Primeira Impressão 44

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pi primeira impressão

QUANDO O

É IMPORTANTE



E ditorial Muitas maneiras de dizer NÃO

P

ara cada NÃO que dizemos na vida, sempre existe um SIM. Negamos uma possibilidade e damos chance a outra. Foi exatamente dessa forma que nasceu a edição 44 da revista Primeira Impressão. Nossos 41 repórteres e 28 fotógrafos negaram diferentes propostas de tema para a publicação que você está lendo e decidiram falar sobre as diferentes maneiras de dizer NÃO. Por mais que seja relacionada a uma negação ou a um limitador, a atitude de dizer NÃO demonstra também que o sentido da palavra pode ser positivo. A Miss Diversidade Priscila Fróes conhece isso muito bem: ela enfrentou a família e o preconceito e assumiu a identidade de mulher, mesmo tendo nascido homem. Negar algo também pode se transformar em uma atitude curiosa. Há,

por exemplo, quem evita tratamentos alopáticos e acha mais seguro beber urina para se tratar de doenças. É inusitado também saber que, em época de aplicativos especializados em encontros e sexo fácil, um grupo de jovens decidiu esperar alguns anos para ter a primeira relação sexual! E até mesmo a própria vida pode nos dizer NÃO – e a gente aprende a conviver com a decisão. Aos 23 anos, Renata Rodrigues tem anosmia, um problema que a impede de sentir qualquer cheiro – um bolo recém retirado do forno ou um churrasco na brasa cheiram a nada. O cantor Naddo Pontes encontrou na música uma forma de expressar os próprios sentimentos, alguns deles relacionados ao fato de ter nanismo. Também sem poder de escolha, Delmar Winck não vê a esposa

há três anos, porque ela desapareceu, por ironia do destino, em uma viagem a Aparecida, em São Paulo. Com certeza, a vida é feita de escolhas, mas o NÃO também pode ser imposto ou necessário para aprendermos algo. Nesta edição reunimos 41 reportagens repletas de histórias narradas por estudantes de Jornalismo da Unisinos que disseram SIM a este emocionante desafio de entregar uma das maiores edições da PI, que este ano bate o recorde de 156 páginas. Boa leitura! Anelise Zanoni Thaís Furtado Professoras editoras de texto

Flávio Dutra Professor editor de fotografia

Acesse o conteúdo online desta edição em: https://medium.com/primeira-impressão-44 ALINE CASIRAGHI


índice 34 NÃO posso

57 NÃO tolero

10 NÃO encontro

38 NÃO leio

60 NÃO quero

14 NÃO fujo

41 NÃO contamino

64 NÃO exploro

18 NÃO sinto

44 NÃO sigo

68 NÃO corto

24 NÃO aceito

48 NÃO creio

71 NÃO me importo

27 NÃO desejo

51 NÃO me submeto

74 NÃO uso

30 NÃO excluo

54 NÃO recaio

77 NÃO desanimo

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Origens do NÃO

PRIMEIRA IMPRESSÃO | 4 | DEZEMBRO DE 2015


ALINE CASIRAGHI

80 NÃO jogo

106 NÃO me medico

132 NÃO concordo

84 NÃO me acovardo

109 NÃO me mudo

136 NÃO faço

88 NÃO admito

112 NÃO me entrego

139 NÃO dirijo

92 NÃO saio

116 NÃO me limito

142 NÃO me identifico

96 NÃO volto

120 NÃO bato

146 NÃO trato

100 NÃO curto sexo

124 NÃO me apresso

150 NÃO me enxergo

103 NÃO tinjo

128 NÃO vendo PRIMEIRA IMPRESSÃO | 5 | DEZEMBRO DE 2015


Origens do NÃO

Nas entrelinhas da negação PRIMEIRA IMPRESSÃO | 6 | DEZEMBRO DE 2015


E

xistem muitos mitos sobre o uso da palavra. Os povos indígenas brasileiros acreditam que a linguagem sempre existiu, independente da humanidade. Para eles, houve uma época em que animais e seres humanos compartilhavam a capacidade de falar. No entanto, devido à intervenção de seres sobrenaturais, os animais teriam perdido esse poder como um castigo. A descrição desses mitos sofre variações de acordo com o grupo indígena, mas está presente em boa parte das tribos. No mundo ocidental, os estudos sobre as origens da linguagem foram dominados pela filosofia de diferentes épocas. Foram iniciados na Antiguidade pelos gregos e em torno da língua grega, sem reconhecer a existência de outras culturas e idiomas, ou mesmo das variações que podem acontecer com o uso língua. Sua maior preocupação inicialmente foi distinguir a linguagem como um ato essencialmente humano e não como uma imposição da natureza. A partir dessa constatação, se destacaram as reflexões em torno do ato de nomeação dos objetos e de sua descrição, que perdurou através dos milênios e ainda tem reflexos nos dias de hoje, como a nomeação das espécies ser feita com duas palavras; a primeira representando o gênero e a segunda, a espécie. Além disso, os nomes usam o latim ou devem ser latinizados, outra influência dos tempos antigos. O estudo científico da linguagem se iniciou somente no século XX, com a fundação da Linguística. No entanto, durante muito tempo não houve preocupações específicas sobre de onde veio a capacidade humana para a comunicação, mas somente em estudar o que foi convencionado chamar de “a língua em uso” pelos pesquisadores. Segundo o livro de Bruna Fraschetto, Origens da Linguagem, resultados de pesquisa apontam como provável data de aparecimento dessa capacidade em torno de 50 mil anos atrás, no Paleolítico. Houve, nesse momento, uma mudança significativa na forma

O não nem sempre é uma proibição. Explore os diferentes sentidos desse vocábulo Por ANA FUKUI Fotos ALINE CASIRAGHI

com que os objetos foram produzidos e na organização dos agrupamentos de pessoas com a concepção de habitações, ritos funerários e fogueiras. Para a autora, esse momento marca a substituição da evolução biológica pela evolução cultural no processo de se adaptar às demandas de sobrevivência, o que levou, mais tarde, ao desenvolvimento da agricultura e da civilização. Mas, se não é possível saber com certeza como se aprende a falar enquanto civilização, existem muitos dados dos processos de aprendizagem e uso da linguagem. AS MUITAS FORMAS DO NÃO A vida começa com interdições. Quem convive com crianças sabe bem disso. Os muito pequenos não têm noção do que se pode e não pode fazer, o que exige sempre um adulto por perto repetindo: Não pode! Não mexe! Não pega! Não puxa! À medida que eles crescem, boa parte desses “nãos” são aprendidos. E aí surge a outra fase, a vontade de desafiar as proibições, de confrontar os proibidores. E essa fase se repete várias vezes no desenvolvimento da criança e, depois, na adolescência. Quem nunca teve esse tipo de conflito, seja como filho, seja como pai ou mãe? O que se demora a perceber é que o não também tem um aspecto positivo que, quando não acontece, faz falta. Como explica Cassiano Haag, professor de português e pesquisador na área da Linguística na Unisinos: “Para as crianças com um desenvolvimento normal, existe uma relação PRIMEIRA IMPRESSÃO | 7 | DEZEMBRO DE 2015

saudável com o feedback negativo do professor; é um erro apontado que faz com que o aluno, em primeiro lugar, tenha a vontade, e em segundo, passe a corrigir seu erro.” Em sua pesquisa, Cassiano estudou crianças rotuladas com “déficit cognitivo”, que, para ele, deveriam ser chamadas de “crianças com características particulares de desenvolvimento”. “Estudei as interações das crianças de 12 e 13 anos com jogos digitais e fomos conversando a respeito de vários itens. Também estudei como as professores interagiam com esses alunos. Quando o aluno estava trabalhando com os pesquisadores, as tarefas solicitadas foram cumpridas muito bem; quando o aluno estava trabalhando com os professores da escola, nada parecia dar certo.” Sua análise de dados revelou que os professores não realizavam o feedback negativo para o aluno, deixando ele fazer o que bem entendesse, com a justificativa de que seu rótulo não permitia se exigir muito. Quando ele estava interagindo com os pesquisadores, havia um constante feedback negativo, que era acompanhado de acertos posteriores. E conclui: “Na escola, para evoluirmos, precisamos enfrentar as limitações, que são o nosso primeiro não.” Se na escola o não é direto, no dia a dia, ele é abrandado, suavizado. Muitas vezes, deixado de lado. Imagine a cena: fim de expediente, você já está pensando em relaxar no sofá e ligar o Netflix para matar de vez o restante da série. No caminho de casa, encontra aquele velho amigo de outros tempos: - Quanto tempo! Que saudades! Vamos tomar um café e colocar a conversa em dia? Em primeiro lugar, se instala o olhar de pânico, em seguida, um arquear de sobrancelhas e finalmente a voz hesitante: - Puxa! É mesmo... Quanto tempo. Não vai dar. Estou com um pouco de pressa, estão me esperando... mas, pode ser outro dia... me manda um whatsapp? E o seu amigo ainda insiste:


- Mas é rápido, somente um café. Quem sabe, amanhã, esta mesma hora? Passa sempre por aqui? Sua resposta: - É pode ser... posso te confirmar depois? Essa situação é bastante comum no dia a dia. E representa muitas formas de se dizer não sem usar a palavra diretamente. Joseane de Souza, linguista da Unisinos que estuda interações verbais, explica: “Por exemplo, se você recebe um convite para sair, mas não está com vontade, não responde simplesmente: não vou. Ocorre um processo de negociação com seu interlocutor; você diz: é... pode ser... preciso ver... quem sabe. E quando o interlocutor percebe a hesitação, ele refaz o convite: quem sabe amanhã?”. Joseane explica também que as formas de negação quando conversamos são sutis e também estão expressas pelo corpo, como os gestos da cabeça, o olhar que se desvia, as pernas que se cruzam em outra direção. E completa: “A resposta direta, o não, representa uma ruptura grande demais na interação; é romper as expectativas do outro, por isso é tão difícil simplesmente dizer não.” O NÃO QUE ORGANIZA As regras sociais são fluidas e podem ser administradas caso a caso. Mas algumas regras exigem seu cumprimento sempre, caso contrário, acontecem acidentes, como no caso dos sinais de trânsito. Nessa situação, o não é um elemento organizador do espaço. Para isso, entretanto, é preciso que todos entendam os sinais gráficos. “Os sinais são compreendidos de maneira mais rápida que um texto escrito. Para perceber essa diferença, é só comparar o tempo que se leva para ler o nome de uma rua e uma placa de trânsito. Além disso, tem as cores. O vermelho é mais fácil de ver, por isso ele está associado ao proibido no trânsito”, explica César Pires, artista e designer gráfico formado pelo Senai. O não também pode ser um elemento criativo, como no caso das van-

guardas europeias do início do século XX. “O dadaísmo é conhecido também como a linha da negação”, afirma Pires. “O manifesto dadaísta negava as formas tradicionais da arte, como a pintura e a escultura, e colocava no lugar a fotografia e os objetos industriais – como a famosa escultura de urinol do Duchamp”, acrescenta ele. Outro movimento que partiu da negação foi o dos futuristas na Itália, que rejeitaram as formas tradicionais de organizar a arte. Eles desejavam uma arte dinâmica, que incorporasse o movimento e a evolução tecnológica. O não nem sempre é algo ruim e pode ser o ponto de partida para muitas novidades. Acima de tudo, ele, de alguma forma, sempre repercute, nunca passa despercebido.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A minha primeira hipótese de trabalho foi descobrir como surgiu a linguagem. Eu acreditava que as palavras vinham das onomatopeias. Mas, quando li o livro Origens da Linguagem, percebi que estava sendo muito ingênua. As pesquisas nessa área apontam diversos caminhos possíveis e não há nada que confirme essa teoria. Sem saber que rumo tomar na reportagem, comecei a comentar com as pessoas ao meu redor sobre como falar das origens do não. Foram muitas sugestões interessantes que acabaram por me levar a pessoas que eu já convivia – a Josiane e o Cassiano. Foi muito bom conversar com eles e descobrir os cientistas que verdadeiramente são. A questão das imagens também me preocupou. Como ilustrar uma reportagem sobre linguagem e palavras? Foi aí que percebi que há uma parte do não que também é visual e organiza os espaços ao nosso redor. E, mais do que isso, a entrevista com o designer e artista César Pires me mostrou que a negação pode ser o início de movimentos criativos. Final perfeito para as minhas inquietações.

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NÃO encontro

O antônimo de Aparecida

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Caso de desaparecimento de Beatriz Winck completa três anos em outubro de 2015 e ainda está sem solução Por DOMINIQUE NUNES Fotos JOYCE HEURICH

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m 1950, ainda namorados, Delmar Winck e Beatriz Joanna Winck apenas saíam acompanhados da mãe da moça, mesmo que fosse apenas para ir ao cinema. Com o casamento, em maio de 1956, o casal ganhou a liberdade dos passeios que tanto desejava realizar. Em mais de 50 anos de união, saíram de Portão, Rio Grande do Sul, para visitar os mais variados locais. Até que, em 21 de outubro de 2012, o roteiro de suas vidas mudou por completo. “Essa fatídica aí”, se refere o aposentado de 85 anos ao lembrar da viagem onde viu sua esposa desaparecer – até hoje, ela não foi encontrada. A programação era simples: visitar algumas cidades, com destino final em Poços de Caldas, Minas Gerais. Entretanto, quando chegaram em Aparecida, em São Paulo, Delmar perdeu Beatriz de vista por segundos suficientes para que o mistério de seu desaparecimento o envolvesse até hoje. Assistido com comoção e atenção por uma das filhas, Flávia Helena Winck, o senhor de olhos marejados por trás dos óculos lembra seus últimos momentos com Beatriz, em uma loja do Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. “A fila estava grande, tinha escolhido algumas coisas, quando ela me disse que esperaria eu pagar ali na porta. Aquilo lá está sempre lotado, a fila era enorme, então, quando chegou a minha vez, olhei e ainda a vi me esperando de braços cruzados. Fiz o pagamento com o meu cartão, peguei a sacola e, quando saí da fila, ela já não estava mais lá”, conta. Com ar de inconformação, o aposentado ressalta que a esposa nem mesmo se dirijia ao banheiro sem o avisar, principalmente em viagens em grupos. “Eu fui onde ela deveria estar me esperando, mas não estava lá. Então fui ao hotel, ao santuário, ao nosso ônibus e no ponto de encontro procurá-la. Anunciaram no alto falante o nome dela duas ou três vezes e nada. Fiz correndo o trajeto pela cidade. Chegou a me dar bolhas na sola dos pés”, descreve. Delmar relembra o diálogo com os funcionários do hotel, ao afirmarem que a sua esposa não havia ido para o PRIMEIRA IMPRESSÃO | 11 | DEZEMBRO DE 2015

quarto. Segundo o aposentado, foi nesse momento em que de fato começou a se preocupar com o que teria ocorrido. A partir de então, as buscas por Beatriz nunca mais cessaram. A filha, emocionada, diz: “Quando o pai ligou, pensei que a mãe tivesse falecido, mas, quando a gente soube que ela tinha desaparecido, foi pior”, disse entre lágrimas. EXPERIÊNCIA TRAUMÁTICA A psicóloga clínica Cássia Cruz define situações traumáticas como as que a integridade ou até mesmo a vida de alguém é posta em risco. “Uma pessoa desaparecida representa a dúvida maior: desapareceu porque quis ou foi levada? Está morta ou viva? Está presa em algum lugar? Sofre ou sofreu tortura? Tudo isso gera muito sofrimento, em especial os aspectos da tortura, abuso sexual e algo que é pouco falado, que é o medo de que a pessoa possa ter sumido por vontade, o que deixa familiares com a sensação do desamparo”, contextualiza. Para a profissional, em casos de desaparecimentos pode ocorrer a necessidade de se aproximar de itens que façam recordar do desaparecido, como roupas, fotografias, em especial pelo medo de esquecer-se dos traços, do cheiro, das características de quem sumiu. Ao contrário do que a maioria pode pensar, Cássia afirma que é necessário falar sobre a possibilidade de morte. “O suporte necessário para os familiares terá que vir de fora, em especial de um profissional qualificado para ajudar quem está em sofrimento a se reorganizar. A intervenção não tem o intuito de excluir o medo da morte, mas de dar voz, de ajudar a resignificar e pensar no assunto de forma clara e mais coerente”, destaca. Segundo a psicóloga, todo extremismo deve ser acompanhado com muita seriedade, como, por exemplo, o isolamento, o uso abusivo de medicamentos ou substâncias que entorpem as emoções, assim como os medos excessivos. Além disso, alucinações, depressão ou um comportamento extremamente enérgico, de forma incoerente com as situações, devem ser observados.


