo melhora em até cinco dias. De acordo com dados de 2015 do Boletim de Vigilância da Influenza/RS, os casos de gripe consideradas como Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) somaram 78 até setembro no Estado. MARIANA BLAUTH BOLÍVAR GOMES

Como prevenir A prevenção de doenças relacionadas ao inverno e às mudanças de temperatura deve ser constante, principalmente nessa época do ano. Veja algumas mudanças simples na rotina que podem lhe ajudar a passar longe desses problemas: n

Evitar permanecer em locais com

pouca circulação de ar e aglomerados n

Lavar as mãos várias vezes ao dia

n

Beber água para evitar desidratação

e comer frutas e verduras n

Praticar atividades físicas

n

Lavar roupas de cama no mínimo

uma vez por semana n

Para evitar a rinite, usar pano úmido

e aspiradores para a limpeza da casa n

Lavar o nariz como soro fisiológico

para tirar as impurezas


10. COTIDIANO

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Moda nas ruas sem asfalto Vestir-se em dias de chuva é desafio no bairro

N

o mês de setembro, assim como em alguns outros meses, foram registradas chuvas que se estenderam por vários dias seguidos no Rio Grande do Sul. Às vezes, por mais de uma semana não se vê o sol. Isso se reflete nos varais das casas do Vicentina, repletos de roupas úmidas. Uma situação caótica para muitas pessoas, mas que ainda é pior para quem sofre com a moradia constantemente alagada ou possui poucas peças para vestir. Composto de ruas com e sem asfalto, não falta terra no chão do Vicentina. Quando começa a chover, rapidamente os buracos ficam cheios de água e os espaços em que não há asfaltamento tornam-se barrosos. Transitar por esses locais sem sujar-se é inevitável. Basta alguns passos para os calçados e a barra das calças adquirirem tons marrons ou avermelhados. Quando um carro se aproxima no caminho de quem está a pé, o indivíduo precisa afastar-se, já que o movimento do veículo jorra água das poças e a roupa pode ficar

Galocha é item indispensável dos moradores

coberta de lama. Não é sempre que o dinheiro dá conta das necessidades básicas como alimentação, água, moradia e energia. Sobra pouco ou nada do orçamento para renovar vestuário, causando transtornos em épocas de enxurradas. “A gente não sabe mais o que vai fazer; se lava, não seca e a água invade

tudo” queixa-se Teresa Machado, conhecida como Teresinha e moradora do bairro há oito anos. A chuva desencadeia uma série de problemas para vestir-se: o barro das ruas respinga nos tecidos durante os trajetos rotineiros, as roupas lavadas não secam nos varais e o que está limpo e seco também pode ficar mo-

lhado caso ocorra alagamento dentro de casa. “A gente tem que andar de bota pelas ruas, mas daí chego em casa e a água tá pela canela, não tem como usar outra coisa”, lamenta Teresinha. A mulher de 60 anos trabalha como recicladora no Vicentina e, como mora numa rua sem asfalto, utiliza galochas frequentemente. Ela não é a única, uma boa olhada para a rua revela como a vizinhança encara os dias chuvosos. Botas, capas, casacos de couro e tudo que for impermeável ou em tons escuros é avistado. Darci Vieira de Deus, 55 anos, enfrenta os dias de chuva pilchado. Ao invés de galochas, prefere um par de botas tipicamente gaúchas, acompanhadas de bombacha, camisa, lenço e chapéu. “Eu ando o ano inteiro assim e não só na época de comemorações tradicionalistas” justifica o morador do bairro. Um ato de relembrar a indumentária dos gaúchos antigos e também de disfarçar as dificuldades para vestir algo prático de caminhar nas ruas sem asfalto. FABIANO SCHECK FERRAZ LUCAS WEBER

Rastros da criação Valdir Antônio, 59 anos, divide o pequeno terreno entre sua casa e um galpão, que serve de abrigo para suas galinhas. À primeira vista, não conseguimos identificar onde começa uma e termina a outra, mas olhando com mais atenção, a casa de alvenaria se destaca do galpão de madeira que já fora prejudicado pelo tempo. Com a manhã chuvosa, as galinhas ficam recolhidas em seus poleiros ou andando pela estreita área coberta da residência. A área do pequeno galpão ainda mostra traços dos antigos animais que antes moravam ali. “Já faz um ano que tive de deixar de ter minha vaquinha”, comenta, mas diz não ficar triste com isso. “Tive que desmanchar meu antigo galpão, que era maior, e quando resolveram construir o dique decidi não ter mais a vaca, dava muito trabalho e o espaço ficou pequeno”. Além disso, o morador relata que prefere ter só as galinhas, pois com as enchentes, que são frequentes quando chove, ter outros animais é praticamente inviável. “Quando a água começa

a subir, elas (as galinhas) sobem sozinhas nos seus poleiros, não preciso fazer nada. Se tivesse outros animais isso seria mais complicado”, comenta. Valdir e sua esposa, Rosa Maria, de 53 anos, são moradores do Vicentina há 15 anos e vivem de frente para o dique. Nos dias de chuva intensa, principalmente quando as bombas param de funcionar, a água acaba invadindo a residência. “Da última vez a água passava da canela, e isso quando eu estava dentro de casa”, relembra. Ele pensa em vendar a propriedade futuramente, para realizar um de seus sonhos: ter uma chacrinha onde possa ter vários animais. Mesmo a contragosto da esposa, Valdir prefere continuar com a galinhas. “Meu pai sempre teve animais em casa, eu cresci tendo galinhas e animais pelo pátio de casa. Isso é algo que gosto, que me faz feliz”, relata. Para eles os animais são mais uma forma de relembrar sua criação, tanto que nem os mata para consumo: “acabo dando eles para os outros, não consigo matar as coitadinhas”.

