Josefa 1

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ano

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2015/1 Revista experimental do Curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre

QUANDO FOI A ÚLTIMA VEZ QUE VOCÊ FEZ ALGO PELA PRIMEIRA VEZ?

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Cartaaoleitor N

ARRISQUE-SE tas de quitutes; mesmo as sedas e os bordados, eram substituídos pela rebeldia, patriotismo, pólvora e fogo. Neste meio machista e peculiar aos homens, aquela franzina, mas combativa e heroica mulher, soube igualar-se a todos, esgrimindo com valentia e desassombro as armas que mais sabia usar: a palavra, o texto, o jornal”. Quem tem uma pioneira como inspiradora, não poderia deixar de arriscar-se. Sendo assim, os repórteres da Josefa, utilizando técnicas de jornalismo literário, decidiram fazer algo que nunca tinham feito e contar suas experiências – em

primeira pessoa – para seu novo público. Você. Aos fotógrafos, coube a difícil tarefa de captar imagens que mostrassem não só como foram essas estreias, mas também como são os mundos que seus colegas resolveram desbravar. Maria Josefa não teve uma vida fácil. Quando nasceu, foi abandonada na porta da casa de uma família, que lhe adotou. Sempre corajosa, foi abandonada também pelo marido e viu seus dois filhos morrerem. Os repórteres da revista que leva seu nome também tiveram que ser corajosos. Alguns mais, outros menos, mas todos aceitaram encarar o novo. É esse o legado que deixarão para os colegas que virão: não ter medo. E é essa a provocação que querem lhe fazer: arrisque-se! Vale a pena. Boa leitura. Luis Felipe Matos

este exato momento, você tem a oportunidade de fazer algo que nunca fez. Ler a Josefa. Esta é a primeira edição da revista produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da Unisinos Porto Alegre, que reserva algumas surpresas. Você provavelmente também não sabe quem foi a Josefa. Pois a gaúcha Maria Josefa Barreto Pereira Pinto foi a primeira mulher jornalista brasileira. Mãe, feminista, culta, poeta, escritora e professora, dirigiu dois jornais, sendo proprietária de um – o Belona Irada contra os Sectários de Momo –, que circulou em Porto Alegre entre 1833 e 1834. O historiador e jornalista Roberto Rossi Jung define assim nossa homenageada em um livro biográfico: “A notável jornalista gaúcha queria apenas alcançar – e com maestria o fez – os objetivos políticos que sempre esteve envolvida, numa arena banhada por sangue revolucionário, numa época conturbada e belicosa, onde a poesia, o lirismo ou recei-

Thaís Furtado Professora editora de textos Bruno Alencastro Professor editor de fotografia

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ndice

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Enfrentei meus medos e voei

Bicicleta em jogo

Forçando a barra

ConteĂşdo digital

medium.com/josefa-1

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Thalles Campos

22 Ensaio fotográfico

24 30 36 Um, dois, três, quatro, Pumpkins!

Um silêncio incômodo

Com um vestido da minha mãe

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PARAGLIDER

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Luis Felipe Matos

ENFRENTEI MEUS MEDOS E

voei

O Morro Ninho das Águias é um dos locais preferidos de quem pratica voo livre

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PARAGLIDER

Texto Luana Schranck Fotos Cintia Fernandes e Luis Felipe Matos

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ma explosão de coisas que eu poderia fazer pela primeira vez veio na minha cabeça. Apesar de parecer fácil, o tema “Estreia” para uma reportagem foi bem desafiador. Eu queria algo que precisasse muita coragem e que, provavelmente, me mudasse. E foi nesse momento que eu consegui achar minha pauta ideal para esta matéria: voar. Minhas pernas tremem e a tontura começa quando estou a 15 metros do chão. O medo de altura nunca foi superado, nem mesmo quando trabalhei no 18º andar de um edifício. Mesmo assim, resolvi arriscar. A escolha mais tentadora para a reportagem foi o paraglider.

O abismo do medo Os ponteiros do relógio marcavam 7h quando saíamos de Porto Alegre em direção ao Morro Ninho das Águias, em Nova Petrópolis. O dia

começava frio, temperatura de 12°C. Os primeiros raios tímidos de sol já mostravam que seríamos contemplados com o clima ameno de outono. E minha mãe nem imaginava para onde eu estava indo (desculpa, mãe!). Seguimos a Rota Romântica. Uma das mais belas vias para a Serra Gaúcha. Eu me mantinha tranquila. O clima dentro do carro era calmo e com conversas humoradas. Os fotógrafos e eu parecíamos três amigos de infância viajando pelo Estado. Pouco mais de 70 quilômetros depois, mudaria um pouco. Já passava das 9h e estávamos nos aproximando do nosso destino final. Km 187, limite das cidades Picada Café com Nova Petrópolis. Entre os mais diversos cenários da natureza, apareceram na janela do carro aqueles canyons que mais pareciam abismos. Exagero meu. Afinal de contas, até então eu era aquela mesma pessoa que tremia quando ficava em uma altura maior que 15 metros. Foi aquela paisagem que levou minha calma e trouxe o temor. Mal sentia minhas pernas. A vontade de desistir e voltar para casa estava sendo tentadora. Os pensamentos

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Sinal vindo do além A pouco mais de dois quilômetros da rampa de voo, já subindo o Morro Ninho das Águias, passamos por um cemitério. Ele era bem pequeno, não devia ter mais que 40 túmulos. Decidimos parar porque achamos muito bonito o lugar. O local era deserto. Não havia nenhuma residência por perto. Estava calmo e silencioso. Comecei a caminhar entre as covas e a observar os nomes e fotos daqueles que descansavam eternamente. Percebi que os túmulos estavam organizados de acordo com a idade da morte, divididos em três fileiras, do mais novo ao mais velho. Na fila da frente, os mais velhos; na última, os bebês que, no máximo, conseguiram completar uma semana

Cintia Fernandes

Eu estava apavorada, mas adorando tudo o que meus olhos conseguiam enxergar. E era muito.

negativos surgiam como bombardeio, e tudo que eu dizia era: “Maldita ideia que eu tive”. Entretanto, era tarde demais e estávamos a pouco menos de 10km do Ninho das Águias. Os morros, ao meu olhar, eram abismos da morte. Quanto mais o destino final chegava, mais meu nervosismo aumentava.


Cintia Fernandes

de vida. O último a ser enterrado ali morreu em 28 de outubro de 2013. Perto, havia um outro túmulo ainda sem morador. Pensei: “Esse está esperando por mim”. Ver, na subida do Ninho das Águias, um cemitério era, para mim, um presságio de morte certa. Sou dramática mesmo.

Sonho de Ícaro Já dizia a música do cantor Byafra: Voar, Voar / subir, subir ir por onde for / Descer até o céu cair ou mudar de cor / Anjos de gás, asas de ilusão. A letra é em homenagem a Ícaro que, na mitologia grega, é conhecido pela tentativa de deixar o labirinto de Creta com asas de cera de mel e de penas de gaivota. Mas elas foram derretidas pelo Sol e ele morreu. Assim como Ícaro, grande parte das pessoas tem o sonho de voar. Também sirvo como exemplo disso. A vontade de poder correr pelas nuvens sempre foi forte, até maior do que o meu receio de altura. Quando chegamos ao topo do morro, numa altura de 710 metros, aquela vontade de desistir ficou mais forte ainda. Ao me deparar com a rampa de voo e todo aquele horizonte, o arrependimento bateu e o pavor tomou conta de mim. Tudo era minúsculo: casas, carros, pessoas. Foi então que os primeiros instrutores e alunos chegaram para participar de uma competição que ocorreria na parte da tarde. Não dava mais para desistir. No mês de maio, a temporada de voo no Morro Ninho das Águias é aberta. Durante todos os fins de semana do mês, são realizados voos e competições entre pilotos de asa delta e paraglider. O presidente do Clube Ninho das Águias, Marcel Marsillac,