Saudade, dor e esperança fazem parte da rotina de Delmar, marido de Beatriz

Para ela, o sintoma mais importante é o relacionado à ideação suicida: falar que o mundo não tem mais sentido, que prefere morrer a viver a situação, querer morrer para encontrar a pessoa onde ela está ou para poder cuidá-la “em outro plano”. A psicóloga alerta que, nesses casos, a ajuda profissional deve ser buscada o mais breve possível, e a pessoa deve ser mantida em vigilância em tempo integral. Para aliviar o sofrimento, Cássia cita a boa rede de apoio, seja da família, amigos, grupos de auxílio, comunidade religiosa. Para a profissional, nos casos dos desaparecimentos, é necessário que o assunto seja tratado devidamente, levando-se em conta sua gravidade, respeitando e compreendendo o so-

frimento daqueles que lidam todos os dias com essa dor. BUSCA AUTÔNOMA DOS FILHOS O filho mais velho do casal, João Carlos Winck, 56 anos, tomou as primeiras providências em relação ao desaparecimento da mãe. “Fui à delegacia fazer o boletim de ocorrência de desaparecimento, iniciamos buscas nas cidades vizinhas da região, asilos, hospitais, IML, cemitérios, fizemos contatos com a polícia, com escoteiros, rádio, televisão e jornais”, lembra. Até hoje, mês a mês, o técnico químico tira alguns dias de folga e realiza viagens para buscar pela mãe. “Já estive em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Minas Gerais, inclusive Paraná e Rio Grande do Sul. Não tem pista alguma, ninguém viu ou ouviu algo sobre onde ela poderia estar, é como se tivesse sido abduzida por um Ovni”, narra. O filho prefere realizar buscas próPRIMEIRA IMPRESSÃO | 12 | DEZEMBRO DE 2015

prias a acreditar que somente a polícia da região pode resolver o caso. “Infelizmente, a polícia tem inúmeros casos para resolver, e tem outras prioridades, pois desaparecimento não é crime. Tento acreditar que estão procurando, mas é complicado. Para mim, é uma prioridade. Primeiro, eu sou filho dela. Segundo, eu sinto gratidão, pois ela me gerou e educou”, fala. Flávia acredita que, ao todo, ela e o irmão espalharam mais de 15 mil cartazes em toda a região da cidade de Aparecida. “Distribuímos nos postos de gasolina, Polícia Rodoviária, pedágios. Nós temos a ajuda de médicos e enfermeiros em São Paulo que cuidam quando chega alguém sem identificação nos hospitais. Se as características fecham com as dela, eles nos mandam foto. Ajuda é o que não falta. Morta pra nós ela não está, se não apareceria um corpo, né? Então a mãe está em algum lugar em que não pode pedir ajuda. Estamos vivendo em um pesadelo do qual não acordamos mais”, lamenta.


IMPRESSÕES DE REPÓRTER Me considero uma pessoa extremamente sentimental. Não posso ver alguém chorando que choro junto. Não sei lidar com despedidas, saudades, angústia e tristeza. Gosto de compreender o que causa o sofrimento de alguém e constantemente me vejo no lugar daquele que sofre. E foi exatamente para essa repórter “coração mole” que caiu uma das pautas mais emocionantes de executar. Aceitei a indicação do colega monitor da turma de Projeto Experimental em Fotografia Roberto Caloni e tomei coragem para tentar contar a história da Beatriz e de sua família. Vou confessar que adiei o primeiro contato por medo, mas, de forma surpreendente, o senhor Delmar aceitou meu convite sem pensar duas vezes. “Toda divulgação nos ajuda muito”, disse a neta Assiane pelo Facebook, por onde fiz a mediação. Fui com o bloquinho, a caneta e o gravador na mão, mas também com o nó na garganta do nervosismo pela responsabilidade. Eu só conheço a Beatriz pelas fotos estampadas pela imprensa. Mas, quando entrei na sala daquele sobrado azul à beira da ERS 240, senti a ausência dela. Tive dificuldades de prazo para obter informações da polícia, e as palavras da psicóloga me fizeram entender que quem passa por esse trauma merece atenção redobrada. E é por isso que, desde nossa entrevista, incluo essa incrível história nas preces, torcida e todo o pensamento positivo que faço.

Onde está Beatriz? Segundo estimativas do Ministério da Justiça, a cada ano pelo menos 250 mil pessoas desaparecem no Brasil sem deixar vestígios. De acordo com o delegado de polícia Marcos Rogério Pereira Machado, coordenador da Unidade de Inteligência Policial do Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo - Inte-

rior (Deinter) São José dos Campos, em relação ao desaparecimento de Beatriz foi instaurado um Inquérito Policial na 1ª Vara Judicial do Fórum de Aparecida, São Paulo, até então presidido pelo delegado Jair da Silva Ramalho Filho. Este enviou o caso ao Poder Judiciário, em 26 de junho de 2013, para

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que os autos fossem encaminhados ao Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) em São Paulo, para continuidade das investigações. O caso foi então encaminhado, no dia 27 de agosto de 2013, para a Delegacia de Pessoas Desaparecidas. Até então, não há indícios do paradeiro de Beatriz.


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NÃO fujo

Entre

alienados e alienistas Um hospital psiquiátrico pode não ser visto como lar, mas para algumas pessoas é um dos poucos lugares onde há acolhimento Por RENATA CARDOSO Fotos JULIA BONDAN

O

prédio histórico entregue em 1874 ainda impressiona. O Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), na Av. Bento Gonçalves, em Porto Alegre, tem 13 hectares e é totalmente administrado pelo Estado. O local amplo, com prédios antigos mofados e carentes de reparos, não assusta como suas lendas, e é parte viva da história da medicina gaúcha. Muitas pessoas passaram por seus corredores, principalmente em uma época conhecida como “período obscuro” da psiquiatria. No início da década de 1970, o hospital tinha cerca de 5 mil pessoas vivendo entre seus muros. Iniciou-se então uma política PRIMEIRA IMPRESSÃO | 15 | DEZEMBRO DE 2015

de desinstitucionalização, ou seja, o local não receberia mais “moradores”. Entretando, atualmente residem no São Pedro 160 pessoas, algumas já sem condições para fazer escolhas, outras, mesmo em estágios controlados de suas doenças, não querem deixar o hospital. HÁ 20 ANOS NO SÃO PEDRO Com cerca de 1,60m de altura, pele morena e cabelos pretos cuidadosamente cortados na nuca, Sabrina* tem 41 anos. A mulher caminha pelo hospital com naturalidade, porque conhece o São Pedro desde 9 de setembro de 1992, data de sua primeira hospitalização. Natural de Santana do Livramento, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, é descendente de um pai alcoólatra e de uma mãe com problemas psiquiátricos. O casal se separou quando Sabrina tinha 11 anos. Ela foi a única dos irmãos a ficar com o pai. A infância e adolescência dela foram marcadas por diversas internações e violências até chegar ao São Pedro, aos 18 anos. Afetuosa e participativa, ela faz compras e passeios. Atualmente, está inserida no Programa da Associação dos trabalhadores da Unidade de Triagem do HSP- Reciclagem, no qual trabalha separando papéis brancos e coloridos durante quatro horas por dia, de segunda a sexta-feira. Sabrina também ajuda nos cuidados com as pacientes idosas, auxilia


nas refeições, dá banho e troca fraldas. No hospital recebe atendimento dentário, ginecológico e realiza fisioterapia. “Adoro o São Pedro. É a minha casa, meu trabalho. Se eu saísse daqui, não sei o que seria de mim”, afirma. Seu quarto, de paredes brancas e piso emborrachado, é decorado com visível esmero. Além da cama, tem um armário de seis portas lotado de roupas, acessórios e perfumes, bicicleta ergométrica, dois televisores (um de reserva que havia mandado consertar), ar condicionado, fotos de familiares, geladeira, cafeteira, torradeira e DVD, além de muitas bonecas e bichos de pelúcia. A mulher lúcida e vaidosa fala com naturalidade e segurança. Seus passos e mãos são firmes, porém, suaves. Trabalha discretamente enfeitada com pulseiras e um colar de patuás, nada muito chamativo. Camiseta do time do coração, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, calça marrom e sapatos de borracha. Traz consigo uma pequena bolsa preta atravessada, na qual guarda o celular e o cigarro. Sabrina conversa por Whatsapp com a família e funcionários do hospital, geralmente através de áudios. Fuma cerca de três maços de cigarro por dia. Segundo ela, a saúde está ótima. Entre uma frase e outra - todas muito bem articuladas - solta uma sonora gargalhada. Por vezes, visita os irmãos, geralmente acompanhada de um funcionário, para ter a garantia que voltará para seu recanto. Ela também sai do hospital para passeios. Já

visitou o parque temático Beto Carreiro, em Santa Catarina, e foi a Gramado, na Serra Gaúcha. Recentemente, foi ao planetário e ao circo. “Acho que se estivesse em casa não faria tantos passeios”, dispara. Quando o ordenado de suas 20 horas semanais chega, não hesita em aproveitar. “Gosto de almoçar fora, comprar roupas, calçados e relógios”, diz ela, sorridente. Apesar de fumante, procura manter bons hábitos alimentares. O paladar é abastecido com queijo, pão integral, bolacha salgada e frutas, dentre as quais prefere mamão e morango. Bem-humorada, nega ter talentos artísticos. “Não pinto nem o sete”, brinca. Logo em seguida, volta atrás. “Ás vezes apronto, sim!”, e abre seu largo sorriso, tão característico. Passeia pelo maior complexo de atenção à saúde mental do Estado tranquilamente, como qualquer um faz no jardim de casa. Tem seus ambientes preferidos e conhece o funcionamento de cada prédio do local. Cumprimenta a todos, e apresenta: “Esta é minha psicóloga, e aquela, minha assistente social”. Apesar de nos últimos oito anos o hospital ter aberto residenciais terapêuticos (casas para cerca de oito moradores, fora do complexo do HPSP), ela preferiu ficar para sempre. ENCONTROS E DESPEDIDAS O comportamento de ligação afetuosa com o hospital é recorrente. Segundo PRIMEIRA IMPRESSÃO | 16 | DEZEMBRO DE 2015

Aos 41 anos – 20 deles vividos no São Pedro – Sabrina trabalha e mora no hospital. Após tantos anos, ela não quer deixar o local, mesmo podendo viver com a família no interior do Estado

Ubirajara Brites, diretor dos residenciais, o local acaba se tornando a casa e a família de pessoas como Sabrina. “Aqui é um lugar de acolhimento, os moradores têm cama, quarto, atividades próprias. Então, quando surge a oportunidade de voltar para a sociedade, mesmo que seja para a família, elas não querem, porque lá acabam sendo os desconhecidos”, afirma. Após a estabilidade, o primeiro passo para um paciente sair do HPSP é a própria vontade. “É nosso dever incentivá-los a querer viver em sociedade. Meu objetivo é que o São Pedro seja realmente um hospital, e não um asilo. Porém, a opinião do paciente é sempre respeitada”, finaliza Brites. A maioria das pessoas que ainda vive permanentemente no chamado “Complexo de Atenção Integral à Saúde Mental” é idosa, remanescente dos anos 70, ou foi transferida nas décadas de 80 e 90. Mulheres e homens de até 90 anos ainda vivem no local, carente de manutenção. No entanto, limpo e organizado. Poucas admissões foram feitas após esse período, a maioria delas devido a ordens judiciais. A forma de se tratar os pacientes mu-


dou muito com o avanço da farmacologia. Apesar disso, ainda hoje, alguns distúrbios não têm cura, mas são controláveis. Sabrina é um caso de sucesso, mas não são todos que conseguem se reabilitar. É possível ver vagando pelo hospital pessoas aparentemente desconectadas da realidade. Apesar de um passado sombrio, o São Pedro não é a prisão de outros tempos. Tornou-se o lar de pessoas esquecidas ou que, por diversos motivos, não querem deixar o local em que após anos de convívio e tratamento, conseguiram construir sua existência com dignidade e afeto. Afinal, para muitos, assim como para Sabrina, o hospital é sua casa, a equipe médica sua família e os demais internos, seus amigos. * O nome da entrevistada foi trocado para preservar a sua identidade.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Fazer a reportagem para a PI foi um aprendizado incrível. Acredito que as reuniões de pauta com todos os colegas foram extremamente úteis. Nestas oportunidades praticamos um dos fundamentos básicos do jornalismo: saber ouvir. Realizar uma pauta no Hospital Psiquiátrico São Pedro foi um desafio que me impus quase que automaticamente após a definição do tema. O contato com as fontes certas demorou um pouco para acontecer. Durante mais de um mês mandei e-mails e liguei para o hospital, mas não conseguia contato. Enquanto isso, buscava alternativas para a realização da reportagem. Após conseguir marcar a entrevista com o diretor da instituição, o restante fluiu de maneira bastante interessante para o trabalho, porém, ainda dentro dos ritmos do hospital e dos entrevistados. Todos os funcionários foram muito solícitos, e a fonte participou de maneira muito gentil. Fazer este trabalho mudou minha percepção acerca do hospital e foi uma ótima experiência profissional e de vida.

A estrutura Atualmente considerado um hospital de porte médio, por possuir apenas 150 leitos para internação - que não é moradia - o São Pedro conta com ambulatório especializado em saúde mental, serviço de reabilitação psicossocial, serviços de emergências

psiquiátricas, residenciais terapêuticos, ambulatório de especialidades médicas e departamento de ensino e pesquisa. O local também abriga a única ala 100% Sistema Único de Saúde (SUS) do Rio Grande do Sul para crianças e adolescentes.

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Ao todo, conta com cerca de 700 funcionários, desde psiquiatras, cirurgião, dentista e neurologista até assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Destacam-se neste contingente os técnicos de enfermagem, profissionais em maior número.


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NÃO sinto

Que cheiro é esse?

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O olfato é o sentido mais sutil, sensível e complexo de todos, mas a sua ausência só é notada por quem não o possui Por MARCO PECKER Fotos EMILENE LOPES

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om passos lentos, Renata caminha pela orla da praia no centro da cidade de Guaíba, localizada a cerca de 30 km de Porto Alegre. Nos finais de semana, a Beira – como é conhecida a orla pelos moradores locais – fica repleta de jovens pedalando suas bicicletas ou andando de skate, pais e filhos brincando na praça, além de pessoas de todas as idades que aproveitam as tardes de sol para tomar chimarrão. Ao longo dos 1,2 km de extensão da Beira, há barraquinhas de cachorro-quente, de churros, de pipoca, de maçã do amor e de algodão doce. Renata passa indiferente por todas essas tentações. Talvez porque ela não esteja com vontade de experimentar as guloseimas, ou simplesmente porque não sente nenhum aroma vindo desses alimentos, algo que para a maioria desperta o desejo de comer. Renata Rodrigues, 23 anos, é estudante de Arquitetura e Urbanismo e tem um raro problema de difícil cura chamado anosmia, que consiste em não sentir nenhum tipo de odor. Essa disfunção acompanha Renata há um bom tempo. “Eu tinha dez anos quando minha mãe achou estranho o fato de eu nunca reclamar de nenhum tipo de cheiro, nem dos bons e nem dos ruins”, conta sorrindo. Apesar do fato incomum, foi apenas com 21 anos que ela procurou um especialista para saber sobre o problema. Por falta de tempo, não deu andamento ao tratamento, só voltando a realizar novas consultas em agosto deste ano para investigar quais as possíveis causas que podem ter desencadeado esse distúrbio.