Valdir Antônio convive com animais desde sua infância Sua companheira, Rosa Maria, reclama um pouco dos animais, mas nada que gere brigas. “Só gostaria de poder ter flores no meu jardim”, desabafa. Como as galinhas comem tudo que é verde que está pelo chão, Rosa montou um jardim suspenso, colocando suas plantas em baldes e os elevando, para proteger das predadoras. “Se fosse para escolher, eu preferia minhas flores que as galinhas”, brinca.

Para ter o sustento da casa, Valdir trabalha como serviços gerais. “A gente faz um pouco de tudo, sabe”, conta o trabalhador, que mesmo tendo problemas como hipertensão, colesterol e diabetes, continua na batalha diária para manter a casa. Trabalhando nesse ramo, ele e a esposa criaram os cinco filhos, sendo que apenas o mais novo, com 18 anos, ainda mora com eles. “Ele passa mais tempo na

casa da namorada que aqui, mas sempre me ajuda. Quando vamos viajar, é ele quem trata das galinhas”, conta. E é assim, em seu pequeno terreno, que Valdir leva sua vida, sonhando com o dia em que terá sua chácara para poder ter, além de suas galinhas, todos os animais que quiser. ROBERTO CALONI MILENA RIBOLI


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CIRCULAÇÃO .11

Perseverança ambulante Chuva não desanima quem faz das ruas o seu ponto comercial

S

ão Leopoldo amanhece sob chuva. No Vicentina, poucas pessoas arriscam sair de casa e a maioria das janelas continua fechada: o bairro acorda lentamente, até mesmo para um sábado de inverno. Nesse cenário de aparente marasmo, uma figura se destaca pelo caminhar obstinado. Ela carrega uma pilha de panos de prato sobre o braço direito – o mesmo que empunha o guarda-chuva preto acima da cabeça. Apoiada sobre o ombro esquerdo e protegida junto ao corpo, há uma sacola com artesanatos e meias. Nos pés? Chinelos. “Nunca coloquei um sapato. Não gosto”, revela dona Teresinha, de 54 anos. Seu sobrenome merece atenção especial, como ela própria adverte, ao soletrar, sem se dar ao trabalho de pronunciar antes: S-C-H-W-A-R-T-Z-HA-U-P-T. Figura emblemática de São Leopoldo, onde mora há 48 anos, dona Teresinha é líder comunitária e tem capacitação em Mediação de Conflitos junto à Secretaria de Segurança e Defesa Comunitária (Sesdec). Durante o curso, aprendeu técnicas para intervir em desavenças

dentro da comunidade, que vão de brigas entre vizinhos a discussões de casais. Apesar disso, ganha a vida como ambulante. Durante a Semana Farroupilha, que atrai o público aos piquetes do Parque do Trabalhador, suas visitas ao Vicentina são frequentes. “Já são cinco anos aqui. Tenho meus clientes faz tempo”, orgulha-se a mãe de três filhos, avó de oito netos e bisavó de uma menina.

os consumidores. “Pra gente, é uma comodidade não precisar sair de casa. Ela faz esse esforço, né?”, valoriza dona Miguelina, de 50 anos, uma das clientes fiéis no Vicentina. Assim, Teresinha precisa de apenas um guarda-chuva para se adaptar à chuva e tocar as vendas, que, garante, não são prejudicadas pelo mau tempo. “Já estou acostumada. E olha que tenho cinco pinos nas pernas, por causa de um

acidente de carro”, revela. Depois da breve conversa, ela pede licença, pois sabe que seus clientes lhe esperam. Pé ante pé, Teresinha contorna a lama que toma conta do acesso ao Parque do Trabalhador e traça seu caminho entre as poças. São dez horas da manhã, e é preciso faturar – faça sol ou chuva. DANIEL ROHR ÉMERSON DA COSTA

Não há tempo ruim que impeça dona Teresinha de vender panos de prato pelo Vicentina

CONVENIÊNCIA É SEGREDO PARA LUCRAR A simpatia, a experiência, os clientes fidelizados e o preço justo são algumas das explicações para que Teresinha volte para casa carregando apenas uma porção dos panos de prato que selecionou no início do dia. Vendendo três panos por dez reais, ela chega a faturar R$ 200,00 em um dia. O chamado senso de oportunidade, tão cultuado em cursos de empreendedorismo e escolas de gestão, reflete-se na fala de dona Teresinha e na escolha pelos produtos. A análise de mercado é simples: “No inverno, as meias vendem mais. No verão, são os panos de prato. Mas quem vai recusar um pano de prato quando chove a semana toda?”. Esse argumento ganha força entre