instrutor também de asa delta, me deu conselhos muito importantes para o voo. Ele coordenava os competidores para as decolagens e pousos e cuidava também das inscrições. “É bom ter medo de altura. Eu faço voos há 31 anos e ainda tenho medo. O importante é não perder o temor, mas também não travar na hora que já estiver na rampa pronta para voar. O equipamento é muito seguro e você estará bem acompanhada com um profissional muito competente”, me animou Marcel. A peça principal para realização do meu sonho foi o fundador da escola de paraglider Cia. do Ar, Flávio Pinheiro. Professor, instrutor e um dos precursores de escolas deste tipo de esporte, Flávio me dava segurança e eu sentia estar em boas mãos. Todos na competição o conheciam. Ele não gostou muito quando falei que parecia uma celebridade. “Acho que sou mais amigo e conhecido de todos do que uma pessoa popular. Já estou nisso há quase 30 anos. Conheço muitas pessoas que praticam esses esportes”, contou. Logo que chegou ao Ninho das Águias, depois de cumprimentar praticamente todas as pessoas presentes, Flávio começou a explicar como funcionava o paraglider. A asa, também chamada de velame, é feita de tecido e tem uma série de celas de câmaras de ar. “O ar entra na frente dessas celas e não tem por onde sair. Cria uma pressão interna e dá esse formato de asa”, explica o instrutor. Enquanto conversávamos, Flávio colocava o capacete em mim e ajustava o arnés, a cadeira que sustenta quem está voando. Acho que fui pega no susto. Pensei que primeiro iríamos conversar e depois colocar e arrumar todo o equipamento. O instrutor fez melhor, foi falando comigo e me equipando quase sem eu perceber que já íamos voar. Minhas pernas estavam dormentes. E foi no susto que eu deixei o solo.

Ao infinito e além Tivemos que fazer uma corrida para pegar impulso e fazer o paraglider empinar, como se fosse uma pipa. Na primeira tentativa, travei antes mesmo de dar o primeiro passo. Outro instrutor disse: “Vamos! Vamos!”. Fui. Flávio e eu demos | 00/ 2015 | 9


PARAGLIDER

Cintia Fernandes

uma corrida de não mais que 30 passos. O grito ficou preso dentro da minha garganta e eu fechei os olhos. Somente quando não senti mais o solo, voltei a olhar onde estava. E tudo que eu conseguia falar era: “Meu Deus! Meu Deus!”. A primeira coisa que vi foi meu All Star branco em contraste com o verde das árvores dos morros à frente. Gelei. Não tinha mais volta. Eu estava voando e morria de medo. “Viu? Conseguimos! Agora olha só para o céu e para os outros paragliders que estão acima de nós”, aconselhou Flávio. Olhei para cima. As nuvens nunca estiveram tão próximas das minhas mãos,

que seguravam firme as cordas que ligavam o arnés ao velame. “Solta isso aí. Deixa teus braços livres para poder aproveitar o voo”, disse meu instrutor. Relutei em soltar as cordas. “Se o improvável acontecer, e a gente cair, tu vais morrer grudada no equipamento. Não adianta segurar”, avisou Flávio, tentando fazer com que eu soltasse meus braços. Eu não conseguia. O vento era forte e gelado. Eu tremia de frio e pavor. Minhas pernas estremeciam e meus braços estavam paralisados. A visão era linda. Por mais que eu estivesse suspensa no paraglider, a sensação

O instrutor Flávio Pinheiro é um dos pioneiros do voo livre no Rio Grande do Sul

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era de liberdade. Eu estava extasiada. Meus pés balançavam com o vento e subíamos mais ainda. Eu estava apavorada, mas adorando tudo o que meus olhos conseguiam enxergar. E era muito. Para espantar meu nervosismo, Flávio foi atencioso e muito profissional. Puxou os mais variados assuntos comigo. Falou do tempo em que morou em Nova Petrópolis. Do tempo máximo que já ficou no ar (seis horas seguidas). Da esposa. Da escola que tinham juntos e do casal de filhos. “Ali está Nova Petrópolis, Vale Real, Farroupilha, Caxias do Sul. E, se formos um pouquinho mais alto, poderemos enxergar Alto Feliz”, falava. Eu realmente estava maravilhada com tudo o que via. Os morros, as nuvens, os rios, as cidades próximas do Ninho das Águias, a perfeição da natureza. A vista foi uma das mais incríveis que eu já vi na minha vida. O verde e o azul se encontravam onde eu já não podia alcançar com meus olhos. Para espantar meu medo, o instrutor falou sobre a sua primeira vez no ar, que foi de asa delta. “Foi inesquecível. Treinei antes em um barranco na escola. Eu já tinha confiança no equipamento e isso diminuiu o meu medo. Mas eu não posso dizer que não tive medo. A tensão era grande. A respiração ofegante na hora de decolar e aquela vontade de ir ao banheiro.” Eu tinha muito medo de todo aquele equipamento rasgar e virar patê no meio das árvores. Entretanto, tudo era muito seguro, e eu estava na companhia de um grande instrutor. Ficamos a uma altura de 1.500 metros do chão. Eu olhava para baixo e pensava em como era possível estar suspensa por apenas cordas e velame, podendo voar. Eu sentia muito frio. Flávio fazia nosso trajeto de acordo com o vento.


Cintia Fernandes

PALAVRA DOS

FOTÓGRAFOS

Do momento em que tirei meus pés do chão até colocá-los novamente em solo firme, foram 20 minutos. Eu achei que já estava muito mais que uma hora no ar. O tempo para. Essa é a sensação que dá. Quando estávamos a mais ou menos 800 metros do chão, o vento ficou fraco e a temperatura amenizou. Naquele momento, o nervosismo havia sumido. Eu sentia uma calma muito grande, apesar do medo. Foi quando soltei minhas mãos das cordas. Na hora de pousar, cai de bumbum no chão. Mesmo com certo constrangimento, eu havia feito algo muito desejado: voei. Isso era mais importante do que meu tombo. Logo que coloquei os pés no chão, a saudade do céu já percorreu meus pensamentos. Não tem outra palavra para decifrar esta experiência: foi incrível. Fiquei maravilhada com a capacidade que esse esporte tem de proporcionar uma sensação tão boa e uma vista tão fantástica. Sem dúvida, foi uma recordação que eu levarei para vida toda e será algo que eu irei retornar a fazer. Vale muito a pena voar.

A vista lá de cima do morro impressiona pela beleza. E como era alto! Em alguns momentos, a expressão da repórter Luana era apreensiva. Afinal de contas, estava prestes a vencer um medo: o da altura. Mas, com as dicas dos profissionais, tivemos certeza de que ela estava em boas mãos. Entendemos que um bom voo depende das condições do vento e esperamos para que tudo ficasse do jeito certo. Com adrenalina e expectativa no alto, Luana não fez feio e voou. Saímos de lá com a pauta realizada, com belas imagens e com vontade de voar cada vez mais. CINTIA FERNANDES

Correria para cobrir essa matéria. Dois finais de semana cancelados por condições climáticas não favoráveis para o paraglider. Acordar cedo em um sábado, ir para a rodoviária e voltar para a casa. No final, valeu a pena pelas belas imagens que conseguimos captar e pela emoção que vivemos no topo e descendo o Ninho das Águias. LUIS FELIPE MATOS

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CICLOATIVISMO

bicicleta EM JOGO

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Texto Sergio Trentini Fotos Luis Felipe Matos


Na rotina ou em corridas clandestinas, cada pedalada ĂŠ um ato polĂ­tico | 00/ 2015 | 13


“Q

uem tá aqui, vai correr porque quer!”, berra o organizador do evento entre setenta bicicletas. “Quando esse sinal ficar verde, saiam pedalando feito um bando de condenados!”, finaliza. E todos juntos iniciam uma contagem regressiva baseada nos números da sinaleira que coordena o fluxo de pedestres da Avenida Ipiranga, esquina com a Avenida Borges de Medeiros. Ao final da contagem, começa a Criterium. Esse é nome dado a uma corrida de bicicletas realizada em ruas de cidades ao redor do mundo, tendo um circuito a ser percorrido. A versão de Porto Alegre, a Crite14

rium Ipiranga, entretanto, aconteceu de forma diferente. O trajeto foi feito em uma única e extensa avenida. E, diferente de eventos organizados pelas autoridades responsáveis, na Criterium nenhuma autoridade fica sabendo que a corrida vai acontecer e o trânsito não é redirecionado. A partir de contatos feitos via Facebook, setenta ciclistas percorreram juntos, à noite, os dez quilômetros de asfalto da Avenida Ipiranga entre carros, motos e ônibus. Essa avenida conta com uma parcela de 2,6 quilômetros dos quase 23 de ciclovia que existem, hoje, em Porto Alegre. Ignorados durante

o evento, propositalmente. Há uma característica que todos partilham: o amor pela bicicleta. Aqueles que ali gritam juntos na hora da largada são os mesmos que recebem a lataria dos carros e ônibus em suas frentes. São fechados e têm de se espremer no canto das ruas. Cada pedalada é um ato político. A impressão era de que o contexto geral daquela noite não era a competição, mas a unidade massiva de união que formam os ciclistas. Era o grito conjunto, a tomada de um espaço que, por direito, também é deles – nosso. Talvez precise ser na marra, no susto.