OS TIPOS DE DISFUNÇÃO DO OLFATO Uma das principais causas de distúrbios do olfato, que podem ser transitórios ou definitivos, são as infecções das vias aéreas superiores, as rinossinusites – definidas como a inflamação da mucosa que reveste a cavidade nasal e os seios paranasais. Além disso, em casos mais graves, podem acontecer em razão de complicações psicossomáticas, traumas na cabeça, problemas neurológicos ou cirurgias nasais. São situações em que existe o comprometimento dos receptores de odor. As pessoas que possuem esse tipo de disfunção têm também dificuldades para identificar vários tipos de gostos, podendo ingerir um alimento estragado sem perceber. Além disso, a dificuldade em notar a presença de gases ou substâncias químicas pode ter como consequências graves acidentes. Segundo o médico otorrinolaringologista e professor do Departamento de Oftalmo e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da UFRGS Otavio Piltcher, há diversos tipos de disfunção do olfato. A falta completa de olfato se denomina anosmia. Mas nem sempre há ausência total dessa função. Quando há perda parcial, é chamada de hiposmia. Também pode haver outros tipos de distúrbios, denominados disosmias, em geral, determinados por lesões parciais ou recuperações parciais da função neural. E, ainda, existem quadros chamados de perversões do olfato, quando um odor é frequentemente sentido pelo paciente como ruim, nesse caso sendo chamado de cacosmia. O diagnóstico mais comum da anosmia é feiRenata tem um to por meio da anamnese raro problema chamado anosmia, (entrevista médica) e, em que faz com que alguns serviços especialinão sinta nenhum zados, submetendo o patipo de odor ciente a diferentes odores e intensidades. Para isso, testes padronizados são realizados no sentido de confirmar e classificar o grau da perda dessa função. Diagnosticada a presença de um distúrbio do olfato e, consequentemente, do PRIMEIRA IMPRESSÃO | 20 | DEZEMBRO DE 2015


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paladar, o profissional de saúde deve buscar as possíveis causas. Esse passo é fundamental para excluir patologias que possam ser tratadas, apesar de algumas vezes ter um resultado frustrante pela ausência de diagnóstico do agente causador da doença. De acordo com Piltcher, existe um número expressivo de ocorrências em que não se tem uma causa conhecida, denominados casos idiopáticos, que podem chegar a 20% dos episódios. O CHEIRO DO PERIGO Renata conta um caso ocorrido em que um vazamento de gás, no local onde trabalhava, quase a fez desmaiar, sem

que tivesse notado qual era o motivo do mal-estar. “No meu antigo emprego, a estação de abastecimento de gás ficava ao lado da minha sala. Um gás foi trocado e deixaram um vazamento. Eu estava sozinha na sala e não senti nenhum cheiro, só lembro que tive tontura e muita dor no estômago. Após um tempo, pessoas de outros setores entraram na minha sala abrindo as portas, pois o cheiro já estava em toda a empresa”, diz a estudante. Em outra situação, Renata relembra que foi comer um filé de frango que estava na geladeira. Ao preparar a carne, seu namorado chegou questionando de onde vinha aquele cheiro forte de comida estragada. “Eu ia coPRIMEIRA IMPRESSÃO | 22 | DEZEMBRO DE 2015

mer um alimento sem ter a mínima ideia de que ele não estava bom para o consumo”, explica. Mas o que mais a deixa chateada é não poder sentir os odores do dia a dia. “As pessoas acabam comentando sobre o cheiro da comida, das flores e eu não digo nada. É muito triste, não posso nem escolher o meu perfume. Pior é quando vem alguém e me diz: ‘nossa, que bom esse cheiro’. Eu fico sem saber como reagir.” A BUSCA PELA CURA Piltcher explica que as perdas do olfato são definidas em três tipos. Condutivas, quando ocorre um bloqueio


Os distúrbios do olfato geram consequências diretas na qualidade de vida e no convívio social e aumenta o risco de acidentes

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

da chegada das moléculas odoríferas no revestimento (epitélio) do teto do nariz – exemplo de doença desse revestimento é a rinossinusite crônica. Neurossensoriais, quando há danos nas terminações nervosas que estão no revestimento do teto do nariz ou em suas vias – como as infecções virais que afetam o nervo, ou traumas que rompem essas fibras. E centrais, quando existem alterações ou lesões nas regiões do sistema nervoso central responsável pelo olfato. Em cada caso, o tratamento deve ser direcionado à causa. As alterações condutivas podem ser melhoradas através do tratamento adequado dos problemas que impedem a chegada dos odores até o teto

Quando conheci a história de Renata, o primeiro pensamento que tive foi: “Como assim ela não sente nenhum tipo de cheiro?”. O paladar, diferente da audição e da visão, é um sentido que aparenta estar sempre ali, em funcionamento, mesmo que imperceptível para nós. Há uma sensibilidade maior quando se conhece alguém que possui deficiência auditiva ou visual, mas, para mim, parecia inacreditável que alguém conseguisse viver sem perceber os aromas que estão presentes nas nossas vidas. Logo após, veio o de-

safio de textualizar uma pauta tão inusitada, que conseguisse passar para o leitor as dificuldades diárias de Renata. Tudo isso apoiado em imagens que traduzissem o que não se pode sentir. O resultado desse projeto foi muito bem captado pela colega fotógrafa Emilene Lopes. Esse foi o meu objetivo, de provocar o leitor a se colocar no lugar de Renata, conhecer um pouco a sua história e perceber que o sentido do olfato é tão essencial como a audição, a visão, o tato e o paladar, sendo este último também afetado pela anosmia.

do nariz. Esses tratamentos podem ser clínicos e também cirúrgicos, quando relacionados às sinusites, rinites e outros problemas do olfato. Já nas perdas neurossensoriais ainda não há um tratamento definitivo e comprovado. Nos quadros com menos de seis meses, os especialistas tentam algumas medicações com resposta incerta e, depois de seis meses de evolução, as chances de melhora são mais reduzidas. O que dificulta ainda mais as pesquisas para o desenvolvimento de tratamento das disfunções do olfato é que não há no Brasil estimativas da prevalência desse problema. A maioria dos casos é menosprezada pelos profissionais de saúde, apesar do impor-

tante impacto em termos de qualidade de vida que tal disfunção pode trazer aos indivíduos. Piltcher ressalta que somente nos Estados Unidos, 1,4% da população sofre de algum problema do olfato, o que representa cerca de 2,7 milhões de pessoas. Os distúrbios do olfato geram consequências diretas na qualidade de vida, no convívio social e no maior risco de acidentes. E são esses fatores que fazem Renata seguir na busca pela cura: “Acredito que será possível recuperar meu olfato. Cheiros de doces, de flores e o cheiro das pessoas, esses são os que mais tenho vontade de sentir. Eu não lembro quando foi a última vez que percebi algum tipo de aroma.”

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DANIELA FLORES

NÃO aceito

O ensino em questão PRIMEIRA IMPRESSÃO | 24 | DEZEMBRO DE 2015


FOTOS ROBERTO CALONI

Apesar de não ser permitido pela lei brasileira, o número de pessoas que pratica o ensino em casa cresceu nos últimos anos Por AMANDA OLIVEIRA Fotos DANIELA FLORES e ROBERTO CALONI

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contador Guilherme* e a doutora em Filosofia Carolina* têm coragem de sobra. Eles decidiram não matricular os filhos na escola e ensiná-los em casa. Residentes de Gramado, eles trabalham em sistema home office e educam os três filhos, de dez, cinco e dois anos, pelo sistema homeschooling. Eles tomaram a decisão

quando moravam em Porto Alegre. O ensino domiciliar ou homeschooling, em inglês, é um método no qual o aluno não frequenta escolas formais. Mais comum na Europa e nos Estados Unidos, nos últimos anos, ganha força no Brasil, onde, segundo dados da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED) cerca de 2 mil famílias o praticam. Questões como insatisfação com as escolas, bullying e a discordância da maneira que temas polêmicos como sexo, religião e drogas são abordados são algumas das alegações dos que optam pela técnica. Porém, o tema divide opiniões entre educadores e a sua prática é enquadrada como abandono intelectual, considerada crime, segundo o código penal. O que levou o casal ao homeschooling foi a má qualidade da escola da filha mais velha. Ela estudava em uma instituição particular de Porto Alegre, que ficava longe da residência da família na época. Por isso, a menina era levada a pé pela PRIMEIRA IMPRESSÃO | 25 | DEZEMBRO DE 2015

mãe. A segunda gravidez dificultou esse processo. Então, ela foi matriculada em uma escola pública. No primeiro ano, tudo ocorreu muito bem, mas, no segundo ano, conforme os pais, “a professora fingia que ensinava” e a menina, que já era alfabetizada, ficou desmotivada com os estudos. Por isso, o pai passou a estudar sobre o homeschooling. A princípio a mãe estava receosa sobre o assunto, porém, após quase um ano de informações e reflexões, a decisão foi tomada. Guilherme e Carolina adotaram a educação clássica chamada Trivium, a qual utiliza uma pirâmide que inclui conteúdos de gramática, lógica e retórica. Até os 10 anos, a criança é alfabetizada, forma o vocabulário na sua língua e nas estrangeiras e também estuda literatura. Entre os 10 e os 14 anos estuda-se as disciplinas exatas e dos 14 em diante aprende a argumentar e aperfeiçoar os conhecimentos. A base vem do livro “Teaching Of Trivium”, escrito por um casal americano que ensinou os cinco filhos em


casa. Na obra, eles explicam as técnicas que utilizaram. “Adaptamos à nossa realidade, pois estamos em um país diferente, somos católicos e eles evangélicos. E eles se opõem aos avanços científicos, o que acreditamos ser importante.” explica o pai. O casal explica mais sobre o método, que o pai acredita que esteja mais para um estilo de vida, em um blog, um perfil em uma rede social e um curso à distância via internet. Neles são compartilhados os conteúdos aprendidos, leituras que eles recomendam, notícias sobre educação e sobre o homeschooling. Além de estudarem em casa com os pais, as crianças praticam esportes em clubes, brincam e têm aulas de música com outras crianças homeschoolers. O pai explica que a socialização é uma questão importante, porém, a sociedade discute superficialmente e para ele isso não é tarefa da escola. “A função da escola é passar o conhecimento técnico as crianças. Quem educa e forma o cidadão são os pais. Enquanto a escola não entender o seu papel, será difícil melhorar a qualidade do ensino.”, finaliza. Os adeptos da prática alegam que, segundo a constituição brasileira, a educação é um “direito de todos” e “dever do Estado e da família” e por isso teriam o direito de escolher se os filhos frequentarão a escola regular ou não. Contudo, Daniel Mattioni, 2º Promotor de Justiça de Panambi explica que a responsabilidade da família se refere apenas à educação informal, por meio da transmissão de valores e princípios no seio familiar. “O ensino formal, por sua vez, cabe única e exclusivamente ao Estado. Tanto isso é verdade que constituição dispõe ser ‘dever do Estado’ a oferta de ‘educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade’. Essa regra é repetida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.”, esclarece. Caso a criança ou o adolescente homeschooler deseje frequentar o ensino superior deve prestar o Exame Nacional do Ensino Médio, Enem, duas vezes. Uma para poder receber o certificado do Ensino Médio, o candidato deve conseguir o aproveitamento mínimo na prova e ter pelo menos 18 anos. E a outra para conseguir o direito de ingresso no ensino

superior - a mesma prova não poderá ser utilizada para as duas coisas. Quando o Ministério Público toma conhecimento da prática do homeschooling, é solicitada uma medida de proteção estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente: encaminhamento de ‘matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental’. Essa responsabilidade é do Conselho Tutelar, mas, não é aberto processo judicial. Algumas famílias recorrem ao Judiciário, por meio de ação própria, buscando que a matrícula e a frequência obrigatórias sejam substituídas por uma multa. Para o pedagogo Fabio Schebella, é dever dos pais ou responsáveis avaliar qual método educacional é mais adequado. “Algumas crianças aprenderão melhor na escola, outras em casa e outras em alguns modelos mesclados. Mas com certeza muitas se desenvolverão plenamente apenas com a educação familiar”, comenta. Em relação ao convívio em sociedade, ele afirma que segundo algumas pesquisas realizadas sobre o assunto, as crianças ensinadas em casa não apresentam qualquer déficit no convívio social. Segundo a pedagoga Vitória Santos, é possível ensinar uma criança em casa desde que as pessoas que estão ensinando sejam capacitadas para a função. Todavia, ela seria privada dos outros propósitos da escola. “É na escola que se aprende a socializar, a dividir, a se relacionar com os semelhantes, a resolver conflitos, se torna autossuficiente e amadurece como pessoa para conviver em sociedade.”, explica. O que fazer quando a escola de seu filho não é satisfatória? Para o pedagogo Schebella, precisa-se avaliar o perfil educacional da criança, para poder identificar se o problema é pessoal (falta de motivação, cansaço, doença, deficiência) ou pedagógico (modalidade, modelo, material, técnica ou ambiente incompatíveis com o perfil pedagógico da criança). “Dependendo do diagnóstico final, a família pode decidir se a melhor estratégia é trocar a modalidade escolar pela domiciliar, mudar de instituição escolar ou trabalhar junto com a escola para buscar alternativas para a melhoria do desenvolvimento da criança”, explica. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 26 | DEZEMBRO DE 2015

Para a pedagoga Vitória, não é retirando a criança da escola que os problemas serão resolvidos. “Os pais precisam estar presentes no processo de ensino dos filhos, precisam auxiliar nessa educação.”, argumenta. Para ela, não se justifica retirar os filhos da escola por discordar da abordagem de determinados assuntos, ou por questões de violência ou bullying. “Os pais estão sendo coniventes com problemas sociais. O problema não está sendo resolvido, mas eles estão colocando o filho dentro de uma bolha, como se o mundo lá fora fosse ‘cruel’. Não é isolando o filho do restante da vida escolar que esse problema irá deixar de existir”, complementa. *Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar suas identidades

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Escolhi o homeschooling aceitando a sugestão da professora Thaís. Precisei pesquisar muito porque o meu conhecimento sobre o assunto era pouco. A primeira barreira foi deparar-se com a polêmica do tema, porque esse tipo de estudo é considerado abandono intelectual. Então pensei: como encontrar alguém que pratique o homeschooling? Como os convencer a falar? Como vou falar com eles de uma maneira que os respeite? Como vou escrever de maneira imparcial? Foram as dúvidas que martelaram a minha cabeça. Outra dificuldade foi encontrar especialistas para os depoimentos. Falei com quatro promotores até encontrar algum que pudesse falar. E perdi as contas de quantos pedagogos procurei. Até que consegui dois, com pontos de vista diferentes, o que enriqueceu a discussão. Todavia, há vários praticantes escrevendo blogs e postando vídeos na internet sobre o assunto. Depois conclui que o tema não é novidade, mas apenas pouco divulgado ou abordado da maneira errada. Espero que a reportagem gere reflexão e discussão positiva.


FOTOS JOYCE HEURICH

A relações públicas Luciane, 46 anos, optou por não ter filhos, mas gosta de crianças e tem um afilhado

NÃO desejo

Uma escolha pela liberdade PRIMEIRA IMPRESSÃO | 27 | DEZEMBRO DE 2015

Segundo o IBGE, a proporção de famílias formadas por casais sem filhos cresceu 33% no Brasil entre 2004 e 2013 Por GABRIELA CLEMENTE Fotos DYESSICA ABADI e JOYCE HEURICH


FOTOS DYESSICA ABADI

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que as pessoas já fizeram em suas vidas com 19 anos? Provavelmente se formaram no Ensino Médio, entraram para uma faculdade, talvez estejam em um relacionamento e até começado a trabalhar. Mas parece pouco, perto do que a maioria das pessoas projeta para o futuro. Dezenove anos é a idade atual de Jéssica Zang, que é estudante de Jornalismo na Unisinos. Uma das grandes convicções da vida dela é a de não ter filhos. Ao falar sobre o tema, Jéssica relembra tranquilamente da própria infância. A história começa no momento em que seus pais, hoje divorciados, se conheceram. Uma gravidez inesperada logo no primeiro ano de namoro, fez com que eles assumissem o compromisso de se casar. “Na época, a minha mãe precisava de ajuda para conseguir criar um filho. Meu avô nunca permitiria que ela tivesse um filho solteira, então meu pai acabou assumindo esse compromisso”, conta. Apesar de antigamente o casamen-

Andrei, 25 anos, e Diandra, 26, são casados há dois anos e acreditam que não têm o dom para serem pais

to ser algo considerado “para toda a vida”, Jéssica acredita que os pais apenas resolveram ficar juntos por causa da gravidez. “Eles eram muito diferentes um do outro. Tiveram muitos problemas. Olhando para trás, acredito que eles pudessem ter sido mais felizes se tivessem escolhido outras pessoas para casar”, diz. A mãe de Jéssica acabou sofrendo um aborto espontâneo, e já casada, ao engravidar novamente, sofreu outro aborto. Posteriormente, vieram Jéssica e seu irmão, que tem um ano a menos que ela. “Em função disso tudo que aconteceu, eu perdi a vontade de ser mãe. Até porque eu acho que no fundo a minha PRIMEIRA IMPRESSÃO | 28 | DEZEMBRO DE 2015

mãe nunca teve esse desejo. Ela teve filhos mais por uma sequência de incidentes”, acredita. Jéssica relata o que aconteceu com a mãe sem rancor, com maturidade e com uma convicção que impressiona, apesar da pouca idade. Ao contrário de Jéssica, a relações públicas Luciane Kieling Martins, 46 anos, não tem uma história de infância que a faça optar por não ter filhos. Pelo contrário, ela sempre cuidou e gostou de crianças. “Durante muito tempo eu dei aula. Já fui professora e cuidava de crianças. Além disso, na minha família, eu sou a neta e a sobrinha mais velha e levou muito tempo para termos crianças de novo na família. Fui madrinha de batismo de um dos meus primos com 16 anos, aí já era uma adolescente e cuidei muito deles. De certa maneira, meu lado maternal ficou bem resolvido em cuidar dos filhos dos outros”, relata. Na vida de Luciane, a decisão por não ter filhos veio muito cedo. Ela acredita que a personalidade e o jeito como vê a vida influenciaram na escolha. “Eu vejo muita responsabilidade para ter


filhos. Além disso, hoje eu tenho um estilo de vida que é muito voltado para minha carreira, é muito livre. Eu viajo toda semana para São Paulo. Fico um dia em Porto Alegre e o resto da semana lá. Então, claro que daria para ter um filho assim, mas com muito mais estrutura”, diz. A CARREIRA E A EDUCAÇÃO “Minha mãe diz que é uma visão egoísta, mas primeiro quero me formar, trabalhar. Um filho dificultaria as coisas. Eu teria que dividir atenção, tempo. Hoje em dia não tem como fazer isso. Pelo plano de vida que eu fiz pra mim, acho que um filho não se encaixa. Então, se é para ter um filho e não ter como cuidar dele de uma forma decente, eu prefiro não ter”, diz Jéssica. Luciane também percebe que as pessoas de modo geral acham que mulheres que não engravidam são egoístas. “Já conversei com muitas pessoas que acham que a mulher que não quer ter filhos é vista como egoísta. Mas hoje eu acho que essa visão está mudando. As pessoas veem mais essa decisão como uma preocupação com o futuro das crianças. Pra mim, o que mais preocupa é que ter filhos e educar é uma responsabilidade tão grande que eu talvez não saberia lidar”, revela. “Porque cuidar, trocar fralda, dar de comer, todo mundo sabe. Agora educar e transformar aquela pessoa em uma pessoa feliz é que é difícil”, diz. Para o coordenador do curso de Filosofia da Unisinos, Clóvis Gedrat, os índices de famílias sem filhos estão aumentando e mostrando que as decisões das mulheres estão sendo cada vez mais respeitadas. “Na minha visão, isso é uma coisa muito boa. O respeito ao próximo e à decisão das mulheres é algo ótimo”, diz. Segundo a última pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a proporção de famílias formadas por casais sem filhos cresceu 33% no Brasil entre 2004 e 2013. Isso quer dizer que em 2014, a cada cinco casais, um não tinha

filhos. Em 2013, 38,4% das mulheres de 15 a 49 anos não tinham filhos. Entre as mulheres de 15 a 17 anos que não tinham filhos, 88,4% estavam estudando, enquanto entre as mães, apenas 28,4% estudavam. O dado expõe uma visão comentada por Clóvis. “Hoje, mais de 50% das pessoas que frequentam as universidades são mulheres. E o crescimento de famílias que não têm filhos se deve ao fato de as mulheres estarem estudando cada vez mais. E isso não é nenhum demérito. Só que quando as pessoas começam a estudar elas veem que não é qualquer coisa ter um filho. A criação de uma criança tem exigências cada vez maiores”, destaca.

