Primeira Impressão 42

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| dezembro de 2014 |

pi primeira impressĂŁo

Todo lugar tem uma boa histĂłria



cartaaoleitor

A

Poderia ter sido você

s histórias que você vai ler nas próximas páginas são de pessoas comuns. Mas existe alguma pessoa comum? Nós, da Primeira Impressão, acreditamos que todos têm algo interessante para contar. Basta o repórter saber ouvir. Por esse motivo, decidimos pensar em uma estratégia para encontrar fontes desconhecidas que pudessem nos surpreender com suas trajetórias de vida. O desafio para os futuros jornalistas era ir a algum lugar sem ter a menor ideia do que iriam encontrar. Fugindo da lógica do jornalismo tradicional, que busca temas pré-estabelecidos e, muitas vezes, declarações previsíveis, fomos atrás

de histórias que normalmente não aparecem na mídia. Pensamos, no entanto, que seria mais desafiador se houvesse algum elemento que unisse todos os sujeitos das matérias. Foi dessa forma que surgiu o número 42. Como chegamos à quadragésima segunda edição da revista, decidimos que iríamos encontrar lugares marcados por esse número e, então, descobriríamos as histórias que aqueles locais escondiam. Isso fez com que os alunos tivessem que pesquisar endereços, espaços, ambientes com o número 42. Não foi fácil. Eles encontraram várias portas fechadas, pessoas que não queriam falar e outras que acharam que eles deviam estar loucos. Não estavam. O resultado foi a

descoberta de histórias emocionantes, engraçadas, dramáticas, como é a vida. Além disso, o próprio número 42 também nos reservou algumas surpresas. Ele é a resposta para o sentido da vida, do universo e tudo mais no livro O guia dos mochileiros das galáxias, de Douglas Adams, mas também aparece em várias outras situações, que podem ser conferidas na reportagem da página 6. As pessoas não são comuns. Assim como você não é. Por trás de quais números você se esconde? Thaís Furtado Editora de textos

Flávio Dutra Editor de fotos

BIANCA HENNEMANN

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 3


6

4 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

42 é

festa

litoral

restauração

curva

instituição

dedicação

sepultura

política

viagem

ônibus

número

índice

10 14 20 24 28 32 36 40 44 48 54


trabalho

determinação

gastronomia

cultura gaúcha

antiguidade

cidade

pousada

comunidade

missão

empreendedorismo

preservação

luta

BIANCA HENNEMANN

56 60 64 68 72 76 80 86 90 94 98 102

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 5


nĂşmero

6 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014


XLII Presente em muitos momentos da cultura pop, o número 42 é rodeado de curiosidades Por Gabriela Giralt Fotos de Bianca Hennemann

V

ocê sabe qual é a resposta para a vida, o universo e tudo mais? Segundo o livro e filme O Guia do Mochileiro das Galáxias, a resposta é o número 42. Não se sabe ao certo se, na realidade, a resposta para a pergunta é exatamente essa, o que se sabe é que o número 42 é rodeado de curiosidades. Para Douglas Adams, autor do livro O Guia do Mochileiro das Galáxias, o 42 é a resposta para vida, o universo e tudo mais. Para os chineses, significa má sorte. Para os demais, pode ser apenas um número qualquer, mas uma coisa é certa, ele está presente em muitos momentos da cultura pop. Não é à toa que a Dory, a peixinha com memória de três segundos do filme Procurando Nemo, repete várias vezes o endereço “P Sherman, 42, Wallaby Way, Sydney”. Ou que ele seja o último dos números misteriosos da série Lost. E nem que a banda britânica Coldplay tenha feito uma música denominada de

42. Diante dessas curiosidades, vamos abrir nosso imaginário e tentar descobrir os significados desse número tão lembrado e citado por aí. Segundo a numeróloga Sandra Carbonell Palma, não existe o número 42 na numerologia tradicional, mas ele pode ser interpretado. “O número 42 na numerologia tradicional tem que ser reduzido ao número 6 (4+ 2). O 6 é um número considerado de equilíbrio, que significa 3+3, ou seja, um triângulo com a ponta virada para cima e um triângulo virado com a ponta para baixo, formando a estrela de Davi”, conta. Na numerologia, o triângulo significa a harmonia das energias, sendo positiva quando a ponta está virada para cima e negativa quando a ponta está virada para baixo. As duas pontas do triângulo quando estão juntas, geram o equilíbrio. “O seis é um número de harmonia, significa a harmonização de energias”, explica a numeróloga. Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 7


número Curiosidades sobre o número 42 l Na série Arquivo-X, o número do

apartamento de Mulder é 42.

l 42 é o número total de volumes do

mangá Dragon Ball.

l Havia o número 42 dentro da mala

no filme Ronin. Ninguém sabe se era de madeira, hélio, ouro ou ponto de cruz. Em Alice no País das Maravilhas, a regra 42 estabelece que “todas as pessoas maiores que uma milha devem deixar a corte”.

l

Na série House, o 42 é o número favorito do personagem principal, Gregory House.

l

l Ayrton Senna faleceu quando ia obter a

quadragésima segunda vitória, e o número de seu kart, nos primórdios de sua carreira automobilística, também era 42. l O molibdênio é o único metal da segunda

série de transição que é essencial para a vida, seu número atômico é 42.

l Um dos episódios da série Doctor Who é

nomeado de 42.

l Na série Arquivo X, o agente Mulder

admite ter visto o filme Plan 9 From Outer Space 42 vezes.

l Miles Morales torna-se o Homem-

Aranha após ser picado por uma aranha geneticamente alterada com o número 42 marcado em vermelho em seu abdômen. l No filme O Pentelho, Steven vive no

apartamento 42.

l Douglas Adams, autor do livro O Guia do

Mochileiro das Galáxias aparece no início do episódio 42 da série Monty Python Flying Circus. 8 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

Em Os Simpsons, o professor Frink inventa uma bola de limão azedo chamada Super 77×42. l

l A série Caprica começa em YR42. l No jogo Borderlands, Tannis requer

42 peças para completar seu gerador de Improbabilidade Infinita. l No episódio da série Caprica Retribution,

Hipólita planta uma bomba no Portão 42. l No filme Buzz Lightyear do Comando

Estelar, o número da nave Buzz Cruiser que Buzz pilota é 42. l No filme Os Vingadores, o Quinjet que

carrega Steve Rogers tem o número 42. l Na série Once Upon a Time, Astrid diz a

Leroy que ela só conseguiu vender 42 velas no ano passado. l No desenho Na Mansão Foster para

Amigos Imaginários, o personagem Adam usa uma camisa com o número 42. l No primeiro episódio da série ReBoot, o

número 42 pode ser visto no convés. l No Universo Marvel, “Número 42″ é uma

prisão especial projetada por Reed Richards, Hank Pym e Tony Stark. Na série Arquivo X, a hora marcada no início de uma cena é frequentemente XX: 42 minutos. l

l Quando o canal Fox fez o site I’m Not a

Scar para a série Arrested Development, o contador de visitas foi fixado em 42. l No jogo Battle Royale, o número de

alunos obrigados a entrar em combate é 42. l No filme Eu Robô, o primeiro robô tem o

número 42 impresso na testa.


Segundo Sandra, existem outras maneiras de se interpretar o número 42, como, por exemplo, nas cartas de tarô. “No tarô, o 42 está inserido nos arcanos menores, que seria um número 3. Este 3 é a redução do 6, ou seja, apenas uma ponta do triangulo voltado ou para cima ou para baixo, dependendo da energia que se quer trabalhar”, comenta. Vistos separadamente, o 4 e o 2 possuem outros significados. O 4 é o quadrado, a energia material, ou seja, a energia básica da terra, e o 2 é a linha, um caminho a seguir. “O um é o ser, ou estar, o dois é o ir, o três é a direção que se quer ir e o quatro é o lugar onde se quer chegar, ou seja, a energia material no sentido de pé no chão”, explica a numeróloga. “O seis do 42 (4+2 = 6) é uma harmonia de energias formada pelo ímpeto do ir com a necessidade e haver um chão

para se movimentar”, diz Sandra. Já no tarô do Osho, que é formado por 60 cartas, o 42 significa a ansiedade. A carta mostra um desenho de uma senhora de idade sentada em um ônibus e a interpretação revela que a sua ansiedade por chegar ao seu destino final era tanta que ela acabou se limitando a realidade ao seu redor. “Sua consciência fica mais e mais limitada quando você está tenso e ansioso, em consequência disso, tudo fica muito mais difícil”, explica a numeróloga. Independente da interpretação, o número 42 é, com toda a certeza, um número intrigante e cheio de significados. E, para acabar a matéria, uma saudação para aqueles que já leram o Guia do Mochileiro das Galáxias (e também um convite para quem ainda não leu): até mais e obrigado pelos peixes!

impressões de

repórter

Fazer esta matéria me proporcionou muitas descobertas. Isso aconteceu desde a pesquisa, quando descobri a quantidade de vezes que o número 42 aparece em filmes, seriados e jogos. O que mais me intrigou foi pensar se existe algum motivo específico para o 42 ter sido citado tantas vezes. Diante disso, não pude deixar de me questionar: será que tem alguma ligação entre estes filmes, seriados e jogos? Será que os autores usaram como referência a obra de Douglas Adams, O Guia do Mochileiro das Galáxias, que é o livro mais icônico com número 42, ou é apenas uma grande coincidência? Outra descoberta que esta matéria me trouxe foi sobre a numerologia. Nun-

ca tinha conversado com uma numeróloga e, obviamente, não tinha ideia de quanto os números podem dizer sobre a personalidade das pessoas. Mais do que isso, descobri como os números podem ser interpretados e, diante disso, gerar uma grande influência nas nossas vidas. O contato com o tarô também me trouxe novas descobertas. Aprendi um pouco sobre o tarô tradicional e também sobre o tarô de Osho. A entrevista com a numeróloga Sandra Carbonell Palma me instigou a conhecer mais sobre o assunto, além de me fazer entender um pouco de como funcionava o trabalho de uma numeróloga. Posso dizer que foi um período de grandes descobertas, mas, acima de tudo, um grande aprendizado.”

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LUANA CHINAZZO

ônibus

10 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


Caixa de histórias Além de parada de embarque, o box 42 da rodoviária de Porto Alegre reúne pessoas e vivências Por Júnior Melo da Luz Fotos de Camila Hugenthobler e Luana Chinazzo

É

apenas uma viga de concreto em meio a tantas. De longe, parece igual às outras que sustentam a estrutura da Estação Rodoviária de Porto Alegre. Em meio ao ruído de freios, suspensões, buzinas e vozes, ela é erguida e, quase no topo, está seu diferencial. É apenas um número, mas que dá sentido a uma série de destinos, histórias e vidas: 42. A viga em questão é também a que indica o quadragésimo segundo box, uma das paradas de ônibus intermunicipais da rodoviária.

“Box”, traduzida do inglês, significa caixa. Para uma central de embarque e desembarque de veículos de passageiros, ela é a caixa de parada. Mas igualmente um local que reúne histórias e vidas que se cruzam diariamente indo para lugares diversos com objetivos diferentes. Como um ponto de conexão, essa espécie de “garagem” une pessoas em uma riqueza de contextos que revelam olhares e perspectivas diferentes sobre as experiências cotidianas. Desde 2011, Rafael Tourinho Raymundo

viaja a trabalho. Em 2012, ao estabelecer-se em um emprego na capital gaúcha, começou a se deslocar diariamente de Taquara, local onde mora, para Porto Alegre. O jornalista de 27 anos se dirige ao trabalho de segunda a sexta-feira, começando sua rotina no trânsito às 11h40min, quando sai da rodoviária de sua cidade. Na volta, o lugar de partida, de Porto Alegre para casa, já é certo: o box 42. Na espera pelo ônibus, que parte às 20h, o jornalista costuma ler. No entanto, como ele mesmo diz, “a vida dá muita matéria-prima Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 11


LUANA CHINAZZO

n Rafael embarca todos

os dias no box 42 da rodoviária de Porto Alegre. No mesmo local, Fabio fiscaliza a entrada dos passageiros no ônibus

falarem no telefone. “As pessoas perderam a noção de vida privada”, afirma. Porém, ele diz que, de inusitado, pouco viu acontecer ao esperar no box. Segundo ele, as coisas absurdas costumam acontecer dentro do ônibus, já que “antes de embarcar, as pessoas parecem normais”. Durante a viagem, ele costuma dormir ou conversar com outros passageiros. “Viajar é um tempo para mim, para esquecer o mundo tecnológico, as atribulações de trabalho”, diz o jornalista, que não se importa com o trajeto, mas sim com rodovias repletas de buracos. “Meu momento de descanso só não é melhor pela falta de conforto de alguns ônibus, e a RS-118, em Gravataí, que cansa pela buraqueira”, conta.

Sem solidão

pra nós, é melhor que qualquer ficção”. Com o olhar de quem procura pauta, a curiosidade pelas crônicas que circundam a rodoviária faz de Rafael um garimpeiro de histórias. Os vínculos que se estabelecem pela convivência em um mesmo espaço, aproximam as pessoas e ocasionam identificação ou curiosidade. Existe a senhora que conheceu por compartilhar experiências de viagem e literatura, mas que nem sabe o nome. Alguns amigos que percorrem trajeto semelhante, mas não encontra porque os horários de ônibus são diferentes. A estrangeira que supôs o domínio da língua inglesa de Rafael e pediu que cuidasse de sua bagagem enquanto ia ao banheiro. O senhor que o julgou culto pelos livros que lia diariamente, mas que jura nunca ter visto antes. Estes são apenas alguns dos “amigos” 12 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

que fez em frente ao box. Essas histórias todas acontecem no inesperado. Cada dia, pessoas novas surgem em meio aos rostos já conhecidos. Quando o jornalista termina sua jornada de trabalho, já sabe onde está o próximo passo em direção a casa. De maneira automática, a passagem é comprada no guichê e o caminho é o mesmo de sempre até o box. Porém, o automatismo funciona apenas para o trajeto até o número 42. A curiosidade mantém a atenção ao que está acontecendo. “O box é um ponto de partida, uma referência. A partir do momento que chego ali, percebo que estou indo pra casa, o dia está terminando e vou poder descansar”, conta Rafael. Enquanto espera, ouve algumas pessoas que expõem sua vida ao

Antes de embarcar, Rafael apresenta a passagem para Fabio Giovani Martins Rodrigues, fiscal de tráfego e transporte coletivo que mora em Gravataí e trabalha na rodoviária da capital. Com um ano a mais que o número do box no qual passa mais de 20 vezes por dia, o de número 42, ele lida com uma média de 500 passageiros por dia durante a semana. “A empresa para a qual trabalho tem sua frota de embarque entre os boxes 38 e 43. Desses, os mais utilizados são o 42 e o 43”, relata o fiscal. Desde 2000, Fabio é responsável por embarcar os passageiros e autorizar a partida dos ônibus. Trabalhando atualmente das 13h às 20h15min, seis dias por semana, ele conhece muitas pessoas que partem com destino a Taquara, Sapiranga, Gramado e Canela, as principais linhas com saída do box 42. Fabio adora sua profissão: “Ela não me deixa sentir sozinho, trabalhando como uma máquina”. Ele percorre as plataformas e faz amizade com os passageiros, além de coletar histórias. “Certa vez, uma senhora comprou passagem para um ônibus que saia às 20h. Porém, ela queria embarcar no das 18h30min,


LUANA CHINAZZO

que já estava lotado. Ela colocou o pé na porta do veículo e não permitiu a saída. Fui obrigado a chamar a polícia para retirá-la e ouvir muito desaforo, mas faz parte do meu trabalho”, conta. Casos como esse são mais frequentes durante o final de semana, conta o fiscal. “As pessoas que frequentam a rodoviária diariamente geralmente têm emprego em Porto Alegre” e, assim, tem horários mais ou menos fixos de partida. “Eu tento sempre ser solícito, ajudar. Desse jeito, o serviço funciona melhor”, comenta. Quanto ao box 42, Fabio tem uma relação bastante importante com o local: “Passo 1/3 da minha vida aqui, é a matriz do meu trabalho”. Todos os dias, Fabio encontra José Maciel Pereira, motorista de um dos ônibus que saem da capital com destino à Nova Hartz. Dos 58 anos de Maciel, quase 40 são dedicados à profissão de condutor. Cinco dias por semana e duas vezes ao dia, ele percorre o trajeto que passa por Novo Hamburgo, Campo Bom, Sapiranga e volta à cidade onde mora (e que também é a parada final). Preocupado quanto à segurança dos passageiros, Maciel condena a imprudência de seus colegas motoristas. “As pessoas deveriam ter mais calma no trânsito. Evitar, inclusive, sinais obscenos”, ele diz. No percurso, ele dedica sua atenção exclusivamente à direção, em respeito à média de 80 passageiros que conduz diariamente. “Não observo muito a paisagem, mas sim o

trânsito”, assegura. O motorista não cansa de viajar e ama o que faz. Há nove anos na mesma empresa, ele encontrou na profissão uma forma de conhecer pessoas novas e estar sempre em contato com o público. No box 42, ele tem uma parada semanal. Ali, vê mais que um local para efetuar embarque e desembarque de passageiros. “O ônibus é minha segunda casa, e o box, o abrigo dele, um lugar onde existem várias personalidades e temperamentos diferentes”, ele conta. Não há uma designação específica para quais ônibus serão destinados a parar ou partir de cada box na rodoviária. Segundo o Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem (DAER), a escolha depende da demanda diária e do fluxo dos transportes no local. De forma aleatória e por critério de disponibilidade, são indicados antes da partida dos ônibus da cidade de origem o local de parada no destino. No número 42 da Estação da capital, embarcam passageiros, principalmente, para o Vale dos Sinos e Serra. Em média, 40 ônibus saem dali durante a semana. E é entre esses roteiros e veículos que se cruzam as histórias e as vidas. O box 42 da Estação Rodoviária de Porto Alegre é, para Rafael, um local de espera e partida; para Fabio, um escritório; para Maciel, um lugar de interação. E, para quem apenas o enxerga na corrida diária, ordinariamente, é uma viga de concreto com um número indicativo.

CAMILA HUGENTHOBLER

impressões de

repórter

Um lugar movimentado, cheio de pessoas que passam correndo. A pressa do dia a dia, o caos e a sensação de non stop é o que se percebe ao chegar à Rodoviária de Porto Alegre. E foi ali, em frente ao box de número 42, que encontrei gente capaz de observar a vida e colecionar histórias. A apuração da matéria iniciou com o jornalista Rafael, que reunia histórias de viagens na timeline de sua página pessoal no Facebook. Com ele, conheci a rotina de quem encontra no (longo) trajeto para casa um momento de autorreflexão. Com Fabio, o fiscal, aprendi que disposição e bom humor são requisitos para o trabalho com pessoas. E Maciel me fez ver que a rotina de motorista pode ser reconfortante mesmo sendo uma ligação diária entre boxes de rodoviária. Mais que apenas um box, encontrei uma gama de possibilidades para entender as chegadas e partidas de pessoas. Mais que apenas um número, 42 também foi um exercício de reportagem e uma oportunidade de conhecer gente que observa a vida enquanto viaja ou espera as viagens dos outros.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 13


FRANCISCA GABRIELA

viagem

14 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014

Roteiro


CRISTIANO VARGAS

FRANCISCA GABRIELA

CRISTIANO VARGAS

definido

O dia em que conheci Eduardo e viajamos juntos, ele na poltrona 42 do ônibus 288, com destino a Barra do Ribeiro; eu na poltrona 41 Por Raisa Torterola Fotos de Cristiano Vargas e Francisca Gabriela

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 15


viagem CENA UM: O ENCONTRO

E

le usava uma camiseta preta com escritas em amarelo: Exército Brasileiro. Tinha a pele morena, a verdadeira cor de cuia. Olhos grandes e verdes. Umas cinco ou seis tatuagens a mostra. O cabelo, como se espera de um possível soldado, curto. Eu, de calça jeans e camiseta, com ansiedade e lentes de contato humedecidas, como se espera de uma futura jornalista, com sete ou oito tatuagens a mostra. Estávamos na fila do guichê 15 da Rodoviária de Porto Alegre. Ele ouvia músicas pelos fones brancos que se exibiam para mim; eu olhava compulsivamente, esperando o momento de atacar. – Oi, com licença... Tirou os fones e me olhou com dúvida. – Tu vais para onde? Que cidade? – perguntei. – Barra do Ribeiro – disse. Ainda com a mão esquerda segurando o fone de ouvido. – Posso ir contigo?

Como se fôssemos amigos ou coisa parecida, concordou com a ideia. – Eu só preciso que tu compres a passagem da poltrona 42. Fomos até o box 20. Lá, nos esperando, a fila de passageiros e o ônibus. Com uma voz entre o trêmulo e o anestesiado, disse: – Vamos pegar a pior das estradas! Esse ônibus vai passar por chão batido. CENA DOIS: ACENANDO Nossos lugares ficavam no lado direito do motorista, nas penúltimas poltronas. Fomos os últimos a entrar. O ônibus, com estofados confortáveis para viagens de longa duração, estava cheio. Eduardo sentou no corredor e eu na janela. Com a cortina aberta, o sol entrava e saia. Eram 10h. Assim que sentamos, Eduardo folheou as edições passadas da Primeira Impressão que levei comigo. Expliquei como seria a nossa conversa e para quê serviria. Eu perguntaria o que quisesse saber dele durante a viagem. Ele só precisaria responder. FOTOS DE FRANCISCA GABRIELA

16 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

APRESENTAÇÃO: PERSONAGEM PRINCIPAL Paulo Eduardo Ferraz Costa, 19 anos. Quando se apresentou, usou o segundo nome, mas é mais conhecido como Paulo. Por que Costa tem um monte no Exército. – Mas e Paulo? – perguntei. – Ah! Também! Ariano, mania obsessiva por arrumação, brabo. Não gosta de ser contrariado. Morou em várias cidades do Estado antes de se mudar para o Quartel. Primeiro veio Guaíba – onde nasceu –, depois Barra do Ribeiro, Pedras Brancas, outra vez Barra do Ribeiro, Santa Rita, Barra do Ribeiro, Eldorado do Sul, Barra do Ribeiro. Agora mora em Porto Alegre, mas, nos finais de semana de folga, volta para a Barra. Sempre vai voltar. Filho mais velho, deixou a casa em Barra do Ribeiro com os irmãos Andrew, 16 anos; Marisol, 7; e Pedro, 2. O mais novo chama Eduardo de pai. Mas ele não sabe bem o porquê. Talvez por ajudar a mãe nas tarefas de casa. Desde os 13 anos trabalhou como lenhador em Bom Princípio. Ganhava


CRISTIANO VARGAS

R$ 200,00 por semana e à vista, independente da quantidade de Acácias que transformasse em lenha. Foi nessa época que começou a montar cavalos e se apaixonar por equitação. Época em que começou a desejar o militarismo como profissão. Quando se entra para o Exército Brasileiro não se pode escolher nada. Os jovens se alistam e informam se têm ou não interesse em servir. Depois vêm os testes físicos. Eduardo foi selecionado para integrar o 3° Regimento de Cavalaria de Guardas, que fica na Rua Bento Gonçalves, em Porto Alegre. Com 18 anos se tornou um NB. Os NBs são as pessoas que formam os núcleos de base. Depois, se os tenentes e sargentos acharem que vale a pena para o Exército, os NBs se tornam EVs (Efetivo Variável), e trabalham por mais um ano. Só depois é que um jovem pode ser chamado de EP (Efetivo Permanente) e, então, se tornar um soldado. Mas para isso é preciso conseguir estar entre os 10 melhores NBS do regimento. Dos 300 jovens que ingressam por ano, apenas 10 têm a chance de serem contratados no ano seguinte. Eduardo sempre sonhou com esse dia.