A impressão era de que o contexto geral daquela noite não era a competição, mas a unidade massiva de união que formam os ciclistas. Era o grito conjunto, a tomada de um espaço que, por direito, também é deles – nosso.

Reflexão necessária Talvez uma dose de empatia resolvesse o problema. Enquanto isso, ciclistas continuam sendo invasores. Espremidos contra os meio-fios pelos carros e xingados por pedestres nas calçadas. Ainda assim, a prefeitura insiste em pintar, em alguns pontos da cidade, duas linhas vermelhas por cima das calçadas, onde pessoas transitam. É o caso da Avenida Loureiro da Silva, onde as ciclofaixas invadem as calçadas. Às 18h, em frente ao Edel Trade Center, é possível ver pessoas e ciclistas em uma inédita disputa por espaço. Ali, naquela parte especifica, diariamente, opto por descer da bicicleta e empurrar. As poucas ciclovias estão em estado precário. Rachaduras tomam conta da faixa vermelha da Ipiranga. Ciclovias, ciclofaixas, ciclo-por-cima-das-calçadas. Não há refúgio. Não há lugar para a bicicleta em Porto Alegre. “A bicicleta é frágil, o corpo também”, afirma Pedro Rheinheimer, 19ª colocado na corrida daquela noite. O sistema de controle da co-

locação foi duplo. Alguns usaram um aplicativo de celular para saber a posição em que estavam. Mas, na reta final, alguém anotava cada pessoa que chegava. “O processo de evolução da bicicleta vai ser lento e doloroso. Muita gente ainda vai se machucar e, mesmo assim, infelizmente essa realidade será difícil de alterar.” Na opinião de Pedro, muitas autoridades e políticos influentes parecem não levar a bicicleta a sério: “É disputando lugar com os carros, se colocando no meio da pista mesmo que o ciclista vai conquistar o seu espaço”. A percepção de Pedro é parecida com a minha após a corrida. “Faz com que a presença das bicicletas nas ruas seja notada. Só assim as pessoas vão começar a perceber que o espaço só é majoritariamente ocupado pelos carros por questão de naturalização desse tipo de cenário”, diz ele. Acabar com a naturalização do cenário que Pedro cita passa pela diminuição do número de carros vendidos. Segundo o a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, só em 2014 foram quase três milhões de unidades comercializadas no país. Para Pedro, a recorrência de corridas desse tipo evidenciaria todas as potencialidades do uso da bicicleta e poderia até aumentar o número de ciclistas. Se houvesse regulamentação ou controle das autoridades, talvez a corrida tivesse sido mais segura, talvez não acontecesse. O fato de ter sido organizado de forma independente dá uma cara meio clandestina para a corrida. Motivo que me atraiu. Duas posições a frente de Pedro, estava Francisco Lang, o Chico. O 17º colocado diz que a ideia era ser uma competição, mas acabou se tornando ato de cicloativismo. “Pelo fato de chamar atenção e reunir ciclistas pela causa da bicicleta e por não existir nenhuma corrida de ciclismo, basicamente. Assim como não há muitas iniciativas na área. Logo esse evento já se destaca pela | 00/ 2015 | 15


CICLOATIVISMO

própria iniciativa.” Pedro, Chico, eu e todos os outros 67 ciclistas estávamos expostos em meio aos carros às 21h. Tal exposição ajuda a melhorar a visão dos motoristas. “Temos que mostrar que estamos aí, cara, que tem muitos ciclistas e todos são pessoas vulneráveis, vivendo suas vidas assim como as pessoas atrás do volante de um carro”, ressalta Chico. A impressão de Chico é de que os motoristas em geral só veem ciclistas como “vagabundos” e pessoas que atrapalham o fluxo do trânsito. “Se esquecem que somos pessoas assim como eles. Logo, deixar claro o nosso direito de usar as ruas é muito importante pra mudar esse pensamento.” Apesar de bradar sobre a responsabilidade própria de cada ciclista, Carlos Rangel, organizador do evento, afirma que tinha a preocupação de que tudo ocorresse bem. Ele não se considera cicloativista, apenas um grande incentivador da bicicleta de forma geral. “Tento difundir a bike entre amigos, co-

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nhecidos e desconhecidos”, afirma. Opta por apenas mostrar como é um bom meio de transporte e faz isso de forma natural. “Inclusive vários amigos meus compraram bikes me consultando antes, acho um bom começo.” Ao contrário de outros participantes, o organizador não reflete sobre a corrida como forma de conscientização do espaço do ciclista. Ele acha que esse tipo de corrida não contribui muito para a imagem dos ciclistas, na verdade. “E também não acho que seja uma boa forma de incentivar novos ciclistas. Pra mim, é pura e simples diversão e adrenalina”, ressalta. Carlos deixa bem claro que não criou ou inovou em nada. Esse evento sempre acontece, mas nunca se sabe quem organiza. Ele decidiu então tomar essa iniciativa. “Foi apenas a vontade de correr e movimentar o pessoal.” Não mede a importância de organizar, pois não visava lucro ou divulgação de nada, mas simplesmente “botar o pessoal pra correr porque é tri”, como conta entre risadas.

Iniciativas independentes A união como forma de solução para a situação atual do ciclista no trânsito tem sido pensada pelas mais diversas pessoas. Emyr Humphreys, por exemplo, nasceu no País de Gales e veio morar em Porto Alegre por motivos pessoais. Na Capital, o galês se sustenta dando aulas de inglês, mas é apaixonado por ciclismo desde sempre. Tanto que, junto com sua namorada gaúcha, Louise Carpenedo, está desenvolvendo um aplicativo para ajudar a comunidade de ciclistas. Emyr pensa que a cultura da bicicleta está crescendo de forma visível e diária. Em sua opinião, apesar de apenas uma pequena parte da população porto-alegrense pedalar, aqueles que o fazem são muito comprometidos com a causa. Formado em Ciências Sociais com enfoque em estudos da América Latina, Emyr afirma que, comparado a outras cidades da América latina, o ci-


PALAVRA DO

FOTÓGRAFO

clismo em Porto Alegre é muito contraditório. “É muito inseguro dividir a rua com carros. É praticamente loucura”, fala em um português meio travado, mas compreensível. Explica, então, sobre o aplicativo: BikeOn. “O objetivo da tecnologia é melhorar a experiência de pedalar pelas cidades. Engajar mais pessoas a se tornarem ciclistas e ajudar a comunidade local a trabalhar ainda mais junta para melhorar sua rotina em cima de duas rodas.” É possível, no app, buscar a melhor rota para chegar onde se deseja, mapear pontos de roubo e acidentes, obras, oficinas, bicicletários e trânsito intenso, proporcionando mais segurança e rapidez no trajeto e gerando dados úteis de mobilidade urbana para as cidades. Todos nós corremos naquela noite por vontade própria. Cada empurrão dos pés nos pedais fazia as rodas girar em atrito com o asfalto da Avenida Ipiranga. Ajeitar a postura, olhar as pessoas em sua frente, atrás, nos lados, todas em cima de bicicletas. Todas tão frágeis. Todas ganhando velocidade. Todas me deixando pra trás. Em menos de um minuto, eu estava entre os últimos colocados, mas sorrindo. Foi minha estreia em um grupo de tanta gente que usa o mesmo meio de transporte que eu. Foi a estreia do meu sentimento de saber que, sim, eu existo em cima de uma bicicleta. Mesmo que na marra.