Para Clóvis, a realidade dos dias de hoje está muito diferente de 40 anos atrás. “Os casais hoje olham também para o futuro. E sabemos que não é a mesma coisa de antigamente. É complicado ter uma criança hoje e dar todo o suporte necessário. Então os casais optam por ter apenas um filho ou até não ter”, destaca. “Também tem outro lado muito importante. As pessoas não têm mais necessidade de ter um filho pra ter felicidade como antes. Elas têm uma vida boa, são felizes no casamento, sem filhos, então isso já basta. Os relacionamentos são mais voltados àquilo que tu és, sendo fiel contigo mesmo”, exemplifica.

FAMÍLIA SEM FILHOS

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

Diandra Andrade, 26 anos, e Andrei Saul, 25, são casados há dois anos. Antes mesmo de começarem uma vida juntos, os dois já sabiam o que queriam para o futuro familiar. “Antes de começarmos a namorar, éramos amigos e eu sempre deixei claro que não teria filhos, nem mesmo depois de casada. No início, a decisão parecia ser só minha, mas, com o tempo, o Andrei confessou que também não sentia vontade de ser pai, então foi algo tranquilo para os dois”, diz Diandra. Para Andrei, o fato de o casal decidir não ter filhos é uma mistura de preocupação com a carreira e com a vida de casados. “Posso fazer várias coisas com a Diandra sem ter que me preocupar com um filho. Podemos sair, mudar de emprego, viajar... Fazemos tudo juntos. Nos completamos!”, destaca. Diandra, que é professora, acredita que nunca teve o dom para ser mãe. “Ficava assustada quando as minhas amigas me contavam que estavam grávidas. Pensava: nossa, tomara que isso nunca aconteça comigo. Parece egoísmo da minha parte, mas não é. Eu adoro crianças mas tenho absoluta certeza de que fracassaria caso ficasse grávida”, diz.

Quando escolhi esta pauta estava curiosa para saber o que as pessoas que não querem ter filhos pensam. Como elas fazem essas escolhas, se elas são realmente convictas disso. Sempre achei muito difícil ter convicção de não querer algo que todos dizem ser “uma benção”. Mas, conheci pessoas que têm essa certeza. Elas cresceram convivendo com um passado de pais que fizeram escolhas erradas e que por isso perderam diversas oportunidades na vida. Também conheci pessoas que amam crianças, mas que têm espírito livre, adoram a carreira e estão sempre em busca de viagens e algo novo. Conheci casais que parecem completar tanto um ao outro que não sentem a necessidade de aumentar a família, e aprendi que isso não deixa de ser uma benção, afinal, viver plenamente é o que todos querem. O que mais aprendi fazendo essa matéria é que as pessoas têm o direito e devem fazer as suas escolhas independente do que a sociedade pensa, ou independente da pressão dos amigos e da família. E, enfim, esse pensamento está mudando. Os dados apurados comprovam que não são mais todas as famílias que precisam ter pai, mãe e filhos. Todos têm o direito de escolher como será a sua constituição familiar, se a felicidade estiver nela, que todos os modelos de família possam ser aceitos em um futuro próximo!

PRIMEIRA IMPRESSÃO | 29 | DEZEMBRO DE 2015


NÃO excluo

Profissão: motivação PRIMEIRA IMPRESSÃO | 30 | DEZEMBRO DE 2015


Conheça a história de Cristina, que, após 15 anos na escola pública, ainda consegue incentivar seus alunos a serem mais do que eles próprios ousam imaginar Por JÚLIA SOARES Fotos PRISCILLA MELLA

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er professor é tão recompensador quanto desgastante. A profissão exige esforço, dedicação, horas para além da sala de aula, responsabilidade e muita força de vontade. Quando se é professor em escolas públicas então, o peso dobra sobre os ombros. Não bastasse todas essas exigências, há ainda os desafios de se manter a dedicação e motivação com contratempos que vão desde falta de estrutura física até o recente parcelamento de salários, no caso dos professores da rede estadual do Rio Grande do Sul. O estado gaúcho, aliás, é o que registra o menor piso salarial para a carreira em todo o país. Um professor da rede pública de ensino recebe R$1.260 por 40 horas de trabalho semanais, enquanto o salário-base nacional chega a R$ 1.917,78 pelas mesmas horas. De acordo com dados de 2014 da Secretaria Estadual de Educação, o Estado tem 138.115 mil professores em exercício que, nos meses de julho e agosto deste ano, tiveram seus salários parcelados e paralisaram as atividades por duas semanas. Apesar de todas as dificuldades, esses professores continuam firmes na luta PRIMEIRA IMPRESSÃO | 31 | DEZEMBRO DE 2015

diária de formar cidadãos que, quem sabe, poderão se tornar bons governantes e melhorar a realidade de sua profissão. Mas esta história não é apenas sobre um professor que se dedica com afinco à educação pública, apesar dos pesares; é sobre uma professora com uma missão: levar cultura e arte para a vida de todos os seus alunos, sem excluir nenhum. Com esse objetivo, Cristina Colares Pereira coleciona uma lista de ex-alunos e admiradores para toda a vida. A professora de dança surgiu em Cristina como forma de fazer algum dinheiro extra. Aos 15 anos, após oito no ballet clássico, ela começou a convidar amigos e amigas para ter aulas de ballet, jazz e ginástica rítmica. Os encontros aconteciam em associações de moradores de bairros de sua cidade e garagens de amigos e alunos. As aulas eram marcadas, e lá ia ela, com seus pés de bailarina nos pedais da bicicleta. Aos 25, a dança passou de quebra-galho à profissão, e a modalidade Gim Jazz caiu como uma luva para seu corpo esbelto. Sua primeira turma na academia de dança foi a concretização do que viria a fazer até as 52 sorridentes e calorosas primaveras atuais. Aos


Micael, que era tímido, diz que a dança, estimulada pela professora Cristina, mudou sua forma de enxergar a vida

poucos, ela percebeu que sua ligação com a dança ia além da vontade de ser bailarina. Ela queria descobrir uma forma de utilizar esse dom para poder fazer a diferença na vida das pessoas. Com isso na cabeça, aos 27 anos iniciou a licenciatura em Educação Física, e logo estava dentro da sala de aula. AS VOLTAS DA VIDA Aprovada em concurso para lecionar no ensino público como professora de Educação Física em 2000, após 22 anos dividindo-se entre academias e escolas particulares, Cristina retornou ao lugar de onde vieram muitas de suas memórias felizes. Ainda consegue lembrar com clareza da sua festa de debutante naquela mesma escola, no mesmo bairro em que crescera e morara durante a maior parte de sua vida. No Colégio Marechal Rondon, em Canoas, o espelho da sala de dança exibe o aviso de “Não encoste. Vidro quebrado”. O vazamento que escorre no canto direito da parede ao fundo da sala, juntamente com o ninho de

pássaros, formado acima de uma das luminárias com lâmpadas queimadas, faz lembrar que, apesar do clima de “enquanto eu puder ensinar dança nessa sala, tudo ficará bem” que Cristina transmite, ela ainda está em uma escola pública com problemas estruturais, como acontece com 11% das escolas públicas gaúchas, de acordo com pesquisa da ONG Todos Pela Educação. Certa vez, enquanto os novos colegas de trabalho não pareciam muito dispostos a dar crédito para o que aquela mulher baixinha e de voz alta bradava, ela afirmou, com muita veemência: “Na escola, a dança tem a capacidade de ser o ingrediente que falta para o comprometimento de alguns alunos. Alguns deles são criativos e não conseguem apreender determinados assuntos, mas se esforçam, porque sabem que se eles não forem bem nas outras disciplinas, não vão poder fazer a dança, que eles gostam”. METAMORFOSE Na escola, a dança surge para a maioria dos alunos como uma moPRIMEIRA IMPRESSÃO | 32 | DEZEMBRO DE 2015

dalidade alternativa aos tradicionais esportes da Educação Física. Um aliviante recurso para quem não tem a menor aptidão para esportes. Para o Colégio Marechal Rondon, que já contava com aulas de jazz, ballet e ginástica rítmica, Cristina trouxe o hip-hop, acreditando que a carga cultural trazida por essa sigla pudesse ajudar os alunos a se expressar através da dança. Para algumas pessoas, o incentivo de um professor acaba sendo fundamental. Cristina e a dança, por exemplo, provocaram uma mudança radical na vida de Micael Rocha, 21 anos. De personalidade tímida e reservada, era inseguro quando precisava expressar alguma opinião; ele sentia que não se encaixava na sociedade. Isso foi antes da dança. Em 2010, em seu terceiro ano do Ensino Médio, Micael era dispensado das atividades físicas por conta de um problema cardíaco. Com autorização de Cristina, ele acompanhava os ensaios do principal grupo de dança da escola, o D2. Ele ficava quieto, sentado ao fundo da sala, observando seus amigos ensaiarem.


Após um convite inesperado da professora, Micael estava aprendendo a coreografia e participando dos ensaios. Ele admite que essa experiência foi uma reviravolta em sua vida: “Me abriu os olhos para uma vida que me agarrou com as duas mãos e eu não impedi, me joguei. E eu tenho muito a agradecer à Cris pelo o que hoje sou, como dançarino e como pessoa. A dança e o apoio que ela me deu me ajudaram a evoluir, e me descobri como artista. Viajei para diversos lugares diferentes, participei de vários festivais, dancei em muitos lugares. Minha vida não seria como é hoje se ela não tivesse me estendido a mão naquele momento”. Hoje, Micael acredita que nasceu para estar em um palco e performar, e se prepara para prestar vestibular para Teatro na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). As palavras de Yuri Penz, 22 anos, ex-aluno de Cristina no Marechal Rondon, descrevem o que Cristina espera que seus alunos consigam sentir através da dança: “Todas as vezes em que subi no palco, a sensação era de completude, de competência, de tesão pelo que eu fazia. A energia desencadeada pela expressão dessa identidade não é facilmente suprimível ou olvidada”. Yuri lembra, sobretudo, que o aspecto mais importante a destacar de sua

relação com a professora é a autoridade e a autonomia que ela sempre deu aos alunos na sala de aula. Ele admite que, com isso, ela o ajudou a enxergar o mundo como um lugar que também o pertence: “Ela sempre me instigou a questionar, dizer o que acho que devo, independentemente das circunstâncias, porque o que importa, afinal, é lutarmos por aquilo em que acreditamos. Isso eu aprendi com a Cris”. Para alguém com formação em ballet clássico e um pouquinho de Footloose adquirido ao longo da vida, o jeito como Cristina encara a responsabilidade social de ser professora se alinha ao seu perfil de agente cultural: mais do que formar futuros bailarinos, ela deseja formar pessoas que sejam sensíveis à arte e que consigam enxergar a vida com os mesmos olhos que ela. “Gosto de saber que, se um dia algum de meus ex-alunos for a uma apresentação de dança, vai conseguir reconhecer o que é uma coxia, ou ter a capacidade de admirar a dificuldade na execução de determinada coreografia, por mais que a dança não permaneça em suas vidas”. O maior mérito de Cristina é não discriminar ninguém e, ao mesmo tempo, fazer com que os alunos acreditem em si mesmos, tornando-se protagonistas do espetáculo de suas vidas.

PRIMEIRA IMPRESSÃO | 33 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Sempre dancei. Desde os quatro anos a dança faz parte da minha vida. Cresci demais, – e muito rápido – e aos 12 anos a ginástica rítmica deixou de ser viável. Aos 14, precisei tomar uma decisão: sair do conforto e da familiaridade do ambiente do colégio particular e ir me aventurar em uma Escola Pública, ou esnobar o recém-criado Prouni e, quem sabe, perder a oportunidade de ter um curso superior financiado pelo Governo Federal? A opção pela escola foi fácil, pois já conhecia a fama de bons grupos de dança do Colégio Estadual Marechal Rondon. Porém, nada nos meus 14 anos de vida na classe média-baixa me preparou para o choque cultural e social que enfrentei ao chegar à escola pública. Uma pessoa, entretanto, marcou essa fase de minha vida por, principalmente, me estender a mão: Cristina Colares Pereira. Com sua generosidade, amor pelas pessoas, pela dança e, sobretudo, pela educação, ela me fez sentir em casa e entender, pela primeira vez, a importância que um professor preocupado e dedicado tem nas nossas vidas. Não, eu não a escolhi como fonte por acaso. Esse texto é uma forma de agradecê-la por tudo o que ela tem feito por pessoas como eu ao longo de seus 15 anos no magistério. Obrigada, Cris.


NÃO posso

Direito ou dever? A portaria do Ministério da Saúde que faz restrições à doação de sangue por homossexuais é, para muitos, um direito negado, e, para outros, o dever de garantir segurança ao receptor Por CAROLINE GARSKE Fotos AUDREY LOCKMANN BARBOSA

N

o início do primeiro semestre de 2015, os alunos de Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) resolveram aplicar um trote diferente nos calouros: no lugar de tintas, generosidade e solidariedade. Contação de histórias em creches que atendem crianças carentes e doação de sangue eram algumas das atividades que faziam parte do trote solidário. Miguel Henrique Cury, 26 anos, era um dos veteranos que ajudaram na ação. Ao chegar em um hemocentro

de Porto Alegre, ele foi avisado por uma amiga: não dá pinta e vai com a roupa mais heterossexual que puder. O estudante só entendeu o porquê do aviso quando entrou na sala para triagem. “A entrevistadora me perguntou se eu já tinha tido relação sexual com um homem alguma vez, e logo em seguida, disse que, se eu tivesse, não poderia doar sangue.” Para doar, Miguel mentiu que namorava uma menina há mais de um ano. Homossexual assumido para todos desde os 18 anos, fingir ser algo que não é lhe remeteu aos anos que viveu se escondendo das pessoas. Diferente de Miguel, José Vitor Reis da Silva, 25 anos, estudante de Design de Produto, não mentiu, e, assim, não pode doar. Zé, como é chamado pelos amigos, estava em uma relação estável de um ano e meio quando foi doar sangue. Quando questionado se a relação era com um homem ou com uma mulher, ele foi direto: homem. E foi impedido. Na hora, José Vitor perguntou por que não poderia doar sangue, e a entrevistadora chamou um médico que disse que ele poderia fazer um protocolo para que o procedimento de doação ocorresse. “Eu já estava cansado do dia de trabalho e falei que não faria o protocolo.” José Vitor lembra da experiência com frustração e lamenta: “Quando eu falei que estava num relacionamento estável, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 34 | DEZEMBRO DE 2015

se eu fosse heterossexual com certeza poderia doar. Por ser homossexual, não pude. Quer dizer que meu relacionamento estável pelo fato de eu ser gay vale menos?”, questiona. As experiências de Miguel e José Vítor se repetem todos os dias com outros homens devido à portaria de número 2.712 do Ministério da Saúde, que considera inapto temporário a doar sangue pelo período de um ano o homem que manteve relações sexuais com outros homens ou parceiras sexuais destes. De acordo com o artigo primeiro da portaria, a triagem clínica visa a segurança do


receptor, “com isenção de manifestações de juízo de valor, preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, cor ou etnia, dentre outras, sem prejuízo à segurança do receptor”. Luciano Victorino, militante na luta LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) e representante do movimento Juntos no Rio Grande do Sul, lamenta a existência da portaria, que, para ele, é um resquício da década de 1980, quando o vírus