Transportes alternativos Em dias de chuva o Bairro Vicentina costuma passar por vários problemas. Muitas vezes por falta de infraestrutura adequada em algumas partes, alguns pontos do bairro ficam alagados dificultando o acesso de automóveis e a água por muitas vezes invade as casas. Mas imagine além de ter de passar por tudo isso dentro de casa e na rua, você depender de um veiculo sem proteção para os dias chuvosos para trabalhar ou buscar alimentos e remédios necessários para viver. Aqui no bairro é comum ver muitas pessoas transitando durante o dia a pé, com suas bicicletas, carrinhos de papelão ou motocicletas. Em épocas de temporais mais intensos como os de Julho deste ano, este trabalho fica impossível de ser realizado, de certa forma ilhando algumas partes do bairro. Muitas pessoas passam por dificuldades para se manter e muitas vezes

guardam um estoque de alimentos para os dias em que a água é um empecilho na locomoção pelas ruas. Anastácio Martins de Almeida, 64 anos, é morador do bairro Vicentina a quase 16. Ele utiliza sua bicicleta, que possui há 7 anos, para buscar comida todos os dias para ele, sua esposa Iraci, de 69, e seus tantos animais que cuida com tanto carinho. Dentre estes são 30 galinhas e 5 cachorros, todos bem gordos e cuidados “como se fossem da família”, como ele conta aos risos. Possui também uma vaca leiteira, que além de produzir o leite que é consumido, é utilizada para fazer queijo. A bicicleta o possibilita de buscar remédios para os animais que seguidamente precisam ser medicados, e como ele cuida bem dos seus bichos, pois alguns deles ele utiliza como parte de seu sustento, isso

é algo que não pode faltar. Para ganhar algum dinheiro, antes de se aposentar por idade no ano que vem, Anastácio vende alguns ovos de suas galinhas e algumas vezes faz serviços diversos, como Anastácio está sempre com sua bicicleta carregando objetos

cortar grama de algum terreno, o que de novo é prejudicado pela chuva. Além disso, nas últimas chuvas mais fortes que ocorreram, segundo ele, alguns caminhavam com água pela cintura no pátio,

obrigando ele a inclusive subir os animais para um local mais alto para não se afogarem. Essas chuvas o fizeram ficar em casa até que a água desse uma trégua e baixasse o seu nível. Sendo assim ele pôde retornar á sua rotina diária, com sua bicicleta e com um sorriso no rosto. Seu Anastácio é uma pessoa simpática que é amigo de muitos ali pelas redondezas, os amigos falam que é uma pessoa que gosta de conversar e se deixar ele puxar conversa o dia inteiro, se nossa equipe de reportagem quisesse poderia passar o dia conversando sobre histórias dele. Porém, ao ouvir os trovões que anunciavam mais fortes chuvas, ele se foi, afinal, sua esposa e seus animais precisam dele e de sua bicicleta. RHIAN BERGHETTI FERNANDA SALLA


12. SOLUÇÕES

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Liberdade para brincar Bonecas, bicicletas, skates e cordas são os jogos preferidos das crianças do Vicentina

F

açachuvaousol,paracrianças viver é uma brincadeira. E com essa leveza de ver o mundo, um pequeno grupo brinca diariamente em uma calçada na rua Capitão Armindo Bier, no Vicentina Essa calçada fica em frente à residência de Cleci Fátima dos Santos, de 49 anos, que está no bairro há 15 anos. Ela é avó de Eduarda e Mariana, que juntamente com mais quatro meninas e um menino, passam os dias rindo e divertindo-se das mais variadas formas. Engana-se quem pensa que todas as crianças de hoje apenas divertem-se com jogos de computador. A realidade daqueles garotos é bem diferente. Suas brincadeiras transitam entre bonecas, bicicletas, skates e cordas, a não ser em dias chuvosos, quando o divertimento se restringe a assistir desenhos animados dentro de casa. As irmãs Eduarda e Mariana Santos, de 7 e 3 anos, respectivamente, moram na casa que serve de ponto de encontro do grupo. Juntam-se a elas, Amanda Micheli, 11 anos, Vitória Nadir, 4 anos, Isis Moralles de Ávila, 9 anos, Samanta da Silva, 5 anos

As semanas seguidas de chuva deste inverno evidenciam problemas que os moradores dizem ser comum nas casas do Vicentina: infiltração e mofo. A estrutura do bairro favorece ao alagamento e essa umidade permanece dentro das residências. Cristiane Chagas, 28 anos, e Ricardo Santos da Silva, 40 anos, estão há oito anos construindo uma casa no bairro. Enquanto não ficava pronta, eles moravam em um lugar menor nos fundos do terreno. Com alívio, Cristiane conta que o primeiro andar do novo lar ficou pronto na semana em que uma das piores enchentes atingiu o Vicentina, em julho deste ano. O casal perdeu um ventilador, uma sapateira e um sofá. O restante dos pertences já estavam na casa nova. Mas fora a enchente, a alta umidade do ar acaba causando outros prejuízos.“O nosso guarda-roupa estava todo mole na mudança por causa da umidade e acabou ficando torto”, relata a auxiliar de serviços gerais. A moradora mostra as manchas que o mofo já deixou nas paredes recentemente pintadas. No lado de fora