CENA TRÊS: ESTRADA DE ASFALTO No dia em que oficialmente alguém faz parte do Exército Brasileiro, eles dão a farda de número 01 e, em filas, os tenentes dizem para cantar os hinos do quartel, do regimento, do Exército e do Brasil. Essa cerimônia é chamada de formatura. Os familiares são convidados a assistir, têm uma hora para ficar com os jovens. É a última vez que os verão em um mês. Depois os portões fecham. O período é conhecido como “internato”. Perguntei se não ficou com medo, Eduardo sorriu e olhou para baixo. Uns dois ou três segundos de timidez foram interrompidos logo depois: – O dia estava lindo, tinha sol, sabe? Mas assim que fecharam os portões os tenentes viraram para nós e falaram: “Agora a gente vai extrair a alma de vocês, senhores”. Aí o tempo fechou. Sabe aquelas nuvens pretas de chuva? O dia inteiro ficou assim. Eduardo saiu da Barra do Ribeiro para dormir num alojamento de 120 camas. Destas, 119 ficam vazias durante a noite,

já que todos os seus colegas moram em Porto Alegre. Basicamente, do seu regimento, só Eduardo dorme no quartel. – Eles nos deram dez segundos para escolher a cama que a gente queria. Era um monte de homem correndo e se jogando, disse quase irritado. – Se jogando? – duvidei. – Na verdade a gente colava os nossos nomes na cama que queria, entende? – E tu escolheu a de cima ou a de baixo? – De cima! Antes de apitarem eu já ficava cuidando... Olhei para o lado. Da janela vi que não reconhecia mais a estrada onde estávamos. Não havia casas ou comércio, só estrada e campo. Virei para Eduardo e segui perguntando sobre a rotina no Exército. Me disse que às 11h30min estão liberados para o almoço, sempre o mesmo: arroz, feijão e carne. Às 12h começa o horário de banho. A janta, das 18h30min às 19h. Às 22h as luzes se apagam e ele precisa dormir. Antes disso, depois do expediente, joga futebol e lê algum livro. No quartel não tem televisão, não tem rádio ou internet, só o TFM (treino físico Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 17


viagem

FRANCISCA GABRIELA

militar). O armário, uma gaveta individual, é minimamente organizado. Eduardo falava com um ar muito sério sobre os cuidados que gosta de ter com as suas coisas, sobre o valor que dá para a organização. Com certa inocência e malícia masculina, disse: – Sabe, é nojento ver aquele bando de homem pelado. Pior ainda é a bagunça que eles fazem. Tudo espalhado no chão. Tem dias que me dá vontade de matar! Anotei: TOC (transtorno obsessivo compulsivo por organização). Ele concordou. MONÓLOGO UM: FARDA BEM CUIDADA – A Farda 01 precisa estar impecável, a gente usa ela poucas vezes. Normalmente para formaturas ou desfiles. É a clássica, com calça branca, casaco branco, chapéu. A farda de rato é a de uso comum, é a que mais usamos, então ela está sempre suja e rasgada. Quando está calor e já terminou o expediente ou vamos jogar futebol, temos que usar um tênis preto com meia branca, um calção verde escuro e uma regata branca, é a 5ª farda. CENA QUATRO: CHÃO BATIDO A estrada asfaltada parecia imensa, mas nós dois conversávamos com tanto entusiasmo que nem percebemos o tempo passar. Gostava de perguntar algo que deixasse Eduardo ser mais Eduardo e menos Paulo. Menos soldado, mais adolescente. Quando acertava uma pergunta – a pergunta que deixava ele rindo –, Paulo parecia criança. Falava muito. Me contava com frases curtas tudo o que viveu e tudo o que gostaria de viver. Eu precisava escrever uma reportagem de 7.000 caracteres, mas só me preocupei com a nossa conversa agradável. Só percebi que a estrada de chão batido estava invadindo nosso cenário porque ele me mostrou. Casas e fazendas apareciam entre árvores e matos. A maioria delas sem energia elétrica. Vacas, cavalos e cachorros enfeitavam a beirada esburacada e cheia de barro

18 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

da estrada. Nós dois seguíamos rindo. Pouco me importava o tempo lá fora, só o de dentro. – Uma vez vi um filme onde o personagem principal era um soldado. Ele foi para a guerra e foi o único que sobreviveu do grupo dele. Isso porque viu um brilho no chão, na grama, e foi ver o que era. Quando ele saiu do acampamento, explodiu uma mina. Um homem de sorte! O filme é muito bonito porque fala sobre amor também. O objeto que ele encontrou era

da mulher de um dos soldados, ele passa o filme todo indo atrás dela para devolver, aí se apaixonam. Então eu tatuei uma frase que ele dizia sempre: “toda a glória é passageira.” – Tu achas que toda a glória é passageira? – perguntei ansiosa. – Acho – respondeu objetivamente e sem espaço para qualquer outra pergunta. – E as outras quatro...? – Nas costas tenho um dragão oriental, no lado esquerdo. No braço direito, na parte de trás, tatuei o meu nome.


Senti vontade de perguntar o que levaria alguém tatuar seu próprio nome em letras razoavelmente grandes e em fila indiana. Preferi fantasiar. – Hmmm... no pescoço tenho um beijo. Não sei bem o porquê, só acho legal. E depois tem o escorpião do ombro. – Por que alguém tatua um escorpião? – perguntei esperando uma resposta inusitada. – É que tinha uma letra R antes. – Ah! Nome de alguma namorada?– perguntei ainda mais ansiosa. – É, eu namorava a Rana. – Entendi! Tu fez uma surpresa para ela!! – Na verdade, não. Ela que pediu. A estrada de chão batido seguia nos fazendo balançar de um lado para o outro. Eu tinha largado minha mochila no chão há tempos. Dobrei as pernas e as coloquei no banco, sentando em cima. Esse é um clássico sinal de excitação. Eduardo seguia com as revistas na mão. Às vezes enrolava uma delas e transformava numa espécie de cone. Às vezes respondia olhando para baixo, com um sorriso pequeno; tinha vezes que olhava orgulhoso para mim. Sinais claros de ansiedade e timidez. Não olhei o relógio, mas deveria ser umas 11h. – Um dia ela pediu que eu tatuasse a letra do nome dela no ombro, fui lá e fiz. Mas daí passou uma semana e a gente terminou. – UMA SEMANA? – perguntei espantada. – É! Aí tive que fazer um escorpião – disse olhando para baixo, depois para mim. Eu ria. Ele também. – Minha mãe me chama de amor louco... Ela diz que eu amo demais... amo toda hora uma pessoa diferente! Mas há um ano namora Thauana, 16. – Entre idas e vindas. CENA CINCO: O TEMPO É CURTO Passamos por uma casa branca e pequena, Eduardo apontou e disse que morou lá com o avô. Perguntei se estávamos longe da Barra, queria ter tempo para perguntar o que tinha esquecido. Já sabia sobre a família, o Exército, as

namoradas, as tatuagens... – Acho que temos ainda uns 10 minutos. – Tu achas que vai conseguir virar um EV? – pergunto depois de pensar muito. – Acho que sim. Tirei primeiro lugar nas competições internas do regimento, dizem que sou o melhor fisicamente – disse emocionado. Sempre que falávamos sobre os sonhos, os cavalos e o Exército, Eduardo sorria, olhava para baixo, mexia as mãos e depois respondia a pergunta. Seguia essa ordem. Na maioria das vezes eu esperava um tempo para perguntar outra coisa. Queria ver Eduardo sendo Eduardo. Olhei para a janela. A estrada começava a receber casas e fios elétricos. Eduardo me disse que já estávamos na cidade. Via casinhas pequenas, antigas e simples. As ruas, ainda de terra, algumas com pedras e calçamento. Poucas pessoas andavam nelas. Escuto Eduardo falando no telefone. Era a namorada. – Ela está te esperando na rodoviária? – Na esquina. Eu vou para a casa dela agora. Sempre vou para a casa dela e depois para a minha. Vejo uma mistura de boteco com casebre. Um toldo na frente, na parede leio “Rodoviária”. Olhei para Eduardo e sorri. Agradeci a sinceridade. Nos levantamos para sair. Desci primeiro. Pedi para fazer uma fotografia dele com a minha câmera descartável. Ele deixou. E foi embora. Eram 11h30min. Comprei a passagem de volta e esperei. CENA SEIS: VOLTAR Meia tonelada. Geralmente o peso de um cavalo é de meia tonelada. Pastorejar, do verbo levar para passear. Essa é uma das atividades favoritas de Eduardo no quartel. Porque pode ficar sozinho com os cavalos. “Tem vezes que eu vejo eles lá, tristes e sozinhos, e, se o dia está bonito, peço para o tenente. Se ele autorizar, pastorejo. Os cavalos são como a gente, precisam de carinho”. Li as frases anotadas no caderno. Estava sentada na poltrona 41, voltando para Porto Alegre. Eram 12h, não tinha ninguém sentado do meu lado.

impressões de

repórter

Encontrar alguém interessante no meio de tanta gente. Convencer este mesmo alguém a comprar a passagem da poltrona 42 de um ônibus qualquer. Pedir para viajar do seu lado. Saí de casa com este desafio em mente. Sem saber para onde iria, se estaria burlando a proposta da revista, já que escolheria alguém para colocar no lugar 42 ao invés de entrevistar alguém que já estivesse lá. Com tantas dúvidas, optei por levar comigo duas edições da PI para segurança: a comprovação de que eu realmente era estudante de jornalismo e que tudo o que perguntasse se transformaria, sim, numa reportagem. Quando cheguei à Rodoviária, fiquei nervosa. Eu não tinha pensado em nenhum critério para escolher meu personagem. Depois de escolhido, como o abordaria? E se ele não tivesse uma boa história? E se ele não quisesse falar muito sobre a própria vida? Crises clássicas – acho-, de qualquer jornalista antes de encarar a pauta e as fontes. Foi então que comecei a caminhar de uma lado para o outro, olhando as filas das cabines de compra de passagens. Numa delas vi Eduardo. Como conto na reportagem, me aproximei e perguntei para onde ia. Fiquei contente ao saber que a Barra do Ribeiro não era muito longe, então daria tempo de ir e voltar cedo, além de ter um tempo razoável para fazer a entrevista. Ao embarcar, tive que encontrar formas de criar uma relação com a fonte, quebrar o clima de timidez e tensão. Foi a parte mais fácil, principalmente porque gosto de conversar de uma forma mais natural, sem anotar muito ou gravar áudios. De tudo, conhecer Eduardo, estar com ele por uma hora e meia, foi uma das coisas mais gratificantes que vivi. Não só com a pauta, mas com o jornalismo. Fiquei fascinada pela história de vida, pela energia, pelas coisas que me contou. Mas, mais que isso, me impressionou a forma como precisei olhar atentamente para tudo e escutar Eduardo de uma forma mais profunda. A ideia de escrever a viagem como uma história surgiu justamente por isso: não seria possível não transcrever fielmente a sinceridade e a inocência dele.”

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 19


FELIPE GAEDKE

política

20 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


Pirateando o Brasil Sob a legenda 42, um partido de ideias contemporâneas pode estar surgindo no país Por Gabriela Barbon Fotos de Felipe Gaedke e LuísaVenter

“E

u estava cansado da política brasileira.” Não é apenas Ederson Brilhante que cansou de tudo que ocorre dentro da política no Brasil. Porém, o analista de sistemas encontrou uma maneira de tentar mudar esse cenário. Em 2012, o jovem tímido de cabelos encaracolados conheceu o Partido Pirata e, desde então, engajou-se com a causa. Ederson não foi o único. A fanpage oficial dos piratas no Facebook já possui mais de 46 mil likes, colocando-a no ranking das maiores páginas partidárias do país. Com ideias libertárias, como o internacionalismo, direitos igualitários, autodeterminação do corpo e a utilização do software livre, o partido, vem ganhando mais adeptos. Fora do país, o Movimento Pirata já ganhou força, principalmente na região escandinava da Europa e na Suécia, onde surgiu em 2006. Atualmente, existem representantes do partido em mais de 60 países. Mas o que falta para de fato os piratas tomarem o Brasil? Tornar-se um partido elegível.

Entre ideias e meio milhão de assinaturas

Em um dia quente do inverno nordestino, uma sala fechada, em Recife, foi o local escolhido para o principal marco da história dos piratas brasileiros. No dia 28 de julho de 2012, em uma reunião para pouco mais de 130 pessoas, os ideais piratas ganharam forma através de um estatuto e um programa partidário. Depois de mais de quatro anos de conversas e elaborações

on-line, oficializou-se a criação do Partido Pirata Brasileiro. Sem dúvida, o partido com mais apoio às causas digitais pensado até hoje no país. O grupo, formado em sua grande maioria por internautas antenados ao contexto cibernético-social, tem como legenda o 42. Número que, segundo o Mochileiro das Galáxias, um dos livros mais nerds da história, dá sentido à vida. Após mais de um ano de coleta de doações, apenas em setembro de 2013 os piratas tiveram condições de criar uma sede na capital federal e publicar seu estatuto no Diário Oficial da União. “Acreditamos em um partido sem sindicatos, sem bancos e outras empresas bancando. Nosso estatuto proíbe qualquer investimento privado”, comenta o atual Secretário Estadual do partido em Porto Alegre, Ederson Brilhante, afirmando que as ideias dos piratas são bancadas apenas por doações de pessoas físicas. Sentado em uma cadeira de escritório, dentro de seu quarto 2x2, alugado no Bairro Higienópolis, na capital gaúcha, o jovem, de olhar nunca fixo, defende com veemência as ideias daquele que ele acredita ser o modelo ideal de política. “Eu vim para o Partido Pirata por não acreditar em nenhum outro partido. Não existe esquerda ou direita no Brasil, está nos estatutos dos partidos, mas estes são simplesmente ignorados pelos atuais partidos.” Inclinando-se da cadeira e adotando uma postura quase de imposição, Ederson exclama em bom tom que não teme ser chamado de esquerdista ou radical. “Não importa sermos direita ou esquerda, o que importa é defender os direitos das pessoas. O que eu acredito é nos princípios piratas. Deixa os cientistas políticos nos definirem pelos nossos Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 21


LUÍSA VENTER

política

LUÍSA VENTER

n A divulgação do Pirata é realizada nos mais diversos lugares. Para tornar-se um partido oficial, é preciso coletar 500 mil assinaturas

22 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

ideais, o que importa é o que a gente vai fazer”, afirma o secretário. Para que o partido seja validado pelo Tribunal Superior Eleitoral e, assim, tornar-se elegível em eleições, os piratas precisam coletar meio milhão de assinaturas. Mas esse processo é demorado. O TSE só aceita como válidas fichas que sigam um padrão: além das assinaturas, devem conter título eleitoral e nome completo legível. Mais da metade das fichas preenchidas nas ações sociais promovidas pelo movimento apresenta algum problema. Com isso, a conta fica mais complicada. Os piratas terão que coletar mais de 1 milhão de assinaturas pelo país para que ao menos 500 mil sejam validadas. “Quando tivermos meio milhão de assinaturas validadas, entregaremos no TSE para assim tentarmos ganhar o aval”, comenta o jovem esboçando um sorriso esperançoso. Atualmente, o Pirata não conta com nenhuma assinatura validada. “Se um partido que teve dinheiro envolvido, como o da Rede (partido encabeçado por Marina Silva), não conseguiu, imagina o Pirata, que não tem dinheiro privado envolvido. Sabemos que é um processo muito demorado, mas vamos conseguir”, ressalta Ederson. A meta é que o partido possa concorrer às eleições a partir de 2018.


O povo mais perto da política

Em ano eleitoral, época que a política é repensada e avaliada, quando novas promessas são jogadas ao vento e uma nova remessa de políticos é eleita para representar a população, as ideias piratas tornam-se notáveis. Aliando democracia e internet, o movimento pretendo ir além do atual sistema representativo. Suas ideias são tão inovadoras na América Latina quanto o nome do partido. Entre as propostaschaves do movimento estão o acesso livre à informação, o compartilhamento livre de arquivos culturais e ativismo hacker. Já que suas ideias serão taxadas de pirataria no atual sistema social mundial, o movimento optou por oficialmente assumir o rótulo de piratas. Mas nada relacionada à velha ideia do vilão que assalta barcos em alto mar. Os novos Piratas querem mudar a forma de se fazer política. “O principal benefício ao incorporarmos elementos da democracia direta é justamente quebrar o monopólio da política e ampliar a experiência democrática. Eleger um político, hoje, significa entregar a ele uma procuração em branco e assinada. Não há mecanismos eficientes para fiscalizar sua atuação e muito menos o dinheiro público que é usado por eles. Se conseguirmos unir o voto com ferramentas para acompanhar na internet a atuação dos políticos e do Governo, é possível que tenhamos mudanças interessantes”, comenta o doutor em História Social e excoordenador geral da região sul do Partido Pirata, Fabricio Leal de Souza. No atual sistema, há uma linha imaginária que divide o povo da política brasileira. Um elo entre população e política é umas das ideias defendidas por Fabricio. “A informação deve circular livremente e toda a população deve ter acesso, de forma transparente e inteligível. A transparência política é um mero recurso discursivo dos políticos. Os piratas desejam que as informações sobre a política brasileira estejam tão acessíveis quanto um filme recém lançado no cinema e que já fica disponível para download”, ressalta.

de defender uma ideia. E, por isso, atingiram seu objetivo principal. Sem sair às ruas e sem conseguir uma união das massas, as ideias não saem do papel. Ao menos é isso que acredita o cientista e crítico político Bruno de Lima Rocha. “É preciso uma massificação para que a reforma politica ocorra. O PSTU, por exemplo, já é um partido que tem 10 anos de existência. É um movimento de oposição importante, mas não é massificado e, portanto, não tem uma força relevante”, comenta. As ideias libertárias esquerdistas defendidas pelo movimento Pirata são positivas e podem trazer um novo caráter a política. Porém, sem massificação não há mudança. “A transformação pública do estado brasileiro precisa de uma ação de massas fortíssimas, sem isso acho difícil que os Piratas consigam”, ressalta Bruno.

n Ederson destaca os ideais

dos piratas: um partido sem sindicatos, sem bancos e outras empresas bancando

impressões de

repórter

Por vezes, coisas ruins acontecem porque melhores estão por vir. Depois de duas pautas derrubadas e um desespero avassalador, precisava entregar uma matéria relacionada ao número 42 e o tic-tac do relógio não parava - me deparei com o Partido Pirata. A ideia de escrever sobre política, em pleno ano eleitoral, me assustou em um primeiro momento. Nunca fui muito ligada em legendas partidárias e posições políticas no cenário brasileiro, mas produzir a matéria sobre a proposta de um novo partido me fez mergulhar de cabeça no assunto e enxergar com outros olhos o contexto político brasileiro. Sair de Dois Irmãos rumo à Porto Alegre em pleno sábado de 38 graus foi só o primeiro desafio desta pauta. O mais intrigante foi tentar compreender em qual paradigma esse novo partido poderia se encaixar e o que essas novas ideias propostas poderiam agregar na política do país. Ao final da matéria, só posso afirmar que, ao me deparar com pessoas com desejo de mudança tão fortes, fui atingida positivamente. Já vejo a política com novos olhos.” FELIPE GAEDKE

A massificação pode ser a chave

Os protestos que invadiram as ruas do todo o país em 2013 são uma forma massiva Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 23


GUSTAVO EV

sepultura

Memórias póstumas de Ernst Müzell O imigrante que veio da Alemanha defender o Exército Brasileiro, mas que acabou estendendo suas marcas além do campo de batalha Por Marina Cardozo Fotos de Gustavo Ev e Izadora Meyer

A história aqui narrada foi escrita com base em uma parte do diário de Karl Ernst Ludwig Müzell; em uma entrevista com Rolf Gliesch, tataraneto de Ernst; em cartas escritas por Ernst à Câmara Municipal de São Leopoldo; e na pesquisa dos genealogistas Sílvia Helena Faria e Diego de Leão Pufal.

O

túmulo de muretas quebradas e lápides quase apagadas não chamaria muita atenção não fosse a grande árvore que cresce sobre ele. A copa cheia de folhas e o mar de sepulturas escondem a família Müzell no túmulo 42 da segunda fila da seção A, no Cemitério 24 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

Municipal de São Leopoldo. Pudera o esquecimento: o patriarca descansa sob a sombra desde 1900, mais de um século distante da atualidade, mas apenas 49 anos após o início da jornada que mudaria sua vida. Era março de 1851. Karl Ernst Ludwig Müzell, então com 27 anos, completava seu serviço militar no exército prussiano. Após lutar pela independência de Schleswig-Holstein (hoje uma região da Alemanha, na época dois ducados da Dinamarca), Ernst recebeu a Cruz de Ferro e preparava-se para voltar para casa. Os planos mudaram quando descobriu um mandado de prisão contra ele. Participante da facção Brummer, que era contrária ao Kaiser,

Ernst ficaria ao menos dois anos preso caso regressasse. A decisão foi por não voltar, e uma opção logo apareceu. Havia uma guerra no sul do Brasil. A jornada de conquista de territórios do ditador argentino Juan Manuel de Rosas chegava ao Rio Grande do Sul, e Dom Pedro II não estava disposto a deixar o Brasil perder a soberania na América do Sul. Para auxiliar o Exército Brasileiro, o imperador mandou contratar oficiais alemães. Ernst aproveitou a oportunidade e, em abril, zarpou para o Rio de Janeiro.

A viagem

Os dois meses a bordo do navio Danzig


foram tranquilos para Ernst. Alguns colegas de embarcação não tiveram a mesma sorte, se perderam pelo caminho - e enrolados em panos, foram lançados ao mar para o descanso. Os dias eram marcados por jogos, pescaria e festas para animar os tripulantes, porém havia dias em que Ernst sentia a saudade falar mais alto. Em especial no dia em que cruzou o Equador, Ernst encontrou nas palavras de Alexander von Humboldt, explorador prussiano, a descrição da sensação de chegar ao hemisfério sul: “Um sentimento peculiar e até então desconhecido emerge quando nos aproximamos do Equador, especialmente na transição de um hemisfério para o outro, vê-

-se como as estrelas com as quais temos sido familiarizados desde a mais tenra infância afundam mais profundamente e finalmente desaparecem. Nada lembra o viajante de uma forma tão viva da enorme distância que o separava de sua terra natal do que a visão de um novo céu.” Em cinco de junho, a tripulação finalmente viu Cabo Frio, e no dia seis, “nos saudou ao amanhecer a costa brasileira, que em toda a sua majestade e maravilha estava exposta a nossa frente”, escreve Ernst em seu diário. No Rio de Janeiro, Ernst ficou até 22 de agosto. Neste tempo, conheceu a cidade e os arredores, andou por São Cristóvão, Catete,

Laranjeiras, Botafogo, foi à Serra dos Órgãos, visitou Niteroi (ou Nicteroy, como chama). A natureza era o que mais o maravilhava, a diversidade das plantas e formações naturais como o “Pão d’Assucar” chamaram muito sua atenção. Escreveu que o Rio de Janeiro “é uma cidade organizada e limpa, com muitas palmeiras”. Apesar de feliz por estar em terra firme, Ernst sentia falta dos companheiros de Danzig que tomaram outros rumos após a chegada ao Rio. Após a inspeção pessoal de Dom Pedro II, Ernst embarcou para a última parte da viagem, que o levaria a seu destino final: o Rio Grande do Sul. O navio Imperatriz chegou a Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 25


sepultura Pelotas em poucas semanas, após uma breve parada na ilha de Desterro - hoje Florianópolis – para abastecer. Em Desterro, Ernst ficou feliz por encontrar amigos que ali estavam como colonos. Perto do fim de agosto, começaram a ver a costa lisa do Rio Grande do Sul e, após uma rápida passagem pelo porto de Rio Grande, a viagem estava terminada. Ernst chegara a Pelotas.

Rio Grande do Sul

“Pelotas é uma cidade pequena, plana e bonitinha.” Em Pelotas, Ernst sentiu-se em casa pela primeira vez em meses. Os moradores da cidade eram em sua maioria famílias, e a gentileza das pessoas chamou a atenção do oficial. Ernst passou muitas noites no círculo familiar de um ourives, Domingo Marques, acompanhado de outros imigrantes, o alemão Friedrich Straap e o inglês Henry Hallam. Hallam tocava piano e diversos foram os momentos em que todos se juntaram para entoar canções que os lembravam da terra natal. Se a situação era tranquila em Pelotas, no campo de batalha a confusão estava instaurada.

Os soldados não eram pagos e, quando eram, recebiam atrasado. Faltavam armas e havia muitas deserções, que eram punidas com a morte por fuzilamento. E mais: quando Ernst e os outros oficiais alemães chegaram, a guerra já estava quase terminada. Eles esperavam ordens para ir ao front, mas nada acontecia. O fim da guerra foi declarado ainda em 1851, mas os alemães tinham contratos de quatro anos. De tempos em tempos, corriam fofocas de que seriam dispensados, mas isso nunca ocorria. Após o término do tempo do contrato, os oficiais receberam a opção de terras no Rio Grande do Sul ou um prêmio em dinheiro para voltar à Alemanha. A maioria optou por ficar, e Ernst se radicou em São Leopoldo.