HIV se disseminou fortemente entre a população homossexual. “O preconceito permanece, a grande questão hoje não é o comportamento sexual, porque a portaria fala sobre comportamento sexual, quando deveria falar da prática.” Para manter a portaria 2.712, o passado é um forte aliado do Ministério da Saúde. Isso porque a regra é baseada no boom que a Aids teve nos anos 1980, quando a doença foi considerada uma doença gay. Desde então, o preconceito com os homossexuais está muito ligado à promiscuidade que é associada a eles. Para PRIMEIRA IMPRESSÃO | 35 | DEZEMBRO DE 2015

José Vitor, o impedimento da doação por parte dos homossexuais não faz sentido: “Qualquer pessoa que tem uma vida sexual ativa deveria entrar num grupo de risco por estar se expondo a outros corpos, outros fluidos. Uma alternativa seria ter uma carteirinha que mostrasse se o doador fez testes de DSTs nos últimos meses como critério de avaliação”. O mesmo passado que se alia à questão de considerar homossexuais homens inaptos à doação de sangue faz com que Miguel embargue a voz ao contar sua experiência. Para ele, ter de mentir sobre sua sexualidade


para ajudar outra pessoa lembra-lhe de quando precisava mentir sobre si mesmo para que não sofresse preconceito. “Quando pisei no hemocentro e eu vi a entrevistadora dizendo que os gays não podiam doar em alto e bom tom, me remeteu aos 18 anos de um personagem, de uma vida dupla, agindo de uma maneira que não pudesse transparecer minha real essência, muitas vezes deixando de gostar de uma determinada referência musical, uma leitura, por medo de ser rechaçado.” PARA UNS, QUESTÃO DE PROTEÇÃO AO RECEPTOR Segundo a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde, a portaria 2.712/2013 considera inaptos para a doação de sangue homens que fizeram sexo com outros homens por 12 meses e não os homossexuais de forma definitiva. Em nota, a assessoria afirma que, no Brasil, dados do Departamento de DST (Doença Sexualmente Transmissível), Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde apontam que a epidemia de Aids está concentrada em populações de maior vulnerabilidade, tais como homens que fazem sexo com homens, usuários de drogas e profissionais do sexo. No entanto, não há divulgação dos números. A portaria, considerada discriminatória para tantos, é vista como uma medida preventiva pelo médico dermatologista especializado em doenças sexualmente transmissíveis Mauro Cunha Ramos, de Porto Alegre. Para ele, em casos de transfusão de sangue, a segurança do receptor é o mais importante. Ele contesta que a regra seja preconceituosa,

José Vitor, Luciano e Miguel consideram a portaria do Ministério da Saúde discriminatória PRIMEIRA IMPRESSÃO | 36 | DEZEMBRO DE 2015


O especialista em DSTs Mauro Cunha Ramos defende que a portaria 2.712 não é discriminatória, mas uma proteção ao receptor do sangue

IMPRESSÕES DE REPÓRTER

pois também se refere às pessoas de orientação heterossexual que fizeram sexo desprotegido. Além disso, ainda há controvérsias quanto a exames que podem ser realizados antes da doação de sangue: “A gente sabe que existe o falso negativo, ou seja, o teste é negativo, mas na verdade a pessoa carrega o vírus”, afirma o médico. Além disso, Mauro lembra que existe a “janela sorológica” da Aids, que é o tempo que corre entre a infecção e a doença ser detectada no sangue. “Se uma pessoa tiver relação hoje e se infectar, o teste dela só vai ser positivo após dois meses, ou seja, são 60 dias que o teste vai dar negativo e, se o sangue for usado, vai transmitir a doença”, explica. SENSAÇÃO DE DIREITOS NEGADOS Outra reclamação que os homossexuais fazem a respeito da portaria é de que ela é uma negação do direito de cidadão, como lamenta Miguel: “Meu direito de ir e vir como cidadão foi negado, como se eu não fosse igual, como se eu fosse uma

pessoa proibida em função da minha orientação sexual, e tudo isso é em função de um grande preconceito que foi se disseminando e se enraizando na cabeça das pessoas”. Já para o especialista Mauro, isso não pode ser visto como uma restrição de direitos, mas sim de dever em proteger o receptor do sangue: “É uma questão de discriminação se a pessoa tiver o acesso ao trabalho vetado, se tiver violência oral ou física. Normalmente as pessoas têm uma necessidade grande de direitos, mas, em geral, temos que ter, também, uma necessidade grande de deveres, dever, nesse caso, de proteger essa população que vai receber o sangue”. Em 16 de setembro deste ano, o Ministério da Saúde da Argentina retirou as restrições à doação de sangue por homossexuais. Para Luciano Victorino, do Juntos, movimento nacional que luta por direitos do cidadão, este é um grande avanço, e ele espera que o Brasil siga nesse mesmo caminho. “Precisamos de muita pressão social, que os movimentos se organizem e debatam essa pauta para que essas políticas discriminatórias não avancem”, finaliza. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 37 | DEZEMBRO DE 2015

O tema da reportagem, que trata sobre a portaria do Ministério da Saúde que considera inapto à doação de sangue pelo período de um ano os homens que fizeram sexo com outros homens, foi sugerido por uma amiga que foi doar sangue e se surpreendeu ao saber que a regra existia. Eu, igualmente surpresa, pois não imaginava que existia restrições baseadas no comportamento sexual das pessoas, resolvi tratar do assunto para discutir se isso era um problema de discriminação ou de proteção ao receptor do sangue. Em busca de respostas, entrevistei pessoas que passaram pela experiência de querer doar e não poder devido sua opção sexual e especialistas que explicam o porquê da portaria existir. Como sugeri no título “Direitos ou deveres?”, a reportagem trata de discutir a questão da portaria ouvindo diferentes opiniões, ouvindo a parte daqueles que sentem seus direitos de cidadão restritos devido à sexualidade, e aqueles que consideram a regra uma questão de dever pensar na segurança da população receptora de sangue. Espero ter contribuído para uma discussão saudável que possa incentivar mais debates sobre a pauta, que nos faça pensar mais sobre as questões de discriminação da população homossexual e também sobre a importância de uma doação segura a quem precisa muito.


Mesmo com a ajuda da filha, que é professora, Maria não pretende aprender a ler e escrever

NÃO leio

Uma vida sem palavras PRIMEIRA IMPRESSÃO | 38 | DEZEMBRO DE 2015


As histórias de duas mulheres que fazem parte do grupo dos 13 milhões de brasileiros analfabetos Por FRANCIELE COSTA Fotos ELIZANGELA MEERT BASILE

U

nir letras e sílabas e transformá-las em palavras: é isso que resulta neste texto. É o processo que você faz agora enquanto lê a reportagem também. Parece automático e simples, não é? Você nem se dá conta. Somente lê. Mas não é assim para todo mundo. Não funciona dessa forma para algumas pessoas. Maria e Terezinha fazem parte desse grupo do qual você não faz: o dos cerca de 13 milhões de brasileiros que não sabem ler ou escrever. Terezinha de Lourdes Meyer tinha dez anos quando entrou para a “escolinha” – ela usa o termo no diminutivo – em Sobradinho, cidade onde nasceu e cresceu, mas teve aulas apenas por alguns meses. Tinha que trabalhar para ajudar a família. Os dez irmãos dela também. A pequena Maria Baumart, de oito anos na época, ficou mais tempo no colégio: dois anos. Mas a dificuldade em aprender, somada à necessidade de ajudar os pais na lavoura a fizeram abandonar a escola. As histórias de Terezinha e de Maria não são as únicas espalhadas pelo país. De acordo com levantamento divulgado pela Unesco, em 2013, o Brasil tem a oitava maior população de adultos analfabetos do mundo. No Rio Grande do Sul, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o analfabetismo atinge 6,65% de pessoas com 15 anos

ou mais, cerca de 500 mil habitantes Aos 60 anos, Maria lamenta o fato de ter desistido de estudar. “Fiquei dois anos na primeira série, mas não aprendi quase nada. Tinha muita dificuldade”, lembra. Natural de Morrinhos do Sul, ela vive há 38 anos em Sapucaia e relembra saudosa que a mãe ainda insistiu para que ela continuasse os estudos, assim como os oito irmãos. “Eles sabem ler e escrever. Eu até sei reconhecer algumas letras, mas não consigo juntá-las”, explica. Eu pergunto o que ela consegue decifrar e ela me diz que reconhece o próprio nome e, com certo orgulho, os nomes dos quatro filhos: Fabiana, Fernanda, Filipe e Patrícia. A dona de casa fez questão que os quatro filhos estudassem. Fabiana Valim, aliás, é professora e já tentou alfabetizar a mãe mais de uma vez. Maria confessa que sente falta de saber ler e escrever, principalmente nos momentos em que precisa. “Gostaria de ler essa reportagem”, ela diz um tanto tímida. Mas também destaca que, mesmo com a ajuda da filha, não tem mais paciência para estudar. “É mais difícil ainda com a minha idade”, justifica com um riso. Fabiana conta que o processo para ensinar um adulto a ler e escrever é árduo. “Muitas vezes, porque eles não têm mais a mesma motivação pela novidade, como as crianças”, explica. A também professora Karla Botton, que ministra aulas do Projeto Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Escola Municipal de Ensino Fundamental Hugo Gerdau, em Sapucaia do Sul, concorda: “O preparo das atividades precisa ser mais elaborado”. Além de ter tido dificuldade no aprendizado e sentir que o trabalho sobrecarregava os estudos, Maria conta que a escola era longe de casa e relembra as dificuldades que passou com os irmãos. “Nós tínhamos que caminhar uns 40 minutos, e a gente era pobre, sabe? Não tinha nem calçado. Era bem difícil”, observa. Por isso ela incentiva os netos a estudarem, assim como incentivou os filhos. “Hoje PRIMEIRA IMPRESSÃO | 39 | DEZEMBRO DE 2015

meus netos reclamam de acordar cedo para ir para o colégio, mas eles não sabem a sorte que têm de poderem se dedicar só aos estudos”, reitera. Também moradora de Sapucaia do Sul, Terezinha conta que gosta de ouvir rádio e assistir à televisão. Ela também folheia jornais. “Gosto de ver as imagens”, justifica um pouco tímida. Quando precisa ler algo, pede para que alguém leia para ela. “Normalmente, sinto mais falta quando preciso ler algum documento importante”. Os momentos em que tem que utilizar transporte público são difíceis. “Reconheço os números, mas é bem ruim quando tenho que pegar ônibus para um lugar onde nunca fui”, relata. O fato de reconhecer os números faz com que Terezinha, a cada eleição, exerça seu direito de cidadã, mesmo podendo se abster por ser analfabeta. “Acho importante dar o meu voto.” Assim como Maria, Terezinha incentivou os quatro filhos a estudarem. “Nem todos se formaram, mas todos sabem ler e escrever”, diz com um sorriso que chega aos olhos. Para ajudar a dar aos filhos a oportunidade de ir à escola, Terezinha, hoje aposentada, trabalhou durante 20 anos como faxineira. Por causa do trabalho árduo, ela faz tratamento fisioterápico, pois sofre com fortes dores nas costas. E acredita que se soubesse ler e escrever poderia ter tido uma oportunidade melhor de emprego. Mas, já adulta, nunca quis tentar aprender? “Não adianta mais”, responde. Terezinha crê que a realidade vem mudando quando se fala em educação. “Meus filhos puderam estudar mais que eu, e meus netos ultrapassaram os pais”, conta orgulhosa, olhando as fotos das crianças espalhadas pela sala de casa. Terezinha tem razão: a taxa de analfabetismo no Brasil tem caído. Em 2013, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo IBGE, o país tinha cerca de 13 milhões de analfabetos maiores de 15 anos, o que corresponde


Terezinha faz questão de votar e exercer a cidadania a cada eleição

a 8,3% da população. O resultado é 0,4 ponto percentual abaixo do registrado em 2012 (8,7%). A pesquisa mostra que pessoas com mais de 60 anos são mais frequentemente analfabetas que as jovens. Entre os brasileiros com menos de 30 anos, a taxa de analfabetismo em 2013 chegou a 3%, enquanto na população com mais de 60, ela foi de 23,9%. Entre quem tinha de 40 a 59 anos, o analfabetismo atingia 9,2%. De acordo com a professora Karla Botton, uma das explicações para a diferença na taxa de analfabetismo entre as idades pode estar relacionada à dificuldade de atingir pessoas mais velhas com programas de alfabetização. “É mais difícil convencê-los a ir para uma sala de aula”, avalia a educadora. Além disso, segundo ela, muitos adultos que voltam a estudar acabam desistindo. “Eles trabalham, têm filhos, muitas responsabilidades. A escola se torna um sobrepeso. Por isso muitos alunos, infelizmente, não dão sequência aos estudos”, completa. O que não é o caso de Ilda Corrêa, 83 anos, alfabetizada há dois. “Sempre quis aprender a ler e escrever, mas

nunca tive oportunidade”, frisa. O amor pela religião – ela é evangélica – fez com que ela frequentasse aulas na igreja para poder realizar um desejo: ler a Bíblia. Agora que Ilda sabe ler e escreve o próprio nome, pergunto se já conseguiu realizar o desejo de ler a obra completa da Bíblia: “Ainda não terminei, minha saúde não ajuda; mas, assim como foi difícil aprender a ler e eu consegui, acredito que conseguirei realizar esse sonho também”. Na Escola Hugo Gerdau novas formas de fazer com que adultos retomem os estudos estão sendo formuladas. “Uma das ideias é oferecer as aulas, que hoje são realizadas no turno da noite, à tarde”, explica Karla. O intuito é que os pais possam optar por aulas no mesmo período em que os filhos estejam na escola. Apesar das dificuldades, projetos como o EJA buscam diminuir a taxa de analfabetismo no país. Quem sabe a criatividade de uma escola que atrai alunos com novas ideias, além da dedicação de uma filha que insiste em ensinar o alfabeto à mãe, façam com que mais pessoas possam realizar o sonho de ler e escrever, assim como Ilda. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 40 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Para mim, uma amante da escrita e dos livros, é difícil imaginar uma vida sem ler ou escrever. Sabia que no Brasil o número de analfabetos ainda é alto. Mas conhecer a história de quem não sabe ler ou escrever e as dificuldades que isso traz a vida delas, me fizeram dar ainda mais valor à educação e no que ela influencia na vida de cada um. Maria e Terezinha não tiveram a oportunidade de estudar como eu tive, e o tempo fez com que elas desistissem de voltar à escola. E muitos brasileiros passam pela mesma situação. Por issolonge de querer falar sobre política por aqui; o foco é a educação – creio que programas como o EJA sejam importantes, sim. Para que pessoas como as duas possam ter uma escolha. Entre os que optam pelo “não” ou pelo “sim”, creio que muitos já puderam escrever seu próprio nome, realizaram um sonho, como Ilda; ou, como Eva, aluna de da escola Hugo Gerdau, me contou em uma de nossas conversas: não apenas deixaram de ser analfabetos, mas passaram a apostar em seus sonhos e acreditar em si mesmos.