e Kevin Mateus dos Santos, 8 anos, o único menino da turma. Esse entretenimento mais contido tem sido recorrente nos últimos tempos, pois fortes chuvas têm castigado o Rio Grande do Sul nos últimos meses, e o Vicentina tem sofrido grandes consequências com esse fato. Cleci mostra marcas ao redor da casa, onde a cheia a atingiu pela última vez. Segundo ela, as madeiras que revestem seu lar ficaram danificadas, e existe um certo receio ao se encostar nas paredes, pois haveria a possibilidade de que elas se quebrassem. Mas a chuva não é a única preocupação da moradora. A falta de segurança tem ocasionado situações de extremo perigo para os moradores do Vicentina. E essa triste realidade tem perturbado não só os adultos. Cleci também é avó de Nicolas dos Santos, de apenas 11 anos. Ela conta que devido aos problemas de insegurança no local, ele anda mais quieto que o costume, evita aparecer em fotografias e já não sorri como antigamente. Ela garante ainda que seria melhor se houvesse algum lugar para as crianças irem em seu contra turno escolar, que as mantivessem protegidas. Há um tempo atrás havia o Centro Medianeira, que cumpria esse papel, mas

teve suas atividades encerradas porque atendia as crianças no Parque do Trabalhador, local que vem apresentando grandes riscos, como já mostramos em outras edições do jornal Enfoque Vicentina. Mesmo com todos os problemas devido à chuva e a falta de segurança, aquela turma de sete meninos não tira o sorriso do rosto e sonha com um futuro melhor. A maioria deles deseja ser professor ou médico. “Que-

Gota a gota das duas casas do pátio estão as marcas da infiltração e limo. Além do mau cheiro, o excesso de umidade prejudica os problemas respiratórios de Cristiane e do filho Vinícius, de 2 anos. Para amenizar a situação, o casal conta que passou piche nas vigas da casa nova e massa corrida com impermeabilizante nas paredes para evitar a entrada de água. “A gente tá sempre limpando com ‘tira limo’, alvejante e usando antimofo dentro de casa”, conta Cristiane. Clarice Terezinha de Campos, 33 anos, também procura investir na infraestrutura da casa para estar mais segura durante os dias de chuva do inverno. Parte da sua casa já é de alvenaria, mas o sonho da cozinheira é reformar os quartos e a sala que são de madeira. “A madeira é mais quente, mas entra água pelas frestas e ela fica mais tempo úmida”, explica. Na casa em que mora com o filho Gabriel, 10 anos, a filha

Gabriele, 16 anos, e o esposo José Carlos Dorneles Barbosa, 49 anos, a cozinha é de alvenaria, mas tem uma grande infiltração. Nem as novas calhas e telhado impedem que a água entre. O banheiro é um dos pontos mais úmidos da casa, tanto que parte do armário novo do ambiente já

Chuva não atrapalha a brincadeira

ro salvar as pessoas”, explicou Eduarda, após expor sua escolha em cursar medicina. Talvez, essa vontade de querer ajudar o próximo seja originária das dificuldades que enfrentam, mesmo ainda sendo crianças e moradoras de um bairro que gera tantas amizades, e que se utiliza desse sentimento para constantemente se reconstruir. TUANNY PRADO CAROLINA ZENI

está mofado. Clarice conta que antes molhava muito mais. Hoje a sua casa já tem uma área que protege da chuva. As famílias de Cristiane e Clarice sofrem para lidar com os problemas gerados pela umidade. Elas, assim como muitos moradores do Vicentina, precisam encontrar soluções criativas para enfrentar os impactos da chuva. EMILENE LOPES THAYNÁ BANDASZ

Para tirar o mofo Dicas práticas para lidar com a umidade das casas: Para eliminar as manchas de mofo dos azulejos e rejuntes esfregue metade de um limão e depois enxágue com água.

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As manchas de mofo das roupas podem ser resolvidas com vinagre. Passe delicadamente sobre a mancha uma escovinha encharcada com vinagre branco e deixe agir por 15 minutos. Depois, coloque água quente e deixar secar. Em seguida, lave a peça.

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Para controlar a umidade do ar preencha alguns potinhos até a metade com bicarbonato e coloque em vários pontos da casa. Quando o pó formar pequenas bolinhas, é a hora de trocar.

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Se o guarda-roupa está com mau cheiro tire suas peças de dentro, vinagre branco dentro de um borrifador (pode ser um antigo frasco de um limpa-vidros) e espirre em todos os cantos, até nas gavetas. Passe um pano úmido e deixe secar com as portas abertas.

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Mofo e bolor marcam as paredes das casas do bairro


ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO (RS) | OUTUBRO / 2015 |

EDUCAÇÃO .13

Após a tempestade Apaixonada por crianças, moradora mantém escolinha infantil

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escolinha da dona Zete, no bairro Vicentina, estava silenciosa e vazia naquela manhã nublada de sábado, 19 de setembro de 2015. No pátio, onde fica o escorregador, a cama elástica e o gira-gira, apenas as gotas de chuva desfrutavam dos brinquedos, cobrindo-os por inteiro. Era o dia de folga de Nazarete Silveira, ou Zete, para os íntimos. Atualmente, Zete cuida de treze crianças, de um a onze anos de idade, e conta com a ajuda de mais uma senhora. A escolinha fica nos fundos da casa dela. Além dos brinquedos da rua, há muitos outros dentro do espaço interno, como bonecas, bichinhos de pelúcia, jogos, videogames e carrinhos. Nos dias de chuva, a diversão é garantida dentro da creche. O problema é quando os alagamentos impedem os pequenos de chegarem na casa verde da dona Zete. “Na última enchente que teve, quase metade das crianças não puderam vir porque as ruas estavam cheias d’água. Alguns tinham água até dentro de casa”, contou a dona da escolinha. A umidade e trocas bruscas de temperatura também acabam afetando a saúde da garotada. Os dias cinzas também podem ser felizes, principalmente quando as crianças estão na companhia da dona Zete. Além de todas as brincadeiras, o jeito animado dela contagia os pequenos, que às vezes chegam a chamá-la de mãe, de tão íntimos que se sentem. “Eles se penduram nas minhas pernas e braços. Me perguntam como eu aguento e se não me machuco, mas estou acostumada e me divirto junto”, explicou. O jeito brincalhão de Nazarete já é conhecido por todos. Nas reuniões de família, ela passa mais tempo com os jovens do que com os adultos. Quando chega nos lugares, entretém todos os pequenos. “Eu sempre fui muito moleca. Sabe aquela cama elástica ali do pátio? Pulo nela junto com as crianças”, brincou, dando risada. PERDA E SUPERAÇÃO Apaixonada por crianças, Zete já teve três filhos, porém, perdeu dois deles. O primeiro foi Luis, aos 15 anos de idade. Depois, Luan também morreu, com 13 anos. Ela se dedicou por muito tempo, cuidando dos garotos, mas, infelizmente, ambos faleceram por uma doença na coluna que pressionava os órgãos. O seu terceiro filho, Nataniel, tem 22 anos, atualmente.

NICOLE CAVALLIN

Mesmo com todo esse sofrimento, Zete optou por trabalhar em contato com as crianças, em uma creche. Depois, abriu a própria escolinha, onde já recebe a meninada há três anos. “Não sabia se ia conseguir, se não ia acabar lembrando ainda mais dos filhos que perdi. No início foi muito difícil”, revelou a mãe. Segurando nas mãos o cachorrinho de pelúcia que era de Luan, ela conta que as crianças da creche sempre ajudaram na superação dos seus problemas e dúvidas. “Eles sentem quando eu não estou bem. Não preciso dizer nada, mas eles sabem, e são ainda mais carinhosos nesses dias. Me abraçam e dizem que me amam”, contou Zete. EDUCAÇÃO COM LIBERDADE O motivo principal para Zete sair da creche onde trabalhava e iniciar a sua própria foi o fato do sistema adotado pelo local ser diferente do que ela acreditava ser o correto para educar e cuidar de crianças. “Tem hora de comer, hora de dormir, hora para tudo. Se a criança não come naquele momento, só vai poder no próximo horário. Como alguém vai comer se não tem fome e dormir se não tem sono? A maioria das escolinhas são assim e eu não concordo com isso”, afirmou. Após o almoço, a dona da escolinha no Vicentina se preocupa em colocar a garotada em um espaço tranquilo, com colchões, para que eles relaxem. “Mas não obrigo ninguém a dormir, eles podem assistir TV ou conversar. Só não é bom ficar se agitando muito depois de comer, se não passam mal”, explica Nazarete. A escolinha é cheia de brinquedos e jogos. Zete vive comprando coisas novas para as crianças se divertirem. Mas, além das brincadeiras, eles também participam de outras atividades que ajudam na coordenação motora e no desenvolvimento de habilidades. A parede da sala é quase inteiramente coberta por trabalhinhos de recorte, cola, desenho e pintura feitos pelas crianças. Quanto ao vocabulário, Zete não admite que eles falem palavrão na creche. “Tem alguns que dizem muito. Provavelmente escutam em outros lugares e acabam repetindo, eles não têm culpa. Mas não deixo que eles falem palavras feias e brinco dizendo que vou colocar pimenta na boca deles”, frisou Zete. CRISE E FALTA DE CRECHES Do outro lado da rua, em uma casa também verde, mora a pequena Sofia, de um ano e cinco

MÁRCIA ÁVILA

meses. A filha de Paulo Cesar dos Santos, vigilante à noite e Clarinda Rodrigues, funcionária de uma empresa de calçados durante o dia, é uma das frequentadoras da escolinha da dona Zete. O casal tem mais um filho, o Antônio Cesar, que com cinco anos de idade conseguiu uma vaga na Escola de Educação Infantil Pimpolhos e Cia, no Vicentina. Antes disso, ele também passou alguns meses na creche da Zete. As raras escolinhas gratuitas são muito disputadas no bairro. O pai explicou que, quando conseguiu vaga para o filho na creche pública, pôde investir o dinheiro economizado, colocando a Sofia na escolinha da Zete. Paulo Cesar conhece Nazarete desde a adolescência e acredita muito na competência do trabalho da vizinha e amiga.

“É uma pessoa de confiança para nós, nos sentimos muito tranquilos em deixar nossos filhos com ela”, afirmou. Além da falta de creches, a crise financeira tem afetado todas as pessoas, inclusive os pais, que deixam seus filhos aos cuidados de Nazarete. “Nos últimos dias, quatro crianças tiveram que sair aqui da creche porque as mães ficaram desempregadas. Estão acontecendo várias demissões”, contou a dona da escolinha. AMOR PELO QUE FAZ Faça chuva ou faça sol, a dona Zete continua com a escolinha nos fundos de casa. Às vezes, o “mau tempo” traz dificuldades, mas ela não desiste. Muita gente já ficou devendo, muitas