Ter a oportunidade de registrar a primeira vez que alguém decide colocar em prática uma ideia me motivou a pegar minha câmera e sair de casa naquele sábado. O colega Sergio Trentini há algum tempo trocou o carro pela bicicleta para percorrer os trajetos diários entre a sua casa, o trabalho e ir para a universidade. Então, essa não foi sua primeira vez pedalando. A Criterium Ipiranga foi o seu batizado em novo estilo de vida que vem sendo adotado por milhares de pessoas preocupadas com a mobilidade urbana, com o meio ambiente ou simplesmente com sua própria saúde. Por não conhecermos o sistema de organização desse grupo, seguimos as instruções fornecidas no evento publicado no facebook. Chegando mais cedo, percebi o clima de amizade e de muito improviso que se forma entre o pessoal que já participa dessas mobilizações ciclísticas. O Sergio chegou depois com seu amigo Pedro Rheinheimer, que já trazia nos raios de sua bicicleta o sinal de sua experiência no assunto – um spokecard – e que era a primeira fonte da reportagem. Subi na garupa da bike e fomos para o ponto de partida. Nada de fiscalização, ou sinalização do percurso. Até me arrisquei em parar no meio da Avenida Ipiranga para fotografar a largada. Muita emoção. E um frio na barriga, mas só depois de tirar o olho da câmera. Não vi mais o colega entre os 70 ciclistas que passaram por mim. Naquele dia, outras primeiras vezes aconteceram. Nosso repórter me contou que acompanhou os primeiros passinhos de sua filha, por exemplo. Mas escolhemos esse momento para trazer para nossos leitores. LUIS FELIPE MATOS

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BOXE

barra FORÇANDO A

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O boxe é um bom esporte para quem quer manter a forma e desestressar ao mesmo tempo Texto Guilherme Moscovich Fotos Arthur Marques e Luis Felipe Matos

O professor Bolacha (à esquerda) apaixonou-se pelo boxe assistindo a lutas de pugilistas lendários, como Muhammad Ali | 07/ 2015 | 19


BOXE

P

or volta das 20h15min, chego na academia Espaço Ativo, que eu frequento como aluno da musculação, para fazer pela primeira vez uma aula de boxe. A proposta era que os repórteres fizessem algo que nunca haviam feito antes. Chegando lá, fiquei surpreso que ainda havia alunos praticando exercícios tão tarde. Estava esperando meus colegas, os fotógrafos Luis Felipe e Arthur, para começarmos a fazer a reportagem. Arthur foi o primeiro a chegar e, enquanto o professor não aparecia, eu fazia os alongamentos que sempre faço quando vou na musculação. Quando o professor de boxe, Júlio César Brenda, o Bolacha, chegou, foi supergentil comigo. Logo Luis Felipe chegou, e ele e Arthur começaram a bater fotos minhas com o instrutor me orientando a fazer alongamentos diferentes, que eu nunca

tinha feito antes. Também tive que fazer quatro tipos de abdominais, sendo que, para um deles, tive que ficar deitado de barriga para cima e botar as mãos atrás do traseiro e fazer força com as pernas de cima para baixo até o quanto conseguisse aguentar. Depois, Bolacha me ensinou a

Eu, que tenho temperamento explosivo, adorei tirar toda energia negativa de dentro de mim e me livrar dos meus problemas diários. Pensei em coisas que me deixavam zangado e, com raiva, dei o melhor de mim para acertar o alvo.

pular corda. Isso durou muito tempo. Eu estava tão ansioso pela aula que muitas vezes eu fazia rápido demais. Sabe como é, vivendo e aprendendo. Bolacha tem 34 anos e me contou um pouco a sua trajetória na academia. “Eu cheguei há mais ou menos seis anos. Eu era instrutor de boxe em um centro de treinamento aqui em Porto Alegre, onde também se pratica judô, karatê, MMA e outros esportes. Na época estavam precisando de instrutor de boxe, aí eu vim e estou aqui, onde ninguém tira o meu lugar” , contou rindo. Ele também falou sobre como se interessou pelo boxe. “Assistindo a boxeadores lendários lutarem, como Joe Frazier, Muhammad Ali, George Foreman, Mike Tyson, Maguila, Popó, vi que é um esporte apaixonante, que tem o clima da provocação, de nocautear o adversário para ver quem é o melhor no ringue. Diferente de esportes como futebol, basquete e vôlei, o boxe tem a mística de que só um conseguirá ficar em pé no final, e é por isso que eu gosto disso tudo.” Luiz Felipe Freitas, também instrutor, diz que Bolacha demonstra nas aulas o quanto gosta do esporte: “Ele ama fazer o que sabe”.

A história do esporte O boxe no Brasil era desconhecido no início do século XX. Os poucos praticantes existentes na época eram imigrantes vindos da Alemanha e Itália que moravam nos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo. A primeira luta realizada no Brasil foi em 1913, na cidade de São Paulo, entre um pequeno ex-boxeador profissional que fazia parte de uma companhia de ópera francesa e o atleta Luis Sucupira, conhecido como o Apolo Brasileiro, em razão de seu físico avantajado. Surrado, Apolo re-

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conheceu que a técnica pode superar a força e tornou-se um grande entusiasta do boxe e seu primeiro grande divulgador. A década de 1950 foi marcada pelo importante crescimento popular do boxe e por revelar grandes boxeadores. Entre eles, nomes como o de Kaled Curi, Luisão, Ralf Zumbano e o grande Éder Jofre, o maior boxeador da história do boxe brasileiro. Depois dele, os mais conhecidos foram Maguila e Popó.

O momento esperado Continuando minha aula de boxe, o professor me ensinou as posições de defesa e também os socos. Já que sou destro, Bolacha me deu uma dica superimportante. Quando se soca com a mão direita, deve-se botar o pé direito em uma posição de ponteiro de relógio e girá-lo para dentro. Logo chegou a parte que eu mais estava esperando: botar a luva e dar socos no saco. Eu, que tenho temperamento explosivo, adorei tirar toda energia negativa de dentro de mim e me livrar dos meus problemas diários. Pensei em coisas que me deixavam

zangado e, com raiva, dei o melhor de mim para acertar o alvo. Adriana Motta pratica boxe com Bolacha há cerca de dois anos e ela também sente a sensação de alívio quando pratica o esporte. “As aulas te dão a sensação de tirar todo aquele peso do corpo, o estresse do dia a dia, enfim, é bom fazer uma coisa que faça descarregar toda a energia negativa do teu corpo”, conta. Helena Barros, outra aluna, diz que é importante ter alguns cuidados durante a aula: “No boxe tem que usar aquelas bandagens para os braços e punhos. Sabe quando você vê gente lutando muay-thai e outros esportes de luta? Nós usamos as mesmas proteções para não machucar as mãos, porque tem um grande risco de abrir a pele. Por isso é bem importante usá-las.” A experiência com o boxe foi muito boa e me fez sentir a sensação de dever cumprido. Me ajudou a tirar um pouco do estresse que cerca a minha vida. Foi também uma forma completa de relaxamento para esquecer os problemas que estão ao meu redor. Quem sabe eu continue frequentando às aulas, que podem tornar a mim e muitas outras pessoas cada vez mais saudáveis.

PALAVRA DOS

FOTÓGRAFOS

As fotos desta reportagem ficaram do meu agrado, mas como a academia escolhida era um pouco mais voltada para a ginástica funcional, faltou um pouco da ação do boxe mesmo, como os combates. ARTHUR MARQUES

O repórter Guilherme Moscovich demonstra ser muito meticuloso na questão de seguir algumas rotinas na sua vida. Participando dessa pauta com ele, percebi como é importante desafiar nossos limites e seguir por novos caminhos. LUIS FELIPE MATOS

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Ensaio

Cintia Fernandes

Luis Felipe Matos

Luis Felipe Matos

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Thalles Campos

LaĂ­s Albuquerque

Arthur Marques

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FUTEBOL AMERICANO

UM, DOIS, TRÊS, QUATRO,

Pumpkins! Em busca de desafios, participei do teste para a seleção de novos jogadores para um time gaúcho de futebol americano Texto Douglas Demoliner Fotos Arthur Marques e Luis Felipe Matos

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Arthur Marques

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FUTEBOL AMERICANO

S

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quase 100 em uma das edições”, contou Arthur, satisfeito com o crescimento de interessados pelo esporte e pelo Pumpkins. Todos os preparativos foram feitos para receber os inscritos, com a estrutura necessária: água, frutas, isotônicos e suplementos para recompor o preparo físico dos aspirantes a atletas do clube gaúcho. Os jogadores que já pertencem ao elenco participaram auxiliando na avaliação dos inscritos e também na organização do evento. Um mundo totalmente diferente do futebol, principalmente por ser um esporte de mais contato físico e com diligências militares, ou seja, existe uma padronização nos exercícios, como andar alinhado (em blocos), dar gritos de guerra e seguir a principal regra do Porto Alegre Pumpkins: ter disciplina. O começo do teste foi com um aquecimento de 15 minutos, natural e necessário antes de qualquer atividade física para evitar lesões. Exercitamos todos os músculos