NÃO contamino

No ritmo da natureza

A família Frozi planta mais de 240 variedades de produtos e usa técnicas naturais de plantio que dispensam o uso de agrotóxicos Por NICOLE CAVALLIN Fotos RAFAELA AMARAL

Q

uando pensamos em agricultura ou em produção de alimentos, o que nos vem à mente são aquelas plantações em escala com fileiras e fileiras de alimentos da mesma espécie, uma atrás da outra. Geralmente produzidos para fins comerciais, os alimentos têm seu modo de produção acelerado, por meio de pesticidas e derivados, também conhecidos como agrotóxicos, para garantir o mínimo de perda. Pelo caminho inverso ao processo, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 41 | DEZEMBRO DE 2015

o agricultor e biólogo Carlos José Frozi, 61 anos, trabalha com uma alternativa para quem deseja manter a mesa longe da industrialização alimentícia. Em meio ao canto dos pássaros, na zona rural de Canela (RS), ele mantém plantações dentro da perspectiva da agroecologia, baseada na sustentabilidade dos ambientes, em uma prática que pouco interfere no andamento da natureza. Junto à própria casa, Frozi desenvolveu as plantações conforme um ecossistema, ou seja, com flores,


frutos, hortaliças e inúmeros tipos de vegetais, plantados de forma não linear, isto é, com a mistura de espécies e sem agrotóxicos, claro. Segundo Frozi, além de facilitar a evolução das plantas, a sistemática desenvolvida pela visão agroecológica faz com que não seja necessário o uso de produtos tóxicos danosos à saúde humana e ao solo, pois as lavouras são desenvolvidas a partir de recursos naturais, como o próprio planejamento das hortas e a rotatividade de culturas. Dentro do ecossistema criado pelo agricultor, a roseira, por exemplo, é plantada porque é um atrativo para as formigas cortadeiras e por isto serve como indicador, pois é uma das primeiras culturas que ela vai atacar. Os gerânios, por sua vez, são plantados perto do pé de ameixa, pois impedem que a lagarta atinja a raiz da ameixeira fazendo com que ela morra. “Plantas aromáticas como o manjericão e a arruda também são plantadas de forma estratégica, pois o vento leva o aroma delas, e isso faz com que as pragas sejam espantadas”. O técnico em agricultura Leonardo Schneider lembra que os agrotóxicos são prejudiciais para a saúde, assim como a maioria dos medicamentos, conservantes, entre outros, uma vez que são substâncias estranhas para corpo e podem trazer prejuízos, se consumidos em grandes quantidades. “A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) determinou alguns limites de consumo para cada tipo de elemento químico, mas o problema atual é saber se os prazos entre a aplicação e a colheita do alimento estão realmente sendo respeitados”, afirma Schneider. Longe dos produtos agroquímicos, um dos métodos naturais utilizados por Frozi para acabar com os fungos é fazer o chá de uma planta chamada cavalinha e borrifar nos vegetais. Outra tática utilizada para que as folhas fiquem com uma aparência mais bonita e sem furinhos é a de um repelente orgânico, feito com cinzas de fogão à lenha diluídas em água e peneiradas com leite sobre as plantas. No entanto, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 42 | DEZEMBRO DE 2015


na opinião de Frozi, não há necessidade disto, pois é só uma questão estética que em nada altera o sabor do alimento. Do contrário, a planta está saudável e em ótimo estado para o consumo. Todo o conhecimento do agricultor também foi compartilhado nas salas de aula. Por 20 anos Frozi deu aulas de Biologia em universidades, até perceber que o discurso que fazia na academia estava longe da realidade de cada aluno. Por isso, trocou o barulho da Grande Porto Alegre pelo ronco dos bugios na Serra. Então, realizou um estudo para que cada espécie fosse plantada em um lugar específico, a fim de que o próprio ecossistema servisse como inibidor de pragas. “Na verdade eu aprendi muito sobre botânica com a minha bisavó, que era semiletrada. Ela já tinha jardins misturados com flores, temperos e hortaliças. Tudo era misturado. Eu sempre digo que eu aprendi mais com sábios não letrados do que com doutores ignorantes”. Em Canela, o trabalho de venda de produtos orgânicos já contabiliza três anos, mas a família de Frozi vende a maioria das coisas que produz na feira de Porto Alegre, há cerca de 30 anos, orgulhando-se dos alimentos sem veneno. O agricultor conta que não sabe o nome dos produtos químicos que são frequentemente utilizados por produtores e, por conta disso, quando resolveu voltar a plantar, apenas resgatou a maneira tradicional da família de cultivar. São mais de 240 variedades de produtos, sem qualquer adição de agrotóxicos. Há alimentos como a laranja, o brócolis e a arruda, que só em Porto Alegre vende de 15 a 20 galhos por semana. Até os menos convencionais como o damasco, o figo da índia, o café, a castanha portuguesa, o trigo mourisco e o mamão, que por conta do inverno pouco rigoroso, deu o fruto pela primeira vez em 20 anos, são vendidos. O VALOR DOS ORGÂNICOS Cada alimento sem agrotóxicos tem seu valor e, em geral, os pro-

dutos orgânicos chegam a ser 30% mais caros do que os convencionais, o que acaba dificultando que todas as pessoas tenham acesso a eles. Para o técnico em agricultura Leonardo Schneider, um dos fatores que contribui para o aumento no custo destes produtos é o baixo incentivo governamental aplicado nas produções familiares. “Estas propriedades são as que possuem as maiores possibilidades de praticar a agricultura orgânica, pois cultivam menores áreas e possuem disponibilidade de mão de obra. Além disso, alguns ainda dominam as técnicas mais antigas de cultivo, que não são baseadas no uso de agroquímicos”. Para Frozi, a questão é ainda mais ampla. Ele explica que também existe um custo ambiental na produção destes alimentos e que isso acaba sendo refletido nas bancas. “Todo mundo quer a natureza preservada, mas quando um esquilo come quase a metade da produção, por exemplo, porque só o agricultor tem que bancar a alimentação desse esquilo? Tu queres a natureza preservada lá, mas tu não queres mexer no teu bolso. Só que alguém precisa fazer isso”. Na propriedade dos Frozi, quem faz todo o trabalho de plantação, colheita e comercialização é ele e a esposa, Sidonea Gomes, ou Sida, como é chamada. Ele explica que faz apenas alguns manejos de manutenção nas plantações duas vezes ao ano e que depois de aprender a lidar com a natureza, ela caminha sozinha. “Ela é autossustentável. Precisou do homem para o ecossistema se tornar sustentável? Não, né. Ele andou sozinho. Se tu me perguntares qual é o melhor adubo, não existe. Para mim, a cultura que no ano eu mais me dedico, mais olho, é a que mais desenvolve. Mas, eu tenho que olhar ela todos os dias. Isso é amor!”, define. Por isso, Sida e Frozi dão a principal receita do sucesso de suas lavouras: plantar os alimentos respeitando a natureza e cultivando cada um deles com amor. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 43 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Na manhã que passamos na casa do Frozi e da Sida, eu e a fotógrafa Rafaela conseguimos perceber que não adicionar produtos químicos aos alimentos era somente uma das medidas de defesa ambiental tomadas pelo casal. Entre outras coisas, além do cuidado em não utilizar agrotóxicos nas plantas, os dois também construíram uma estação de tratamento de esgoto caseira. Não era apenas o cultivo de alimentos saudáveis que fazia das lavouras de Frozi um diferencial para a pauta, mas sim- e acredito que principalmente- o fato de suas plantações serem todas construídas com base na agroecologia, em uma filosofia de vida e de proteção e harmonização entre todos os seres da natureza. Os agricultores convencionais acabam esquecendo que as espécies sempre fluíram sozinhas e que o papel do homem é conduzir a produção dos alimentos seguindo o movimento da natureza. Quando os alimentos não são contaminados com agrotóxicos, não temos todas as variedades que gostaríamos de consumir disponíveis o ano inteiro, porque a natureza tem o seu tempo. E acredito que este tenha sido o grande lembrete que tive fazendo esta reportagem, que na verdade foi um grande aprendizado.


NÃO sigo

D

Sobre música e latas de salsicha

o lado de fora, ninguém diz que é um estúdio. O número 606 da Rua Dom Pedro II, em Canoas, fica em uma região residencial. Embora pequena, a sala de ensaios é muito boa, mas o diferencial está no suporte. No estúdio Chadam, Cláudio é a pessoa que agenda os ensaios, dá suporte às bandas e produz gravações. Para entender o estúdio, precisamos primeiro conhecer Cláudio, e o ponto de partida dessa história é a tatuagem de uma lata de salsichas que ele tem no braço esquerdo.

Entre seguir uma profissão e viver uma profissão, existem diferenças. Cláudio Oderich construiu para si um caminho diferente daquele que sua família imaginava Por DANIEL GRUDZINSKI Fotos PRISCILLA MELLA PRIMEIRA IMPRESSÃO | 44 | DEZEMBRO DE 2015

SOBRE O CARA DO ESTÚDIO E A TATUAGEM DA LATA DE SALSICHA Nem todas as tatuagens precisam ter significado, mas essa tem muito. Cláudio Fontoura Oderich faz parte da oitava geração do fundador da Conservas Oderich, Adolfo Oderich, que criou a empresa em 1908. Ele leva o mesmo nome do pai, Cláudio Oderich, diretor geral de operações da empresa. Pareceria óbvio que Cláudio trabalhasse na empresa da família. Mas o óbvio não é necessariamente o melhor.


SOBRE UMA GRANDE EMPRESA Conhecemos a Oderich pelos sachês de ketchup, maionese e uma vasta linha de alimentos. Tudo surgiu em 1879, quando um cara chamado Adolph Oderich imigrou da Alemanha para a cidade de São Sebastião do Caí, no Rio Grande do Sul. Esse cara era jovem, tinha 22 anos e, assim que chegou por aqui, montou um armazém. Na época, banha era um produto relevante na economia, mas também funcionava como moeda de troca. Embora de difícil perecimento, a qualidade da banha era variável e dependia da origem. Então, Adolph desenvolveu uma maneira de industrializar esse produto com um padrão específico de qualidade. Posteriormente, enviou seu filho mais velho para a Alemanha, a fim de desenvolver uma solução para conservar melhor o produto. O guri voltou três anos depois dominando uma tecnologia de conserva de alimentos em embalagens metálicas, e em 1908 fundaram a Conservas Oderich. SOBRE O CARA DO ESTÚDIO QUE NÃO TRABALHA NESSA GRANDE EMPRESA Oito gerações depois, e 78 anos após a fundação da empresa, Cláudio

nasceu. Atualmente ele é proprietário do estúdio Chadam, atua em três bandas e também é produtor musical. O contato com a música foi cedo, aos cinco anos, mas naquele momento ainda não era uma grande paixão, e se resumia a aulas de piano com sua avó materna. Assim como todos os seus primos, foi a avó quem ensinou as primeiras notas musicais. Aos cinco anos, em um piano de parede, Cláudio decorava partituras. A paixão pelo “fazer música” veio bem mais tarde, ao resgatar o antigo violão de sua mãe. Cláudio não teve muito tempo para interagir com sua mãe biológica. Quando tinha pouco mais de três anos, ela morreu em um acidente de carro enquanto retornava de um concurso público. Meses após o acidente, a família receberia sua nomeação para juíza da Justiça Estadual gaúcha. Indiretamente, ela teve um papel fundamental na formação pessoal do filho. Aos 11 anos, Cláudio descobriu um violão Gianninni que fora de sua mãe. Foi ali que transpôs as notas musicais das teclas para as cordas de nylon do instrumento de quase 30 anos. Junto com o aprendizado do violão, surgiu a paixão pelo rock. Sua família nunca o proibiu de fazer o que gostava – pelo menos não diretamente. Com o passar dos anos, o interesse pela música ofuscava alguns PRIMEIRA IMPRESSÃO | 45 | DEZEMBRO DE 2015

deveres de Cláudio. Seu pai nunca fora declaradamente contrário às atividades musicais do filho, mas a música se mostrava mais importante do que o compromisso com os estudos. Com 12 anos, Cláudio já havia formado sua primeira banda, deixando o violão de lado para dedicar-se ao contrabaixo. Para adquirir o instrumento, teve que recorrer à ajuda de sua avó materna. SOBRE UM VERÃO EMPACOTANDO SACHÊS DE CONDIMENTOS O primeiro baixo passou pouco tempo “morando” com Cláudio. O confisco do instrumento veio junto com as baixas notas escolares, e, quando pôs as mãos novamente no baixo, nunca mais o levou para casa. Desde então, a residência do instrumento foi a casa de um dos colegas de banda. Anos para frente, a música e o desempenho escolar conflitaram novamente: Cláudio fora reprovado na escola, e dessa repetência surgiu a primeira experiência profissional. Como medida educativa, foi convencido a trabalhar na empresa da família durante o verão daquele ano. Enquanto sua família curtia as férias no litoral, Cláudio descobria que encaixotar latas e sachês não era tão divertido.


O jaleco branco e as botas de borracha faziam parte da rotina dos funcionários da produção, inclusive da de Cláudio. As manhãs de um turno integral de trabalho começavam com ginástica laboral, seguida por horas de separação de milho e encaixotamento de sachês. Mesmo trabalhando, os ensaios nunca foram deixados de lado. SOBRE ESCOLHER UMA FACULDADE E TRABALHAR NA EMPRESA DA FAMÍLIA Ao terminar o Ensino Médio, Cláudio começou a faculdade de Administração. Mas havia uma peculiaridade na habilitação: se graduaria em Empreendedorismo e Sucessão. Segundo a descrição oficial dessa graduação, o curso “possibilita uma compreensão da dinâmica particular de empresas familiares e dos elementos que facilitam ou dificultam o processo de sucessão familiar, objetivando dar continuidade ao empreendimento da família”. Sob forte incentivo familiar, durante a primeira metade de sua graduação, Cláudio trabalhou na área logística da sede da Oderich, em Eldorado do Sul. Lá atuava na organização do envio de embalagens metálicas para outras fábricas da empresa. Naquele momento, Cláudio estava genuinamente deslumbrado com as atividades profissionais. A música, agora, estava longe de ser sua prioridade, e o foco era o trabalho. Durante aquele período, surgiu a oportunidade de ir para o Canadá para cursar inglês e se aperfeiçoar na língua. SOBRE APRENDER A VIVER FORA E TER UMA NOVA EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

recompensado profissionalmente de maneira genuína. Foi lá também que voltou a frequentar shows e reconstruir sua paixão pela música. SOBRE VOLTAR AO BRASIL, DEIXAR O TRABALHO E INVESTIR NA MÚSICA De volta ao Brasil, retomou sua graduação e voltou a trabalhar na empresa da família. Mas, ao retornar para casa, seu principal foco passou a ser sua banda – a Interfone. As dinâmicas de trabalho e as relações familiares dentro da empresa sempre foram pontos negativos da sua atividade na Conservas Oderich. Sob forte pressão, Cláudio deixou de trabalhar na empresa da família para nunca mais retornar. Nessa época, algo inesperado aconteceu: mais de 20 anos após a morte de sua mãe, Cláudio foi beneficiado por um processo indenizatório. Foi a hora de – literalmente – investir na música. Em Porto Alegre, começou a gravar o disco da Interfone. Na sequência, decidiu, junto com os integrantes da banda, ir para São Paulo e finalizar a gravação do seu disco por lá. Em São Paulo, o foco total foi na música. Durante um ano, gravaram em um estúdio de referência, e puderam envolver-se com grandes nomes da cena musical brasileira. Cláudio estava independente, fazendo o que realmente gostava e se envolvendo cada vez mais nos seus próprios interesses. Além das bandas em que já tocava, surgiu a oportunidade de tocar em mais uma, a NEC. Com o projeto do disco da Interfone finalizado, a banda retornou ao Rio Grande do Sul. SOBRE O CHADAM 606

O Canadá não ensinou somente a língua inglesa. Por lá, Cláudio teve um choque cultural - mas no bom sentido. Terminou os módulos do curso de inglês com antecedência e teve a oportunidade de trabalhar em uma cafeteria. Por suas qualidades comunicativas, mereceu uma função gerencial e se viu

De volta ao Sul, Cláudio se associou com um amigo e pôde pôr em prática um novo projeto: o Estúdio Chadam. Do ponto de vista de Cláudio, o Chadam não é simplesmente um estúdio, é uma ferramenta de fortalecimento da cena musical em Canoas. Não é PRIMEIRA IMPRESSÃO | 46 | DEZEMBRO DE 2015

qualquer banda que ensaia por lá. Ali circulam bandas em que ele realmente acredita, com som e visão similares ao que admira e gosta na música. Há mais de dois anos é o espaço onde Cláudio investe seu tempo e seus interesses. O caminho profissional que construiu para si mesmo não envolve dinâmicas conflituosas e interesses divergentes. Quem imagina que Cláudio brigou com a família para fazer o que ama, está errado. Não existe pressão para atuar na Conservas Oderich. Seu caminho até aqui mostrou que viver uma profissão é muito diferente de ter uma profissão.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER É interessante descobrir detalhes de pessoas que têm profissões aparentemente mais interessantes que a sua. Durante uma época, eu acreditava que “profissão” era vender a vida em porções de oito horas por dia, durante 35 anos. Hoje, vejo o mercado de trabalho com mais otimismo. Já fantasiei sobre tocar negócios de família, mas esse não é o meu caso, e a história do Cláudio me trouxe um ponto de vista inédito sobre essa questão. Um caminho profissional seguro e previsível pode ser infeliz. Se hoje escrevo “impressões de repórter” para uma revista experimental, é porque escolhi isso. Aos poucos, descubro que as escolhas definem as coisas na vida. Colocando-me no lugar do Cláudio, imagino tomar decisões similares às que ele tomou. O trabalho toma muito tempo da vida. E na vida o que a gente tem de mais valioso é o tempo.