São Leopoldo

Foi em abril de 1858 que Ernst recebeu a proposta de conhecer um novo lugar, São Leopoldo. “Chegado hontem á esta cidade tinha a honra de receber o offício do Mestre da Câmara Municipal”, escreve Ernst em uma carta, datada de 23 de abril de 1858. O ofício a que ele se refere é a realização de plantas do

levantamento e nivelamento da cidade, para o qual fora contratado no dia 13 do mesmo mês, pela Câmara Municipal de São Leopoldo. A maioria dos soldados contratados para a Guerra de Oribe e Rosas tinha um nível de ensino superior ao dos colonos e foram importantes para o desenvolvimento dos locais onde se estabeleceram. Ernst Müzell não foi diferente. Além de militar, era agrimensor, formado pela Escola de Berlim. No Rio Grande do Sul, fez medições topográficas de cidades como Lajeado, Ijuí e São Leopoldo, com todas as suas colônias. Estes mapas são utilizados como referência para profissionais da área até hoje. Um de seus trabalhos mais extensos foi finalizado em 1870. A Planta Topográfica de Uma Parte do Município de São Leopoldo foi publicada no apêndice do livro Colônias de São Leopoldo, de Adalbert Jahn, e está, hoje, no Museu Histórico Visconde de São Leopoldo.

n Rolf Gliesch é descendente de Ernst Müzell e herdou parte do diário do tataravô

GUSTAVO EV


IZADORA MEYER

Em seu livro Primórdios da Vida Judicial de São Leopoldo, o pesquisador Carlos Hunsche diz: “O grande valor histórico e topográfico desta planta consiste no delineamento minucioso de todas as colônias (datas ou prazos) nas diferentes localidades da colonização alemã, partindo da povoação de São Leopoldo, no sul, até Nova Petrópolis, no norte”. É graças a Ernst que hoje é possível saber exatamente onde os imigrantes alemães se estabeleceram no Brasil nos idos de 1800. Mas não foi apenas de trabalho que Ernst viveu. Em São Leopoldo, conheceu sua esposa, a conterrânea Juliane Philippine Freyschlag, chamada de Julie. O casal se estabeleceu no primeiro quarteirão da cidade de São Leopoldo e teve 12 filhos. A família se espalhou pelo Rio Grande do Sul - alguns saíram do estado. Os registros do trabalho de Ernst estão em livros e no museu de São Leopoldo, além do que consta em seu diário, que tem partes distribuídas entre parentes, outras perdidas, algumas esquecidas como o túmulo 42. Ernst descansa sob a copa da grande árvore há mais de cem anos, mas sua memória segue viva na história de São Leopoldo. E seus vestígios estendem-se além dos mapas. Afinal, não é por acaso que a rua Ernesto Müzell existe no centro da cidade.

n O túmulo de Ernst é um dos muitos escondidos no Cemitério da Cidade de São Leopoldo

Mudança nos sepulcros Os cemitérios municipais de São Leopoldo estão sendo remodelados, mas muitos dos túmulos já não são mantidos por ninguém. A Administração dos Cemitérios está à procura dos descendentes, para que o destino desses corpos seja decidido. Se você tem algum parente – por mais distante que seja –, pode entrar em contato pelo telefone (51) 35751906 ou comparecer no endereço (Rua Saldanha da Gama, junto à Praça Vianna Moog, no centro da cidade).

impressões de

repórter

A experiência de construir a reportagem sobre Ernst Müzell foi completamente diferente de qualquer coisa que já fiz. Normalmente, no jornalismo, contamos uma história partindo do relato da pessoa que a vivenciou. Esta é a entrevista fundamental e, embora possamos nos utilizar de outras fontes, o guia de tudo é este “protagonista” da história. No caso de Ernst Müzell, era impossível ter esse tipo de guia. Embora já tenha lido perfis construídos a partir de relatos de outras pessoas, documentações recentes e dados que podem ser verificados com mais facilidade estão à disposição do jornalista para completar a narrativa. Este não foi o caso. As informações sobre Müzell datam de, ao menos, 114 anos atrás. Muita coisa foi destruída ou perdida. Percorri o cemitério, entrei em arquivos, tive documentos de 1850 nas mãos, tudo para deixar a história mais palpável, como seria se eu tivesse a oportunidade de sentar para conversar com o próprio Müzell. E agora, de certa maneira, sinto que o conheço um tanto bem.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 27


dedicação

Embarque no táxi do Seu Enor 28 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


FELIPE GAEDKE

O taxista conta histórias da profissão e de momentos de sua vida Por Guilherme Maciel Fotos de Felipe Gaedke e Mariana da Rosa Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 29


MARIANA ROSA

E

m O Guia do Mochileiro das Galáxias (1979), o escritor inglês Douglas Adams profetizou que o número 42 seria a resposta para a vida, o universo e tudo mais. E quem disse que a vida não imita a arte? No caso de Enor Pereira Machado, de 83 anos, não chega a ser o significado para a vida, mas para quase um terço dela. Há exatos 32 anos, ele começava na profissão de taxista, vivendo e convivendo diariamente sob o prefixo 42. Apesar de avisar que teria certa timidez, Enor demonstrou grande desenvoltura ao abrir as portas e convidar os leitores a embarcarem nos detalhes de sua vida. Logo no início, ficou visível que ele poderia ter o sobrenome “trabalho”. Após 25 anos de labuta, período em que foi industriário, resolveu que não era hora de parar e que deveria seguir em alguma profissão. “Eu me aposentei em 1981 por tempo de serviço. E aí minha aposentadoria saiu especial. Como eu estava novo na época, pensei: não vou parar de trabalhar, vou fazer alguma coisa. Aí consegui o ponto e faz 32 anos que estou 30 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

trabalhando aqui”, lembrou. A escolha lhe rendeu belos frutos. Com seu Ray-Ban nos olhos e escorado em seu Ford Fiesta 2013, Enor afirma que se “deu bem” na vida. “Na época eu era novo, tinha 50 anos. Sempre trabalhei desde guri. Toda vida trabalhei. E eu investi nisso aqui e me dei bem, graças a Deus. Me dei bem mesmo.” Nestas três décadas atrás do volante, o taxista, casado e pai de quatro filhos, conquistou o sonhado terreno na praia e também conseguiu trocar de carro há cada três anos. Começou com um Corcel 1 até chegar no atual. Por essas e por outras que ele é taxativo: “A vida é ótima. Não posso me queixar”.

A corrida que ninguém quer pegar

Entretanto, nem tudo é um mar de flores na vida de um taxista. Apesar da aparente estabilidade que a profissão possibilita, ela é arriscada. De cabeça baixa ao comentar, Enor sequer consegue lembrar quantos conhecidos não conseguiram terminar a última corrida: “Infelizmente, nestes 32 anos, eu já ajudei a levar alguns colegas ao cemitério.

n Em 32 anos

atrás do volante, Seu Enor nunca foi assaltado

Assaltaram e mataram. Não foi pouco. Foram muitos. Eu nem consigo lembrar quantos”, lamenta. Para ele, a insegurança é a pior coisa da profissão. Os passageiros são como uma loteria: “Tu nunca sabe o que vai ganhar”, afirma. Gesticulando e falando com certo ar de raiva pelos amigos que se foram, ele agradece a proteção de seu santo que, em sua opinião, é muito forte. “Às vezes tu leva pessoas boas e pessoas mal-encaradas, mas que também são boas. Graças a Deus, eu nunca fui assaltado. Eu tenho um santo protetor muito bom, acho eu. Em 32 anos, nunca fui assaltado. Tá até na hora de eu parar. Hoje tá muito violento. É um serviço que tu nunca sabe quem pega, quem é que vai no teu carro. Se é pessoa boa ou não. Ninguém traz o que é na testa. A pessoa é bem arrumada


e quer ir a determinado lugar e daí te mete uma faca ou um revólver e assalta”, explica. O medo do pior não fica apenas dentro do carro. Enor afirma que muitos clientes já demonstraram medo e quase chegaram a pedir socorro: “Às vezes a pessoa vai no banco ali, pega um dinheirinho, corre até aqui e pega um táxi. Peguei um dinheiro no banco e tinha um cara me cuidando, me leve, por favor! São coisas que acontecem”, lamenta. A situação é preocupante mesmo. A Associação dos Permissionários Autônomos de Táxi de Porto Alegre (Aspertáxi) sequer tem dados precisos sobre a violência sofrida pelos profissionais. De acordo com a entidade, cerca de sete taxistas são assaltados todas as noites. O número não pode ser comprovado, já que muitas vítimas não realizam o boletim de ocorrência devido à demora em protocolar o pedido. Segundo a instituição, uma solução seria ações da Brigada Militar promovendo “blitz” com revistas aos passageiros que podem ser uma ameaça aos condutores.

Pescando novas oportunidades

Apesar de toda a insegurança em que vive diariamente, Enor não tem do que reclamar da profissão. Em uma tentativa de comparar sua labuta com sua vida, ele faz uma analogia com um hobby de muitos nos finais de semana. “O dia a dia é bom. É uma rotina de trabalho. Um dia melhor, um dia pior. Isso aqui é como uma pescaria, entendeu? Um dia tu pega peixe, no outro dia tu vem e não pega nada. E é assim que

funciona. Pra mim, tá muito bom, eu gosto assim porque eu já tô aposentado e isso aqui é uma outra renda que eu tenho. Se bem que a aposentadoria já tá defasada”, explicou. Além disso, ele vive tranquilamente, cuidando de sua saúde. Afirma caminhar três vezes por semana para manter a saúde em dia. Talvez seja essa a receita para esconder as mais de oito décadas que carrega. Com seu estilo e disposição para a vida, parece ter 20 anos a menos do que a carteira de motorista comprova. “Graças a Deus, eu não tomo nenhum remédio. Tem pessoas aí que, infelizmente, com 60, 65, já tão com bengalinha. Eu tô “firmezinho”, mas me ajudo. Trabalhar é bom. Tem que botar a cabeça a funcionar. Se ficar em casa pensando na morte da bezerra, tu vai morrer mais ligeiro”, diverte-se. Para conseguir manter a animação e a vontade de trabalhar há 32 anos, Enor levanta uma bandeira que, segundo ele, deveria ser seguida por todos. “Honestidade é a base de tudo. Tem que trabalhar correto. Por exemplo, horário de bandeira 2 é horário de bandeira 2 e bandeira 1 é bandeira 1. Por que a gente, na idade que eu tô, tem que procurar fazer as coisas certas. Se eu fizer algo errado e a pessoa me chamar a atenção, tenho que ficar quieto. Ainda mais na minha idade. Respeito todo mundo, seja quem for. Prostituta ou pessoa séria... entrou no meu auto, o respeito é o mesmo. Não se mistura as coisas. E é por isso que estou aqui há 32 anos”, afirma, orgulhoso. Curiosamente, quando parar, Enor diz que vai fazer aquilo que usou como

A dezena do 40 persegue Às vezes, coincidências aparecem na vida das pessoas. Casualidades que muitas vezes são simplesmente obras do destino. E o destino colocou a dezena do número 40 na vida de Enor. Algumas pessoas chamam isso de carma. Por incrível que pareça, a dezena 40 acompanha o taxista desde (adivinhem?) a década de 40. “Em 1949

eu servi no Exército e meu número de guerra era 48. Tudo no quarenta! Número da minha conta no banco tem quarenta, número do título de eleitor é 42 também. E peguei esse 042 (prefixo do táxi) que me acompanha há 32 anos na minha vida. Então acho que a dezena quarenta me persegue!”, diverte-se o taxista.

comparação à sua profissão: pescar. Por quê? Ele não vai conseguir ficar parado por muito tempo. Algo previsível para quem se aposentou após 25 anos na indústria e resolveu seguir trabalhando como taxista por mais de três décadas. “Eu estou estabilizado. Posso parar que não vou me dar mal. Não paro porque isso aqui é o meu remédio. Trabalho faz parte da vida da gente. Eu sei que vai ter um dia que eu vou ter que parar, mas eu vou ter que inventar alguma coisa. Tenho que fazer alguma coisa. Ir pra praia, caminhar ou pescar”, comenta.

impressões de

repórter

Como é interessante encontrar histórias que servem de exemplo para os outros. Esse é o caso do taxista Enor, destaque desta reportagem. Acredito que essa pauta foi uma oportunidade para mostrar que o jornalista consegue observar e encontrar histórias onde se menos espera. Quando recebi a notícia de que o número 42 seria o tema de uma revista inteira fiquei preocupado. O assunto é muito relativo e imprevisível. Achei que tudo daria errado. Não concordei com a pauta, mas assumi o desafio. Contudo, vi que o jornalismo realmente te prepara para ficar de olhos abertos e sempre prontos para observar e localizar uma história. É animador encontrar tantas memórias sob o prefixo 40. E é isso que tanto apaixona na profissão: a imprevisibilidade de conseguir uma história. Um dos pontos mais complicados dessa experiência foi convencer o personagem a falar. Por vezes as próprias pessoas não dão o devido valor as suas histórias. Mas no fim deu tudo certo e tive a oportunidade de repassar as lições de vida de Seu Enor.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 31


instituição

32 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


CECÍCLIA MENTA

Uma loja nada convencional A Loja Maçônica Obreiros de São João 42 reúne semanalmente homens que mantém a filosofia maçônica em busca da verdade Por Paola Rocha Fotos de Izadora Meyer e Cecília Menta

E

m meio a passos apressados, olhos que alternam entre a rua e seus celulares, em pleno coração de Porto Alegre, no Centro Histórico, em um dos tantos edifícios que fazem sombra sobre ruas, está o consultório do dentista Cléo Getúlio Saldanha, que exerce seu trabalho, atende os telefonemas, marca as consultas e reconhece seus pacientes pelo nome. Além de cirurgião dentista, formado pela UFRGS há 33 anos, ele é o presidente da Loja Maçônica Obreiros de São João 42, que adquiriu o número por ser a 42ª loja a se inscrever na jurisdição das Grandes Lojas Maçônicas do Rio Grande do Sul. Localizada em uma rua aparentemente calma, com poucas pessoas transitando, está a discreta construção que abriga a loja há 65 anos, designada também como oficina ou ateliê. A Obreiros de São João 42 foi formada por comerciantes do 4° distrito, que atuavam no bairro São João, de Porto Alegre. Todos já eram maçons e trabalhavam em outras lojas. Alguns eram católicos, espíritas, judeus em grande parte, e se uniram com essa vontade em comum. Em 1949, a loja foi oficialmente fundada, na Rua Ernesto Fontoura, n° 1144, com o intuito de, naquela época, ser a primeira independente da nomeada Grande Loja, que funcionava na Praça Garibaldi, bairro Cidade Baixa de Porto Alegre. “O diferencial que nossa loja tem das demais é que ela é dona do prédio. Os demais são condôminos. Trabalhamos harmonicamente, muitos há mais de 50 anos”, conta Cléo, que foi iniciado na maçonaria há mais de 10 anos.

A maçonaria

Basta falar em maçonaria que diversas teorias e questionamentos surgem. Uma das grandes questões é o motivo de tanto sigilo, pois, se não há segredos, por que todos não podem ter acesso a tudo que acontece? Cléo conta que por muitos anos a maçonaria foi perseguida pela Igreja Católica, pois ela não acredita em dogmas. Com isso, era necessário se esconder e manter tudo velado. “Hoje em dia é preciso ser discreto, não se esconder. Não fica revelado nenhum grande segredo maçônico, o grande segredo está no imaginários das pessoas”, conta Cléo. O objetivo dos encontros semanais é construir pessoas melhores. Alcançar o aperfeiçoamento moral, intelectual e social da humanidade, a busca pela verdade. Os maçons procuram formar pessoas de caráter, para que elas sejam importantes dentro da sociedade. Assim que o indivíduo se torna maçom, ele se transforma em um construtor social, e em toda atividade do ramo humano sempre vai haver um maçom. Muitas vezes as pessoas convivem com eles e nem sabem. As lojas também praticam benemerência (doações), o que fica a cargo das cunhadas, assim nomeadas as mulheres dos maçons, que se tratam como irmãos. Os filhos são chamados de sobrinhos. Toda loja pratica doações, mas não é o objetivo e sim uma “consequência dos atos”, como explica Cléo. Hoje já existem maçonarias frequentadas somente por mulheres e também mistas, mas não são de ordem regular e não são reconhecidas internacionalmente como maçonaria. Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 33


IZADORA MEYER

n Na bancada

que fica na sala em que os maçons se encontram semanalmente, o candelabro tem o símbolo mundialmente conhecido como da maçonaria

CECÍCLIA MENTA

A loja

O prédio onde fica a loja Obreiros de São João 42 é parecido com tantos outros da rua, a não ser para quem vai até a entrada e olha em direção a seus pés. Ali no chão, como um daqueles típicos tapetes de boas-vindas, está o desenho em ladrilhos que forma um esquadro, símbolo mundialmente conhecido da maçonaria. A campainha está tão acima da porta que é difícil de encontrar. O jeito é bater palmas e esperar que alguém venha atender. Eis que, para a surpresa de quem vai até uma maçonaria composta somente por homens, surge uma mulher, com vestes de quem fazia a limpeza e manutenção do local. Ela é a Guardiã do Templo. Sem revelar seu nome, ela conta que trabalha na loja há quase quatro anos, vive ali e tem a incumbência de atender a todos que chegam até lá. Alguns motivados pela curiosidade, outros munidos por certezas que só existem para eles. A Guardiã garante que só permite a entrada de pessoas autorizadas. “Algumas pessoas até me xingam ali na frente enquanto estou varrendo. As pessoas não conhecem isso aqui, elas deduzem.” Basta entrar no templo para o olhar se perder em meio a tantos quadros de todos que já foram presidentes, também chamados entre eles de Vulneráveis Mestres. Quadros nas paredes, objetos que remontam de muitos anos. O reconhecimento pelo trabalho exercido é enquadrado.

34 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

Ao fundo daquela sala gelada, que é como se fosse a recepção, uma porta coberta por uma cortina chama a atenção. A grande porta, que lembra a de um cofre, é aberta, e ali está o lugar onde os maçons da loja se encontram semanalmente. A sala parece fazer parte de um mundo à parte do que se está acostumado. A iluminação é harmoniosamente ajustada. As cortinas, de um tom de azul escuro, são mantidas fechadas, para assegurar que ninguém consiga ver o que ali acontece. O teto, com desenhos que representam o céu e o universo, ajuda a compor o ambiente. No extremo da sala, o degrau mais elevado acomoda uma bancada branca e algumas cadeiras. Para quem adentra a sala e não faz parte do universo maçônico, todo o conjunto faz parecer com que se esteja em

um tribunal, mas tomado de objetos que carregam muitas simbologias. Questionada de como é trabalhar em um local somente para homens, a Guardiã do Templo fala: “Eles me tratam como homem aqui, eu sou um deles para eles.” A ela fica incumbido o trabalho que exige total confiança e comprometimento, já que ela faz do templo seu trabalho e seu lar. Hoje as lojas maçônicas já possuem site próprio, o que mostra que mesmo uma instituição antiguíssima, além de manter as tradições, também se adapta às necessidades da sociedade atual. “Do que eu vejo, é o que eu posso falar, para o pessoal parar de ver coisa onde não tem. A informação é tudo”, diz a Guardiã do Templo. Mesmo com todas essas mudanças e


com maior alcance à informação de fonte segura, ainda existem muitos mistérios que envolvem a maçonaria. Isso faz com que muitas pessoas ainda a questionem. Na página de entrada do site da Obreiros de São João 42 (www.saojoao42.mvu.com. br), o primeiro parágrafo informa: “Temos por finalidade levar a filosofia, a educação e cultura maçônica a todos os homens, fazendo renascer em cada um os reais e sublimes valores, incentivando seus membros ao verdadeiro princípio da virtude, constituindo-se assim, como uma instituição essencialmente filosófica e solidária entre seus membros.” Nada disso detêm a imaginação das pessoas, que voa ininterruptamente e parece preferir acreditar que por trás do que se conta há algo a mais, para que esse assunto esteja sempre presente nas rodas de conversa e, assim, levante grandes debates.

n A loja possui um

museu repleto de objetos que carregam muitas simbologias

impressões de

repórter

Desafio. Palavra que me acompanhou desde o início, quando foi feita a escolha do tema da revista. Encontrar algo que contivesse o número 42 não parecia fácil e nem foi. Ao buscar por uma loja de número 42, encontrei uma loja um tanto quanto diferente, uma loja maçônica. Houve uma mistura de reações, como: “Oh, que pauta!” e ,ao mesmo tempo, a incerteza de se seria possível executá-la, por tudo que estamos acostumados a ouvir de uma maçonaria, como algo fechado e que a maioria não tem acesso. Encontrei o site da loja e então entrei em contato diretamente com o presidente da Obreiros de São João 42 e, para minha surpresa, por ali mesmo, marcamos de nos encontrar para que eu pudesse explicar a proposta da revista.

A partir disso a produção foi intensa. Eu e as fotógrafas fomos até o consultório do dentista Cléo Getúlio Saldanha, o presidente da loja. Em aproximadamente duas semanas, fomos até a loja, o que era fundamental para a produção da matéria. Não bastava somente falar sobre, era preciso entrar naquele mundo, mesmo que como uma observadora, buscando algumas afirmações em meio aquele local, que me fazia pensar estar em um filme e ao mesmo tempo em um tribunal. Eu até poderia ter escolhido uma pauta que fosse menos desafiadora, que exigisse menos cuidados com as perguntas, com o que publicar, mas que graça teria se sempre optássemos pelo mais fácil? A graça está em buscar se superar, e quando os desafios surgem, é isso que fazemos.”

IZADORA MEYER

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 35


curva

Uma nova vida no ponto de ônibus Muitas histórias, pessoas, esperas, encontros e a lembrança da pior tragédia na parada 42 Por Giovana Peinado Fotos de Bibiane Engroff e Nathalie Córdova

36 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


NATHALIE CÓRDOVA

n Barcelos

sobreviveu a um acidente na curva onde trabalha há 28 anos

NATHALIE CÓRDOVA

A

ntônio Carlos Barcelos de Fraga, 57 anos, é sobrevivente de um acidente ocorrido na parada 42 de Viamão. Em novembro de 2000, o fiscal de ônibus trabalhava em sua cabine, como de costume, quando foi surpreendido por um ônibus que passou reto em uma curva, atingindo a parada e seu local de trabalho. Há 35 anos na empresa de transporte público Viamão, Barcelos lembra do acidente com detalhes, pois o horror que viveu naquele dia foi a pior experiência de sua vida como fiscal de coletivo. “Era mais ou menos meio dia e eu estava sentado fazendo uma anotação, quando meu colega avisou: ‘Vai bater!’ O mo-

torista do ônibus semidireto número 335 sofreu um mal súbito. Era um dia muito quente e ele desmaiou na direção”, relembra Barcelos. Ao bater na parada, feita de concreto, e na cabine fiscal, de madeira, o ônibus também atropelou todos que ali estavam. Houve duas mortes no local e oito pessoas ficaram feridas, entre elas, Antônio. “Eu estava na casinha e não deu tempo de sair. Fui arrastado seis metros e fiquei no meio da madeira e do concreto desmaiado. Foi então que uma pessoa disse que eu poderia estar vivo ainda.

Quando mexeram nos destroços, eu acordei. Era um dos sobreviventes e não tinha sofrido nenhum arranhão”, conta o fiscal, ainda se mostrando impressionado com a tragédia ocorrida há 14 anos. Há 28 anos ele trabalha na parada 42, em uma cabine que ele e os colegas chamam de “casinha”. A parada na qual Barcelos trabalha fica localizada em uma curva da estrada Alípio Oliveira Remião. A via tem grande movimento e é um dos acessos principais à cidade. Alguns metros próximo dali, há um cruzamento com Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 37


BIBIANE ENGROFF

achou que um transformador havia explodido. Em seguida tocou o telefone da minha residência, um amigo soube da notícia pelo rádio e ligou perguntando se eu havia ido almoçar. Ao saber que não, não teve coragem de contar o que havia acontecido.” Nos minutos seguintes, seu primo, que viu de casa o violento estrago na parada, correu até a casa de Barcelos para saber se ele estava. Ao se deparar apenas com Nina, também recuou e não contou sobre o acidente. Foi então que uma menina de 10 anos, vizinha do casal, pulou o muro e deu a terrível notícia. “Ela perguntou se eu estava em casa, e, quando minha esposa disse que não, a menina começou a chorar. Nina perguntou por que ela chorava, foi quando ela disse que tinha acontecido um acidente na parada e estavam todos mortos. Minha esposa saiu correndo, apavorada. Quando a vi chegando, acenei para mostrar que eu estava vivo”, relembra. Barcelos conta que sua reação ao acordar foi de logo querer ajudar as pessoas. “No momento que eu acordei, fiquei pensando no que será que tinha acontecido. Quando vi o ônibus parado no meio da pista, vi que era um acidente, aí tive o impulso de ajudar, só queria ajudar”, diz. Ao se pegar lembrando do acontecimento, ele ainda exclama: “Aquele dia foi muito terrível!”. Barcelos deixou o local por volta de 16h e só então foi para o hospital fazer exames. Ao chegar em casa, se deu conta de tamanho horror que vivera e então desabou em lágrimas. Tentando reestabelecer a vida normal, no dia seguinte foi trabalhar, contudo teve outra surpresa desagradável. “Ao chegar para trabalhar, achei um pedaço do crânio do menino que havia perdido a vida. Liguei para o IML (Instituo Médico Legal) e vieram recolher”, afirma. uma rótula que leva para dois outros caminhos. Nas extremidades de cada uma das vias que chegam à rótula, há uma parada de ônibus. São três ao todo e todas são identificadas por parada 42, pois ficam na mesma altura, porém em pontos diferentes devido ao cruzamento. A parada onde Barcelos trabalha é a única com cabine fiscal. Ali ele passa nove horas e 20 minutos do seu dia, apesar do trauma, sem receio. 38 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

Acostumado com os passageiros e com a movimentação do cotidiano, Barcelos acompanhou o crescimento de muitas pessoas do bairro que por ali passam e utilizam a parada. Na época do acidente, ele conhecia inclusive a família de uma das vítimas fatais. O fiscal mora próximo da parada, o que possibilita que ele vá em casa almoçar com Nina, sua esposa, o que não aconteceu naquele dia. “Ela ouviu o estrondo da batida lá de casa,

A rotina no ponto

A parada tem grande fluxo de pessoas diariamente. Por ali passa a maioria das linhas de ônibus da cidade de Viamão, vizinha de Porto Alegre. A espera por um coletivo acaba sendo rápida. O fiscal convive com os passageiros, que vão e vem de diversos lugares em linhas municipais e intermunicipais. Em pouco tempo na parada, qualquer um pode perceber a popularidade de Barcelos.