O objetivo era ter a vivência de praticar o esporte pelo qual me apaixonei em 2010 assistindo às partidas da Liga de Futebol Americano dos Estados Unidos, a NFL. Arthur Marques

ão muitas coisas que deixamos de fazer sem mesmo tentar. Temos como premissa deixar de experimentar a novidade devido ao comodismo e a segurança de seguir andando como nos mandam e como a nossa cultura nos ensinou. Mas quem disse que não podemos ir atrás do novo? Há muitas possibilidades além de nossas barreiras psicológicas, impostas pela sociedade. Em busca de desafios, participei do try-out, uma espécie de peneira no futebol, do Porto Alegre Pumpkins, equipe de futebol americano do Estado. O objetivo era ter a vivência de praticar o esporte pelo qual me apaixonei em 2010 assistindo às partidas da Liga de Futebol Americano dos Estados Unidos, a NFL. Essa seletiva era para que fossem escolhidos os jogadores para compor o elenco do time que estava em meio ao Torneiro Touchdown, campeonato estadual da modalidade. Ou seja, seria selecionado não somente quem gostaria muito e tinha o mínimo de noção para praticar o esporte, mas aqueles que iriam realmente entrar e jogar pela equipe na busca de mais um título estadual. O teste foi realizado na sede da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEF-UFRGS). Havia cerca de 40 pessoas competindo por apenas quatro vagas. À primeira vista, o número de participantes me impressionou, porém, após conversar com o presidente-atleta do Pumpkins, Arthur da Silveira Perez, descobri que realmente o número de interessados pelo esporte vem aumentando cada vez mais. “Normalmente, os testes no meio do ano são assim, poucos se inscrevem, porque é mais rígido. Já no try-out antes do início da temporada, sempre há mais participantes. Tivemos


Luis Felipe Matos

que iriam ser utilizados durante o try-out. Foram trabalhos para aumentar a força corporal, que é a base do jogo. A semelhança com as atividades no quartel é muito grande. O preparador físico do clube comandava o aquecimento como se estivesse dando ordens ao seu pelotão. A contagem de cada exercício era feita pela equipe inteira. Seja nos apoios ou nos polichinelos, o comando inicial era do preparador físico, o restante da contagem era sempre feito pelos jogadores. No entanto, não gritávamos o número final da contagem. Após o último exercício, para marcar que a atividade estava encerrada, tínhamos que gritar: “Pumpkins!”. A avaliação dos jogadores foi feita em quatro etapas: força, velocidade, explosão física e saltos. Para testar a força dos participantes, foi solicitado que todos realizassem apoios até cansar. Sem mínimo e nem máximo. Tudo isso para que o atleta se superasse e demonstrasse sua capacidade de resistência e de força. Eu consegui fazer 25 apoios. Sedentário por não praticar exercícios físicos periodicamente, sofri para alcançar esse número. Foi o máximo que meu corpo conseguiu aguentar. Fiquei satisfeito, mas não vi nenhuma expressão positiva dos avaliadores. O próprio diretor técnico do clube, Thuan Lemos, declarou o objetivo do teste. “Precisamos suprir ausências para a sequência da temporada. Avaliamos o preparo físico e a habilidade dos candidatos para reforçarmos a equipe que disputará a final do estadual”, explicou. Para avaliar a velocidade, foi colocado como objetivo aos atletas correr 40 jardas – o que equivale a 36,5 metros – no mínimo de tempo possível. Neste quesito, acabei ficando muito para trás. Fazer esse percurso em menos de cinco se-

gundos é considerado bom. Devo ter feito bem acima deste tempo, até porque aqueles quase 37 metros pareceram uma eternidade. Nessa avaliação, alguns jogadores se destacaram, visto que realizaram a corrida rapidamente e com tranquilidade. Para avaliar a explosão física, foi desenhado um circuito com três marcações em um espaço de 5 metros. A intenção do exercício era fazer com que o atleta se movimentasse de uma extremidade a outra na maior velocidade que pudesse e depois buscasse a explosão muscular em arrancar em uma velocidade ainda maior. A movimentação e a passagem pelos três trechos no menor tempo que conseguissem eram os principais quesitos analisados pelos fiscais deste exercício. A exemplo do primeiro teste de velocidade, meu resultado não foi dos melhores. O último teste foi de saltos. Em um lugar delimitado no gramado, os atletas deviam ficar parados e, somente com o impulso do seu corpo, pular o mais longe possível. Atingindo a marca de dois metros, já seria um ótimo índice para uma boa avaliação. Esse foi o meu melhor

CONHEÇA O CLUBE GAÚCHO O Porto Alegre Pumpkins foi fundado em 2004 e é o primeiro time de futebol americano do Rio Grande do Sul.

n

Foram quatro conquistas de campeonatos estaduais. 2008, 2010, 2012 e 2014. n

São realizados dois try-outs por ano, um no final da temporada e um no início. n

O técnico do Pumpkins, William McArthur, é nascido nos EUA e já treinou equipes de escolas norte americanas. n

Foi o único time gaúcho a chegar nas quartas de final do campeonato brasileiro de futebol americano. n

O time se reuniu e fez um vídeo para arrecadação de verba e patrocinadores para as disputas dos torneios gaúcho e brasileiro da próxima temporada. n

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FUTEBOL AMERICANO

resultado nos quatro testes. Atingi a marca de 2 metros e 20 centímetros. Finalmente, o treinador, William McArthur, separou os 40 atletas por porte físico e características obtidas nos resultados dos testes e nos escalou em determinadas posições. Foram montadas duas equipes e jogamos uma espécie de coletivo, como chamamos no nosso futebol, antes do término oficial dos testes. O anúncio dos aprovados foi realizado logo depois dos jogo. Havia muita expectativa entre os participantes para saber quem continuaria e se tornaria um atleta do Pumpkins. Todos sentados ao redor do coach, que fez o anúncio em inglês, traduzido pelo diretor técnico Thuan. Infelizmente, não consegui ser aprovado, mas o que valeu foi a experiência de conhecer o novo. De buscar diferentes horizontes e ampliar a visão para outros esportes que não o futebol. Todos nós devíamos fazer algo pela primeira vez, para conhecermos nossos limites e também nos redescobrir. Quase todas as experiências são válidas, e realizá-las nos dá um prazer imensurável. Valeu a pena.

DISPUTA DO TÍTULO ESTADUAL O Porto Alegre Pumpkins disputou a final do campeonato gaúcho de futebol americano no dia 26 de maio, no estádio da PUC-RS, e perdeu para o Juventude FA por 28 a 6. A equipe de Caxias do Sul estreou no esporte nessa temporada e já no primeiro ano conquistou o título vencendo a equipe da Capital. Com isso, o Pumpkins perdeu a oportunidade de

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se tornar pentacampeão do Estado no esporte. Com a conquista do título, o Juventude irá representar o Rio Grande do Sul no Torneio Touchdown, o campeonato brasileiro de futebol americano. O Pumpkins começa agora a pensar na próxima temporada e já projeta outro try-out para selecionar atletas para a disputa do campeonato gaúcho de 2016. O esporte estadunidense

ganhou grandes proporções no cenário gaúcho. Flashes da final do campeonato foram transmitidos em tempo real por duas emissoras de rádio do Estado: Rádio Gaúcha e Rádio Guaíba. Concorrendo, inclusive, com as partidas da dupla Gre-Nal. A reportagem das duas emissoras interviam durante os jogos de Grêmio e Inter para noticiar quando alguma

equipe da final do futebol americano pontuava. A modalidade vem crescendo não só no Rio Grande do Sul, mas também em todo o território brasileiro. A prova disso é a disputa do campeonato brasileiro e a participação da seleção nacional no campeonato mundial de futebol americano, em julho, na cidade de Canton, em Ohio, nos Estados Unidos.


O Juventude, de Caxias do Sul, venceu o Pumpkins na final do campeonato gaúcho de futebol americano

Luis Felipe Matos

PALAVRA DOS

FOTÓGRAFOS

Tive algumas dificuldades para fazer as fotos no dia em que o repórter Douglas estava participando da seleção do Pumpkins, pois o local onde tinha acesso para fotografar ficava um pouco distante do campo e estava contra a luz. Gostei bastante da experiência, mas gostaria que, no try-out, houvesse mais ação.