Nazarete Silveira zela pelo bem-estar dos pequenos

coisas já foram compradas para melhorar o lugar e muitas vezes ela já teve que desembolsar mais do que receber. Zete chegou a pensar em morar com seu atual namorado, em Porto Alegre, e fechar a creche. Mas ela percebeu que não seria feliz assim. No fim eles conseguiram resolver o problema de outra forma. “Ele vai vir morar comigo aqui e me ajudará com a escolinha. Tem cinco filhos e quatro netos. Adora crianças”, explicou. O amor de Zete pelas crianças é óbvio. É possível perceber, só de observar o brilho em seus olhos, enquanto fala da garotada. Após a tempestade, os pequenos raios de sol iluminaram o seu coração. JONARA CORDOVA MÁRCIA ÁVILA NICOLE CAVALLIN


14. MISTICISMO

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Todo o material é organizado e confecionado pela artesã

A cigana e a casa dos enigmas Local abriga objetos místicos, que refletem os significados de cada influência na vida de Gislaine

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em é preciso passar pelos portões para perceber que a decoração da casa de Gislaine Maria Flores de Moraes é diferenciada. Da frente, já se pode ver os detalhes emblemáticos por todo o ambiente. A beleza dos objetos cativa, mas são as histórias de porque cada espaço foi confeccionado e organizado por ela que mais encantam. Todas as composições têm um significado conforme influenciaram na sua procedência e formação. Gislaine é cigana, descendente de um povo do Oriente, povo andarilho, sábio, místico e alegre, segundo relata com muito orgulho. Nasceu em São Martinho da Serra, interior de Santa Maria, região central do Estado, e aos sete anos, veio para São Leopoldo, onde já residiu em diversos bairros. Hoje, com 56 anos, é professora de educação artística fora de atividade e segurada pelo INSS. Tem um casal de filhos e cinco netos. A filha mora distante, em Santa Catarina. O filho, mais perto, na Vila Tereza. Os dois são casados

e vivem com suas famílias. Ela tem um namorado, mas o parceiro inseparável é seu animal de estimação, o cão Bili, de 13 anos, que a faz companhia na casa em que mora há dois anos. Desde criança, frequentava centros de Umbanda, levada por seu pai, já que a mãe faleceu muito cedo. Aos 14 anos começou a receber entidades (incorporar seres espirituais da religião) e, há 20 anos, é cacicada - como se fosse graduada - para prestar atendimento espiritual: joga cartas, dá passes e realiza trabalhos de abertura de caminhos. Trata-se da Umbanda Nação. O Umbanda antigo, que cultua o espírito e o contato com a natureza. Realiza oferendas somente com elementos naturais: folhagens, ervas, pedras, água, por exemplo, sem o sacrifício de animais. Cada entidade trabalhada tem um propósito: saúde, luta, justiça, teto, afeto, alimento, alegria, limpeza, equilíbrio, amor, cura, sabedoria, etc. Misturando essas culturas, crenças e mistérios da tradição cigana e da religião umbandista, com muita satisfação, recebe todas as segundas-feiras, cerca de 30 a 40 pessoas em sua casa. Mais um motivo para tantos ambientes aconchegantes e energizantes. Ela já trabalhou profissionalmente

com artesanato, mas, atualmente, se dedica somente a tornar mais interessante, bonito e aconchegante o seu lar para recepcionar a todos. Seu maior prazer é abrir a sua casa e atender bem a quem procura por paz de espírito e proteção. Diz que é um dom que vem e tem que ser cumprido com êxito. A CIGANA “A cigana simboliza os mistérios da vida e a sedução do amor. A cigana canta e dança, tanto na alegria, como na tristeza, pois, para o povo cigano, a vida é uma festa e a natureza a mais bela e generosa anfitriã. A feminilidade cigana está sempre atenta para ouvir o chamado místico que a une, corpo e alma, com as forças maiores que regem o universo”, Gislaine Maria. Todos esses mistérios, aliados aos dotes do artesanato artístico e o amor pela natureza, resultaram em espaços místicos e únicos, pois é ela quem confecciona tudo com sua própria criatividade, conforme faz questão de frisar, que nem tem internet em casa e pouco assiste televisão. Ela inventa e reinventa objetos com material reciclado, restaura e customiza

móveis antigos, faz adaptações e transformações com espelhos garrafas, pedras, pneus, latões e muitos objetos achados em ferro-velho. Cada canto da casa tem um significado, apesar de todos serem muito bonitos, não são só enfeites. Tem o “congá”, um espaço mais reservado, onde ficam as imagens de santos, todas separadas por povos ou elementos. Em uma das paredes, uma fonte, formada por uma gaveta decorada por pedras, acoplada a uma pia de lavabo, fonte que representa a origem da vida. Ao lado, fica o ambiente mais místico, com miniaturas de bruxas, de caboclas e outros objetos que ela ganha. O espaço cigano, decorado com espelhos que refletem a vida, tem como principal adorno uma roda de carreta, para simbolizar o seu povo andarilho. Essa é a roda da vida e dos caminhos, que também é encontrada, maior, bem na frente da casa, em um local onde as pessoas podem sentar para conversar, ler um livro ou até fazer um lanche. Tudo decorado com muitos vasos de folhagens e flores. Na peça de entrada, ela tem penduradas diversas “mandalas”. São tampas de latões com imagens, pedras e brilhos colados. Cada uma re-