NATHALIE CÓRDOVA

n O fiscal já fez

muitas amizades com diversas pessoas que passam todos os dias pela parada 42

Muitos pedem informação, outros apenas cumprimentam, há quem pare para jogar conversa fora e outros que pedem conselhos. O fiscal lembra que já ajudou criança perdida no ponto de ônibus, já interveio em brigas, já socorreu em outros acidentes e já aconselhou jovens a seguir o caminho do bem. Isso tudo paralelo ao seu trabalho, pois entre uma atividade e outra, ele faz a fiscalização dos ônibus, dá informações de serviço à comunidade e organiza as trocas de turno entre motoristas e cobradores. Barcelos recuperou-se do trauma com a ajuda da família e dos amigos, mas mantém em suas lembranças, que talvez gostaria de apagar, detalhes de um dos dias mais assustadores de sua vida. Seu trabalho segue sendo realizado com dedicação e sorriso no rosto, sem medo do que está por vir, afinal, sua fé é maior. “Para mim, a resposta para a vida e o universo é viver sempre em união com todos, em paz, e poder sempre ajudar. Esse é o meu maior objetivo”.

impressões de

Fluxo intenso A cidade de Viamão é o maior município em extensão territorial da mesorregião Metropolitana da capital, e da microrregião de Porto Alegre. Além disso, é o sétimo mais populoso do Estado, com 260.740 habitantes. A estrada Alípio Oliveira Remião é perpendicular à RS 040, rodovia de acesso ao litoral norte do Estado, esta, por sua vez, é perpendicular à RS 118, que liga a região metropolitana de Porto Alegre ao Vale dos Sinos. A RS 040 passa pela BR 101 e a RS 118 termina na BR 116, importantes autoestradas federais. O fluxo é intenso em Viamão devido a ligação com a capital e com o litoral.

repórter

Em um primeiro momento, não achei o tema 42 interessante, pois tinha ideia de que as pautas seriam muito parecidas. Depois que defini a minha e fui à campo, mudei meu conceito. Antes vi o curta Esta não é a sua vida, indicado pela professora Thaís Furtado, e tive algumas ideias. Logo que chegamos na parada de ônibus, conversei com algumas pessoas, mas em seguida percebi que seria difícil, pois a movimentação era grande e os ônibus vinham incrivelmente rápido e as pessoas partiam, assim eu recomeçava outra conversa. Foi então que as fotógrafas me sugeriram conversar com o fiscal. Fui na cabine e pedi uma informação primeiro, vi que ele ficou

por ali e voltei para conversar. Desta vez fui direto ao assunto. Ele prontamente me disse que tinha muitas histórias para contar, mas que a principal era a do acidente, e já começou a falar. Eu e as meninas entramos, sentamos e ali ficamos o resto da manhã, conversando, entre uma informação, um ônibus e outro. Quando Barcelos me respondeu tão solicitamente, percebi que tinha encontrado minha história e quão interessante poderia ser. Saímos de lá com a sensação de dever cumprido e eu, especialmente, com o pensamento de que a gente realmente nunca sabe o que pode encontrar pelo caminho e que o cotidiano pode, sim, surpreender.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 39


restauração

O renascimento da arte 40 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014


NATÁLIA DALLA NORA

N

Sob os olhos atentos e as mãos habilidosas de Neusa Mello, itens antes considerados perdidos ganham nova vida Por Fernanda Reus Silveira Fotos de Laís de Oliveira e Natália Dalla Nora

as palavras do pintor espanhol Pablo Picasso, “a arte é uma mentira que nos permite conhecer a verdade”. E o malaguenho tem toda razão. É ela que, através dos tempos, desempenha o papel de manter viva a herança dos que vieram antes de nós. Mais do que mera forma de expressão, a arte é uma releitura da realidade, um reflexo do mundo e parte do que somos. Por isso, restaurar peças antigas não é apenas uma profissão, mas um esforço de resgate da nossa história e uma necessidade percebida desde cedo. Estima-se que a preocupação com a integridade do patrimônio cultural humano tenha iniciado ainda na Idade Antiga, nos tempos do Império Romano. Nos dias de hoje, mais precisamente na rua Dezesseis de Julho, em Porto Alegre, o prédio n°42 abriga um local onde a arte se renova: um ateliê de restauração. Ao entrar na pequena sala, é possível ver nas paredes diversos frutos do trabalho minucioso da proprietária, a restauradora Neusa Mello, de 64 anos. Com o portfólio em mãos, ela relembra os 20 anos dedicados ao trabalho de restauro e conservação. O interesse pela área, conta, foi desperto pela curiosidade e pelas afinidades com o trabalho, principalmente com os processos precisos e detalhistas. “Comecei na Delphus, uma galeria de arte. Na época, a restauradora do local atendia galerias, colecionadores e trabalhos particulares. Como estava sempre por lá, passei a ajudá-la.” Atualmente, Neusa trabalha sozinha e tem mais de mil peças no currículo, incluindo trabalhos de Picasso, Ismael Néri, Pedro Weingarthner, Tarsila do Amaral e Lutzemberg. Esculturas, objetos e molduras também fazem parte da sua rotina. No entanto, a vasta experiência não torna o trabalho mais simples. Cada item é um novo desafio. “Não existe uma regra, tu vais precisar de coisas diferentes para cada peça. É uma procura constante. A gente só parte do princípio de que não podemos modificar a obra e que todo trabalho deve ser reversível, caso seja necessário desfazê-lo”, explica. Se às vezes o caminho para chegar à “técnica perfeita” não é fácil, a restauradora parece não se importar. Aliás, é justamente essa a parte que considera mais divertida do trabalho. “Tanto faz se é papel, tela ou escultura, a melhor parte é a pesquisa, garimpar o material. Tu começas e, quando percebes, já se passaram três, quatro horas”, afirma. Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 41


LAÍS DE OLIVEIRA

restauração Dicas de conservação De acordo com Neusa, as principais razões que levam uma peça a ser restaurada são as falhas durante o processo de conservação. A restauradora explica que é muito importante observar fatores como acondicionamento e ambientação, e que existem cuidados que contribuem para manter a integridade de certos itens. Confira alguns deles:

TEMPERATURA E UMIDADE: Para a conservação apropriada deve-se evitar a poeira, temperatura e umidade relativamente altas. O uso de ar-condicionado e desumidificadores pode ser a solução, mas é importante estar atento. Uma vez que se opte por uma dessas alternativas, o funcionamento dos aparelhos deve ser ininterrupto. As oscilações de temperatura e umidade podem ser prejudiciais à preservação da peça. HIGIENIZAÇÃO, INSETOS E FUNGOS: A limpeza do mobiliário e os hábitos de higiene do local são essenciais. Toda poeira e demais impurezas precisam ser retiradas. Os quadros, por exemplo, devem ser limpos sem que haja atritos em suas superfícies – que podem danificar a pintura. Durante a higiene, também é fundamental observar se existe a proliferação de insetos ou fungos. Caso elas existam, o procedimento correto é procurar um profissional. Tentar solucionar o problema por conta própria pode agravar a situação, pois os produtos presentes no mercado são tóxicos e podem deixar resíduos nas peças. 42 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

LAÍS DE OLIVEIRA

ILUMINAÇÃO: No caso das telas, principalmente, é importante cuidar os tipos de luzes que possam incidir sobre as obras. A luz natural, por exemplo, é extremamente prejudicial e deve ser evitada, pois emite radiação ultravioleta, assim como as lâmpadas fluorescentes. A iluminação incandescente, por sua vez, emite raios infravermelhos e é fonte de calor. Nesses casos, as alternativas são o uso de cortinas nas janelas e a utilização de lâmpadas especiais com baixos graus de emissão ultravioleta.

Lidando com clientes

Há de se ter jogo de cintura para lidar com a impaciência dos clientes. Neusa relata que não são raras as reclamações sobre o prazo de entrega dos objetos restaurados. Muitas vezes, os proprietários não imaginam o quão danificadas elas estão e querem uma solução rápida. “O cliente leva cem anos estragando uma peça e, no fim, quer tudo pronto para ontem – e novinho! O pessoal precisa entender que a gente não vai fazer o trabalho de novo”, comenta. As soluções caseiras criadas pelos proprietários também são um problema para a restauradora. Em muitos casos, elas dificultam ou até impossibilitam a recuperação da peça. “Às vezes a pessoa tem uma escultura e tenta colar com cola

instantânea. Aí o trabalho é dobrado, pois tu tens que raspar tudo para depois trabalhar no objeto”, explica. Um episódio famoso de restauração amadora malsucedida é o caso do afresco espanhol Ecce Homo, originalmente pintado por Elias García Martínez. Apesar das boas intenções, Cecília Gimenez, uma idosa de 82 anos, destruiu a pintura ao tentar recuperá-la – e ganhou repercussão mundial por isso.

Profissão restaurador

Nos últimos tempos, o conceito geral de restauro foi alterado de forma significativa. A área também passou a englobar os processos de conservação. A mudança implica que o profissional não se limite apenas à intervenção direta sobre a obra de arte, mas, além disso, deva conhecer,


NATÁLIA DALLA NORA

impressões de

repórter

avaliar e atuar sobre parâmetros que contribuem para a preservação da peça. Nesse âmbito, o restaurador pode atuar de diferentes maneiras, seja pela conservação preventiva, curativa e pelo restauro. No Brasil, o ofício ainda não foi regulamentado. Em 2013 o Projeto de Lei 4042/08, que busca o reconhecimento da profissão, foi vetado pelo Executivo, após receber aprovação no Congresso e no Senado. Atualmente, podem exercer a função os diplomados em cursos de nível técnico, superior (bacharelados ou tecnológicos) ou com pós-graduação na área. Além de trabalhar com acervos particulares, esses profissionais podem atuar em centros de pesquisa, museus, bibliotecas e arquivos, contribuindo para a preservação do nosso patrimônio cultural.

n No pequeno ateliê, Neusa renova itens considerados sem conserto. À esquerda, escultura e moldura reconstruídas pela restauradora

Devo confessar, quando o tema “Lugares 42” foi escolhido para esta edição da revista PI, logo pensei: “E agora?”. Na hora, não tive nenhuma ideia e, prematuramente, sofri com o medo de ficar sem pauta. Preocupada e já cansada de matutar sozinha, no dia seguinte, conversei com meus colegas de trabalho, também jornalistas, em busca de uma “luz”. Entre cemitérios e outros lugares, me foi sugerido apurar o que havia no quarto de número 42 do antigo Hotel Majestic, atual Casa de Cultura Mário Quintana. Gostei da ideia. Fui até o local, onde informaram que era possível a existência de um quarto com o número, mas sugeriram que eu checasse com o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN). Tentei contato, mas não tive resposta. Busquei, então, descobrir por meios próprios. Tive a resposta que tanto temia no dia da entrega da pauta: não, não havia quarto com esse número. O que fazer? Com a pressão do tempo quase esgotado, saí em busca de uma nova história. Achei na internet, por sorte, o endereço do ateliê da Neusa. Sorte tripla, na verdade: pelo deadline, pela história e pela própria entrevistada. Desde o primeiro contato, Neusa se mostrou interessada e logo marcamos a visita ao ateliê. Quando o dia chegou, a surpresa não poderia ser mais grata. Aprendemos muito sobre a conservação e restauro de obras, mas, acima de tudo, encontramos uma pessoa apaixonada pelo que faz. Saímos de lá, fotógrafas e repórter, com sorrisos nos rostos e a sensação de missão cumprida. Sabe aquele ditado, “quando uma porta se fecha, uma janela se abre”? Pois é... Que bela vista!” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 43


litoral

À espera do verão

44 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


JÉSSICA PEDROSO

A guarita 42 está localizada em uma das praias mais tranquilas do Rio Grande do Sul, Arroio do Sal Por Daniele Brito Fotos de Jéssica Pedroso e Joana Dias

n Na baixa

temporada, por questões de segurança, o abrigo é recolhido pela equipe da Prefeitura de Arroio do Sal

A

mbiente tranquilo, com belas casas, a imensidão do mar e um farol. Essas são as características que cercam a guarita 42, localizada no Balneário Figueirinha, em Arroio do Sal, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. O local fica a cerca de 170 quilômetros de Porto Alegre, e a praia possui uma extensão de 25 quilômetros. Durante a alta temporada, a área recebe até 100 mil veranistas, em sua maioria da Região da Serra, por ser uma das praias mais próximas da Rota do Sol (BR-453), estrada que liga a Serra ao Litoral. Famílias de cidades como Caxias do Sul, Farroupilha, Flores da Cunha e Gramado são as mais encontradas nesse pedaço do litoral. Como é o caso de Laíse Feijó, 20 anos, estudante do 6º semestre do curso de Jornalismo, do campus da Unisinos em Porto Alegre. Natural de Gramado, a jovem frequenta a região desde 2007, quando a família adquiriu uma casa no local. Quando vai à praia, ela procura sempre permanecer entre as guaritas 40 e 42, pois ficam próximas da rua onde é a sua residência. Laíse comenta que sempre passa o Ano Novo em Arroio do Sal, na companhia da mãe e da irmã. “Todos os anos vamos para a beira da praia para realizar algum pedido, e em 2011 pedi para que, na virada do ano seguinte, eu pudesse voltar ali e agradecer por estar estudando e trabalhando dentro do jornalismo, o que na época era somente um sonho. Mas em 2012 eu pude agradecer por isso e por muitas outras realizações na minha vida. Sempre que passo por aquele ponto da praia, fico muito feliz por ter conquistado o que tanto desejava. O lugar passou a ser um símbolo para isso”, relata. A jovem que atualmente faz estágio na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul relata que, desde que compraram a casa, ela vai todos os anos para a região, inclusive fora da época de veraneio. “Eu gosto de ir, seja para passar um mês ou apenas um final de semana com a família”, destaca. Laíse também adora o local por sua calmaria, por representar liberdade e lhe fazer relembrar momentos bons que passou com a família. Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 45


JÉSSICA PEDROSO

litoral

O compromisso de salvar vidas

Como em todas as guaritas do litoral do Estado, a 42 recebe anualmente profissionais que trabalham na Operação Golfinho. São pessoas que deixam suas casas para se dedicar a cuidar do próximo, para que veranistas possam curtir o “Verão Numa Boa”, conforme o slogan do Programa do Governo do Estado. O soldado Marcus Peçanha Machado, de 23 anos, desde 2009 faz parte da Brigada Militar e trabalhou três vezes na Operação Golfinho. Em uma delas, no verão 2012/2013, na guarita 42. “Foi uma temporada muito calma, na qual foram realizados oito salvamentos, o que é considerado um número positivo, se comparado com outras guaritas”, afirma. Marcus, que atualmente trabalha na região central de Porto Alegre, relata que foi muito bom trabalhar na Operação Golfinho em Arroio do Sal. “Ficava na guarita durante todo o dia com outro colega, nos revezávamos e fazíamos um intervalo de duas horas para o almoço”, destaca. O soldado comenta que subir na guarita era o pedido das crianças, e elas ficavam muito felizes quando isso acontecia. Ele também conta que fizeram muitos amigos durante toda a temporada em que estiveram na guarita 42.

Cadê a guarita?

Durante a baixa temporada, todas as guaritas da região são recolhidas. Isso, muitas vezes, acaba dificultando a localização de alguns visitantes. Conforme o secretário de Turismo, Indústria e Comércio de Arroio do Sal, Mateus Coelho Ribeiro, as guaritas são tiradas da beira da praia por indicação do Corpo de Bombeiros. Elas só ficam instaladas entre o período de 15 de dezembro a 15 de março, quando ocorre a Operação Golfinho. “No final da alta temporada, os salva-vidas que realizam o trabalho nas guaritas retornam para os seus postos, e assim o recolhimento é feito. Elas ficam depositadas na garagem municipal, localizada ao lado do Parque Municipal de Eventos de Arroio do Sal”, relata. Por serem de madeira, muitas guaritas acabam sendo destruídas pelo tempo, algumas precisam ser refeitas e outras passam por manutenção, que é realizada 46 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


JOANA DIAS

pela Prefeitura de Arroio do Sal no início de cada temporada. Além disso, o Corpo de Bombeiros sempre aconselha o recolhimento por questões de segurança. “Muitas pessoas pensam que, por ter uma guarita na beira da praia, o salva-vidas está nela. Já tivemos casos que infelizmente acabaram de forma trágica”, acrescenta. O secretário destaca que atualmente Arroio do Sal possui um déficit no número de guaritas na orla. “Hoje contamos com 23 guaritas, mas precisaria de no mínimo 30 para atender à demanda que nos é exigida, porém o Governo do Estado alega a falta de efetivo”, afirma. A cidade teve um grande desenvolvimento nos últimos anos, pois, conforme os dados do IBGE, em 2010, Arroio do Sal foi o segundo município que mais cresceu no Estado. “Não temos aumento do número de guaritas desde 2003, quando a população correspondia a 60% do que temos hoje, que é de aproximadamente 10 mil habitantes”, acrescenta Mateus.

Pescar, caminhar e encontrar amigos

Os visitantes de Arroio do Sal costumam praticar algum hobby na região, como é o caso de Gueríno Martins Barboza, de 62 anos, morador de Caxias do Sul. Ele frequenta a localidade o ano inteiro, onde costuma ficar na casa do cunhado. Durante o dia, aproveita para pescar. “Eu sempre permaneço por aqui, pois é um lugar mais sossegado. Fico de dois dias a uma semana, e o meu passatempo é pescar. Às vezes acabo encontrando algum conhecido”, relata. Além disso, o local também recebe pessoas que gostam de caminhar, en-

n No mar, em frente à

guarita 42, Laíse pediu para passar no vestibular de Jornalismo e conseguir emprego. Seus desejos foram realizados

contrar amigos ou simplesmente descansar na tranquilidade oferecida pelo local. A praia também recebe a visita dos jovens, como Aline Baroni, de 24 anos, de Flores da Cunha, que costuma ir até o local acompanhando o casal de amigos Josiane Chiarane, de 24 anos, e Leonard Marin, de 29 anos, ambos de Caxias do Sul. O grupo de amigos costuma frequentar com assiduidade a região, onde eles têm o hábito de ficar na casa dos pais de Josiane. A jovem comenta que o local teve um grande desenvolvimento nos últimos anos. “Os meus pais têm casa aqui em Arroio do Sal desde 2007, e essa área está crescendo bastante. Quando eles compraram aqui, nós tínhamos somente dois vizinhos”, afirma Josiane. Hoje a rua está cheia de casas. Ela também comenta que, por ser considerada uma área de pesca, a região acaba sendo mais tranquila que as outras. “É um local aonde vêm mais famílias e pessoas idosas. O movimento maior é nas festas de final de ano, no Natal e Ano Novo”, acrescenta. Em Arroio do Sal, como em outras praias, as guaritas acabam sendo pontos de referência. Em todo o Litoral Gaúcho, os números de identificação das guaritas não se repetem. A guarita 42 e suas vizinhas são sinônimo, então, da tranquilidade que muitos buscam, longe da correria das cidades.

impressões de

repórter

A pauta foi desafiadora, ao começar pelo fato de que eu não sabia a localização da guarita 42. Após uma busca incansável e com a ajuda de uma amiga, consegui saber onde ela ficava. Na primeira tentativa de ir até o local, eu e a fotógrafa Jéssica ficamos empenhadas com o carro na cidade de Osório, e não conseguimos chegar até a praia. Na semana seguinte, tentamos ir novamente, com a ajuda dos meus pais. Quando pensei que estava tudo certo, que finalmente iríamos encontrar a guarita 42, ao chegar à beira da praia, não encontramos nenhuma guarita. E aí vêm os questionamentos. O que vou fazer? Onde estão as guaritas? Alguns moradores disseram que elas eram recolhidas. Veranistas nos ajudaram ao passar a informação de que, no verão, a guarita 42 ficava localizada próxima ao farol, que acaba sendo um dos pontos de referência. E, através dessa informação, conseguimos chegar às proximidades de onde ela costuma ser instalada e conversar com algumas pessoas que estavam pelo local. Porém, não me senti satisfeita. Fomos outra vez até Arroio do Sal para saber onde essas guaritas ficavam guardadas e, por sorte, em meio a tantas “casinhas de salva-vidas” destruídas, lá estava a 42, em pé, próxima das guaritas de número 28, 36 e 41. Saber um pouco sobre tudo que envolve as guaritas foi diferente e instigante, e também me fez refletir, pois não devemos desistir de nada perante o primeiro obstáculo.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 47


festa

Para sempre jovens Em Novo Hamburgo, a boate VagĂŁo revive o clima das festas de 1980 e 1990 Por Julian Kober Fotos de Gustavo Ev e Karina Sgarbi

48 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014


KARINA SGARBI

Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014 n 49


festa

KARINA SGARBI

A

vida era como um clipe musical. Ninguém parecia envelhecer. A bebida estava sempre gelada. E a música, sempre boa. As noites de festa dos que viveram nos anos 1980 era semelhante à letra da música Forever Young, da banda Alphaville. Especialmente para quem ia até a Rua Olavo Bilac, nº 42, em Novo Hamburgo, reduto da boate Vagão. Em funcionamento por mais de 20 anos, o local marcou a adolescência de quem costumava frequentar as festas da região. “A boate Vagão era o ‘point’ nos anos 80 e 90. Era muita festa, amizade e pegação. Muito tri”, recorda com empolgação Igor Jardim, 34 anos, promotor de festas. O tempo passou, e os jovens de outrora se tornaram adultos, e a Vagão perdurou por mais de uma década. As festas em Novo Hamburgo se adaptaram aos novos tempos, as bandas de antes

50 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

KARINA SGARBI

já não são mais a referência.

Reunindo a banda novamente

Há mais de dez anos trabalhando em eventos, Igor sentia que faltava um local em Novo Hamburgo que pudesse proporcionar uma alternativa para o cenário atual: “Só dá funk e sertanejo universitários nas festas de Novo Hamburgo”. Mais do que isso, Igor sentia falta das músicas que marcaram a sua adolescência. Surgiu então a ideia de criar uma festa que resgatasse o som das décadas de 1980 e 1990. Para isso, nada melhor que encontrar um local que fosse referência na época. “Estava na hora então de reabrir a Vagão.” Igor decidiu unir forças com seu amigo Edmilson Almeida, 41 anos, também conhecido como DJ Kalunga, para reabrir a boate e fazer com que as pessoas pudessem reviver os tempos de ouro. O DJ, que frequentou a Vagão de

1986 até 1990, recorda da alegria que sentia ao pisar na boate: “Era mágico. Se o cara estava naquela deprê de sexta, era só entrar na Vagão e você ia embora completamente diferente”. No dia 20 de agosto de 2013, acontecia a primeira festa promovida pela dupla de amigos: Boate Vagão O Reencontro – Os Bons Tempos Estão de Volta. Igor e Kalunga convidaram inicialmente casais de amigos e pessoas que frequentavam a boate antigamente, todos com mais de 30 anos. O sucesso fez com que os amigos fizessem mais festas. Apesar das festas serem divulgadas em uma página no Facebook, a força mesmo estava no boca a boca. No final do ano, a festa já era conhecida por toda a região. “A Festa Branca, que realizamos em dezembro, foi a melhor! Estava um calor insuportável, mas a galera dançava e se divertia bastante de qualquer forma”, lembra Igor. Aos poucos, a dupla foi aprendendo a aperfeiçoar


KARINA SGARBI

n Do Rock ao

Pop, Kalunga toca as músicas que marcaram as décadas de 1980 e 1990

o atendimento: “A gente não tinha experiência com bebida, nem nada do tipo. Mas agora a gente começou a melhorar”, brinca Kalunga. O público passou a aumentar. Se no início as festas juntavam pessoas na faixa etária dos 30 e 40 anos, os jovens também começaram a se interessar e passaram a frequentar a Vagão para conhecer novas, ainda que antigas, músicas. Passado um ano, as festas na Vagão se tornaram disputadas. De acordo com Igor, mais de cem pessoas haviam ficado de fora da comemoração do aniversário de um ano, fazendo uma fila que se estendia por toda a Olavo Bilac: “Tem gente que tenta pagar pra poder entrar, mas não dá, porque tá sempre cheio”, recorda. Por isso, no dia 5 de setembro Igor e Kalunga decidiram fazer mais uma festa, batizada como “Edição Extra”, justamente para quem perdeu ou queria aproveitar mais uma noite na Vagão.

Que comece a diversão Quando chegamos na Vagão, às 20h, Igor estava trabalhando nos últimos toques antes que os convidados começassem a aparecer. As paredes estavam sendo decoradas por discos de vinil dos mais variados estilos, enquanto as luzes e o som estavam passando pelos últimos testes. A bebida, é claro, estava em processo de refrigeração. O celular de Igor não parava de tocar. Ainda havia pessoas que estavam querendo adquirir ingressos ou reservar de última hora alguma mesa, que a essa altura já estavam todas reservadas. “No momento em que você coloca no Facebook que há mesas disponíveis, já ligam pedindo para

guardar”, contou Igor enquanto informava para mais um cliente que não havia mais lugares. Assim que chegou, Kalunga se dirigiu ao seu posto, próximo da pista de dança, para começar a pensar na seleção de músicas que iriam tocar ao longo da festa. A lista conta com as principais músicas do pop rock internacional e nacional dos anos 1980, com bandas e estilos para todos os gostos: desde a banda de rock australiana AC/DC, passando por Shakira, Ira!, Camisa de Vênus, e pelos clássicos do black music e do reggae. Para quem curtia os anos 1990, havia também melodias que marcaram a época, desde house a skate e surf music. Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 51


festa

GUSTAVO EV

Vamos dançar com estilo, vamos dançar por um instante

Os primeiros a chegar foram o casal Jackson e Mara Varga Rolim. Junto há mais de 20 anos, o casal conta que frequentou a Vagão entre 1988 e 1989. Hoje, com duas filhas adolescentes, o casal vai na boate para sair da rotina e lembrar a juventude. O casal aguardava a chegada de mais pessoas, entre eles Greice Cristiane Vargas Kehl, de 23 anos, sobrinha de Mara. Ela estava curiosa para saber como era o lugar que sua tia frequentava: “Quero ouvir as músicas também. Elas são diferentes das que estou acostumada a ouvir nas festas que costumo frequentar”. As pessoas iam chegando aos poucos. Grupos de amigos e casais começavam a preencher as mesas e cadeiras vazias e também ficarem ao lado 52 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

GUSTAVO EV

da pista. Aqueles que frequentavam a Vagão anos atrás e retornavam pela primeira vez ficavam impressionados. “É como voltar no tempo”, declarou Benoni Jesus dos Santos Júnior, advogado de 37 anos. Há também aqueles que não perdem uma festa desde a reabertura, como o casal Jeverson Fischborn e Rejane Fuhr, casados há mais de 20 anos. Empolgados por poderem voltar a um lugar que marcou a juventude, o casal apoia o trabalho de Igor e Kalunga com patrocínio e também traz várias pessoas para as festas: “É pra dar uma oportunidade aos guris. Agora os jovens podem ter uma experiência de como as festas eram antigamente”, conta Rejane.