Cláudio poderia trabalhar na empresa de sua família, mas preferiu fazer da música sua profissão

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NÃO creio

A liberdade de

não ter fé PRIMEIRA IMPRESSÃO | 48 | DEZEMBRO DE 2015


A

Ateísmo e agnosticismo como afirmação de individualidade Por CAUBI SCARPATO Fotos JEAN PEIXOTO

inda que tratados muitas vezes como pares, agnósticos e ateístas (ou ateus) têm diferenças marcantes em suas formas de encarar e praticar a negação. Mesmo que ambos comunguem daquilo que o filósofo francês Henri Bergson caracterizou por “uma atitude tomada pelo espírito diante de uma eventual afirmação”, ateístas e agnósticos negam a crença em Deus por formas e motivações diferentes uns dos outros. Para os agnósticos, a questão tem um cunho mais cético, na medida em que declaram a impossibilidade de reconhecer qualquer entidade que de alguma forma interferirá na vida das pessoas. Os ateístas, por sua vez, se declaram convictamente contrários a existência de qualquer divindade pré-estabelecida, conforme explicitado pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) em seu site oficial, no qual afirma que ateus não possuem crença na existência de deuses, e agnósticos entendem que essa questão está em aberto. A fronteira entre esses dois tipos de negação, entretanto, costuma ser tênue e bastante porosa. Para o professor Clóvis Gedrat, coordenador do curso de Filosofia da Unisinos, o agnosticismo desenvolve um caminho paralelo às ciências e a tecnologia, tensionando as práticas religiosas e suas finalidades através da negação daquilo que não pode ser comprovado cientificamente. Já o ateísmo, para ele, vem ganhando força especialmente no último século, e sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. “O ser humano comprovou que pode ser muito mau e cometer atrocidades, que levaram a questionamentos mais diretos em relação aos valores pregados pelas religiões e especialmente pelo catolicismo”, explica. Gedrat destaca ainda o pensador alemão Friedrich Nietzsche, relacionando sua produção intelectual com o ateísmo a partir da mirada do niilismo – a descrença absoluta de tudo. Com esse pensamento, o célebre filósofo refutava também a teologia. No entender de Nietzsche, a negação às divindades funcionaria como uma afirmação da individualidade, criadora PRIMEIRA IMPRESSÃO | 49 | DEZEMBRO DE 2015

de uma identidade singular, que permite às pessoas viverem na massa, porém com um pensamento livre, reivindicado, nesse caso, justamente pela figura do não. MOTIVAÇÕES Assim como se manifesta de diferentes formas, a negação em relação às divindades também responde a questionamentos pessoais, reservados a cada pessoa que se identifica como agnóstico ou ateísta. Para o marceneiro Fernando Kehl, por exemplo, o ateísmo surgiu na adolescência, mesmo tendo passado pelo ritos católicos de comunhão e crisma. “Eu nunca acreditei naquilo que era ensinado, pois não conseguia ver a lógica nas histórias bíblicas”, afirma. A falta de sentido nas práticas e crenças religiosas, no seu caso, acabou gerando uma descrença na própria religiosidade. “Tipo, faça o bem pois, do contrário, Deus, o ser muito bom e caridoso, vai te punir com o fogo do inferno”, exemplifica. A descrença na religiosidade e nas divindades, no entanto, nem sempre é tão explícita. O professor Eduardo Veras, do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica sua relação com essa negação pelo viés de uma ‘não convicção’ mais afeita à visão agnóstica, que não acredita em nenhuma profissão de fé religiosa. “Talvez fosse bom que eu tivesse alguma crença, talvez fosse bom reconhecer isso. Mas eu não tenho, eu não acredito, e ainda que eu não me vanglorie disso, para mim é mais como uma condição”, argumenta. No entendimento do professor Clóvis Gedrat, independentemente das motivações para as escolhas dos sujeitos em relação às suas profissões de fé, o que deve prevalecer é o respeito à individualidade. Para ele, muitas vezes a condição de ateísta ou agnóstico é uma demonstração de coragem, um clamor de respeito em favor da subjetividade de cada um. Gedrat destaca ainda um fenômeno que vem ganhando força nos últimos anos e às vezes confunde-se com o ateísmo, embora seja conceitualmente diferente. “Cada vez mais pessoas dizem


não à estrutura religiosa, materializada normalmente na instituição da Igreja, ainda que acreditem em divindades e na influência delas em suas vidas”, pondera. Nesse caso, a crítica concentra-se na figura de um Deus institucionalizado, derivado de uma industrialização e formalização da fé, refutada por muitos indivíduos que acabam professando sua religião individualmente. Já no caso da ATEA, entretanto, a crítica às religiões aparece em seu site oficial de forma muito mais frontal e direta, especialmente em relação ao cristianismo, que, segundo a associação, discrimina mulheres e homossexuais, demoniza os ateus, proíbe o aborto, a camisinha e os métodos contraceptivos, além de interferir em políticas de Estado através do uso de recursos públicos e oposição às pesquisas científicas. Sua página na internet declara ainda (e não sem uma ponta de ironia), que todas as pessoas podem viver sem a crença em divindades, da mesma forma que as pessoas vivem sem o Papai Noel ou o Saci-Pererê.

Para o filósofo alemão Nietzsche, a negação às divindades funcionaria como uma afirmação da individualidade

de situação. Trata-se, portanto, de uma postura incômoda para a coletividade e seus padrões vigentes, que, ao reforçar um caráter individual, confronta esses padrões e leva, muitas vezes, à discriminação do indivíduo. No entendimento do professor Veras, contudo, esse preconceito em relação a ateístas e agnósticos já não é mais tão explícito pois, segundo ele, as religiões exigem muito pouco de seus adeptos no Brasil, o que acaba gerando uma maior tolerância em relação às demais profissões de fé, salvo em raras exceções de casos extremistas. LAICIDADE DO ESTADO

PRECONCEITO Minoria em um país religioso e cristão, ateístas e agnósticos estão muitas vezes sujeitos a preconceito, cobranças e sanções no convívio em sociedade. Esse preconceito, segundo eles, surge das mais variadas formas, seja através de violência física e verbal, demonização e discriminação na família, trabalho, escola e sociedade em geral. Para o professor Gedrat, essa discriminação ocorre muitas vezes porque a postura ateísta é tida como uma afronta a valores instituídos, por meio de uma busca por afirmação individual que se utiliza da figura do não, que acaba causando estranhamento e segregação. Para ilustrar a questão, ele utiliza o exemplo da fotografia: quando tiramos uma foto e eventualmente não sorrimos, logo somos questionados pelos demais a responder o motivo de não estarmos sorrindo, já que essa é a postura indicada para esse tipo

Uma reivindicação que parte dos ateístas e agnósticos e vem causando cada vez mais reverberação em ou-

tras esferas da sociedade brasileira é a questão da laicidade do Estado. Para o ateu Fernando Kehl, por exemplo, o Brasil só é laico no papel. “Em algumas escolas, professores que deveriam estar ensinando matemática, ciências, português, ficam ensinando religião”, afirma. Outro ponto apontado por Fernando e corroborado pelo professor Gedrat é a partidarização da religião nas bancadas políticas do país, algo que fere o conceito de laicidade do Estado e causa uma disparidade de representação no âmbito governamental. Para o professor Gedrat, a formação de bancadas políticas advindas de agremiações religiosas, que tem ganhado força ano após ano, atenta frontalmente, inclusive, o conceito de República Federativa estabelecido pela Constituição Brasileira, que prevê também a garantia à livre profissão de fé (ou não-fé, nesse caso) de qualquer cidadão em território brasileiro.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A pauta sugerida para esta edição da PI logo de cara me pareceu bastante desafiadora do ponto de vista operacional, já que abordaríamos em nossas reportagens a negação, conceito que em um primeiro momento me pareceu muito ligado àquilo que fica oculto ou não é aceito no cotidiano das pessoas. A partir da delimitação da pauta e com o decorrer das entrevistas, fui me inteirando do quanto as negações (às divindades, no meu caso) possuem de afirmação, na medida em que refletem muitas vezes corajosas e pertinentes reivindicações em favor de temas como liberdade de expressão e tolerância, como no caso do respeito à profissão (ou não) de fé com a qual me deparei durante a reportagem. Por se tratar de uma questão de cunho pessoal e reservado, tive certa dificuldade em localizar pessoas que se identificassem como ateístas ou agnósticas, o que me levou a procurar entender a questão também através de uma mirada filosófica e teórica, o que ao final acabou contribuindo para melhor compreensão do tema abordado, além de complementar as informações que colhi junto aos entrevistados.

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NÃO me submeto

Mulheres como protagonistas Em um país líder no número de cesáreas, a opção pelo parto humanizado vem crescendo Por DIOVANA DORNELES Fotos JÚLIA BONDAN

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momento em que a mulher traz ao mundo uma nova vida é, para muitos, o mais belo e puro da existência humana. Mas para que o parto seja algo realmente bom para mãe e bebê, é preciso respeitar as vontades da mulher, levando em consideração seus desejos. Esse é o principal objetivo do parto humanizado, garantir que a mulher seja a protagonista do seu parto. O parto humanizado não é apenas um parto natural, ou aquele em que o bebê nasce em casa. A humanização PRIMEIRA IMPRESSÃO | 51 | DEZEMBRO DE 2015

acontece na forma como o nascimento é tratado por todos que estão nele envolvidos e começa bem antes da chegada ao hospital. Desde o início do pré-natal fala-se do parto, e a mulher é preparada emocionalmente para o nascimento do filho e para a maternidade. No hospital, quando chega a hora do bebê vir ao mundo, a bolsa rompe-se naturalmente, diferente do que acontece em alguns partos normais, quando o médico fura a bolsa para acelerar o processo. Além disso, a gestante tem o direito de estar acompanhada de alguém de sua confiança, não necessariamente um fa-


miliar. Em muitos casos, as mulheres optam por terem ao seu lado uma doula. “As doulas são pessoas que dão apoio emocional durante todo o trabalho de parto”, explica Fabi Panassol, doula há 12 anos. Isso já é um direito assegurado pela lei do acompanhante (11.1080/2005) e que completou uma década neste ano. No parto humanizado, todo e qualquer procedimento só deve ser realizado com o consentimento da gestante. Caso seja a vontade da mulher, a anestesia pode ser utilizada para diminuir as dores. O obstetra faz todo o acompanhamento durante o trabalho de parto. De acordo com Marcos Wengrover Rosa, Chefe do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Moinhos de Ventos, de Porto Alegre, é preciso verificar se está tudo bem com a saúde da mãe e do bebê e manter a gestante informada sobre tudo o que está acontecendo. “A gestante e a família precisam ser informados sobre todas as benesses e riscos eventuais de cada intervenção possível no que diz respeito a hora do parto para então poder decidir o que quer e o que não quer, sempre dentro dos limites do que é seguro do ponto de vista médico para a mãe e para o bebe”, explica. Após o nascimento, o bebê é colocado no colo da mãe para o contato pele a pele. O cordão umbilical é cortado apenas quando para de pulsar, e o recém-nascido é estimulado a mamar ainda na primeira hora de vida. No parto humanizado, a mulher tem participação ativa em todas as tomadas de decisões. Ela deixa de ser “passiva” para tornar-se protagonista do parto. “O termo ‘humanizado’ não se refere apenas ao tipo de nascimento. Humanizar significa respeitar, individualizar a atenção, fazendo de tudo para que o momento seja único, particular, resultando na melhor experiência possível”, completa o médico.

A HORA CERTA A bolsa rompeu. A correria movimentou aquele sábado de setembro. O pai dirigia o carro rumo ao hospital e a mãe tentava não pensar nas contrações, cada vez mais frequentes. Mas não teve jeito, a caçula de três filhos não quis esperar a chegada à maternidade e nasceu ali, no carro. A pequena afoita por desbravar o mundo cresceu escutando a história de seu nascimento, um parto normal, assim como o dos seus irmãos. Caroline Orth, a menina que nasceu no carro, quando descobriu que seria mãe, teve uma única certeza: seria parto humanizado. “Cresci com minha mãe contando que teve os três filhos de parto normal. Não existia pra mim outra opção além do parto humanizado”, conta. A jornada de Caroline até o nascimento do filho João levou cinco anos. Nesse período, ela buscou saber o que seria melhor para o bebê que estava sendo planejado. Após conversas com amigas e especialistas e também muita leitura, teve certeza de que o parto humanizado era o melhor para ambos, mãe e bebê. Assim que recebeu PRIMEIRA IMPRESSÃO | 52 | DEZEMBRO DE 2015

a confirmação de que estava grávida, Caroline entrou no grupo de yoga para gestantes com o objetivo de se preparar para a chegada do filho. Uma preocupação de Caroline, que também acaba sendo a de muitas mães, era respeitar o momento e o tempo do filho. “O João tem que vir no tempo em que ele quiser vir, sem indução, sem cesáreas”, era o pensamento dela nas últimas semanas da gestação. O nascimento do João Francisco, filho da Caroline, foi um parto humanizado. Ela teve acompanhamento de uma obstetra e também de pediatra que seguem a linha humanizada. “Ter o acompanhamento de uma equipe que entendia o que eu queria me trouxe conforto e segurança”, destaca a mãe. Durante o trabalho de parto, Caroline teve liberdade para ficar com pessoas que lhe trouxeram segurança, como o marido. No hospital, em uma sala com pouca luz, ambiente preparado para o nascimento do João, ela seguia as orientações recebidas durante as aulas de yoga para gestantes, controlava a respiração, fazia todos os movimentos para preparar o corpo para a vinda do filho. Essa liberdade está intrínseca ao parto humanizado. Com os olhos marejados e a voz embargada, Caroline conta sobre o momento em que o filho nasceu. “Na hora eu pensei ‘não poderia ter sido melhor’ “, relembra a mãe. Ela já se prepara para o próximo filho e garante: “Também farei parto humanizado”. AMIGAS DO PARTO As doulas são mulheres que dão apoio emocional para a gestante durante o trabalho de parto. Por geralmente já serem mães e terem passando pela experiência do parto, as doulas transmitem confiança e segurança para


gestante. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde (MS) admitem que os nascimentos acompanhados por doulas são menos agressivos, mais tranquilos, com menos dor e proporcionam um maior fortalecimento da relação afetiva entre mãe e filho. Porém, não basta ser mãe para exercer a doulagem. É preciso formação para atuar e acompanhar os nascimentos. Fabi Panassol é doula há 12 anos e fez parte da primeira turma de doulas formadas no Rio Grande do Sul. A doula explica que, no começo, acompanhava poucos partos. O primeiro que ela fez doulagem foi no da cunhada. Aos poucos, uma pessoa foi comentando com a outra e ela passou a ser requisitada para vários nascimentos. “Da época em que comecei para cá, as mulheres procuram muito mais”, comenta Fabi. Sobre o papel das mulheres que exercem a doulagem, Fabi ressalta que elas não desempenham a função médica. “O médico tem a função de cuidar do bem-estar físico da mãe e do bebê, o que doula não faz”, destaca Fabi. Fabe explica que, por mais bem

preparada que a mulher esteja para o nascimento, ela acaba ficando vulnerável, principalmente se for o seu primeiro filho. O parto é um caminho novo para a gestante e para o marido. Ambos são marinheiros de primeira viagem. “O que é a doula? Aquele ponto de apoio, a pessoa que já tem experiência, já conhece esse caminho e está ali para fortalecer as convicções do casal”, completa. UM LONGO CAMINHO A SER PERCORRIDO O Brasil é o país com maior número de cesáreas do mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), dentre os partos realizados no país, 35% são cesáreas, sendo que o índice recomendado é de 15%. Na rede privada, o número é ainda maior, ficando entre 70% e 90% em algumas maternidades. Entre janeiro de 2008 e fevereiro de 2014, foram realizados quase 11 milhões de cesáreas no Brasil. Em contrapartida, apenas 7 milhões de mulheres tiveram partos naturais, segundo dados trazidos pelo Datasus.

João Francisco é a realização de um sonho para Caroline (à esquerda). Há 12 anos, Fabi faz o trabalho de doulagem

IMPRESSÕES DE REPÓRTER O parto humanizado é um tema que gera muitas dúvidas, porém nem sempre elas são esclarecidas. Durante uma conversa com uma colega, o assunto ficou martelando na minha cabeça. Li sobre, mas mesmo assim acreditava que era preciso fazer mais. A possibilidade de aprofundar o assunto surgiu quando o tema da revista foi definido. O “Não” seria o nosso norte para a produção das reportagens. No mesmo instante, liguei isso ao parto humanizado e a não submissão das mulheres aos procedimentos médicos propostos durante o nascimento de seus filhos. A ideia original era acompanhar um parto domiciliar, mas, ao longo da produção, a fotógrafa e eu percebemos que isso seria inviável, pois nossas presenças poderiam coagir a mãe e criar ambiente constrangedor, afinal de contas, estaríamos invadindo o momento tão íntimo. Assim, fui atrás de mães que tiveram partos humanizados nos hospitais (o que muita gente não sabe que pode ser feito) e acabei encontrando a Caroline, mãe do João, que tem uma história linda. Foi emocionante a entrevista com ela.