presenta algo da sua cultura e da sua religião. Tem também a mesa e os bancos constituídos de troncos de uma árvore tombada. Os sofás de paletes de madeira. As chaleiras utilizadas como vasos para coloridas flores. A cortina que reserva o ambiente da piscina e uma palmeira feitas de garrafas PET. Enfim, para ela é possível o aproveitamento de tudo que parece lixo. O VALOR DA NATUREZA “É preciso que o mundo cuide mais da natureza, ao invés de só comprar. Hoje, não se valoriza a parte espiritual, as pessoas visam somente a parte financeira. Tudo que não aproveitamos, todo lixo que tu jogas fora, pode voltar para ti, em poluição ou em alagamentos, como ocorreu há pouco tempo. Se não tem como cuidar de uma flor, pode ter alguma coisa para enfeitar a casa que lembre algo natural. Precisamos estar em harmonia com a natureza, pois dependemos dela para viver. Agradecer cada momento de chuva e cada dia de sol. Pisar no verde, na água e na areia da praia, sempre descalço, captando essas boas energias”, Gislaine Maria. ADRIANA CORRÊA NICOLLE FRAPICCINI


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TRADIÇÃO .15

Chuva, churrasco e bom chimarrão Comércio e cultura gaúcha são marcas de Acampamento Farroupilha no Parque do Trabalhador

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em a chuva torrencial que caiu sobre São Leopoldo fez com que os tradicionalistas desistissem das atividades programadas para homenagear os heróis farroupilhas na “semana do Gaúcho”. Nos 42 piquetes do Acampamento Farroupilha, instalado no Parque do Trabalhador, no bairro Vicentina, o tradicionalismo gaúcho esteve ainda mais em evidência na última semana do evento anual. Desde o dia 10 de setembro, os tradicionalistas do Rio Grande do Sul e amantes da cultura gaúcha esteve reunidos no acampamento farrapo, aproveitando a programação voltada ao resgate da cultura e das crenças gaúchas. “Isso aqui para nós é o resgate da cultura. Durante o ano temos o costume de vir para cá, fazer um churrasco nos fins de semana, mas na semana farroupilha é que conseguimos reunir todos os amigos para esta festa cultural”, contou o aposentado Jesus de Freitas de 58 anos. Ao longo dos dez dias a programação envolveu muita mateada, prosas e apresentações artísticas e culturaisqueatraíramgrandepúblico todas as noites, além da tradicional tertúlia.“Temos orgulho dos nossos antepassados e queremos plantar a semente para novas gerações e disseminar nossa cultura para que

o movimento se fortaleça cada vez mais”, falou Jesus, que diz viver o tradicionalismo gaúcho desde os primeiros dias de vida. Nem a chuva, que costuma castigar o Estado durante os mês de setembro, impediu que o público frequentasse as dependências do Parque do Trabalhador. Conforme o vice-presidente da AGAP, o movimento foi considerado normal, como já ocorrera em outros anos. “A chuva sempre prejudica o acesso, já que fica esse lamaçal, mas todos os anos chove e passamos por isso. Nada impede nossa festa”, explica. Jesus diz que é preciso ser sensato para facilitar o acesso ao parque..Segundo ele, às vezes é necessário abrir alguma exceção . “Por exemplo, é proibida a entrada de carros no parque, mas quando está chovendo e as escolas estão trazendo os alunos para almoçar em um dos piquetes, nós permitimos que o transporte deixe eles dentro do parque e depois estacionem do lado de fora, é questão de bom senso”, explica. MELHORIAS Os tradicionalistas vivem a expectativa de melhorias na área ocupada por eles durante o mês de setembro, isso porque um antigo sonho dos cidadãos leopoldenses passou a ser realidade. O Parque de Recreação do Trabalhador, com uma área de 80,46 hectares, passou a ser administrado pela Prefeitura, através de uma concessão de uso

de 20 anos adquirida junto ao Estado. Até a metade do mês de setembro área estava sendo gerenciada pela Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS). O documento oficial foi assinado pelo governo do estado. Segundo o prefeito de São Leopoldo, Anibal Moacir, o município irá revitalizar o espaço para que o mesmo tenha um melhor aproveitamento por parte da comunidade do município. “Recebemos com alegriaestaresponsabilidade,porque a comunidade de São Leopoldo poderá aproveitar melhor este espaço, que será destinado para fins sociais, educacionais, esportivos e depreservaçãoambiental”,destacou o chefe do executivo municipal. Ainda segundo ele, a comunidade será ouvida em relação ao uso da área, para que “efetivamente os leopoldenses sejam os beneficiados com a conquista”. Conforme Jesus de Freitas, em um almoço ocorrido durante a semana farroupilha, o prefeito se comprometeu a fazer a pavimentação do parque. “O prefeito veio aqui e almoçou com a gente e se comprometeu a fazer a pa-