Não me pare agora, pois eu estou me divertindo

No momento em que o relógio marcava meia-noite, Kalunga ligou o

microfone para anunciar: “É hora de começar a festa”. Ao longo da noite, o DJ interagia com o público, avisava quem estava pela casa, dedicava música aos conhecidos e aos novatos que respondiam cada pergunta feita pelo DJ. “Eu fico de olho no Facebook e na lista de convidados para saber quem vai estar pela festa, quem vão ser os aniversariantes.” Para cada música havia uma reação diferente: quando tocou Exagerado, do Cazuza, houve um coro que havia decorado toda a letra; a mesma coisa em Rythm of the Night, da Corona, que iniciou com berros, aplausos e muita dança. Ao término da música, Kalunga liga novamente o microfone para anunciar a próxima música: “Existia nos anos 80 um filme com uma trilha sonora muito show. Esse filme se chamava Footloose!”. À medida que o tempo vai passando a pista vai ficando ocupada. Se antes os


KARINA SGARBI

n Greyce decide

conhecer a boate que seu tio Jackson frequentava durante a adolescência

impressões de

repórter presentes estavam limitados aos seus círculos de amigos, a esta hora todos estão reunidos para dançar e cantar juntos Cachorro Louco, do TNT, seguindo por Girls Just Want To Have Fun, de Cindy Lauper. Após Shalala lala, do Venga Boys, Kalunga anuncia a hora do reggae, iniciando com a música Reggae Night, do Jimmy Cliff. A paquera, é claro, vai se desenvolvendo em meio à música, e ao longo da festa, novos casais vão se formando. “Já saiu muito namoro na Vagão”, comenta Igor enquanto observa um casal se beijando próximo do bar. As cores da boate se misturavam perfeitamente com o clima, buscando reviver as festas nos anos 1980: as luzes de neon, os canhões de laser, a pista colorida, o gelo seco. Depois das 3h, as pessoas começaram a ir embora. Só quero te amar, do Ed Motta, mantinha os casais abraçados na pista. As luzes começaram a desligar. Enquanto as

últimas pessoas deixavam a festa, Igor e Kalunga analisavam: “Foi mais que a expectativa. A gente achou que não ia ser uma festa grande, mas conseguimos deixar todo mundo satisfeitos”, afirmou o DJ. Para aqueles que voltam para a Vagão, este não se limita à nostalgia: trata-se de um momento onde toda a energia que ficou guardada desde os 1980 pode ser finalmente liberada. Quem frequentou o lugar há mais de 20 anos, o tempo parou, e todos retornam aos seus anos de festa. É a prova definitiva de que a Vagão está mais viva do que nunca. E, nas palavras de Bob Dylan: Que o seu coração seja sempre feliz, Que sua canção seja sempre cantada, Que você fique jovem para sempre, Jovem para sempre, jovem para sempre, Que você fique jovem para sempre.

Escolher a pauta ideal para a Primeira Impressão não foi uma tarefa fácil. Entre tantas ideias, acabei optando por ir em uma festa em Novo Hamburgo que eu nunca tinha ouvido falar. Apesar de estar com a palavra nostalgia já em mente, não imaginava que a pauta poderia fazer com que eu me lembrasse dos meus “velhos tempos”. As músicas, o ambiente, o cheiro de gelo seco (e de cerveja) me remeteram aos tempos em que minha mãe, dona de um bar na minha cidade natal, realizava festas onde as mesmas músicas tocavam. Como morávamos no segundo andar, eu gostava de descer e ficar olhando as pessoas dançando e se divertindo. Prova de que o tempo passa mas ainda nos resta um nó com a nossa juventude.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 53


42 é

BIANCA HENNEMANN

Um número natural

BIANCA HENNEMANN

Um número abundante A soma dos seus divisores próprios é igual a 54 (que é maior que 42) 54 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


BIANCA HENNEMANN

Um número composto Tem os seguintes divisores: 1, 2, 3, 6, 7, 14 e 21

GUSTAVO EV

Um número par

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 55


luta

Um local abençoado Rua Gaston Englert, 42. Vila Ipiranga, Porto Alegre. O prédio que no século passado abrigava uma oficina automotiva hoje é sede do primeiro centro de treinamento de Mixed Martial Arts do Estado, o Boxer MMA Por Maurício Wolf Fotos de Cecília Menta

N

a fachada do prédio marrom, apenas uma daquelas portas de armazém industrial, o número quarenta e dois e um logotipo enorme nas cores preta e amarela: a estilização de um cão da raça boxer usando uma coroa. Do lado de dentro, onde cada detalhe foi minuciosamente pensado para lembrar uma academia norte-americana do final dos anos 1970, o espaço que no passado reunia automóveis que necessitavam de reparos, hoje abriga um octógono, um tatame, sacos de pancada e sauna, infraestrutura necessária para o treinamento dos 30 lutadores da equipe oficial Boxer MMA. Originalmente, a academia, que existe há quase 15 anos, era voltada somente para o público executivo, e oferecia aulas de boxe e defesa pessoal. Porém, atendendo a constantes pedidos, há um ano e meio o Centro de Treinamento (CT) foi aberto ao público, e hoje, no mesmo lugar onde mecânicos trocavam correias e retificavam motores, sete professores guiam 180 alunos na prática de jiu-jitsu, boxe, muay thai, caratê, submission e outras categorias 56 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

essenciais para quem deseja se tornar um lutador de MMA. Não é à toa que quando perguntado sobre o prédio, o líder do grupo e fundador do CT afirma: “Este é um lugar abençoado. Ele foi reformado para oferecer o que há de melhor para a nossa equipe”.

O homem por trás do prédio

Honra, moral, lealdade, humildade e respeito ao próximo são os princípios compartilhados por Fabiano Gonçalves Montes Doca com a sua equipe, que já está na estrada há 15 anos. Conhecido como Fabiano “Boxer”, o homem que dá nome ao primeiro Centro de Treinamento de MMA do Rio Grande do Sul possui uma longa trajetória no mundo da luta. Após ministrar uma aula de jiu-jitsu, com o olhar confiante e fala calma, o lutador com 42 anos, 1,66 m de altura e 86 kg relembra o caminho percorrido até a fundação do Centro de Treinamento. Natural de Alegrete, começou a praticar boxe aos 16 anos em Santa Maria, na região central do Estado. Dedicado,

logo tornou-se boxeador profissional e ganhou o apelido de Boxer. Porém, aos 20 anos, após sofrer uma lesão no lado esquerdo do rosto em uma luta contra o peso-pesado conhecido como Sarará, Boxer, que era peso-leve, precisou – por restrições médicas – se afastar do boxe por praticamente um ano. Foi nesse período que, aconselhado pelo irmão, começou a praticar o jiu-jitsu, esporte que havia chegado ao Estado recentemente. Nessa época, a arte marcial era praticada apenas pela elite econômica, e Boxer, que era da classe média, não tinha condições financeiras para pagar as aulas. “Eu virei faxineiro da academia em troca da minha mensalidade”, conta. Após quatro meses como responsável pela limpeza, tornou-se secretário, função que exerceu até o momento da graduação, quando passou a disseminar os ensinamentos do jiu-jitsu. “Comecei a dar aula na faixa azul. Como era um esporte novo no Brasil, meu próprio mestre era faixa marrom”, lembra. Por ser um dos pioneiros do jiu-jitsu no Rio Grande do Sul, Boxer foi convidado para lutar no primeiro Vale-Tudo


n Campeão gaúcho de jiu-jitsu, Fabiano Boxer encerrou sua trajetória no Vale-Tudo invicto e começou a lecionar

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 57


luta

58 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014


oficial do Estado. O evento ocorreu em 1996, na primeira edição do festival de música Planeta Atlântida, que recebeu Mamonas Assassinas, Rita Lee, Titãs e foi apreciado por cerca de 50 mil pessoas. “Minha estreia aconteceu no Planeta Atlântida. Passei um pouco mal no vestiário por causa da pressão, mas a luta se resolveu rápido. Não durou nem dois minutos”, conta. O resultado? O oponente de Boxer desmaiado. “Eu era considerado, na época, o cara mais perigoso que havia no Vale-Tudo, pois era boxeador profissional e sabia técnicas de chão que poucas pessoas dominavam aqui no Estado.” O Vale-Tudo foi na década de 1990 o que o UFC é hoje. Porém, não havia distinção de peso, as lutas não tinham tempo definido e os participantes não usavam luvas. “Naquela época as coisas eram mais pesadas. O próprio MMA é um esporte novo e ainda está se desenvolvendo.” Várias vezes campeão sul-brasileiro e campeão gaúcho de jiu-jitsu, o lutador encerrou sua trajetória no Vale-Tudo invicto e começou a lecionar.

Dedicação total

Não é apenas o passado de Boxer que é repleto de glórias e conquistas. Agora, do lado de fora dos ringues, além de ensinar, ele atua como Head Coach da equipe pro-

fissional Boxer MMA, e exibe orgulhoso as últimas conquistas dos pupilos, como a recente estreia internacional de Adriano Nascimento, no Arena Tour, em Buenos Aires, contra o peruano Johnny Iwasaki. Favorito, Iwasaki vinha de sete vitórias consecutivas, enquanto o atleta da Boxer tinha quatro vitórias e quatro derrotadas no cartel. Após dois rounds difíceis, aconselhado por Boxer a usar o braço direto, Nascimento levou o adversário a nocaute no início do terceiro round com um potente golpe de direita. “O narrador não sabia nem o que dizer para o público. Ganhou Adriano Nascimento, contrariando todas as expectativas, para mostrar como a luta é algo inusitado”, conta. Em conjunto com a ascensão dos lutadores da equipe está a parceria recém firmada com o maior representante brasileiro no Ultimate Fight Championship: “Acabamos de fazer uma fusão com a academia do Anderson Silva. Todos os meus atletas que forem aos Estados Unidos poderão treinar no CT dele”. O complexo, localizado em Los Angeles, é utilizado apenas por Silva e seus amigos. “Foi uma honra para nós ter o nosso trabalho e valor reconhecidos pelo Anderson Spider”, relata. Assim como o Mixed Martial Arts, a equipe e o CT Boxer MMA estão em plena ascensão e, se depender de Fabiano Boxer, eles não param antes de chegar ao topo.

A ordem das faixas

Os maiores eventos

O nível dos lutadores de jiu-jitsu é representado pela cor da faixa. Cada faixa conquistada representa mais um passo dado em direção à perfeição na luta. Praticantes acima dos 16 anos iniciam na faixa branca e, para chegar à faixa preta, precisam passar pela azul, pela roxa e pela marrom. Além da habilidade, há critérios como idade e tempo de permanência em cada faixa. Após a faixa preta, existem as faixas de Mestre, a vermelha e preta, seguida pela vermelha e branca. O nível máximo a ser alcançado é o de Grande Mestre, representado pela faixa vermelha.

O Ultimate Fight Championship foi criado nos Estados Unidos em 1993 com regras mínimas e foi promovido como uma competição para determinar a arte marcial mais eficaz em situações de combate desarmado. Hoje, o UFC é a principal organização de MMA e impõe as regras unificadas de Mixed Martial Arts, sem exceção. Com mais de 40 lutas a cada ano, o UFC hospeda a maioria dos melhores lutadores do mundo. Fundada em 2008, Bellator é a segunda maior organização de MMA dos Estados Unidos, e seu nome significa “Guerreiro” em latim.

impressões de

repórter

A proposta de fazer uma edição baseada no número 42 dividiu a turma em dois grupos: os que acharam a ideia um tanto complicada para obtenção de pautas e os que aceitaram o desafio de buscar uma história interessante relacionada ao número. Eu fiz parte do segundo grupo, pois, assim como o Calvin de Bill Watterson, sempre acreditei que há tesouros em todas as partes. Pesquisei alguns endereços envolvendo o número e encontrei uma creche na rua onde moro. “Feito. Vou contar alguma história de lá”, pensei. Porém, na aula de decisão das pautas, um colega da turma de fotografia mencionou a existência de um clube de luta situado no número 42 de uma rua qualquer em Porto Alegre. Imaginando o lugar como algo semelhante ao livro homônimo escrito por Chuck Palahniuk, decidi que essa seria minha pauta. Ao chegar ao local, não encontrei nada parecido com o clube idealizado pelo Tyler Durden de Palahniuk, sim, um Centro de Treinamento organizado onde fui muito bem recebido pelo pessoal e encontrei essa história incrível da trajetória do Fabiano Boxer, que facilmente renderia um filme.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 59


preservação

Casas de lembranças Em três mil bens inventariados, Porto Alegre apresenta pelo menos três patrimônios 42. Mesmo situados em categorias diferentes, todos têm seu papel na conservação da memória da cidade Por Maytê Ramos Pires Fotos de Camila Hugenthobler e Luísa Venter

I

móveis de número 42 permeiam muitas ruas em toda a região metropolitana de Porto Alegre, mas o que os diferencia além da localidade? Muitos são os fatores que tornam os lugares singulares, e três imóveis de Porto Alegre se aproximam pela mesma singularidade: são parte do Patrimônio Histórico e Cultural do município. O número 42 da rua Borges do Canto, no bairro Petrópolis, é parte dos bens inventariados de Estruturação, e as casas de número 42 situadas nas ruas Cândido Batista de Oliveira, no bairro Moinhos de Vento, e Cairú, no bairro Navegantes, se enquadram na categoria de Compatibilização dos bens inventariados de Porto Alegre.

Conhecendo o patrimônio

Patrimônio Histórico e Cultural é uma denominação dada aos bens que têm valor histórico para a nação, os estados ou os municípios, cada um com suas leis e diretrizes. No caso de Porto Alegre, é considerado patrimônio o bem que tem valor histórico por sua relação com fatos históricos ocorridos na capital, ou por sua representatividade arquitetônica, artística, paisagística ou ecológica. Os bens inventariados são divididos em categorias que determinam os estados de tombamento nos quais se encontram, a partir do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental. Um dos imóveis que se situam em número 42 se enquadra nos bens de Estruturação, que são determinados pelos valores que os 60 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

expressam e que atribuem identidades aos espaços. Estes são os que de fato se tornarão parte do Patrimônio Histórico. Os outros dois imóveis que se situam em números 42 são bens de Compatibilização, que tem relação direta com os de Estruturação e seus entornos e por isso merecem tratamento diferenciado graças aos elementos que os compõem, sendo inventariados para garantir a preservação dos bens de Estruturação durante o processo de tombamento. Ou seja, por ficarem próximos aos bens categorizados como de Estruturação, os bens de Compatibilização ganham proteção e restrições temporárias.

Os números 42 inventariados

O sobrado 42 situado na rua Borges do Canto data de 1947. Desde 1996 é propriedade de Marli Trevisol, que, além de residir com seu filho no primeiro andar do sobrado histórico, o utiliza para o desenvolvimento de seu negócio, pois lá possui uma loja de decoração no térreo. Logo na entrada do imóvel, como parte da decoração do ambiente, há tijolos expostos por serem carimbados manualmente, o que já conta do período histórico que envolve a atmosfera do sobrado. A loja de Marli se chama Alabastro, em referência à pedra que revestia as pirâmides do Egito. O nome tem um significado particular para a proprietária, que relaciona seu negócio a algo sólido, uma pedra. Marli declara um “amor pelo

estilo”, o que remete tanto ao ambiente que toma para morar quanto para trabalhar. Ela ressalta que, apesar de ser um sobrado histórico, o imóvel não tem uma característica arquitetônica marcante, mas é parte da história por ter sido construído em outro período e carregar consigo marcas deste tempo. O imóvel da Borges do Canto se diferencia dos outros dois citados na reportagem por se enquadrar na categoria de Estruturação, que são os bens que o município tem interesse de tombar. Já os imóveis situados nos números 42 das ruas Cândido Batista de Oliveira e Cairú se relacionam diretamente a bens de estruturação por se situarem em seus entornos, mas não serão tombados. Isso faz com que sejam restringidas suas possibilidades de uso, apenas por uma faixa de tempo.

Tombamento

O processo de tombamento em Porto Alegre envolve o valor histórico e cultural do bem para o município e tem três etapas: primeiro o bem é avaliado pela

n A sede da Equipe de Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC) é um dos imóveis tombados de Porto Alegre


LUÍSA VENTER


CAMILA HUGENTHOBLER

Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC), depois é aprovado pelo Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (COMPAHC) e, por fim, homologado pelo Prefeito. Até ser publicado no Diário Oficial, a denominação dada ao bem é “tombamento provisório”. Ele só ganha a denominação de bem tombado quando vai para o livro de tombo. No livro são descritos todos os bens, sendo que cada tipo tem seu próprio livro – como o de Belas Artes. O livro é feito à mão, por página numerada (só é escrito ao lado direito das folhas, porque é o lado numerado) e tem uma abertura assinada pelo Secretário de Cultura a cada nova edição. “Tombado é uma classificação para os bens excepcionais”, afirma Débora Magalhães, diretora da EPAHC. Tombamento é um processo administrativo para a preservação de qualquer bem que pode partir tanto do interesse da prefeitura quanto de qualquer pessoa, proprietário ou não, que pode requisitar que a equipe técnica do EPAHC faça a avaliação e determine se o bem tem valor para tombamento. A instrução do processo é realizar um levantamento a respeito do bem, que no caso das edificações se dá pela descrição do valor arquitetônico e posterior classificação do motivo pelo qual está sendo tombado, que pode não ter valor arquitetônico mas ter sido palco de algum momento relevante da história da capital ou ter valor paisagístico. Atualmente são 78 os bens tombados em Porto Alegre e inventariados são cerca de três mil, inclusas pontes, 62 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

imóveis, praças, quaisquer bens de relevância histórica e cultural para o município. Nos últimos anos têm crescido o número de bens tombados e listados para tombamento, pois o conceito de preservação foi evoluindo. Nos anos 1920, só eram tombados os bens excepcionais, depois começaram a ser considerados os bens dos povos colonizadores (de migração histórica, italiana e alemã) e assim seguem sendo inclusas novas categorias de bens válidos para a memória da capital.

Divergências patrimoniais

A questão do patrimônio cultural é controversa. Há proprietários de imóveis que se identificam com a ideia de preservação da história, mas há os que CAMILA HUGENTHOBLER

se sentem lesados ao serem incluídos na lista de bens inventariados, pois o processo de tombamento é custoso. Ao entrar na lista de bens interessantes de serem preservados, os proprietários adquirem responsabilidades e deveres a respeito do imóvel, tais como: não mudar a cor das paredes sem prévia autorização do município, não efetuar reformas, não vender, entre outros. Alguns proprietários, em desacordo com o conjunto de normas que regulamenta o patrimônio, movem ações contra o governo tentando impedir o processo de tombamento, requisitando a retirada de seus bens da lista de inventariados e pedindo liberdade de propriedade. O Brasil é o único lugar do mundo que utiliza a palavra tombamento, nos outros lugares se chama apenas classificação. Isto porque no país a palavra tombo significa inventariar, termo que vem da “Torre do Tombo”, na qual entre os séculos XIV e XVIII eram assentados os documentos importantes de Portugal, era o Arquivo Público do Reino. Somente em 1755, quando um terremoto comprometeu as estruturas da torre, os arquivos foram realocados para o Mosteiro de São Bento. No fim do século XX, mais especificamente em 1990, Portugal homenageou a torre ao nomear o local para o qual foi transferido o arquivo de Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (prédio construído com esta finalidade).


de um imóvel de Estruturação (à esquerda). Débora (à direita), com um livro de tombo, é diretora da EPAHC

LUÍSA VENTER

n Marli é proprietária

impressões de

repórter

Logo que o tema da revista foi definido, pensei em realizar uma reportagem sobre o Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre. É um tema que em muito me interessa, principalmente pela relação pessoal que nutro com a cidade, na qual resido há 11 anos e que aprendi a amar. Poder contar parte da história do município e falar de seus prédios tombados me motivou a seguir em busca de números 42 inventariados. Entretanto, as primeiras ruas em que procurei a numeração correspondente me deixaram frustrada a respeito da pauta, pois sempre pulavam o número ou já começavam em números mais elevados. Foi o caso da Travessa dos Venezianos, das ruas Lima e Silva, José do Patrocínio, João Alfredo, Riachuelo e Duque de Caxias, das avenidas Borges de Medeiros e Independência e da Rua dos Andradas. Então encontrei no site da EPAHC uma lista com os bens inventariados de Porto Alegre e foi a partir dela que achei dois dos endereços abordados na reportagem. O terceiro surgiu em uma conversa com uma amiga que é sobrinha da moradora de um número 42 inventariado, e assim obtive os contatos para seguir com a pauta que desde o princípio me cativou.”

Quem cuida do patrimônio A EPAHC faz parte da Coordenação da Memória Cultural da Secretaria Municipal da Cultura e atua definindo diretrizes e analisando os projetos sobre as edificações listadas para preservação pelo Plano Diretor, além de analisar os processos de restauro e solicitações dos proprietários para quaisquer alterações que desejem realizar nos bens inventariados e tombados. As atribuições da EPAHC são colocadas em prática por um núcleo de dez pessoas: cinco arquitetos, dois historiadores, dois estagiários de arquitetura e um estagiário administrativo. O COMPAHC, por sua vez, é formado por quinze pessoas, das quais oito são ligadas à Prefeitura e sete a entidades relacionadas ao patrimônio. Tais entidades são: Instituto

Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Instituto de Arquitetos do Brasil, Sociedade de Engenharia do Rio Grande do Sul, Associação Riograndense de Imprensa, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado e Ordem dos Advogados do Brasil. Os bens inventariados são protegidos pela Lei do Patrimônio Cultural do Estado – Lei Nº 7.231 de 18 de dezembro de 1978, pela Lei de Tombamento – Lei Complementar 275/92, que protege o Patrimônio Histórico, Cultural e Natural do Município de Porto Alegre, pela Lei complementar 601/08, que dispõe sobre o Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis do Município, pelo art. 14 do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental.


empreendedorismo n Bruna Dariva

recebe os visitantes no estande 42

Receita de casa A agroindústria familiar que cresceu e chegou ao estande 42 da Expointer Por Gisele Agliardi Fotos de Matheus D’Avila

64 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


Q

uem vê Bruna - uma jovem, de braços tatuados, sorriso e fala solta - talvez não imagine o negócio que ela comanda. Mas o sotaque carregado na letra “e” não esconde sua origem interiorana do norte do Estado, da qual hoje ela demonstra muito orgulho. Mas o interior nem sempre foi uma opção de vida para Bruna Dariva, 26 anos, filha única de Celestino Dariva, 67 anos, e Nely Dariva, 61, agricultores da localidade de Linha Rio Verde, na cidade de Erechim. Em 2008 ela foi morar em Balneário Camboriú, Santa Catarina, para buscar novas oportu-

nidades fora do campo. “Há alguns anos, as pessoas tinham vergonha do interior. Os pais mandavam os filhos estudar ou trabalhar fora para sair do campo”, afirma Bruna. Sua estadia na cidade não foi fácil – como tinha que trabalhar, não teve tempo e nem condições financeiras para fazer um curso superior. No verão, aproveitava a alta temporada para trabalhar em um restaurante na beira mar. Já no inverno, trabalhava em uma loja no shopping. Para Bruna, tudo isso rendeu experiência em negócios, em relacionamento com clientes e em manipulação de alimentos. Só não imaginava que essas experiências iriam ajudá-la mais tarde.

Em 1990, Celestino e Nely fundaram em sua casa a agroindústria familiar Queijos Dariva, de onde tiravam com sacrifício o sustento do lar. Mas em 2011 eles adoeceram, e Bruna teve de tomar uma difícil decisão: ou fechava de vez o negócio que não ia bem, ou voltava para a cidade natal e fazia a empreitada dar certo. Acreditando na qualidade dos produtos, visando um novo cenário de incentivos para quem vive do campo, com maior valorização da produção e mais crédito, e prezando pelo bem estar dos pais, Bruna retornou a Erechim e assumiu a linha de frente da agroindústria com otimismo, trabalho duro e as lições que Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 65


empreendedorismo os anos em Camboriú lhe renderam. Atualmente, Bruna comanda a Queijos Dariva, ainda nos fundos de casa, ao lado do marido, Luciano Garcia, 40 anos, e com a ajuda de dois funcionários e do filho Robson, de apenas nove anos, que desde cedo aprende o valor do trabalho no campo.

O estande 42

Com o empenho de Bruna e sua família, que aprimoraram as receitas caseiras, a produção de queijos passou de trezentos quilos mensais para três mil quilos mensais, comercializados apenas com a venda direta ao consumidor em feiras pelo Estado. Em 2014, foi a segunda vez que a Queijos Dariva expôs seus produtos na Expointer, maior feira de agronegócio do Brasil, acomodando-se no estande de número 42 do galpão da agricultura familiar. Quem passava por lá era recebido por sorrisos e por convites para provar os diferentes tipos de queijos. A família, caracterizada com roupas campeiras - coletes, chapéus e botas - chamava atenção para o diferencial de seus produtos, produzidos sem fermento e conservantes, temperados com diferentes condimentos e levando 12 meses para “curar” (processo para enxugar e criar a forma e o gosto desejado), ficando, deste jeito,

66 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

mais leve, macio, suculento e com gosto marcante. O destaque fica para o queijo colonial produzido com iogurte natural e para o queijo parmesão envelhecido no vinho, receitas aprimoradas depois de especializações na área. Para Bruna, a Expointer é um cartão de visitas, uma espécie de vitrine. Além das boas vendas, a imprensa dá atenção aos produtores que podem divulgar seus trabalhos, e a exposição confere prestígio aos produtos. Nos dois anos expondo na feira, a Queijos Dariva ficou em quarto lugar no prêmio “Sabor Gaúcho”, na categoria queijos. “É uma honra chegar à Expointer e já ficar nesta posição. Tem gente com muito mais tempo de negócio e de feira concorrendo. Isso é o reconhecimento do nosso esforço e o incentivo para melhorar e voltar todos os anos”, declara Bruna.