Domingo foi dia de acompanhar uma partida de futebol. Mas de futebol americano e, ainda por cima, uma final de campeonato. Aproveitando que a equipe Porto Alegre Pumpkins classificou-se para a final do Campeonato Gaúcho contra o time do Juventude F.A., decidimos cobrir o jogo para enriquecer um pouco mais as páginas da Josefa. Foi a primeira vez que assisti a esse esporte. Uma grande experiência como fotojornalista.

ARTHUR MARQUES

LUIS FELIPE MATOS

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TRENSURB

UM

silêncio

As pessoas não conversam, não se olham e não interagem no trem Texto Maurício Trilha Fotos Thalles Campos

A

ntes que você diga: “O quê? O cara nunca tinha andado de trem?”, não, eu nunca tinha andado de Trensurb. Sempre o via passando por mim, desaforado, em alta velocidade, enquanto eu quase dormia dentro do meu carro (reflexos de uma BR-116 engarrafada). Moro em Porto Alegre, trabalho em Novo Hamburgo e namoro uma menina de Estância Velha. Já namorei outra de Canoas, tive um caso com uma de Sapucaia, trabalhei em São Leopoldo, saí algumas vezes com outra de Esteio. Enfim, tenho uma série de relações com a 116, muitas histórias ao longo do seu curso, afetivas e profissionais. Só que todas elas percorridas de carro, por necessidade e por conforto (e porque sou preguiçoso). 30

INCÔMODO


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TRENSURB

Já tinha andado de metrô em São Paulo e no Rio, mas o nosso trem, o Trensurb, era algo completamente inédito para mim. Alguns podem achar minha escolha extremamente chata (realmente não é uma coisa que se diga “meu Deus que pauta o Mauricio escolheu!”), no entanto decidi esse tema justamente por ser algo simples e banal. Sinceramente? Até o dia em que escrevi o que você está lendo agora, ficava um pouco envergonhado pelo fato de nunca ter andado de trem no lugar onde eu moro. Ficava. 29 de Abril de 2015, 13h42min, lá estava eu, esperando o Aeromóvel (veículo que faz a ligação entre o aeroporto e os trilhos do trem). Decidi iniciar minha viagem no Aeroporto Salgado Filho, porque vivo na zona norte de Porto Alegre. R$ 1,70 pagos no guichê, atravesso a roleta e rapidamente entro no aeromóvel, praticamente vazio. Coloco os pés na estação aeroporto e o trem chega (o horário do aeromóvel é cronometrado com o horário do trem, muito inteligente). De forma barulhenta, ele parou e suas portas abriram. Esperei pelo menos uma dúzia de pessoas descer para que eu

pudesse entrar no vagão e dar início a minha estreia: minha primeira vez andando de Trensurb. Peguei o trem número 125, carro MA. Em um canto, na parede, quase imperceptível, uma placa informava a procedência e o ano de fabricação do veículo: Japão, 1984. A história diz que naquele ano, chegaram de navio a Porto Alegre 25 trens adquiridos junto a um consórcio formado pelas empresas Nippon Sharyo, Hitachi e Kawasaki, todas japonesas. Foi a primeira compra feita pela Trensurb. Alguns meses depois, em março de 1985, o sistema entrou em operação, com 15 estações e 27 quilômetros de extensão, atendendo as cidades de Porto Alegre, Canoas, Esteio e Sapucaia do Sul. São Leopoldo e Novo Hamburgo só foram beneficiadas com estações bem mais tarde, 1997 e 2012, respectivamente. Hoje, são 22 estações e 43km de extensão. Cerca de 228 mil pessoas utilizam os trens todos os dias. Somente em 2014, as roletas registraram um fluxo de 20 milhões 241 mil e 599 passageiros. Confesso que fiquei pasmo por um trem fabricado em 1984 ainda

estar em circulação. Meu vagão saiu do outro lado do mundo, cruzou oceanos e chegou em Porto Alegre 30 anos atrás. Eu sequer era nascido e agora estava dentro dele. No final de 2014, a Trensurb comprou 15 novos trens de um consórcio assinado por empresas da Espanha e da França, no entanto estes veículos não estão sendo utilizados, por medida de precaução. Em abril deste ano, um deles descarrilou, colocando a direção da empresa em alerta. Comparado aos metrôs que já andei, o aspecto do Trensurb me pareceu horrível, por fora e por dentro. Além de um visual extremamente ultrapassado, o trem estava sujo e o maquinário abaixo do vagão estava tão escuro que a fuligem parecia fazer parte da estrutura. Em segundos começamos a ganhar velocidade – que também

Meu vagão saiu do outro lado do mundo, cruzou oceanos e chegou em Porto Alegre 30 anos atrás. Eu sequer era nascido e agora estava dentro dele. 32


não é muita, diga-se de passagem – e logo ouvi uma voz bem baixinha: “Próxima estação Niterói”. “Niterói?”, perguntei (casualmente estava olhando justamente para o mapa das estações, colado acima da porta) quando, de repente, a voz volta, de forma inesperada: “Correção, próxima estação: Anchieta”. Tive que rir. Não quero bancar o “turista testando o transporte público” e ficar apontando erros, no entanto é impossível não relatar minhas percepções. É o maquinista que fala no microfone e avisa as estações. Achei isso extremamente engraçado e arcaico. Será muito difícil implantar uma tecnologia que avise automaticamente qual é a próxima estação? Aliás, algum tempo depois já não se ouvia mais aviso algum. O maquinista cansou? Morreu? Ficou sem voz? Achei o sistema de aviso de estações muito deficiente, me senti perdido e fiquei imaginando como se sentiria alguém que não fala português, afinal, o Trensurb

supostamente passou por melhorias para a Copa do Mundo. Não vi legado algum. Evidentemente, andar de trem é algo fácil. Você vai para frente ou para trás, mas, como disse, minha referência são os metrôs de São Paulo e Rio, e, se formos comparar com essas duas cidades, nossos trens são sucata. A viagem até Santo Afonso, em Novo Hamburgo, a última estação, durou 37 minutos e me revelou algo que eu já suspeitava: as pessoas não conversam no trem. Salvo raras exceções dos passageiros acompanhados, o silêncio é predominante. Celulares, tablets, fones de ouvido e (por sorte) alguns livros prendem a atenção das pessoas. Outros preferem dormir, e o sono desses parece profundo. Queria conversar com alguém, mas me senti extremamente incomodado em romper aquele silêncio. Silêncio entre as pessoas, porque o vagão em si fazia tanto barulho que a qualquer momento parecia que ia se desmontar ali mesmo.

Contato estabelecido Vendo os passageiros ocupados conversando no Whats App, atualizando seu Facebook e até mesmo tirando selfie, decidi tentar encontrar alguém na volta. Desci na estação Santo Afonso, linda por sinal, e embarquei no mesmo trem que havia descido, desta vez no último vagão. De cara, para a minha surpresa, dois ciclistas entraram no trem. Iniciado em 2008, o projeto “Ciclista Trensurb” permite que pessoas portando bikes usem o trem de segunda a sábado, das 9h30 às 11h, das 14h às 16h e das 21h às 23h20min. Nos domingos e feriados, o trânsito é livre. Estávamos numa quarta-feira. Um desses ciclistas era Robledo Severo, canoense, 42 anos, alpinista industrial especialista em prevenção e resgate. Sim, isso mesmo. Mais uma estreia para mim. Era a primeira vez que eu estava conversando com um alpinista industrial | 07/ 2015 | 33


TRENSURB

ESTEIO

PETROBRÁS

SÃO LUÍS

O alpinista industrial Robledo aproveita os horários permitidos pela Trensurb para viajar com sua bicicleta

MATHIAS VELHO

CANOAS

FÁTIMA

NITERÓI

ANCHIETA

Com entusiasmo e bastante preciosismo, Robledo me explicou as diferentes categorias do seu esporte. Ele pratica escalada esportiva, uma modalidade que permite ao escalador se concentrar puramente no seu desempenho e nos movimentos que são necessários fazer. Nessa prática, a escalada geralmente tem baterias de 50 metros e é segura, com proteções fixas. Pode parecer fácil, mas é justamente na modalidade esportiva que os escaladores encontram mais dificuldade em executar seus movimentos, por conta do terreno. Calímnos, uma ilha localizada no Mar Egeu, na Grécia, foi o lugar mais lindo que Robledo já escalou: “A ilha é uma montanha, o mar todo a sua volta, é lindo, é impressionante”, relatou. Nossa viagem estava quase chegando ao fim, Robledo tinha que descer na estação Niterói, em Canoas, para voltar para casa pedalando. Ao contrário da ida, no percurso de volta o tempo passou muito rápido. Desci com Robledo na sua estação para agradecer. Fiquei extremamente feliz por romper uma das coisas que mais me incomodou em andar de trem, o silêncio entre as pessoas. Perguntei a Robledo qual era a sensação de conquistar um cume, de ver o mundo lá de cima: “É uma sensação de liberdade, cara, poder ver o horizonte em 360 graus. Tem pessoas que demoram anos para conseguir escalar 50 metros, acima de tudo, é uma vitória pessoal!”. Guardando as proporções, essa sensação de liberdade foi parecida com a que eu senti, de estar fazendo algo pela primeira vez, sem compromisso de horário, sem dar satisfação a ninguém, podendo subir e descer em qualquer estação. Quem dera fôssemos sempre assim, livres, todos os dias.