No mês de setembro, o Vicentina vive o clima do campo

vimentação para que as pessoas não precisem mais pisar no barro”, disse Jesus. Responsável pelas tratativas com o governo do Estado para viabilizar a cedência de uso, sem ônusparaoMunicípio,ovice-prefeito Daniel Daudt Schaefer enfatizou que “a gestão da área, através da Prefeitura, ajudará a um cuidado maior e de oferecer melhor uso para a comunidade de São Leopoldo”. VENDAS Nem tudo é festa no Acampamento Farroupilha da Vicentina, os comerciantes queixam-se das baixas vendas do comércio no local. A maioria deles atribui a queda das vendas ao mau momento econômico que vive o país. Para Lourdes Machado, 41 anos, proprietária do único Bolicho do parque, as vendas não estavam a contento em relação a anos anteriores . Segundo ela, a instabilidade econômica está afastando os clientes que não estão podendo comprometer parte da renda com lazer. “Em anos anteriores, nesta época as lojas sempre estavam cheias, mas o pessoal está sem dinheiro para comprar”, enfatiza a comerciante, que diz alugar o mesmo espaço no parque nos últimos 6 anos. Lourdes ressalta que mesmo com as vendas em baixa os produtos mais vendidos são a famosa carne de charque e a costela de gado. Eluza de Freitas, 46 anos, proprietária de uma fabrica de

espetos e facas em São Leopoldo, diz não ter como fazer comparações, já que este é o primeiro ano que eles se instalam no parque. Proprietária de uma fabrica de espetos e facas, ela conta que as vendas estavam baixas, mas melhoraram nos últimos dias do acampamento. “É nosso primeiro ano aqui, as vendas foram fracas ao longo da semana, mas deu uma melhorada nos últimos dias”, argumenta Eluza. Na tenda também eram comercializados chaveiros e trava espetos. O parque possui algumas hortas onde os próprios moradores cultivam algumas verduras e legumes que são vendidos durante a semana farroupilha.“Temos um espaço para plantar no fundo do parque, mas não estamos vendendo nada, as pessoas acham tudo muito caro, ficamos aqui só para dizer que estamos aqui”, lamentou João Pedro de Mello, morador do Vicentina dede 1980. Uma chuva de granizo destruiu parte da plantação de João Pedro. Segundo ele, algumas verduras tiveram que ser jogadas fora. Em 2015, oito pontos comerciais estavam instalados no parque do Trabalhador em São Leopoldo, o cadastramento foi realizado junto a AGAP, o aluguel do espaço variava de R$ 400 a R$1.800,00, conforme Jesus de Freitas a variação de preço se dá devido à localização e o tamanho dos espaços cedidos. DIJAIR BRILHANTES MATHEUS BECK


ENFOQUE VICENTINA

SÃO LEOPOLDO (RS) OUTUBRO DE 2015

OLHAR DE REPÓRTER

Sair da zona de conforto

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ão esperava encontrar grandes histórias no Bairro Vicentina, na verdade, encontrar uma pauta que se diferenciasse das edições anteriores, era um desafio para mim. Ledo engano. Todas as pessoas precisam, pelo menos uma vez na vida, sair da sua zona de conforto e ver a realidade que está ali bem próxima e, muitas vezes, não queremos enxergar. Aquele sábado chuvoso no Vicentina me fez mudar a forma de pensamento sobre tudo. Aprendi a dar mais valor as coisas simples do dia a dia. E por que não dizer, a reclamar menos? Eu, que sempre tive fama de “reclamona”, tomei um choque de realidade que não esperava. A família da Fabiana me ensinou uma lição de vida que vou levar comigo pra sempre: tu não podes fugir do problema, mas tu podes enfrentá-lo e superá-lo. Ninguém imagina que seu filho possa ter a perna quebrada na hora do parto, ninguém espera voltar pra casa e ver que a água levou praticamente tudo, ninguém quer perder um animal de estimação vítima de enchente, mas isso não quer dizer que essas coisas não possam acontecer só por estarem longe da nossa realidade. “Você nunca sabe a força que tem, até que sua última alternativa é ser forte”, uma vez eu escutei essa frase e ela nunca havia feito tanto sentido como faz agora. Pessoas que perdem tudo com as enchentes já é uma notícia comum, vemos todos os dias nos jornais, mas conhecer essas pessoas, suas histórias, sua luta diária, é muito diferente. Escrever essas histórias foi muito marcante. JÉSSICA BELTRAME LEONARDO OZÓRIO

O sol do Vicentina Cheguei no Vicentina com minha pauta determinada. Eu iria falar sobre crianças entrevistando elas próprias. Logo quando fui distribuir os jornais da edição anterior do Enfoque, entrei na mesma rua em que havia estado na visita anterior e vi um grupo de crianças em frente a uma casa. Todas ficaram alvoroçadas e pediram muitos exemplares do jornal. Percebi que ali é que eu deveria desenvolver minha matéria. Fui me aproximando e pedindo para conversar com elas, e quando eu vi, o número de crianças ao meu redor já havia dobrado. Todas estavam muito animadas e faziam questão de falar comigo. Quando, com o auxílio da fotógrafa Carolina Zeni, indaguei sobre as brincadeiras que eles costumavam realizar, até uma corda apareceu para que começassem a pular em demonstração. Na parte em que elas se divertiam, o chão estava embarrado devido ao dia anterior, em que tinha chovido torrencialmente. Mesmo assim, elas sorriam, como se o dia estivesse ensolarado. Mas logo em seguida o tempo fechou, se iniciaram as trovoadas

e eu, que já estava mais preocupada com a água que cairia e com os equipamentos que não podíamos deixar molhar, perguntei se aqueles meninos ali, tão pequenos, não tinham medo do mal tempo, pois aquela região costuma sofrer com enchentes. Todos me olharam, como se eu fosse estranha, começaram a rir e disseram que não.

Naquele momento eu entendi que havia acertado na escolha da minha pauta, pois a simplicidade com que uma criança vê o mundo ao redor dela é contagiante e passa esperança de uma vida melhor em qualquer lugar. TUANNY PRADO CAROLINA ZENI

EDIÇÃO

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