Mulher de negócios

Mas se engana quem acha que Bruna Dariva deu “um tiro no escuro” quando apostou no negócio da família. Antes de assumir a produção dos queijos, percebeu que o cenário do país estava mudando, trazendo mais incentivos e crédito para o campo, e que o trabalho do produtor rural estava cada vez mais valorizado. Estudou os processos e formas de deixar suas receitas de família mais saborosas e diferenciadas. E sabia qual

o mercado queria atingir para não ser apenas “mais do mesmo”, investindo na produção de produtos naturais e na venda direta ao consumidor, gerando confiança e simpatia com a marca. À frente do negócio, fez da Agroindústria Familiar Queijos Dariva a primeira fábrica registrada do município e, atualmente, batalha para conseguir o registro federal. Ela garante que a fábrica só não expande mais por não conseguir mão de obra qualificada, ainda escassa no interior. Além disso, Bruna é a presidente da Feira do Produtor Rural de Erechim, que traz 46 expositores rurais ao centro da cidade. Isso garante o escoamento da produção da agricultura familiar da região e valoriza o trabalho de tantas famílias que garantem seu sustento de dentro da própria casa, e hoje, assim como a família Dariva, têm orgulho disso.

n

Os expositores oferecem aos clientes degustação dos produtos expostos


Conheça a Expointer A Expointer é uma exposição internacional de animais, máquinas, implementos e produtos agropecuários, sendo considerada a maior feira de exposição de animais da América Latina. Ocorre sempre no período de final de agosto ao início de setembro e recebe centenas de milhares de visitantes. Em 2014 ocorreu a 37ª edição da exposição, que iniciou em 1901 em Porto Alegre. Apenas em 1970 a feira passou a ser realizada no local atual, no Parque de Exposições Assis Brasil, na cidade de Esteio. O evento conta com desfiles, shows, julgamentos e até palestras técnicas. Há 16 edições a Expointer abre os portões para os agricultores familiares exporem sua produção, que vai de flores, bebidas, comidas a artesanatos, contando com um pavilhão específico para a atividade. Neste ano, o pavilhão da agricultura familiar bateu recorde de vendas e visitas, sendo o local mais procurado no evento. E foi neste pavilhão que a Queijos Dariva expôs e comercializou seus produtos.

impressões de

repórter

A prática jornalística é desafiadora em sua essência. Na tarefa de encontrar um case bacana relacionado ao número 42, não foi diferente. Não só por ter que encontrar um local específico, mas também, e principalmente, por ter que me aproximar das fontes e descobrir, até num local que parece comum, uma história bacana. Minha primeira pauta era do piquete 42 do Acampamento Farroupilha de Porto Alegre. Ao contatar a prefeitura, não pude obter nenhuma informação, pois os piquetes são propriedade privada. Assim, fui até o Parque Maurício Sirotsky Sobrinho duas vezes, nas quais não encontrei o piquete 42 em meio às centenas existentes, já que a numeração não obedece nenhuma ordem específica. Também não consegui informações com a administração do parque e nem com entidades ligadas ao tradicionalismo. Com isso, parti para minha segunda opção de pauta – o estande 42 da

Expointer, com medo de não encontrar nada de interessante. Fui até o galpão da agricultura familiar e tive minha primeira surpresa: estavam montados lindos estandes enumerados. Lá no 42 descobri o pessoal da Queijos Dariva. Todos foram simpáticos e receptivos. Concluí que só a vontade de ajudar e o orgulho que sentiam do que faziam valia a matéria. Como não queria atrapalhar o trabalho em função do movimento, combinei de voltar outro dia de manhã cedo, assim que abrisse a exposição. A conversa fluiu muito bem, pois as fontes tinham orgulho da história que contavam. Depois disso, voltei mais uma vez ao estande com o fotógrafo Matheus para registrar as fotos. Conversei ainda via internet com Bruna para tirar algumas dúvidas. Tudo foi muito tranquilo e proveitoso. São momentos como esses, de descobertas e gentilezas, que fazem o nosso desafio valer a pena. E ficar mais gostoso.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 67


missão

KARINA SGARBI

Ensinamentos de Claudio e Lorita Gernhardt resgatam o valor da família


Ivoti para o Brasil promovendo retiros e palestras por todo o paĂ­s Por Camila Mayuri Fotos de Bianca Hennemann, Gabriela Passos e Karina Sgarbi Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014 n 69


missão

O

número 42 da rua Jacob Schneck, no centro de Ivoti, cidade localizada na Região Metropolitana, à 55 km da capital Porto Alegre, acolhe desde 1973 o casal Gernhardt: Claudio, de 71 anos, e Lorita, de 68. Uma casa amarela, sem portão nem grades, com um único caminho de pedras quadradas que leva até a porta principal. O número da casa é identificado por uma madeira com corte curvado, pendurado na varanda. No pátio, grama verde, devidamente aparada. Cenário inspirador e convidativo para sentar no banco de balanço da área externa da casa. Claudio e Lorita Gernhardt estão casados há 50 anos, hoje são aposentados, têm uma filha, um filho, um neto e duas netas. A cidade de Rolante, no Rio Grande do Sul, foi o cenário onde iniciou esta história. Claudio era professor do Ensino Fundamental, Lorita trabalhava em um escritório. Um dia ela o viu andando de bicicleta, com ar de conquistador, sem segurar o guidão, com as mãos nos bolsos, e pensou: “Tomara que caia”. Mas, no fim, foi ela quem caiu. Caiu apaixonada nos braços de Claudio. Noivaram, casaram, tiveram dois filhos - a Jaqueline e o Jefferson – e se mudaram para Ivoti. Em Ivoti, tornaram-se comerciários e construíram juntos um sonho a ser conquistado depois de aposentados: criar um Ministério para resgatar valores morais, éticos e cristãos da família. Claudio

e Lorita sempre foram muito conectados à igreja e começaram a oferecer palestras sobre o tema família. Como na época trabalhavam no comércio e tinham filhos pequenos, mesmo quando havia pedidos para darem mais palestras, muitas vezes não conseguiam atender a todos. Mas lidar com as pessoas, sejam famílias ou jovens, fazia muito bem ao casal. Por isso, há 35 anos, dentro do carro, retornando da cidade de Arroio do Padre, onde, na época, já participavam de atividades na igreja, Claudio fez uma pergunta inusitada à esposa: “Quando nos aposentarmos, vamos nos dedicar a viajar pelo Brasil e dar palestras?”. Lorita hesitou enquanto o carro percorria mais alguns quilômetros e, depois da insistência do marido por uma resposta, sorriu e afirmou: “Eu topo!”. Eles fizeram deste diálogo um sonho. Desde então, sempre pediram a Deus para que desse as ferramentas necessárias para que realizassem sua vontade. Hoje, faz 20 anos que criaram o Ministério Família Cristã Feliz e viajam pelo Brasil dando palestras, cursos e organizando retiros para casais, jovens e famílias. De acordo com eles, tudo gratuitamente. Não cobram passagens, hospedagem e nem o material utilizado para realizarem as atividades. “Vivemos de ofertas e nunca nos faltou dinheiro para cumprirmos com a nossa agenda”, revela Lorita. Claudio e Lorita são evangélicos luteranos, mas não pregam nenhuma

religião durante os cursos. “Nós levamos somente os ensinamentos da Bíblia de Deus, não importa que religião as pessoas que participam dos nossos cursos seguem”, revela Claudio. O casal oferece as palestras para todas as igrejas e respeita as crenças de cada uma. Muitas vezes, durante o final de semana de curso, alguns casais que estão juntos há anos, mas que nunca casaram, decidem se casar, ali mesmo, naquele final de semana, durante o retiro. Claudio e Lorita chamam um pastor para realizar a cerimônia de casamento. “Ficamos felizes quando isso acontece, pois é uma prova de que os casais resgataram os ensinamentos morais, éticos e cristãos que tentamos passar durante os cursos”, comemora Lorita. Às vezes, os filhos dos casais que participam do curso vêm agradecer Claudio e Lorita. “Uma vez, um menino nos agradeceu, pois depois que os pais dele participaram do retiro, não houve mais brigas na casa dele e todos viviam mais felizes. Isso não tem preço!”, conta Claudio. Segundo ele, teve outro caso de um adolescente de 17 anos que ouviu “Eu te amo” do pai pela primeira vez na vida. O fato correu após o pai retornar de um final de semana imerso em um dos 11 cursos que Claudio e Lorita oferecem. A agenda deles já está lotada até dezembro de 2015. “Divulgamos no site e no Facebook que iríamos abrir a agenda BIANCA HENNEMANN


GABRIELA PASSOS

n O casal com uma

história de vida de doação de tempo e energia para fazer um mundo melhor foi encontrado no número 42 da rua Jacob Schneck, no centro de Ivoti, no Rio Grande do Sul

de 2015. O Claudio ficou com o telefone móvel e eu com o fixo para atender os pedidos, que eram apenas feitos por telefone, para darmos chances a todos. Em uma hora, todos os finais de semana já estavam completos e já tinha até fila de espera”, conta Lorita. O casal, normalmente viaja nas quintas-feiras e retorna nas segundas. Nas terças e quartas, ou descansam em casa, em Ivoti, ou atendem aos pedidos de palestras em cidades próximas, onde não é preciso pegar avião para locomoção. “É uma vida agitada, mas nos traz muitas alegrias”, diz Claudio. Eles se doam ao Ministério de fevereiro a dezembro, e não é apenas o tempo de locomoção e horas de atividades que são oferecidos pelo casal. Eles se preocupam com cada detalhe para fazer com que os participantes se sintam acolhidos. “Nós mesmos fazemos crachás de identificação e enfeites para a porta do quarto do hotel que o casal que está participando do nosso curso ficará para o final de semana do retiro. Sempre personalizado com o nome, para todos se sentirem especiais”, conta Claudio. O mês de janeiro é dedicado às férias, visto que os netos também estão de férias nesta época do ano. “Nós prezamos tanto a união da família nos nossos cursos e temos consciência que, para ajudarmos outras famílias a serem mais felizes, temos que, em primeiro lugar, estar de bem com a nossa”, diz

Lorita. Mesmo viajando bastante, o casal sempre reserva tempo para estar junto com os filhos e netos. “Aniversário de neto é sagrado, temos que comemorar”, acrescenta ela. A família tem como regra que o aniversariante deve ganhar café na cama no dia do aniversário. Um dos netos se mudou para São Paulo para estudar e estava muito triste, pois ninguém daria café na cama para ele no dia do aniversário. Claudio e Lorita, os avós de ouro, estavam em um retiro em Santa Catarina no dia anterior ao aniversário. Compraram uma passagem para São Paulo e fizeram o neto feliz, levaram o café da manhã na cama no dia do aniversário. Quando os netos ainda eram pequenos, em janeiro também eles organizavam gincanas e brincadeiras com as crianças. Segundo Lorita, todos adoravam o Dia do Rei, quando um dos netos era escolhido Rei e tomava todas as decisões do dia, desde onde iam passear, até o cardápio do almoço e da janta que a vó Lorita iria fazer. “Eles adoravam e se divertiam muito!”, conta a vó, sorridente. A Rua Jacob Schneck, 42, é responsável por acolher esse casal. “Não há segredos, estamos casados há 50 anos e acreditamos que só é preciso ter fé, colocar Deus em primeiro lugar e lutar pela união e felicidade da família e do próximo”, ensina Claudio.

impressões de

repórter

Eu consigo enxergar dois grandes aprendizados no desenvolvimento desta reportagem. O primeiro foi aceitar um não grosseiro e ignorante de um senhor, dono de um mercado na Campina. Aprendi a lidar com a raiva que senti quando fui recebida desta forma. Acredito que as pessoas podem ter os piores problemas do mundo, mas grosseria é uma escolha que cada um faz. Já a entrevista com o casal em Ivoti me ensinou a buscar outras perguntas além das quais eu já tinha planejado. Ter gravado a conversa de mais de uma hora me deu a liberdade de anotar menos e prestar mais atenção nos movimentos e gestos que os entrevistados faziam, o que me ajudou muito a colocar um pouco mais de sentimento no texto Ter conhecido o Claudio e a Lorita foi um presente. É isso que me encanta no jornalismo: ter contato e conhecer pessoas que normalmente eu não conheceria se não fosse a profissão. Entrevistas, viagens para reportagens ou até reportagens locais te fazem conhecer um pouco de tudo enquanto se trabalha.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 71


comunidade

72 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014


A voz e o silêncio das orquídeas A rua 42 tem histórias e problemas a serem contados Por Ana Elisa Oliveira Fotos de Julian Souza Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 73


comunidade

F

oi no 20 de Setembro, já famoso precursor da liberdade, que conheci a Rua das Orquídeas 42, atualmente Rua Ary Dias Poeta, na cidade de Rio Pardo. A nomenclatura foi modificada para homenagear o policial, de mesmo nome, que foi morador do local. O município fica a 145 km da capital do Estado e apresenta um vasto patrimônio histórico, sendo que foi palco da Batalha do Barro Vermelho durante a Revolução Farroupilha. A via, que me propus a conhecer, abriga pessoas que admiram o lugar e outras que querem protestar por melhorias. Ela não é identificada por placas. Muitos ainda a chamam apenas de 42. As moradias são próximas e o caminho é formado por altos e baixos, é necessário ter disposição para caminhar por toda extensão. O silêncio ao ingressar no ambiente contrasta com a movimentação que encontro ao avançar. Na entrada da 42, na casa 41, observei moradores tomando chimarrão e contemplando o que acontecia ao redor. Esses detalhes, que ao primeiro olhar, podem parecer irrelevantes, mas conotam certa tranquilidade ao ambiente. Logo à frente, cheguei a um estabelecimento com uma alta escada de pedras. No topo, fica a casa e o bar de Luiz de Ávila. Com 77 anos, há 34 anos se mudou para a região, acompanhando algumas das transformações do local. Em 1980, Ávila se estabeleceu na

Rua das Orquídeas 42, no número 248. Natural do município de Encruzilhada do Sul, ele possui perceptível sabedoria advinda da vivência. Montou seu negócio e afirma que se relaciona bem com a vizinhança. “Nós que fazemos os vizinhos a partir da forma como agimos diante daqueles com quem convivemos.” Ávila conversa com facilidade, conta-me que trabalhou na área da pecuária por muitos anos e que já andou por outras regiões. Pelas estradas aprendeu a lidar com o público. “Eu conheço quase todo o Estado do Rio Grande do Sul. Viajava para os meus patrões, comprando e vendendo gado. Nós que caminhamos muito, aprendemos muita coisa, embora não se tenha estudo. Nesses caminhos aprendi a lidar com o pessoal, a conversar, a escutar os ensinamentos dos mais velhos”, explica. Os clientes de Ávila são atendidos com cordialidade. De forma espontânea, afirma que, para saber mais histórias sobre a rua, teria que conversar com pessoas mais velhas, porque os jovens não são de falar. Divertindo-se, ensina: “Uma pessoa nova não é de quase saída”, dando a entender que os novatos não conversam muito. Seguindo o conselho do sábio Ávila, aproximo-me dos olhos miúdos e do sorriso largo de Eliza Eloi de Assis Silva, de 65 anos, que me recebeu na entrada da sua residência. Espaço simples que contempla uma pequena horta em elevação e um tímido arvoredo que se inicia. Esse é

o lar onde criou a filha e que é abrigo dela e do marido, Manoel Adair Rodrigues da Silva, de 67 anos. Ele contou-me que a rua foi asfaltada em uma gestão, mas a obra teve que ser refeita posteriormente. O primeiro trabalho não foi bem executado e tudo teve que ser reconstruído. “Antes havia muita lama nos dias chuvosos, não existia transporte público e dificilmente algum carro entrava por aqui.” Com a pavimentação, vieram novos moradores, e a localidade foi se expandindo. Segundo o site Informações do Brasil, a rua abriga estabelecimentos comerciais e uma comunidade com mais de 200 pessoas, tendo um rendimento médio abaixo do salário mínimo. Indicações da carência e simplicidade dos habitantes do logradouro. Eliza é dona de casa, enquanto Manoel trabalha em uma fazenda e vende lenha para o complemento da renda familiar. Comprou o terreno onde mora com dinheiro emprestado e se mostra feliz com tudo que conquistou. Ele apresenta as mãos calejadas devido ao trabalho no campo. É receptivo e fala que pela região todos se ajudam. Se um morador precisa ir ao médico ou de um remédio, sempre há alguém para auxiliar. Aspecto que Ávila corrobora, quando diz que a vizinhança é muito calma. À frente da residência de Eliza e Manoel, em uma das baixadas, encontrei crianças brincando com carrinhos de madeira. Eram vários “Marcos descendo o morro da vó Salvelina”. Esse entreteni-

n Manoel e Eliza

Silva acompanharam as transformações da Rua das Orquídeas, 42

74 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


n Com 77 anos, Ávila

mantém um bar na rua há 34 anos e destaca a importância da boa relação com os vizinhos

mento é saudável em tempos que o videogame e os jogos tecnológicos dominam o cotidiano infantil, mas os moradores reclamam do barulho e do perigo que os menores correm com a prática. A atividade é realizada no meio da via pública, os veículos têm que desviar dos carrinhos e de seus condutores. Teresinha Barros, de 54 anos, afirmou que, desde que houve a pavimentação, acontece a mesma coisa. Não há hora e nem critério para a diversão acabar. O ruído incomoda porque ela tem labirintite, o que ocasiona muita enxaqueca. Para ela e o marido, Cilon Pereira Paz, 56 anos, o problema é que poucas pessoas reclamam, os demais não querem se comprometer. Já o morador Jorge Pereira, de 70 anos, que há três meses se estabeleceu

na região, não se importa com o passatempo da criançada. O filho dele participa da brincadeira, mas ele concorda que o barulho é perturbador. “Isso aí é cíclico, daqui a pouco eles enjoam. Eu não quero barulho, mas o que a gente vai fazer? Temos que nos adaptar.” Pereira conta que por sua vontade não estaria morando na antiga 42, conhece o lugar há mais de 40 anos e nunca pretendeu residir nesta parte da cidade. Apesar disso, confirma: “O lugar é a gente que faz, não adianta ter preconceitos e vontades”. A ocorrência de furtos é a queixa que Eliza Rosa, 65 anos, me faz sobre o lugar. Ela teve a casa roubada enquanto dormia. Quando acordou, tinha perdido alguns eletrodomésticos. Os moradores também comentam que há uma casa abandonada

que gera transtornos durante a noite, mas apesar desses fatores negativos a maioria dos habitantes é receptiva e de boa índole. A rua 42 me apresentou indivíduos que queriam dar voz aos seus problemas e que anseiam por serem ouvidos. Mostrou também que alguns residentes estão acostumados ao silêncio da sua região e seguem a vida com tranquilidade. Uma das primeiras pessoas que encontrei, Luiz de Ávila, me contou que aprendeu muito com as pessoas mais velhas,. Essa perspectiva esteve presente durante minha caminhada. A cada palavra, a cada expressão tentei extrair a intenção que os indivíduos me passavam. Aprendi com eles que, ao passear pelo desconhecido, podemos aprender em todos os momentos.

impressões de

repórter

Inicialmente pretendia fazer a reportagem sobre o Canal 42 (repetidor do conteúdo da RIT Tv do Rio de Janeiro), mas não foi possível. Assim, começou a odisseia em busca de uma nova possibilidade que envolvesse o tema proposto. Encontrei a rua 42 no mapa online da cidade de Rio Pardo. Não tinha ideia do que poderia observar por lá, mas me propus a tentar. Na primeira tentativa, obtive apenas relatos positivos, em um segundo momento me mostraram vários aspectos negativos

também. Desse modo, senti que o meu papel seria tentar ajudar de alguma forma, e espero que a matéria tenha algum retorno para eles. Ao narrar os fatos, tentei manter uma relação com as minhas observações e o que foi dito, considerando fugir de fontes oficiais. Trabalhar com o inesperado é bastante difícil, mas ao mesmo é uma experiência interessante, porque obriga a buscar algo sem realizar pré-julgamentos. A PI me deu essa oportunidade e creio que foi um momento inspirador.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 75


pousada

76 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014


O 42 forjado à mão Um endereço, um prédio e a bela construção de uma história de vida Por Ângelo Daudt Fotos de Silvia Dalmas

C

anela, Rio Grande do Sul. De natureza ímpar e clima aconchegante, a cidade tem tradição de ser um dos lugares mais belos do Estado. Referência turística no país, a cidade recebe visitantes durante todo o ano. Hotéis, chalés e pousadas estão sempre prontos para receber seus hóspedes. Em uma manhã ensolarada de sábado, de clima leve com uma beleza própria da região das hortênsias, no número 42 da rua Narciso Perottoni, encontro a pousada Vila Suíça. De construção sólida, com paredes de tijolo a vista, o prédio está cercado de verde. Um jardim repleto de mudas variadas energiza o caminho de degraus que dá acesso à recepção. Ao chegar na porta de entrada, percebo através do vidro, tomado pelo reflexo do sol, um sorriso. Ouço uma voz vibrante que convida para entrar. Um passo a

n Jusara, proprietária da

pousada Vila Suíça, recebe seus hóspedes no número 42 da rua Narciso Perottoni, em Canela, na Serra Gaúcha

frente, ao abrir a porta, um suave bom dia chama minha atenção. Uma senhora está sentada confortavelmente no sofá . Em um ambiente aconchegante, um aquecedor a gás cintila fagulhas e aquece o lugar. Ao lado de uma lareira de ferro trabalhada à mão, e de um cesto repleto de nós de pinho que decora a sala, Jusara Brasil me recebe com a tranquilidade de quem ganha uma visita em casa. Formada em turismo pela Universidade Federal de Caxias (UCS), é proprietária da pousada há 21 anos. Jusara gerencia sozinha a rotina da Vila Suíça, que tem seis quartos, duas salas de estar, uma sala de café da manhã e uma cozinha. Em uma longa conversa, que se estende enquanto bebemos algumas xícaras de café, conheci um pouco da história deste número 42 da cidade de Canela. A história de um lugar, de uma construção e de uma vida. Enquanto conversamos, uma longa playlist de músicas do rei Roberto Carlos ressoa no ambiente. “Escuto música o dia inteiro, adoro o Roberto Carlos”, ressalta Jusara. De forma calma e organizada, ela leva seu dia a dia com tranquilidade. Mas sua rotina não é simples. De pé às 7h, prepara o café que é servido às 8h em ponto. Bolos, pães, cucas, geleias e delícias coloniais. Tudo servido com a atenção de quem serve o próprio café da manhã. Porque muito

dessa mesa é produzido ali mesmo, na cozinha da pousada. O horário do café se estende das 8h às 11h. A partir daí, é hora de Jusara administrar o negócio. Uma saída para compras no supermercado, contas a pagar, cheques para trocar, idas ao banco e ao escritório da contabilidade. O tempo é curto e precisa ser utilizado com eficiência. A partir das 14h iniciam-se as novas diárias. Então, pressa: recolhe a roupa de cama, lava, seca, estende, passa. Ao mesmo tempo, colocar um pão no forno, atender o telefone, agendar as reservas e bater o bolo. Para alguém que já fez boa parte dessas tarefas enquanto estudava na faculdade, dava aulas no ensino fundamental e cuidava de marido e filho, pode até ser tranquilo. Atualmente Jusara tem seu próprio tempo. Escuta suas músicas, cuida de seus cinco gatos, aplica Reiki de forma gratuita algumas vezes por semana, faz academia e pratica meditação. E namora, é claro, porque, segundo ela, “ninguém é de ferro”. Mas sua vida nem sempre foi esta.

Moldando o futuro

Aos 62, percorreu um longo percurso até alcançar sua tranquilidade. Natural de São Francisco de Paula, perdeu seus pais aos 11 anos de idade por problemas de saúde. Foi morar com uma de suas Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 77


pousada

n Ao lado da mesa, na

oficina de artesanato, Jusara relembra as origens da pousada Vila Suíça

78 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014


tias na cidade de Três Coroas. Aos 18 anos, passou a morar em Canela, na casa de outra tia. Foi quando conheceu Darci Perottoni, com quem namorou, casou e teve seu filho, Luciano Brasil Perottoni. Darci, artesão profissional, moldava manualmente lareiras, lustres, floreiras e artefatos de metal. Com o trabalho da marreta, forja, bigorna e uma boa dose de empenho, comprou o terreno de número 42 da rua Narciso Perottoni. “Naquele tempo não havia quase nada aqui”, diz Jusara. A intenção inicial foi a construção de um ateliê. Na oficina, instalada no andar de baixo, Darci produzia as peças que Jusara vendia na loja, que ficava no andar de cima. Durante aproximadamente dez anos, este foi o trabalho. Até surgir a ideia do novo investimento. Canela se desenvolvia como uma cidade turística de referência, e Darci decidiu ampliar o prédio, construindo quartos para uma futura pousada. “A pousada foi construída com o trabalho desta oficina. Posso dizer que tudo partiu desta mesa”, ressalta Jusara em tom orgulhoso, apoiada na grande bancada de madeira da oficina que permanece ativa no primeiro andar da pousada. Mas o trabalho não era só esse. Enquanto Darci produzia, Jusara vendia, cuidava do filho Luciano, lecionava como professora do Estado e, a partir da con-

clusão da obra, passou a cuidar também da pousada. A nova rotina transformou a vida de Jusara. Aos poucos, o prédio foi se transformando e tendo outra função, deixando de ser loja e ateliê, para se tornar a pousada Vila Suiça. Jusara passou a estudar turismo. De 1996 até 2002, cursou faculdade, lecionou, administrou a pousada e a família. Um período em que construiu também sua individualidade. Embora morando juntos, dividindo o mesmo espaço, ela e Darci se separaram. “Hoje ele ainda mora aqui, tem seu espaço nos fundos do prédio e mantém a oficina ativa. “Eu cuido dele e sempre irei cuidar”, declara Jusara, com a clareza da maturidade. Com o tempo, o filho cresceu, se tornou um homem e partiu em busca de seus interesses, indo morar na cidade de Gramado. Jusara se aposentou, concluiu seus estudos e passou a se dedicar integralmente para a pousada. Hoje ela conta com o auxílio de uma diarista, que colabora com a manutenção da pousada em determinados dias da semana. Na companhia de seus gatos, mantém o negócio organizado. Ao som de Roberto Carlos, com um grande sorriso no rosto, pronto a receber novos hóspedes, vive em harmonia com as boas energias da Serra Gaúcha. Na entrada de Canela, pousada Vila Suíça, rua Narcíso Perottoni, número 42.

impressões de

repórter

A Serra Gaúcha nos recebeu com um clima agradável em um lindo sábado de sol. Os fotógrafos Silvia Dalmas, Cassio Pereira e eu fomos surpreendidos por uma agradável recepção na pousada Vila Suíça. Um café da manhã servido, um clima aconchegante e uma gostosa conversa que se estendeu pela manhã nos trouxeram surpresas, humor e muitos sorrisos. Uma sessão de fotos empolgante fechou com chave de ouro nossa visita a esse número 42 da cidade de Canela.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 79


cidade

Parobé além da Azaleia Parobé é muito mais que a já extinta fábrica Azaleia. A melhor atração da cidade são os próprios parobenses Por Joane Garcia dos Santos Fotos de Altair Figueira

80 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


P

arobé, além de ser, atualmente, a 42ª cidade no ranking do PIB (Produto Interno Bruto) no Rio Grande do Sul, está localizada no KM 42 da RS 239 no Vale do Paranhana, onde já existiu a fábrica Azaleia, que, em 2011, demitiu os últimos 800 empregados. Essas eram as informações. O que mais eu sabia? Nada. E foi assim que iniciei uma viagem que com certeza vai ficar marcada na memória. Munida com um espírito de desbravação, papel, caneta, um gravador e uma pergunta: “O que tem em Parobé?” . Chegamos à cidade, eu e o fotógrafo e “motorista/GPS” Altair, às 9h30min, do dia 20 de setembro, data em que se comemora o feriado Farroupilha. Do alto da RS 239, avistei uma

cidade que, mesmo numa manhã de sábado, de temperatura primaveril, estava desperta e vestida a caráter. Ao entrar no CTG Sangue Nativo, por um segundo, me senti em meados de 1840, num galpão de madeira. As mulheres trajando vestidos de prenda, os homens vestindo bombachas e botas, todos reunidos para assistir à missa crioula que aconteceria ali mesmo. O padre da cidade também já estava lá, com o seu lenço vermelho maragato, aguardando o início da celebração. O Patrão do CTG, Edimilson Pires da Silva, era um dos filhotes da Azaleia. Foi morar em Parobé aos 12 anos, quando o seu pai saiu de Porto Alegre para trabalhar na fábrica. Iniciei o assunto com a minha pergunta: “O que tem em

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 81


n Andressa e Laura são

prendas do CTG Sangue Nativo. O vendedor de pipoca da praça 1º de Maio, Amador, conta com a ajuda de sua sobrinha Rafaela. Jairo, dono da Padaria Aurora, é famoso por suas cucas. Todos gostam de morar em Parobé

Parobé?”, e fui prontamente atendida, com a indicação de alguns lugares que nos possibilitaram traçar uma rota dentro da cidade: Praça 1º de maio, local onde todos se reúnem aos finais de semana; a padaria Aurora, onde são comercializadas as melhores tortas e cucas de Parobé; e a loja de tecidos Brocker, a mais antiga da cidade. Edimilson falou também sobre a lenda urbana de um fantasma que assombra a fábrica de calçados Bibi. Segundo a crença popular, um homem que habitava aquela região era contra a construção da fábrica e, por isso, até hoje assombra o KM 42 e ocasiona inúmeros acidentes no local. Quando questionei se ele não tinha vontade de ir embora da cidade, respondeu incisivo: “Aqui o povo é muito acolhedor, todo mundo se conhece”. Ao lado dele havia duas meninas com flores nos cabelos e vestidos bem rodados, sentadas como damas, e mal sabia eu que todo aquele garbo e elegância tinha motivo: ambas eram celebridades do CTG. Andressa Jarutais, 12 anos, foi três vezes prenda infantil do Sangue Nativo e Laura Skieres, 10 anos, foi prenda infantil do Sangue Nativo e prenda infantil regional, títulos esses que fizeram questão de ressaltar. Ao serem questionadas do por que gostarem de viver em Parobé, Andressa falou sobre sua liberdade como criança que, na visão dela, era propiciada por a cidade ser pequena. “Aqui tem muito espaço para andar de bicicleta, a gente joga bola na rua, tomamos sorvete na praça, eu gosto”.