AEROPORTO

FARRAPOS

SAÕ PEDRO

RODOVIÁRIA

MERCADO

especialista em prevenção e resgate (e você achando que andar de trem pela primeira vez não seria interessante...). Robledo estava em Novo Hamburgo comprando equipamentos de escalada. Com porte físico de atleta, capacete e luvas, Robledo ficou surpreso com a minha abordagem. Finalmente o silêncio do trem estava rompido, alguém estava conversando. Robledo sempre teve um espírito aventureiro. Sua história com a escalada começou em 1995, quando estava também em uma loja, comprando botas e uma mochila. Na hora de pagar, um vendedor lhe ofereceu um curso de escalada em rocha. Ele achou a ideia diferente e decidiu testar. Seu primeiro desafio foi o Morro Do Itacolomi, em Gravataí. De lá pra cá, o que seria apenas um teste virou seu esporte favorito. Hoje, 20 anos depois, ele já conquistou alturas no Chile, Argentina, Uruguai, Itália, Espanha, Holanda e Grécia. Com nove anos de escalada, foi convidado a fazer alguns cursos e tornar o que era hobbie uma profissão. Fez parte da primeira equipe de resgate em refinaria do Brasil, na Repar, em Curitiba. Hoje, atua como free-lancer. O trabalho de Robledo é complexo. Ele escala torres, caldeiras, exaustores, estruturas industriais dos mais diversos tipos. Sua função é supervisionar estes locais para prevenir acidentes. Na maioria das situações, atua sozinho no que chama de “espaço confinado”, ou “zonas de difícil acesso”. Por se tratar de uma atividade de risco, sua principal preocupação é com a prevenção. Por vezes não escala, apenas faz parte da equipe de resgate, acionada em caso de necessidade. Até hoje, foram pouquíssimos acidentes, sem gravidade.


PALAVRA DO

FOTÓGRAFO

Entrei na universidade com a ideia de me formar e ficar no texto, era isso que eu gostava de fazer; mas, ao ver colegas que já estavam fazendo a cadeira de fotografia – e mais ainda quando eu mesmo fiz a cadeira – as coisas mudaram. Então, é sempre muito prazeroso fazer pautas como fotógrafo, porque é o que eu realmente me sinto bem em fazer. A pauta da Josefa foi muito gratificante. Acabamos por encontrar um bom personagem durante a viagem de trem, o que proporcionou um viés interessante. Além de que, isso tirou toda carga de cima da “primeira vez do Mauricio”. Valeu a pena. Por último, e não menos importante, fotografar trens é um prato cheio. Tive a oportunidade de fazer uma foto que gostei muito, que é dos passageiros aguardando o trem, que está na abertura da matéria.

NOVO HAMVURGO

FENAC

INDUSTIRAL

SANTO AFONSO

RIO DOS SINOS

SÃO LEOPOLDO

UNISINOS

SAPUCAIA

LUIZ PASTEUR

THALLES CAMPOS

PORTO ALEGRE CANOAS ESTEIO SAPUCAIA SÃO LEOPOLDO NOVO HAMBURGO


Me apeguei à primeira ideia que tive. Pareceu a mais espontânea possível: colocar uma roupa de mulher

vestido COM UM

DA MINHA MÃE

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Texto Johnny Oliveira Fotos Laís Albuquerque

Q

uando pensávamos sobre as pautas em sala da aula, minha cabeça estava completamente vazia de ideias. A proposta era fazer algo pela primeira vez. Ok, não pode ser tão difícil pensar numa ideia. Enquanto os colegas já acertavam seus objetivos e os fotógrafos já ajustavam seus focos, eu pensei: “Vou colocar roupas de mulher e ver como é”. Empolgado com a ideia, compartilhei o quanto antes com a turma, e assim ficou decidida qual seria a minha estreia. Minha intenção não era me sentir mulher. Apenas resolvi usar roupas que nunca havia usado. Roupas que são encontradas na seção feminina das lojas. Sapato com salto, vestido, meia calça, modelador, além de maquiagem e produtos nos cabelos. Queria descobrir as sensa38

ções que teria quando produzido e também como as pessoas reagiriam ao me ver assim. O primeiro passo foi achar alguém empolgado o suficiente para me acompanhar. Gustavo Walbrohel Marques topou me ajudar a entrar nesse universo de unhas pintadas e meia-calça. Com alguma experiência em se transformar, ele diz que não chega a investir em material para se produzir. Para ele, não é algo que exija materiais e produtos profissionais, até porque perucas são realmente muito caras, e encontrar um sapato de salto tamanho 43 é bastante difícil. Enquanto esperávamos a fotógrafa chegar, assisti com ela algumas performances de um programa televisivo de drag queens dos Estados Unidos, o RuPaul’s Drag Race. Foi assistindo a esse programa que ele começou a se interessar pelo assunto. Com uma amiga, eles se

montaram e foram passar a noite na festa Priscilla, na Casa de Teatro em Porto Alegre. “Só não usei salto porque não tinha”, conta. Naquela noite ele sentiu um pouco de vergonha de sair na rua, mas o personagem deu forças para encarar a situação. “Depois, chegando na festa, me senti meio em casa”, contou, explicando que, na ocasião, todos estavam montados.

A produção Primeiro pintamos as unhas, processo que se revelou mais tarde um tanto precipitado. Acho que eu havia pintado apenas uma vez, mas de esmalte transparente. Muito diferente de receber tinta azul nos dedos. Estávamos na sala da casa do Gustavo, algo parecido com um escritório, quando nos olhamos e ele me perguntou: – Vamos colocar a roupa agora


então? Pra poder fazer o cabelo. – Vamos – respondi, nervoso. Já acordei nervoso, na verdade. Com muita expectativa. Fechamos um acordo de que eu só me olharia no espelho depois de todo o processo completo. Primeiro, eu tirei meus tênis, com as pontas dos dedos, para não estragar a pintura das unhas. Foi difícil, precisei da ajuda da fotógrafa para conseguir dar cabo dessa simples tarefa. Depois, tirei a bermuda jeans e acabei de cueca. Não previ uma calcinha. O mais próximo de uma meia calça que eu já havia usado foi uma ceroula no inverno. Mas a sensação é diferente. Primeiro que o cuidado de colocar a meia é inexistente com a ceroula. Segundo que a ceroula, em hipótese alguma, é tão confortável ou quentinha. Tá certo que a meia calça não é de algodão, o que, num primeiro momento, poderia indicar que esta seria menos confortável. Mas não. Me senti aquecido e muito bem dentro das meias. Inesperado. Depois ouvi de algumas pessoas que, passado algum tempo com a meia, ela se torna incômoda, mas não cheguei a sentir esse desconforto. Em seguida, a cinta modeladora. Essa foi sofrida. E me atrapalhava até pra respirar. A partir dali, não me sentia mais tão à vontade. Me

sentia pressionado e em estágio avançado na montagem. Parecia que estava valendo de verdade. Depois o sutiã, que eu nem consegui fechar. Pedi ajuda, e então recebi da Laís, a fotógrafa, uma dica: “Tem que vestir ao contrário!”. Nunca teria pensado nisso. Jamais, nem em mil vidas. E então, coloquei o vestido. Vestido da minha mãe. Internamente ficava repetindo: “Tá muito doido isso.” Alguns amigos já tinham me falado que usar saia é bom demais, mas realmente, agora, posso dizer, com segurança, que é bom demais. “Imagina sem cueca”, diz o Gustavo. Me coloquei confortavelmente na poltrona para receber a maquiagem. Era como se a minha cara fosse uma tela e estivesse recebendo cores pelas mãos do maquiador. Essa sensação era reforçada pelos quadros que decoram a sala e foram pintados pelo próprio Gustavo. Ele passou cola bastão para apagar minhas sobrancelhas e maquiagem para deixar a região no tom da minha pele. Logo depois, recebi desenhos de sobrancelhas mais delicadas. Depois do trabalho feito, me senti com uma expressão fixa na cara. Engessado. Para completar, achei o batom incômodo na boca. Prefiro estar com ela

Alguns amigos já tinham me falado que usar saia é bom demais, mas realmente, agora, posso dizer, com segurança, que é bom demais.