82 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


Após sairmos do CTG, nos direcionamos a praça 1º de Maio, que, às 10h, já estava com bastante circulação de pessoas. Na entrada da pracinha, encontramos um bem humorado vendedor de pipoca, batata chips e churros. Amador Pinheiro, 47 anos, estava trabalhando acompanhado da sua sobrinha e assistente Rafaela Moura, 15 anos. O hoje comerciante saiu de Palmeiras das Missões para trabalhar na Azaleia “Na época estavam todos vindo para cá em busca de emprego.” O mesmo ocorreu com os pais de Rafaela, que vieram em busca de oportunidade na fábrica de calçados. Por consequência, ela acabou nascendo na cidade que, segundo ela, não trocaria por nenhuma outra. “A melhor atração da cidade são as pessoas.” Conforme eu conversava com os parobenses, ia me dando conta de que a cidade era uma miscelânea de culturas e de pessoas de outras regiões do Estado, que acharam na cidade uma oportunidade de vida nova propiciada pela exportação calçadista. Só a fábrica de calçados Azaleia, no ápice do seu funcionamento, empregava, em média, 7 mil funcionários por turno, dia e noite, trazendo, além de novos habitantes, movimento nos comércios da cidade por mais de 50 anos. Hoje, a fábrica parece mais um piano branco de cauda, com pavilhões gigantescos e vazios no meio da cidade. Quando falava da fábrica para as pessoas, sentia como se pairasse um misto de nostalgia e sentimento de luto no ar. E, realmente, foi uma grande perda. Quem pôde acompanhar toda a evolução da cidade foi Bruno Brocker, um senhor de 93 anos que, até hoje, está

n Bruno Brocker,

dono da loja mais antiga da cidade, e Edimilson Pires da Silva, Patrão do CTG Sangue Nativo, fazem parte da história de Parobé

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 83


cidade

à frente da loja mais antiga da cidade. O estabelecimento leva estampado, na fachada, o seu sobrenome. Começou em 1948 como um “secos e molhados”, depois se tornando uma loja de tecidos e confecções. Atualmente oferece tecidos e artigos de armarinhos. Aos 14 anos, Bruno saiu de Três Coroas e veio para a região em meados de 1935, a convite do seu tio, que tinha um comércio próximo à estação férrea da cidade, para auxiliar com o transporte de mercadorias, já que 84 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

ele era, dentre os 11 irmãos, o único que sabia falar português e alemão. Essas informações foram contadas por seu filho, Remi Luciano Brocker, que estava em frente à loja quando chegamos. Ao questionarmos sobre seu pai, ele frisou que só poderíamos falar com o senhor Brocker depois que terminasse seu almoço, que não poderia ser interrompido em hipótese alguma. Do contrário, despertaria seu mal humor. Enquanto aguardávamos, Remi salientou o orgulho de ver seu pai

trabalhando. “A loja é o que mantém ele vivo, nós (os filhos) achávamos que, com o falecimento da nossa mãe, há 10 anos, ele não resistiria muito mais tempo, mas não, ele deu a volta por cima.” Após dez minutos, mesmo com a possibilidade de ser xingado por seu estimado pai, Remi decidiu chamá-lo, e, para nossa surpresa e alívio, seu Bruno ainda estava preparando sua refeição, e, por esse motivo, decidiu nos atender. Um pequeno senhor de cabelos branco, mas grandioso na sua


impressões de

repórter

Esta matéria foi um desafio, partindo do principio que Parobé não é um município com foco no turismo, elemento que é o primeiro que nos vem à cabeça quando o assunto é cidades. Mas ser jornalista é exatamente isso, ver, escutar e escrever sobre o que ninguém vê. É inverter a lógica, mostrar que não existem vidas comuns - nem vidas anônimas. Cada um de nós é um fenômeno inigualável e singular. Falei com gente de várias as idades, uns otimistas, outros nem tanto, mas todos com algo a dizer da sua cidade, da sua vida, ainda que de forma desconcertada, envergonhada, e algumas vezes até desconfiada. Dentre um misto de sentimentos, um se destaca, o de dever cumprido. Pude mostrar que, ao contrário do que me disseram, Parobé tinha sim muita coisa a mostrar, muita beleza, muita esperança, muita gente.”

firmeza ao falar. Quando questionado sobre qual o sentimento dele em relação à cidade, Seu Bruno foi incisivo na resposta: “Gosto daqui, e meu serviço é esse aqui. O dia que eu sair daqui, será direto para o cemitério. Eu gosto disso aqui, Do balcão. Aqui só tem gente boa, não tenho queixas de ninguém”. Seguindo nossa rota Parobé, fomos até a padaria Aurora, que está em funcionamento desde 1969. Ao

conversar com um dos proprietários do estabelecimento, Jairo de Castro, 48 anos, pudemos confirmar a fama das cucas, pois, antes das 11h da manhã, já não havia mais, e quem quisesse comprar deveria voltar somente às 14h. O estabelecimento em si, apesar dos seus 45 anos de existência, era bem moderno. Todo envidraçado, com um expositor giratório, TV de led, mesas com cadeiras para quem quisesse comer no pró-

prio local e uma variedade de doces e salgados. Enquanto conversávamos, o proprietário conferia o cardápio do que deveria ser produzido para o camarim de um artista de fama nacional do funk carioca, que faria show naquele dia em Parobé, o que mostrava a magnitude do estabelecimento perante a cidade. Claro que, antes de ir embora, comprei uma cuca de laranja e pude comprovar o porque de ser tão famosa. Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 85


CASSIA OLIVEIRA

antiguidade


Passado a limpo A trajetória da uruguaia que acabou em Porto Alegre como expositora da banca 42 do Brique da Redenção Por Juliana Franzon Fotos de Cassia Oliveira e Karoline Cardoso

E

m 1973, enquanto o presidente do Uruguai Juan Maria Bordaberry, com auxílio das Forças Armadas, assumia poderes absolutos no país, instaurando a ditadura, milhares de pessoas trataram de abandonar a pátria. Coincidência ou não, foi neste ano que Lúcia Berdun, expositora da banca 42 do setor de antiquários do Brique da Redenção, se radicou em Porto Alegre. Natural de Montevidéu, Lúcia veio para o Brasil junto com o marido Walter Berdun. Aos 27 anos, trazia no colo o filho Cláudio, então com dois anos. A mudança trouxe boas oportunidades ao casal. Ele logo se estabeleceu no ramo de marmoraria. Tempos depois, a até então dona de casa acolheu a sugestão de um amigo e resolveu apostar no mercado de antiguidades. “Eu não trabalhava fora,

ficava só em casa. Aí um amigo nosso, que até hoje tem banca aqui, sugeriu que eu me tornasse expositora e foi me apresentando aos marchands, mostrando como as coisas funcionavam”, relembra. A aposta deu mais do que certo. Hoje veterana na atividade, a simpática uruguaia, que pede para não ser fotografada, diz com um sotaque carregado que não lembra a data exata em que começou a expor no Brique, mas que já são mais de 30 anos. Tempo suficiente para ganhar um companheiro de atividade: Walter deixou a marmoraria de lado e hoje dedica-se integralmente ao antiquário.

Vitrine porto-alegrense

Inspirado na famosa feira de San Telmo, de Buenos Aires, na Argentina, o Brique da Redenção começou em março de 1978 com o nome de Feira das Pulgas,

CASSIA OLIVEIRA

com a participação de 24 expositores de antiguidades. Hoje são 182 tendas de artesanato, 66 de antiquários, 40 de artes plásticas e oito de gastronomia. Realizado todos os domingos na avenida José Bonifácio, das 9h às 18h, em frente ao Parque Farroupilha, o local é bem mais do que uma simples feira de artesanato e antiguidades. Trata-se de uma verdadeira vitrine da cultura porto-alegrense. O domingo começa cedo na arborizada avenida localizada no bairro Bom Fim. Até mesmo antes das 8h começam a chegar os primeiros expositores que, sem pressa, vão montando suas barracas lado a lado e arrumando as mercadorias. Minutos depois já aparecem os madrugadores do domingo munidos de cuia e garrafa térmica para aproveitar a tranquilidade das primeiras horas da manhã e respirar ar fresco em um dos

KAROLINE CARDOSO

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 87


KAROLINE CARDOSO

CASSIA OLIVEIRA

pontos mais tradicionais e visitados da capital gaúcha. Lá pelas 11h, o local já está tomado de gente: moradores, turistas, famílias, casais de namorados, os esportistas de final de semana, os vendedores ambulantes, o carroceiro de pipoca, o fotógrafo lambe-lambe (o último da cidade, ele adverte), a estátua viva, o crescente número de ciclistas e, em ano de eleição, os cabos eleitorais. A eles somam-se os artistas de rua que com sua música, teatro e mímica dão vida e ritmo ao lugar. A quantidade de pessoas que circula por ali só diminui no início da tarde, quando os restaurantes e bares da região absorvem o fluxo do Brique. “Entre 13h e 14h o movimento fica mais calmo, está todo mundo almoçado e é melhor para conversarmos”, recomenda Lúcia. É a hora ideal para quem quer conhecer um pouco mais sobre o mercado de antiguidades e a rotina dos expositores. “O ramo tem ciclos. Teve um tempo em que todo mundo queria coisas modernas para a casa, muito vidro, muito metal, então as vendas ficaram meio estagnadas, mas agora estamos em uma época boa”, comemora. Além de paciência para encarar os períodos em que o ‘antigo’ não está na moda, os anos de experiência no Brique também ensinaram a expositora a lidar com a imprevisibilidade. “Tenho clientes fiéis, é claro, mas quem trabalha com antiguidades sabe que tem muito de a pessoa estar passando, olhar a peça e dar aquele ‘tchan’ de ter que comprar. Por outro lado, alguns objetos levam anos para vender. Tem peças que já estão comigo há uns sete anos. Mas uma hora vende”, 88 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

completa otimista. Se a venda dos objetos é algo puramente subjetivo, o mesmo é observado no que diz respeito à seleção das peças expostas na banca. “Não tem uma lógica, não tem uma técnica. Compro muito de pessoas que passam aqui pela banca oferecendo. Sigo o meu gosto pessoal. Mas também não misturo: o que é para negócio é para negócio. Até posso comprar algo que goste muito e deixar um tempo em casa, mas depois já trago para venda”, explica. Além do Brique da Redenção, Lúcia e Walter participam da Feira de Antiguidades do Mercado Público, no centro de Porto Alegre. O evento conta com 14 expositores e ocorre uma semana por mês, de abril a dezembro. “Não é que um lugar seja melhor que o outro. É diferente. No Mercado vemos mais turistas. Claro que no Brique também recebemos pessoas de outros lugares, mas acaba mesclando mais com quem mora na cidade e gosta de passear na Redenção no domingo”. Afinal, todo mundo que mora em Porto Alegre acaba passando um final de semana ou outro por ali.

Valorização da história

Com 36 anos completados em 2014, a feira de artesanato e antiguidades do Bom Fim vem passando por melhorias e alterações em seu funcionamento desde a sua criação. Entre as mais significativas está a lei municipal que, em 1990, decretou o fechamento da avenida José Bonifácio para trânsito de veículos aos domingos, tornando-a rua de lazer. Já em 2005, o local foi declarado integrante do patrimônio

cultural do Rio Grande do Sul. Em 2011, foi a vez de dar início ao Projeto de Revitalização firmado ente a Associação de Artesãos do Brique e a Prefeitura de Porto Alegre. O Plano de Revitalização trouxe a modificação que incidiu diretamente no setor de antiquários e que talvez tenha sido a maior delas nos últimos anos: a alteração da posição das bancas. Antes colocadas de costas para o Parque da Redenção - ao contrário da área destinada ao artesanato -, as tendas passaram a ser dispostas de frente. Além de proporcionar maior interação com o público, a ideia padronizou o posicionamento e promoveu a integração com o parque. Com a inversão, a avenida José Bonifácio teve o trânsito liberado no sentido João Pessoa-Osvaldo Aranha, com parte das vagas de estacionamento reservada aos expositores a fim de evitar o transtorno e o bloqueio do trânsito nos horários de carga e descarga. Ainda dentro das ações realizadas em 2011, a preocupação com a questão ambiental ganhou espaço com a proposta de plantio de cerca de 20 mudas de árvores nativas em frente à feira de antiguidades. Ao que tudo indica, as futuras gerações de frequentadores do local terão sombra à vontade para apreciar a área dos antiquários e as histórias da atenciosa uruguaia da banca 42. Questionada sobre o que poderia mudar ou melhorar no Brique da Redenção, Lúcia não pensa duas vezes antes de responder: “Não mudaria nada, é um lugar maravilhoso.” A verdade é que o Brique pode até parecer sempre igual. Mas sempre haverá algo de novo - ou de antigo - capaz de surpreender seus visitantes.


KAROLINE CARDOSO

KAROLINE CARDOSO KAROLINE CARDOSO

impressões de

repórter

O tema proposto para esta edição da Primeira Impressão, um hermético 42, me pareceu a princípio pouco promissor. Pensando em possibilidades de pautas, fiquei tranquila ao lembrar que um dos locais mais tradicionais de Porto Alegre, o Brique da Redenção, poderia render uma boa matéria. Logo comecei a imaginar que histórias guardariam a Banca 42 da feira dominical e quem seriam os entrevistados. A aproximação foi facilitada pelo fato de eu ser vizinha do Brique, porém os domingos que se seguiram foram de apreensão. Uma vez que a feira de antiguidades acontece ao ar livre, o mau tempo poderia impedir a concretização da reportagem. Em contato com a Lúcia, proprietária da banca, percebi se tratar de uma pessoa muito simpática e acessível, porém de poucas palavras. Desta forma, além do depoimento da entrevistada, a pauta exigiu um grande trabalho de observação da movimentação no Brique e da relação da Lúcia com os potenciais clientes, o que me levou a um resultado que me deixou bastante satisfeita.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 89


cultura gaúcha

Amigos da tradição A

o chegar no Acampamento Farroupilha de Esteio, a música gaúcha rola solta. É difícil encontrar alguém que não vista bombacha ou vestido de prenda. No local, diariamente se reúnem mais de quinhentas pessoas. O Acampamento Farroupilha é o maior evento alusivo à cultura tradicionalista gaúcha, para comemorar a Revolução Farroupilha. A maioria das cidades do Estado realiza seu próprio acampamento, e cada município decide o tempo de duração do evento. Em Porto Alegre, o evento costuma durar duas semanas. Já em Esteio são sete dias de festividade. Durante dia e noite, 24 horas por dia, os amantes da tradição gaúcha ficam acampados relembrando o passado. Esteio é uma cidade localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e possui cerca de 80 mil habitantes. O Acampamento Farroupilha de Esteio sempre foi localizado no Parque Assis Brasil, mesmo local onde é realizada a Expointer. Durante os últimos anos, com o crescimento do evento, ele recebeu diversas transformações. As barracas de lona instaladas provisoriamente foram transformadas em grandes piquetes de madeira. Um piquete é um espaço montado e organizado por amigos, famílias, grupos tradicionalistas e até empresas com o objetivo de promover festas, almoços, jantas, entre outras atividades tradicionalistas. Os Centros de Tradições Gaúcha (CTG’s) ganharam espaço personalizado e o palco ganhou uma área exclusiva com diversas barracas de comidas tradicionais. Neste ano, o acampamento teve 96 piquetes inscritos e cinco CTG’s. Porto Alegre, que tem o maior acampamento do Estado, costuma receber cerca de 400 piquetes durante sua comemoração. A Secretaria de Arte e Cultura é a responsável pela programação e organização do Acampamento na cidade. Com a evolução do Acampamento, foi criada uma associação dos piquetes de Esteio. “Temos um cronograma de atividade para todos os dias, o Acampamento Farroupilha virou um dos eventos mais esperados pela cidade”, conta a Secretária de Arte e Cultura de Esteio, Angela Ruas Machado Gomes.

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O 42ยบ piquete inscrito no Acampamento Farroupilha de Esteio hรก 10 anos une amizades com o amor pelo Estado Por Regina Milbradt Fotos de Joana Dias

n Como o

Acampamento Farroupilha de Esteio cresceu, as barracas de lona foram transformadas em grandes piquetes de madeira

Primeira Impressรฃo n Dezembro de 2014 n 91


cultura gaúcha Cultivando a cultura gaúcha

O 42º piquete inscrito em Esteio é, como os outros, cercado por madeira e com uma porta de entrada que lembra as porteiras das fazendas do interior do Estado. Junto à entrada, uma placa sinaliza que ali estão os Amigos da Tradição. Do lado de fora, duas mesas grandes feitas de madeira, onde amigos e familiares se reúnem para relembrar o passado. Janaína da Silva dos Reis, uma das organizadoras do piquete, estava sentada em um dos bancos de madeira antiga tomando chimarrão quando chegamos. Ela chegou cedo, porque avisaram que o piquete receberia visitas. Normalmente, ela sai do trabalho e vai passando na casa dos companheiros que não possuem carro para dar carona até o evento. A vendedora chega no local por volta das 20h e conta animada que não sai de lá antes das 2h da manhã. Os integrantes do piquete se revezam para ter alguém no local todas as horas do dia. Aqueles que trabalham durante o dia, vão só no período da noite, como no caso de Janaína. O grupo possui cerca de 25 participantes, entre amigos e familiares, mas

92 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

nem sempre foi assim. O primeiro nome do piquete, criado há mais de dez anos, foi Rancho das Gurias. “Eu tenho guardada a placa que a gente usava ainda naquela época, quando o grupo era só da família”, conta Janaína. Adriana dos Reis da Silveira e João da Silveira vinham para o acampamento quando a estrutura era diferente. Naquela época as barracas de lona eram montadas atrás do palco onde ocorriam os bailes. João, como todo apaixonado pela tradição gaúcha, assim que soube do acampamento, quis participar com a esposa Adriana e as três filhas do casal, Fernanda, Ana Paula e Luiza. Janaína começou a ir no Acampamento influenciada por Adriana, que era sua cunhada na época, e acabou se apaixonando pelo modo de cultivar a tradição. “Até então eu não sabia nada. Sabia que existia a Semana Farroupilha, sabia das tradições, mas nunca tinha me envolvido. Fui me apaixonando por isso aqui”, conta ela, emocionada. O primeiro piquete, Rancho das Gurias, ficou apenas quatro anos com os integrantes da família, quando o acampamento ainda nem era organizado pela Secretaria de Arte e Cultura. Com o crescimento,

tanto do grupo quanto do Acampamento, os organizadores viram que era hora de mudar. “O piquete foi crescendo, então resolvemos fechar um grupo que não fosse só de família, que pudesse incluir todos os amigos. Foi assim que surgiu o nome Amigos da Tradição”, explica Janaína. Seus três filhos, Luana, 20 anos, Vitor, 18, e Júlia, 15, foram criados dentro do Acampamento Farroupilha. Na época das barracas, o grupo sempre montava duas, uma onde improvisavam a cozinha e guardavam os mantimentos e a outra apenas para os vestidos de prenda, que ficavam pendurados em cabides. Janaína aponta, com brilho nos olhos, para a bombacha que está vestindo. “Antigamente mulher não podia usar bombacha, então imagina a quantidade de mulher aqui de vestido. A gente precisava de uma barraca só para as roupas”, conta ela. As meninas tomavam banho no acampamento e se arrumavam nas barracas para o baile. Em dia que não tinha baile, a festa não parava. O grupo se reunia e jogava cartas. “Antes, não era toda noite que tinha baile, hoje tem show todo dia, mas naquela época a gente sempre arrumava o que fazer”, diz ela animada. Outra das mais emocionantes memó-


n O antigo Rancho das

Gurias, formado apenas por familiares, transformou-se em Amigos da Tradição, incluindo novos participantes

rias que guarda do evento são as noites mal dormidas em camas improvisadas nas barracas, ou, depois nos quartinhos de madeira. “A Júlia dizia: ‘mãe, amanhã não tenho aula, hoje podemos dormir no piquete?’”, relembra Janaína. No ano passado, Janaína ainda arriscava dormir no local algumas noites, levantava pela manhã e ia direto para o trabalho, mas o cheiro da fumaça de churrasco permanecia no corpo. “Ontem mesmo eu vim almoçar no piquete e fui direto no banco pagar umas contas, o pessoal me olhava estranho pelo cheiro da fumaça”, conta Janaína.