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Gustavo já teve a experiência de se vestir como drag queen inspirado por um programa televisivo

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limpa, certamente. Coloquei então o sapato alto. Um trambolho de mais ou menos uns 10 centímetros. É difícil se equilibrar, mas nem tanto. Como era semelhante a uma bota, com um salto plataforma, consegui não cair. Para o cabelo, um pouco de spray fixador e um chapéu. Então chegou o momento de encarar o espelho. Caminhei ansiosamente, e não conseguia parar de rir quando me olhei. Fiquei absurdamente diferente. Minhas sobrancelhas estavam apagadas e onde elas estavam surgiram novas, bem desenhadas. Minha cor de pele estava diferente, e os mil sinais que marcavam meu rosto não o habitavam mais. Em cima do meu decote, contorno de peitos foram desenhados pelo Gustavo, dando uma sensação maior de volume. Continuei perplexo por alguns minutos. Achei sensacional tudo isso.

Saída de campo Para experimentar as sensações de andar na rua de vestido de mulher, eu, o Gustavo e a fotógrafa resolvemos dar um passeio pelas redondezas. Meu coração acelerou um pouco, nada que me mataria, mas também não diria que estava tranquilo. Saímos do prédio e comecei a caminhar tentando me manter natural na situação e até arriscando andar menos duro em cima daqueles saltos. Quando passamos por uma banca de revistas, o dono comentou com uma senhora que estava sentada no muro em frente, “Olha ali, tão tirando fotos dela”. “Acho que tu tá enganando bem”, disse o Gustavo. Apesar de ter atraído alguns olhares, não pareci estar chamando muita atenção. Pelo vestido de festa, maquiagem e fotógrafa me seguindo à média


PALAVRA DE

FOTÓGRAFA

distância, podia-se dizer que eu estava sendo fotografado para um álbum de 15 anos ou algo do tipo. Passamos por uma escola em horário de saída de alunos do Ensino Fundamental. Ali algumas crianças me olharam com curiosidade. Alguns pais tinham um olhar mais questionador, mais curioso. Na esquina movimentada da Avenida Protásio Alves com a Rua Montenegro, cruzamos com um Engenheiro do Hawaii que nos sorriu. Mais abaixo na avenida, não me senti à vontade passando por um bar com muitos homens, e nem quando passei em frente a uma barbearia. Vi risadas e me senti um pouco desconfortável, afinal, não sabia o que estavam comentando e nem o por que de estarem rindo. Resolvi então ir no super mercado. No balcão da padaria, a atendente indecisa tascou um “hmm moça?”. No caixa, a indiferença geral de quem está mecanicamente em horário de pico atendendo. Mas quando ia saindo, resolvi guardar o cartão do banco no sutiã e, quando minha visão voltou a mirar o horizonte, me deparei com uma senhora com expressão desagradável. Não sei se espanto, não sei se desgosto. De qualquer forma ela não pareceu gostar do que viu. Mesmo sem uma motivação política inicial, o saldo da experiência é bastante reflexivo. Por que algumas pessoas olharam pra mim com uma expressão tão negativa? Eu até fiquei bem bonito todo preparado. Caminhamos de volta para o apartamento e eu já comecei a me sentir um pouquinho desconfortável por conta da cinta modeladora e dos olhares que os últimos momentos tinham me proporcionado. Os homens na barbearia e no bar, a senhora inquisidora na saída do supermercado. Tirei toda a roupa e fui para o banheiro lavar o rosto. Comecei a pensar então que tinha acabado de fazer um exercício muito interessante. Me submetendo a algumas pequenas coisas, tive um vislumbre de estar numa posição que até então eu nunca havia pensando em estar, e só nutria conceitos generalistas sobre. Maquiagem é algo difícil de tirar. Difícil de tirar também é essa experiência toda da minha cabeça.

Diferentemente do cotidiano da maioria das redações, os fotógrafos puderam escolher a matéria que iriam cobrir na primeira edição da revista Josefa. Mais de uma pauta me despertou o interesse, tanto pela história quanto pelo tipo de foto que eu poderia produzir. Entretanto, a proposta do Johnny Oliveira tinha um diferencial. Não era apenas uma experiência dele, era um experimento social que poderia provocar reflexão no leitor. Isso bastou para que eu tomasse a minha decisão. O tema era “Estreia”. Ele ia se vestir de mulher. Nada mais certo que uma mulher para orientá-lo. Mas quando falo em orientar, não é apenas explicar a diferença entre rímel e delineador. É explanar o quanto é complicado o “ser

mulher”. Lembro que, logo após ter escolhido a pauta, me questionei: afinal, o que é ser mulher? Colocar um vestido e uma meia-calça podem realmente fazer com que alguém entenda isso? Claro que não. Hoje, eu diria que o repórter não se vestiu de mulher pela primeira vez. Johnny, na verdade, pode pela primeira vez sentir na pele o que é performar o gênero tido como feminino. Seja o incômodo com as roupas apertadas, o peso da maquiagem, ou o desconforto dos olhares nas ruas – isso não define o que é ser do sexo feminino. Porém, isso define o que a sociedade espera que uma mulher passe, aja e seja. Esse texto é uma grande reflexão sobre os gêneros e seus estereótipos. LAÍS ALBUQUERQUE

ESCLARECENDO OS TERMOS Crossdressing é o termo que se refere a pessoas que vestem roupas associadas ao sexo oposto. Não se trata de uma experiência sexual, nem está relacionada com a orientação sexual. É uma experiência humana. Já a expressão drag queen é equivalente a transformista, mas, no português, por vezes refere-se aos crossdressers com um visual mais exageradamente feminino. O termo crossdresser também é utilizado para homens heterossexuais que

não buscam reconhecimento e tratamento de gênero, ou seja, que não são transexuais, mas sentem prazer em vivenciar diferentes papéis de gênero. Ao contrário de crossdressers, transexuais e travestis costumam viver integralmente de forma feminina. Mas todos podemos escolher como queremos ser chamados, independentemente das convenções sociais. Esse é um direito que deve ser exercido e respeitado, porque na individualidade de cada um ninguém mexe!

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744. Porto Alegre (RS). Cep: 90470-280. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE BACHARELADOS: Vinicius Souza COORDENADORA DO CURSO DE JORNALISMO: Thaís Furtado

REDAÇÃO ORIENTAÇÃO Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Bruno Alencastro (balencastro@unisinos.br) - Fotografia Moreno Osório (mosorio@gmail.com) - Editor de Conteúdo Digital REPORTAGEM Disciplina de Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial Douglas Demoliner Guilherme Moscovich Johnny Oliveira Luana Schranck Maurício Trilha Sergio Trentini ESTAGIÁRIO DOCENTE: Moreno Osório FOTOGRAFIA Disciplina de Projeto Experimental em Fotografia Arthur Marques Cintia Fernandes Laís Albuquerque Luis Felipe Matos Thalles Campos FOTO DE CAPA: Luis Felipe Matos ARTE E PUBLICIDADE Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Thaís Furtado EDITORAÇÃO PROJETO GRÁFICO: Vanessa Cardoso SUPERVISÃO TÉCNICA: Marcelo Garcia DIAGRAMAÇÃO: Gabriele Menezes e Marcelo Garcia ANÚNCIOS ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Letícia da Rosa e Vanessa Cardoso SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme ATENDIMENTO: Jandaia Zanette REDAÇÃO: Guilherme Stacke DIREÇÃO DE ARTE E ARTE-FINALIZAÇÃO: Caique Agulla (página 43) e Gabriel Luís Frantz (página 2 e contracapa)

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