Dedicação o ano todo

O grupo de amigos não se reúne somente nos sete dias de Acampamento. “No mínimo uma vez por mês realizamos jantares para discutir os detalhes do piquete. Além disso, recolhemos mensalidades. Nos envolvemos durante todo o ano, é uma

preparação que nunca acaba”, explica. A organização, que dura os 12 meses do ano, tem um objetivo: que tudo esteja preparado para que, durante a Semana Farroupilha, eles possam aproveitar todas as atrações da festividade. Além dos amigos que vem junto ao piquete, muitas amizades são construídas ali no meio das festividades. Os grupos costumam interagir entre si, seja nos churrascos ou nas rodas de chimarrão. “A gente vai conhecendo todos os piquetes. Alguns só encontramos no Acampamento, mas tem outros que a gente combina e se vê durante o ano também”, conta Janaína. Essa amizade também é vista na hora das receitas, que costumam ser compartilhadas entre os piquetes, e assim são distribuídos bolos, pães e todas as iguarias produzidas ali mesmo em fogões à lenha, fornos de barro e churrasqueiras improvisadas. No local, não é difícil imaginar outra época ao olhar para os lados. A chaleira no fogão à lenha, o “balde” para carregar leite de vaca, as cadeiras com pele de ovelha, tudo lembra o passado. E esse é exatamente o objetivo do Acampamento. “Nós queremos manter a tradição viva, resgatar nossa cultura, fazer com que os mais novos também possam vivenciar algo que parece tão longe”, diz Janaína.

impressões de

repórter

Mesmo tendo nascido no Rio Grande do Sul, eu nunca havia ido em nenhum Acampamento Farroupilha como repórter. Nunca tinha parado para visitar o evento, nem para conhecer a história que os participantes têm tanto orgulho de contar. Ao conviver durante dois dias com as tradições expostas no evento, pude perceber porque os tradicionalistas gostam tanto de demonstrar seu amor pelo Rio Grande. É muito mais do que apenas ficar uma semana acampado, indo dia e noite para o local. Ali, é possível perceber grupos de famílias e de amigos. Todos, mesmo os que não se conhecem, acabam gerando um vínculo. A tradição aproxima aquelas pessoas de alguma forma. Durante minhas duas visitas, aprendi muito mais sobre as pessoas do que sobre as tradições. Mesmo não sendo muito ligada ao tradicionalismo, consegui perceber, e mais do que isso, sentir na sua alma por que aquelas pessoas estão ali. É impossível ouvir as músicas, as conversas e a história das pessoas sem se sentir feliz por ter nascido nesse Estado.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 93


gastronomia

Aromas e sabores no bairro Bom Fim Sob o número 42, está localizado o restaurante Prato Verde, uma referência na área em que atua, com pratos coloridos e saudáveis Por Renata Rocha dos Santos Fotos de Jéssica Padilha 94 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


P

ara contar a história do tradicional restaurante vegetariano localizado no número 42 da Rua Santa Terezinha, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, é preciso conhecer a história dos irmãos da família Flores, os grandes idealizadores de um projeto. Quem nos conduz durante essa viagem ao passado é Tiago Costa Flores, gerente e filho de Tiago Flores, um dos fundadores do Prato Verde. Quando chegamos ao local da entrevista para esta reportagem, minha atenção se voltou ao delicioso aroma de comida caseira que exalava pelo ambiente agradável e moderno, um verdadeiro convite para descobrirmos o

que de tão especial existe por trás do número 42 da Rua Santa Terezinha. Ao entrarmos no restaurante vegetariano, foi possível perceber um clima aconchegante e muito familiar. Fomos ao encontro de nosso entrevistado, que mesmo tímido nos convidou para conhecer o estabelecimento. Ficou visivelmente claro que Tiago, aos 32 anos, recorda com satisfação e orgulho a trajetória do restaurante Prato Verde, idealizado pelo seu pai e por seus tios. O restaurante foi inaugurado em maio de 1991, quando o tio de Tiago, Tarcísio Flores, já falecido, e seu pai, Tiago Flores, decidiram investir em um projeto próprio. O pai de Tiago, que era bancário e acabara de entrar para a

faculdade de música, desistiu de trabalhar no banco e decidiu alugar o salão da Igreja Santa Terezinha, no Bairro Bom Fim, para dar início ao restaurante Prato Verde. O irmão o acompanhou. O local era pequeno. O salão da Igreja Santa Terezinha tinha capacidade para 80 pessoas. A partir do segundo ano, foi preciso realizar uma reforma para ampliar o local, comportando assim o dobro de pessoas. Mesmo antes da inauguração do Prato Verde, a família Flores cultivava o hábito de se alimentar de forma mais saudável, e um dos irmãos e sócio, era vegetariano. Além disso, Tiago conta que a ideia de abrir um restaurante neste ramo se deu pela vontade Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 95


n Filho de um dos

idealizadores do restaurante, Tiago é atualmente um dos gerentes do estabelecimento e o responsável pela elaboração dos pratos servidos

mais comida para servir. Tiveram que correr e improvisar, comprar mais alimentos, mas foi um aprendizado. Na verdade aprendemos todos os dias.”

A chegada dos demais integrantes da família Flores

da família de entender do assunto e assim ajudar outras pessoas a cultivar hábitos saudáveis. “Eu era criança quando o Prato Verde começou a funcionar, mas eu lembro que minha família, meu pai e meu tio tinham uma visão, uma noção de conservação do meio ambiente, de ter um negócio que fosse bom também para a sociedade em geral, não só uma forma de ganhar dinheiro, mas que trouxesse benefícios para a saúde, para o meio ambiente”, conta Tiago. Nos primeiros meses de funcionamento 96 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

do restaurante, a tia de Tiago, Helena Flores, que é nutricionista, adaptou o cardápio e selecionou os funcionários. No dia da inauguração, o sucesso foi tanto que chegou a faltar comida para os clientes. Conforme Tiago, isso se deu devido à inexperiência com os negócios. “Quando a gente começou, não se tinha uma noção de quantidade, porque nós nunca tínhamos trabalhado com um restaurante. Nós fomos convidando muitas pessoas, amigos e conhecidos. Quando meu pai e meu tio se deram conta, não tinham

A família Flores era composta de 12 irmãos. Destes, sete tiveram participação para o desenvolvimento do restaurante Prato Verde. Atualmente quatro irmãos mantém a sociedade, entre eles, o pai de Tiago, o conhecido maestro Tiago Flores, que viajou para a Rússia em 1992 e especializou-se em regência orquestral em São Petesburgo. Atualmente é regente da Orquestra de Câmara da Ulbra. Foi no período da viagem de Tiago, que outros dois irmãos da família Flores, Luiz Roberto e Atos Flores, passaram a fazer parte do restaurante como sócios. Já em 1993, Tarcísio deixou o negócio, e Luiz Roberto e Atos se tornaram sócios. Três anos mais tarde, Tiago retornou da Rússia, mas acabou se desligando das atividades do restaurante para se dedicar à música, mantendo-se apenas como sócio. Mais dois irmãos chegariam para se unir aos demais. Telmo, que permaneceu até 2006, e João Claudio, que ainda administra como gerente aos finais de semana. Antes de entrar na sociedade e começar a trabalhar no Prato Verde, os irmãos Atos e Luiz Roberto tinham profissões nada parecidas com as que seguem hoje, mas já trabalhavam em parceria. Eram sócios em uma empresa de programação visual, onde desenvolviam trabalho de serigrafia, letreiros e fachadas. Mas o mais legal em toda essa trajetória é que a administração do local já está em sua segunda geração. Nosso entrevistado, Tiago Costa Flores, assumiu a gerência


do estabelecimento em 2005, quando passou a trabalhar junto com os tios no restaurante. Formado em publicidade e com MBA em Marketing, o filho mais velho de Tiago Flores cuida do cardápio em função da sua paixão por gastronomia. “Atualmente quem busca as receitas sou eu mesmo, faço a parte gastronômica, monto os pratos e estudo o cardápio. Temos claro uma nutricionista que cuida das boas práticas, faz o trabalho de procedimentos da higiene, por exemplo, mas o cardápio e as inovações são comigo mesmo”.

A relação com os clientes

Com 23 anos de existência, o restaurante Prato Verde conta atualmente com 24 funcionários, entre auxiliares de salão, recepcionistas, caixa operador, cozinheiros, auxiliares de compras e de limpeza. O Prato Verde recebe diariamente cerca de 280 clientes. Muitos almoçam todos os dias no local. Tiago conta que chama a maioria dos clientes pelo nome e conhece suas histórias de vida, os filhos e até os netos. Alguns frequentam o local há mais de 10 anos e, junto ao restaurante, possuem histórias muito bonitas. Um casal, por exemplo, se conheceu em um almoço no Prato Verde. Casaram e tiveram filhos. “A gente vive histórias legais todos os dias, desde o momento que eu abro o restaurante. Temos um público que todo o dia está aqui. Todos os dias a gente tem uma história diferente, todo

dia aparece uma cliente que está grávida e que a gente conhece há algum tempo, ou a que nós vimos grávida e já está com o bebezinho. A vida não para, temos clientes que trazem os netos. Temos histórias de quem morreu, nasceu, é o ciclo da vida”. Engana-se quem pensa que ir a um restaurante vegetariano é o mesmo que passar fome. Tiago desfaz o mito. “As pessoas não comem somente alface e tomate num restaurante vegetariano, não é assim. A gente oferece aqui lasanhas, pizzas, pastéis, panquecas. São 250 pratos que rodam por mês no cardápio. A única coisa que não tem é a carne. Temos massas de variados molhos, arroz, feijão, é muita opção, acredito que mais que um restaurante normal.” Na quinta-feira, o restaurante Prato Verde oferece a quinta vegana, quando não é servido nenhum alimento de origem animal. É um dia mais restrito, para alcançar um público com uma filosofia mais radical de alimentação. A trajetória do restaurante Prato Verde é muito mais que apenas a de um estabelecimento que deu certo. É a união familiar em busca de um objetivo, que surgiu de um projeto idealizado pelos irmãos Flores. Da mistura da pitadinha de amor e dedicação pelo que se faz, com doses de respeito pelo trabalho, o cardápio foi de sucesso. E dentre tantas outras histórias que envolvem o número 42, o restaurante Prato Verde não poderia ser deixada de lado.

impressões de

repórter

Conheci o restaurante Prato Verde entre as minhas andanças pelo Bairro Bom Fim em Porto Alegre. Moro próximo à Redenção, e frequentar o parque já virou um passeio mais que necessário. Quando o tema 42 foi definido pela turma, saí em busca de uma pauta que pudesse ser legal e ao mesmo tempo diferente para ser trabalhada. Foi então que encontramos o restaurante Prato Verde. Imaginei escrever simplesmente algo que fosse comum para um restaurante, como o cardápio, os funcionários, algo relacionado à saúde e hábitos alimentares. Mas, ao contrário, me deparei com uma história familiar muito bonita, que começou com uma geração e já conta com a segunda na administração do local. A relação de amizade e respeito com os clientes e com todos que fazem parte desse trabalho diário é algo que não poderia deixar de ser registrado. Visitar o local me fez entender que simples ideias podem mudar a vida de muitas pessoas, e até uni-las ainda mais.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 97


determinação

98 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014


Prazer em ensinar Por trás de um simples armário, há uma grande história. A professora Priscila é exemplo de que esforço traz recompensa Por Natália Mingotti Fotos de Maria Roseli

V

isualmente, é só mais um armário em meio a tantos outros, só mais um pedaço de ferro cinza, fixo na parede. É provável que muitas pessoas passem por ele e nem percebam. É possível que alguém se questione: afinal, o que estaria guardado dentro de um armário? No armário número 42 na Área da Saúde da Unisinos, há muitos papéis, uma pasta, alguns cadernos, um pote com vidros pequenos com óleo de imersão, algumas lâminas e uma caixa de chá. Os objetos descobertos têm muito a dizer sobre a trajetória profissional de sua dona: a professora Priscila Schmidt Lora. Priscila, 31 anos, é farmacêutica formada pela PUC-RS, especialista em Análises Clínicas pela UFRGS, com mestrado e doutorado em Ciências Médicas pela mesma instituição. Na Unisinos, é professora dos cursos de Biomedicina, Farmácia, Nutrição e Enfermagem. Seu avô materno foi farmacêutico. Ela diz que esse fato não influenciou na sua decisão. O avô foi um grande apoiador, porém sempre se manteve neutro. O estudo foi algo essencial na família. Mesmo com as dificuldades da época, seu avô criou 12 filhos e todos concluíram uma graduação. Seus pais, graduados em administração, nunca interferiram na escolha do curso, mas sempre incentivaram e apoiaram ela e a irmã a conquistar uma formação acadêmica. Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 99


determinação Um dos poucos registros que Priscila guarda da infância, é que seu brinquedo preferido era um “kit de química”, que trazia várias opções de experiências para serem testadas e exploradas. Naquela época, apesar das coincidências, tudo não passava de diversão. No final do Ensino Médio do Colégio São João, os testes vocacionais ajudavam os estudantes a identificar suas preferências. Três opções em evidência: química, biologia e história. Apenas uma certeza, a de escolher o que realmente gostava de fazer, o que fosse satisfazer sua vida profissional. Antes de prestar vestibular, analisou e considerou cada curso e suas especificidades. A decisão foi farmácia bioquímica. Assim que iniciou o curso na universidade, a acadêmica procurou por estágios na área que pudessem agregar conhecimento aos conteúdos que eram ensinados. As experiências iniciais vieram no Hospital São Lucas, da PUC, depois na Policlínica Central e no Centro de Informação Toxicológica (CIT/ RS). Para Priscila, esses lugares foram de extrema importância para que ela desenvolvesse as práticas ensinadas e pudesse ir norteando seus caminhos para definir a área de atuação. Sem deixar de lado os estudos devido à correria do dia a dia, Priscila foi definindo sua preferência: análises clínicas. Com a conclusão do curso cada vez mais próxima e com o empenho em estar preparada para buscar oportunidades, a universitária começou atividades de monitoria na faculdade. Foi então, em meio à crise de incertezas que cerca todo estudante, que ela se deparou com a linha tênue entre formação e o mercado de trabalho. Percebeu 100 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

que tinha encontrado o que realmente gostava de fazer, o complemento de suas escolhas: dar aulas. Em 2005, graduada em farmácia, decidiu investir na formação docente e encarar a mudança significativa do ensino privado para o ensino público. Após a especialização, veio uma etapa importante para a conquista do seu novo objetivo: o mestrado. Em 2009, após concluir o mestrado, veio a chance de fazer o doutorado e, com ele, as experiências no exterior. A realidade do país estrangeiro era bastante confortável se comparada com a do estudante de pós-graduação no Brasil, pois ofereceria pesquisas avançadas e possibilidades de aperfeiçoamento. Mas a vida, assim como

a química, é cheia de elementos que possibilitam novas experiências e novas descobertas. Priscila acabou conhecendo, no Brasil, o seu futuro marido, e, assim como na vida profissional, ela fez novamente uma escolha e ficou do lado de quem ama. O esforço e dedicação ao doutorado seguiam em frente. Para Priscila, mais importante que estudar e correr atrás de qualificação para o mercado de trabalho é estar preparado para entrar pela porta que abre. “Durante a jornada da vida, vamos batendo em muitas portas. Na grande maioria não vamos achar nada, mas alguma irá se abrir, e é nesse momento que todo esforço é recompensado”, ensina. Em 2011, a vida em mais uma reação de seus elementos lhe surpreendeu novamente e veio a oportunidade de lecionar na Unisinos. Priscila sempre compartilhou com amigos, conhecidos e pessoas do meio acadêmico, seu desejo por dar aulas. Ela sabia que algum contato sempre poderia surgir. Quando uma amiga, professora da Unisinos, quebrou o braço às vésperas do início do semestre, surgiu a chance que estava faltando. Priscila foi a substituta escolhida. Ela cumpriu a carga horária da professora afastada e, quando concluiu as atividades, descobriu que teria suas próprias disciplinas. Priscila Lora era a mais nova professora de Hematologia, Citopatologia e Imunologia da universidade.

n No armário de

Priscila, há provas, trabalhos, lâminas, óleo para imersão e uma caixa de chá


O grande lema da professora é a valorização do estudo com qualidade. Com os alunos, o lema é colocado em prática. Os conteúdos são expostos com “situações problema”. A ideia é levar para a sala de aula as realidades do mercado de trabalho, fazendo com que os alunos possam ter um entendimento melhor das atividades que irão desempenhar.

Ser aluno da Priscila é

No curso de Biomedicina, Priscila é responsável por quatro disciplinas: Hematologia geral, Hematologia Clínica, Hemoterapia e Banco de Sangue e Citopatologia Clínica. Cássia Linassi, 20 anos, cursou todas com ela. Para a estudante, a proximidade com a professora trouxe mudanças significativas para sua vida, que vão além do conteúdo ensinado na sala de aula. Hoje, ela é monitora de Priscila. “Acredito que uma das maiores virtudes da Priscila é a humildade. Apesar de ser muito competente, ela sabe lidar muito bem com a turma e trata todos com respeito. Sem dúvidas, Priscila, para mim, é um exemplo a ser seguido”, diz Cássia.

n Priscila teve muitas

dúvidas ao longo do caminho, mas uma certeza sempre prevaleceu: para ser feliz na vida, é preciso fazer o que a gente ama

impressões de

repórter

Quando a proposta de contarmos uma história envolvendo o número 42 foi aceita pela turma, sabíamos que encontraríamos algo inesperado e, por que não? surpreendente. Minha experiência não foi fácil. Várias tentativas frustradas, por um motivo ou outro. Em minhas buscas, por sorte, encontrei um armário com o número 42 e, então, me deparei com a professora Priscila Lora. Conhecê-la foi uma experiência muito gratificante. Apesar da pouca idade, Priscila tem muita bagagem e histórias valiosas sobre sua trajetória de sucesso. As vivências da professora foram ao encontro da realidade da aluna que também já se deparou com muitas incertezas durante o caminho. Realmente, é preciso se capacitar para as oportunidades, e Priscila é prova disso. A professora não ensina só bioquímica e outras especialidades. Ela ensina sobre a vida. Como aluna-repórter, ouvir o caminho que ela trilhou até conquistar seu objetivo é mais que um incentivo e uma bela lição, é um verdadeiro aprendizado.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 101


trabalho

Vidas em um mesmo lugar O Centro Profissional da 16 de julho tem todo tipo de negĂłcio Por Dyeison Martins Fotos de Gabriel Pureza e Luiza Veber

102 n Primeira ImpressĂŁo n Dezembro de 2014


LUIZA VEBER

n O porteiro João

acompanha o dia a dia de quem trabalha no edifício

Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 103


trabalho

E

ra uma sexta-feira quando fomos conhecer o Centro Profissional, localizado no número 42 da rua 16 de julho, no bairro São João, em Porto Alegre. Por não sermos muito familiarizados com essa região da capital gaúcha, tanto eu quanto os fotógrafos não fazíamos ideia do que encontraríamos e como seria o lugar que só conhecíamos de mapa. A 16 de julho é uma pequena rua arborizada entre a Benjamin e a rua Zamenhof e conta com apenas uma quadra. As construções são, em sua maioria, casas e prédios pequenos. Todas elas atrás de grandes muros e grades, uma consequência da violência urbana. Desde que notamos a placa da rua, já conseguimos identificar o Centro Profissional. Sua frente de mármore negro e seus vidros escuros espelhados são visíveis bem antes de se chegar na 16 de julho propriamente dita. Chegando mais perto, podemos ver uma grade preta e um jardim relativamente espaçoso. O prédio se impõe na região. Lá, fomos recebidos pelo porteiro João da Silva, que nos contou como funcionava o prédio e nos apresentou para alguns de seus principais habitantes. O porteiro, que já está há sete anos no local, trabalha 12 horas e folga 24. Conhece praticamente todos no prédio e os cumprimenta pelo nome, quando tem a oportunidade. Falando sobre a violência, disse que ela está em todos os lugares, mas que desde que está trabalhando ali no prédio, nunca aconteceu nada dentro dele. Infelizmente, nas imediações sim, o que explica a grande quantidade de grades na rua. Não existem moradores, apenas escritórios de empresas funcionam no prédio. São 37 salas empresariais, algumas tentando ainda se firmar, outras gozando a relativa tranquilidade de já estarem consolidadas no mercado.

há 12 anos, sendo que já era uma agência conceituada há 27 anos, por oferecer opções de viagens para o mundo todo. Enquanto Cíntia cuida das viagens e pacotes, sua irmã é responsável pela comunicação da empresa. Outro que nos recebeu foi Alessandro Palma. Ele contou que divide a sala com sua esposa, Patricia. Ambos mantém duas empresas diferentes, a ACP Sistemas e a AD+D, respectivamente de Alessandro e Patricia. Enquanto a AD+D é uma empresa recente - surgida da necessidade de Patricia de conciliar os trabalhos que adquiria como recém formada de arquitetura –, a ACP Sistemas já é uma empresa com mais de 25 anos de mercado, que trabalha com análise e desenvolvimento de sistemas, gestão de TI e marketing digital. “A empresa está no prédio há dez anos. Quando fizemos uma reforma no quadro de funcionários, reduzindo para os quatro atuais, surgiu uma vaga. Resolvi convidar a

Patricia para dividirmos a sala”, conta Alessandro. O resultado foi a união de duas empresas em uma sala muito bem decorada, um dos benefícios de se trabalhar com uma arquiteta. Outro casal que trabalha junto em uma mesma sala é formado pelos dentistas Luis Alberto e Rosa Maria Matozo. Eles são casados e trabalham juntos há quase 40 anos. A empresa é tão familiar que também contam com o auxílio de uma sobrinha, que estuda odontologia. Enquanto alguns se estabeleceram em suas salas e não pretendem se mudar, outros buscam novos espaços. Esse é o caso da Prática Construções e Incorporações. Mas a mudança, no caso, é só de andar. Eles estão saindo do quarto pavimento do prédio para o segundo. Por isso, a sala estava cheia de caixas e os proprietários da empresa estavam com um pouco de receio de serem fotografados naquela bagunça. Mesmo assim, nos contaram que estão há mais

GABRIEL PUREZA

Diferentes trajetórias

A primeira empresa que nos recebeu foi MC Turismo. Cintia Cristina Martins compartilhou a história de sua agência de turismo, na qual trabalha com sua irmã. Ela comprou a empresa 104 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

n A dentista

Rosa Maria divide o consultório com o marido


GABRIEL PUREZA

de 20 anos no mercado e trabalham com construções nos setores comercial, industrial e residencial. Também oferecem inovações no seu ramo, como a chamada “construção a seco”, ecológica, mais rápida e segura, garante o engenheiro Emerson Madrung. Outra empresa instalada no Centro Comercial é a AudioBox, de produção musical. Ela já tem 16 anos de existência, mesmo tempo que está no prédio. Foi fundada por Cida Oliveira e pelo guitarrista Giba Nun e trabalha com gravação de jingles, músicas, audiovisuais, entre outros trabalhos na mesma área. Já a Qualita Informática está há quase 25 anos no mercado criando sistemas e tecnologia de informação. E a Base Digital é ligada à tecnologia de informação, só que, nesse caso, com serviços de comunicação digital. Essas são só algumas das empresas e pessoas que passam seus dias no Edifício Centro Profissional 16 de julho. Cada uma delas têm sua história e suas conquistas. Muitos que ali trabalham mal se conhecem. O porteiro João, no entanto, recebe a todos com simpatia e conhece um pouco de cada uma das trajetórias dos que dividem este mesmo prédio.

impressões de

repórter

Uma das minhas principais motivações para fazer o curso de Jornalismo foi poder contar histórias. E ouvir histórias também. O grande barato desta matéria foi justamente o fato de que ela é, essencialmente, formada por histórias de pessoas diferentes, com vidas diferentes, cuja única conexão é o local onde trabalham. Nem sempre interessadas, muitas vezes um pouco arredias no começo, as pessoas foram aos poucos conversando. Começar a reportagem fazendo o trabalho jornalístico primordial de bater nas portas e procurar pessoas completamente desconhecidas para conversar (algo que todos aqueles que já o

tentaram sabem não ser fácil) foi um desafio. Muitas vezes estamos tão acostumados aos atalhos do assessor, do pronunciamento oficial, que ter que bater nas portas chega a ser estranho. No dia em que fomos fazer as fotos e começar a matéria, foi bastante difícil convencer algumas pessoas a subir às salas e tirar fotos de seu ambiente de trabalho. Era sexta-feira, no final da tarde, e todos já pensavam em seu final de semana. Outras, porém, foram extremamente simpáticas e receptivas, falando tudo quase sem a necessidade de perguntas. Ouvir o que as pessoas tinham para contar foi, sem dúvida, a melhor parte dessa matéria.” Primeira Impressão n Dezembro de 2014 n 105


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE BACHARELADOS: Vinicius Souza COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs

pi primeira impressão

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Orientação

Thaís Furtado (thaisf@unisinos.br) - Redação Flávio Dutra (flavdutra@unisinos.br) - Fotografia

Reportagem

Disciplina de Redação Experimental em Revista Ana Elisa Oliveira, Ângelo Daudt, Camila Mayuri, Daniele Brito, Dyeison Martins, Fernanda Reus Silveira, Gabriela Barbon, Gabriela Giralt, Giovana Peinado, Gisele Agliardi, Guilherme Maciel, Joane Garcia dos Santos, Julian Kober, Juliana Franzon, Júnior Melo da Luz, Marina Cardozo, Maurício Wolf, Maytê Ramos Pires, Natália Mingotti, Paola Rocha, Raisa Torterola, Regina Milbradt e Renata Rocha dos Santos MONITORA: Marina Cardozo

Fotografia

Disciplina de Projeto Experimental em Fotografia Altair Figueira, Bianca Hennemann, Bibiane Engroff, Camila Hugenthobler, Cassia Oliveira, Cássio de Almeida Pereira, Cecília Menta, Cristiano Vargas, Diego da Costa, Felipe Gaedke, Francisca Gabriela, Gabriel Pureza, Gabriela Passos, Greyce Malta, Gustavo Ev, Izadora Meyer, Jéssica Padilha, Jéssica Pedroso, Joana Dias, Julian Souza, Karina Sgarbi, Karoline Cardoso, Laís de Oliveira, Luana Chinazzo, Luisa Venter, Luiza Veber, Maria Roseli, Mariana Rosa, Matheus D’Avila, Natália Dalla Nora, Nathalie Córdova e Silvia Dalmas. FOTO DE CAPA: Bianca Hennemann

ARTE E PUBLICIDADE

Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) COORDENADORA-GERAL: Thaís Furtado

Editoração

ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Thaís Furtado SUPERVISÃO TÉCNICA E PROJETO GRÁFICO: Marcelo Garcia DIAGRAMAÇÃO: Gabriele Menezes e Marcelo Garcia

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ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Letícia da Rosa SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme PÁGINA 2 - ATENDIMENTO: Jandaia Zanette; DIREÇÃO DE ARTE E ARTE-FINALIZAÇÃO: Áldren Avila; REDAÇÃO: Guilherme Stacke PÁGINA 107 - ATENDIMENTO: Jandaia Zanette; DIREÇÃO DE ARTE E ARTE-FINALIZAÇÃO: Leonardo Patikowski; REDAÇÃO: Guilherme Stacke CONTRA-CAPA - ATENDIMENTO: Jandaia Zanette; DIREÇÃO DE ARTE E ARTE-FINALIZAÇÃO: Sara Cerutti; REDAÇÃO: Guilherme Stacke

Pedido de esclarecimento O filho do empresário Caburé, José Luiz Mota da Silva, entrou em contato com a redação da Primeira Impressão para solicitar a publicação de uma nota de esclarecimento em relação à reportagem Se essa 106 n Primeira Impressão n Dezembro de 2014

rua, se essa rua fosse minha, publicada na edição 41, nas páginas 6 a 11. Segue a nota: “A foto que indica plantação de grama até nas dunas não demonstra a realidade dos fatos,

pois a grama foi plantada em área adotada formalmente e legalmente junto à Prefeitura de Xangri-Lá, existindo ali também vegetação nativa, onde só o lixo é retirado para a conservação natural do local”.




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