NÃO recaio

O despertar para a vida Marco decidiu dizer não às drogas e sim para a vida Por AMANDA MOURA Fotos DYESSICA ABADI

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oi há 12 anos, sentado na passarela da Rua Tiradentes com a Br-116, em Canoas, com uma grande quantidade de cocaína e uma garrafa de vodka nas mãos, embriagado e tomado por tristeza, que Marco Antônio Leite decidiu dizer não às drogas e pedir ajuda. Ao todo, foram 33 anos de dependência química e muitas perdas. Esse momento decisivo é chamado de o “despertar espiritual” pelos Alcoólicos Anônimos (AA). É o décimo segundo passo dos “Doze Passos”, o programa do AA e outros de mútua-ajuda estabelecidos mundialmente. Através da espiritualidade, o programa proporciona aos dependentes uma análise de vida nas três dimensões do ser humano: física, emocional, e espiritual. Os “Doze Passos” desencadeiam um processo de reeducação comportamental. Dessa forma, o tratamento não se limita à desintoxicação, mas sim em recuperar o ser humano como um todo. “Estava com 42 anos e 49 kg, se con-

tinuasse a me drogar iria morrer de fome em dias. Quando decidi dizer não às drogas, eu disse sim para a vida”, relembra o ex-dependente químico, que teve como maior ensinamento em sua recuperação a certeza de que todo ser humano, em qualquer situação, tem a capacidade de se regenerar. Nascido em Uruguaiana, o diagramador Marco Leite teve uma mudança brusca em sua vida aos 14 anos, com a ida do interior do Rio Grande do Sul para Canoas, na Grande Porto Alegre. Em 1978, chegou à cidade já empregado como office boy no O Timoneiro, por indicação da sua irmã, a jornalista Marione Leite, que já trabalhava no jornal. Muito tímido, o rapaz do interior foi matriculado em um novo colégio, passou a apresentar baixa frequência, notas baixas e iniciou o envolvimento com o álcool. Aos 18 anos, Leite começou a trabalhar como Dj em um famoso clube de Canoas, onde conheceu o mundo das drogas. Sem formação, apenas com o segundo ano do segundo grau, sempre foi interessado pela arte de fazer jornais, o que o levou para as artes gráficas. Além do O Timoneiro, Leite teve passagens pela Folha de Canoas, Correio de Povo e Zero Hora, consolidando uma carreira de diagramador. Ao longo do tempo, casou-se, teve uma filha, mas se perdeu nas drogas. Consumia de dois a três litros de vodka por dia e usava cocaína. Normalmente, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 54 | DEZEMBRO DE 2015

era encontrado pelas ruas de Canoas e era carregado para casa por ajuda de familiares e amigos. “Chegou ao ponto que não conseguia mais trabalhar sem tomar um trago, com 40 e poucos anos me vi desempregado”, recorda. COMUNIDADE TERAPÊUTICA Após o episódio da passarela, em junho de 2004, Leite resolveu entrar para a Comunidade Terapêutica Fazenda Renas-


cer, uma entidade civil de direito privado, sem fins lucrativos e sem vínculo religioso, em Novo Hamburgo. Ele pediu que a irmã Marione e a ex-esposa fizessem a escolha do melhor local, já que internações em clínicas haviam ocorrido sem êxito. No primeiro contato com a ONG Fazenda Renascer, o curador Ivander Silveira ressaltou que Leite tinha três dias para refletir sobre a atitude, pois na comunidade só ingressava quem realmente queria. Ele retornou para casa e iniciou a preparação para o momento. “Fui ao

dentista, arrumei uma unha encravada e fui ao boteco que frequentava. Me sentei e tomei uma garrafa de vodka inteira. Quando terminei, liguei para minha família e disse que poderiam vir me buscar, estava pronto para ir para a Comunidade. Foi a última vez que tomei algo que mudou meu comportamento, tudo que faço hoje é muito consciente.” Depois dos primeiros meses, veio a importância da família no tratamento. Toda vez que argumentava em ir embora da Comunidade, sua ex-esposa e sua PRIMEIRA IMPRESSÃO | 55 | DEZEMBRO DE 2015

irmã diziam que não iriam recebê-lo de volta. “Mais uma vez o não apareceu em minha história, quantos não’s eu recebi? Antigamente tudo era sim pra mim, então tive que aprender a conviver com o não”, conta Leite. As visitas na ONG aconteciam em um domingo por mês. Com seis meses de tratamento, Leite ganhou o direito de sair pela primeira vez da Comunidade para visitar a família. “Quando cheguei em casa e entrei no meu apartamento vi o estrago material que tinha feito na vida


alcoólico anônimo. “Eu faço questão de dizer que fui dependente para as pessoas saberem com quem estão lidando.” GIRASSOL, A FLOR DO SOL

da minha filha e da minha ex-esposa. Era um caco, tudo estragado e caindo aos pedaços. Eu não enxergava que elas estavam vivendo naquele lixo.” Durante a passagem pela Fazenda, o diagramador se manteve com o Seguro Saúde do INSS. Adaptou-se ao regramento da casa, aprendeu a organizar a vida e dizer não para coisas desnecessárias. Nas rotinas, também recebia outros dependentes que chegavam na Comunidade para recomeçar. “Tratei gente com sarna, suja, lavei roupa e isso me ensinou que eu não estava cuidando dos outros, estava cuidando de mim. Estava me enxergando no espelho.” Foram nove meses e 27 dias de reeducação comportamental dentro da Comunidade. “Durante muito tempo a droga me levou a ver o que eu quisesse, eu não respeitava ninguém e vivia uma vida de falsos prazeres”, ressalta. Para ele, a doença era escravidão, e o tratamento o conduziu para a liberdade de boas escolhas, de equilíbrio e da descoberta de que não poderia usar álcool e drogas sem prejudicar a si mesmo, a familiares e amigos. Fundada em 1976 pelo casal Ivander e Isolde da Silveira, a Comunidade Terapêutica Fazenda Renascer trabalha a partir de três princípios: espiritualidade, disciplina e trabalho. “Temos o compromisso de não promover somente a abstinência, mas recuperar o indivíduo como um todo”, destaca Isolde. Para Isolde, que acompanhou o tratamento de Leite e de outros dependentes,

não existe a recuperação sem o despertar espiritual. “A Renascer não tem vínculo com a religião. A espiritualidade é entendida como um valor da vida, uma caminhada de autoconhecimento.” A fundadora acredita que a recuperação de corpo e alma é um despertar para a vida e para a liberdade. “Nas palavras do psiquiatra Augusto Cury: ser livre é ter um caso de amor com a vida. Queremos um projeto de vida e não um projeto de morte”. O RECOMEÇO Foi num domingo de maio, que por coincidência era Dia da Abolição dos Escravos no Brasil, que Leite saiu da Comunidade e foi à luta. Aos poucos, retomou sua vida profissional, o relacionamento com amigos, ex-esposa e filha. Continuou ajudando outros dependentes, escrevendo artigos e ministrando palestras, um dos 12 passos do AA: transmitir a experiência e mensagem aos alcoólicos. Outro ensinamento aprendido é a autovigia constante. Nos últimos 12 anos de sobriedade, Leite faz a escolha do não para as drogas a cada 24h. Cabe a ele escolher entre o bem e o mal. “Saio de casa com o propósito de que não vou beber naquelas 24h, criei um Marco mais forte e este diz não para o malvado: ‘Te aquieta aí, que hoje eu sou o mais forte!’, conta ele. Hoje, aos 54 anos, é querido na sociedade e na profissão, sempre fez questão de dar a cara a tapa e optou por não ser um PRIMEIRA IMPRESSÃO | 56 | DEZEMBRO DE 2015

A planta de flor amarela gira sobre ela mesma, acompanhando a luz do sol. Mas, uma característica torna a flor especial: na ausência do sol, a flor se vira para encontrar outro girassol. Para Leite, a flor representa a sua recuperação e a necessidade do apoiar e acreditar em um dependente. A flor virou símbolo de seus ensinamentos a outros dependentes na Fazenda Renascer, demonstrando o quanto, quer sejam humanistas, agnósticos ou ateus, todos desejam alcançar a sobriedade e desfrutar de uma vivência sóbria. “Eu seguro minha mão a sua, para juntos podermos fazer tudo aquilo que sozinho eu não consigo”, afirma Leite esperançoso da importância de compartilhar experiências com os companheiros alcoólicos e, juntos, descobrirem o caminho para o sol.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A pauta me trouxe, novamente, as lembranças das histórias de alcoolismo de meu avô Érico e de meu tio Cláudio, que pude presenciar. Lembro-me que, após meses de muito álcool em seu corpo, meu tio transformou-se em um fiapo, perdeu trabalhos, amigos, a família e a dignidade. É triste e revoltante a capacidade que as drogas e a bebida têm de destruir a identidade até torna-los anônimos. Em meu primeiro emprego na área da comunicação, tive o prazer de trabalhar com Marco Leite. Não me recordo de vê-lo triste, pelo contrário, cada dia era único, cada dia era uma vitória. Emanava felicidade e amor à vida. Nunca tive a oportunidade de saber detalhes da sua história, e a reportagem me proporcionou conhecer mais uma linda história de superação das drogas. Marco, meu avô e meu tio me deixaram um grande ensinamento: não desistir do ser humano.


NÃO tolero

Intolerante à lactose, Fernanda tem o desafio diário de buscar uma alimentação adequada e saudável

Restrições que mudam a vida

Intolerâncias alimentares acarretam uma série de cuidados ao comer e beber Por ADRIANA CORRÊA Fotos MEL FASSINI

J

á se imaginou sem poder comer pão, tomar sorvete, leite ou cerveja? Pois esses e outros hábitos são alterados na vida de quem tem intolerância ao glúten e à lactose. Substâncias que, no organismo de intolerantes, causam reações negativas. A falta de tratamento pode provocar até câncer. Há seis anos, Fernanda Gonçalves, 32 anos, ficou deprimida ao ter que retirar alimentos que mais gostava da sua dieta. Temendo os sintomas, parou de comer fora de casa. “Tudo PRIMEIRA IMPRESSÃO | 57 | DEZEMBRO DE 2015

que gostava de comer tive que tirar da minha alimentação. Aí eu comecei a emagrecer. Foi bem difícil. No início, não comia. Tinha muito medo, porque é muito rápido. Eu como leite ou derivados e, 15 minutos depois, já tenho dores e diarreia”, relata. Ela também perdeu um pouco do convívio social. “No início eu não saía. Festa de criança, nunca mais. Deixei de fazer várias coisas. Agora é mais tranquilo. Como tem a enzima (lactase), então eu tomo antes de ingerir produtos com leite. Mas, no primeiro ano, minha


Por conta da forte intolerância ao glúten, Denise precisa ter cuidado com a contaminação cruzada, que pode ocorrer no preparo dos alimentos

vida mudou radicalmente”, descreve. Segundo a Sociedade Brasileira de Alergia e Imunologia (SBAI), a ausência da enzima lactase no intestino gera incapacidade na digestão de lactose (açúcar do leite), que pode resultar em distensão abdominal. Diferente de uma alergia alimentar, no caso da intolerância à lactose, eventualmente, é possível ingerir pequenas quantidades de leite com consumo prévio da enzima produzida em laboratório (vendida em cápsulas). Na alergia, não se pode consumir nada de leite, pois geralmente as pessoas são alérgicas a todas as proteínas encontradas no líquido de origem animal.

é lactose, aí tem que perguntar até pro cozinheiro se tem leite na comida. São poucos os estabelecimentos preparados para receber portadores deste tipo de restrição”, lamenta. Mesmo com maior oferta, o preço ainda é alto. “Quando eu comecei a fazer a dieta sem lactose, fiquei bem assustada. O valor é mais que o dobro de um rancho normal. A enzima (lactase), aqui no Brasil, não tem nenhum laboratório que faça, aí, mando manipular. Lá fora (do país), é bem mais barato”, revela.

SEM LACTOSE

Apesar de passar por situações embaraçosas, Fernanda encara problemas de convívio social com tranquilidade. “Já ouvi dizerem que é frescura, coisa da minha cabeça, que isso não existe. Mas também tem a função de amigos deixarem de irem a certos lugares por minha causa. Me sinto um pouco cons-

Fernanda lembra que, há cerca de quatro anos, quase não havia opções, mas hoje existem alguns comércios especializados. Porém, o atendimento ainda precisa melhorar. “Às vezes, a gente pergunta e nem sabem o que

trangida, porque às vezes tem cinco pessoas querendo ir para algum lugar e têm que mudar a programa-

ção”, observa. Para ela, o mais complicado ainda é o atendimento nos restaurantes. Muitos confundem intolerância com dietas opcionais. “Não sei se eles não associam algo do tipo: essa daí tá fazendo a dietinha pra emagrecer. Mas eu não posso comer. Eu não queria ter isso”, desabafa. SEM GLÚTEN

APOIO DOS AMIGOS

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Outra restrição alimentar, a intolerância ao glúten, segundo a Associação dos Celíacos do Brasil (Acelbra), interfere diretamente na absorção de nutrientes essenciais ao organismo: carboidratos, gorduras, proteínas, vitaminas, sais minerais e até água. Glúten é a principal proteína presente no trigo, centeio, cevada, malte e


aveia, que é naturalmente isenta, mas contaminada nos processos de plantio, colheita, transporte e moagem. Esse consumo pode desencadear doenças de tireoide, fígado, rins, pele e até câncer. Ainda deve-se tomar cuidado com a contaminação dos alimentos, pois, até mesmo traços do glúten podem gerar os sintomas. Precauções fazem parte da rotina de Denise Righi, 39 anos. Em 2005, com fortes dores abdominais e diarreia constante, ela procurou um médico. Após biopsia do intestino, teve diagnosticada a doença celíaca. “Tudo mudou na minha vida a partir dali. Tu tens que remodelar toda tua dieta em função da tua saúde. Tu decide viver ou ter um câncer de intestino. Eu decidi viver, ter uma nova vida e buscar novas opções alimentares que eu posso comer e que não vão me fazer mal”, narra. CONTAMINAÇÃO CRUZADA Denise faz parte dos casos mais raros. Seu nível de intolerância é alto. A contaminação cruzada, quando alimentos sem glúten têm contato com a proteína pelo ar, representa um risco. Para ela, é mais difícil se alimentar fora de casa, desfrutar de alguma programação social e comprar alimentos adequados. “Tudo é complicado. Ainda assim, em casa, é mais seguro, porque eu sei o que estou colocando e sei que não tem risco”, garante. “Não posso morar perto de padaria e pizzaria, por causa da contaminação pelo ar. Festinhas de criança também é difícil. Ou leva marmita ou passa fome”, completa. Quando não consegue organizar sua comida em casa, ela se arrisca comendo na rua, mas com cautela. Mesmo desconfortável, pergunta sempre sobre o processo de preparo dos alimentos. “Restaurantes que tem chef, mais sofisticados, é mais tranquilo. Eles entendem da contaminação cruzada. Nos mais simples, é mais complicado. Pessoas dizem que já estou magra e não preciso de dieta, que é frescura. Aí tenho que explicar.

É meio constrangedor, pois tu fala que é uma doença e fica todo mundo te olhando. Falta informação”, lamenta. NUTRIÇÃO GARANTIDA “Geralmente o que a pessoa mais gosta é com o que tem problema. Come o que está fazendo mal, mas se sente bem. É um efeito parecido com o de uma droga. Mas, quando retira, se sente melhor e não volta a comer”, é o que afirma sobre as restrições alimentares a nutricionista Marlowa Rodrigues. A profissional explica que essas mudanças em nada prejudicam uma dieta saudável, pelo contrário. Ela aborda a questão da necessidade do cálcio presente no leite, dizendo que é um mito. “Aqui no Brasil, a gente consome muito leite, e o nível de osteoporose é cada vez maior. No Japão, não se consome nada de leite e o nível de osteoporose é baixíssimo”, informa. “Até o excesso de cálcio faz mal ao organismo. Com o passar dos anos, é normal ficar intolerante pelo excesso”, argumenta. Marlowa também alerta que não há perda ao abandonar o consumo de glúten. “É uma proteína que não é necessária. Mas não é porque é sem glúten que é mais saudável”, afirma. É preciso cuidado na hora de substituir os alimentos e ter acompanhamento profissional. “Pão sem glúten tem bem menos fibra, pois está sem os grãos integrais, mas tem um índice glicêmico alto e é absorvido mais rápido. Muitos produtos sem glúten engordam mais. O ideal é retirar o pão e colocar comida de verdade, não produtos industrializados”, diz. Por conta de algumas intolerâncias surgirem em função do excesso do consumo, a nutricionista aconselha a não fomentar a cultura do pão e do leite. “Não precisa retirar 100%. Quando não tiver opção, pode comer. Mas não deve ser a dieta principal. O ideal da alimentação é variar sempre, e o ponto principal é que precisamos comer comida, alimentos naturais”, ressalta. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 59 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Um dos aspectos mais gratificantes do jornalismo é compartilhar conhecimento, informar, mostrar dificuldades e facilidades. Na prática da reportagem, mais ainda. Todo o trabalho da busca pela informação, por depoimentos, por casos específicos e pela opinião de especialistas é recompensado quando se escreve algo que esclareça sobre algum assunto relevante. Eu não conhecia muito sobre as intolerâncias alimentares. Gosto muito de comer e sempre me pareceu terrível ter que deixar de comer algo que gosto. Por isso, tive a curiosidade de abordar este tema. Durante a pesquisa aprendi bastante sobre uma boa alimentação, mesmo com certas restrições, mas também sobre a vida. É preciso tolerar mais, tudo e todos, pincipalmente, os intolerantes, ou portadores de qualquer dificuldade. O mundo precisa se adaptar às diferenças, cada vez mais, sejam elas quais forem. Sobre o tema da revista, concluo que um “não” nos permite buscar, persistir e conseguir sempre mais possibilidades de “sim”.


NÃO quero

Ventre enclausurado

A

os 12 anos, a adolescência de Bruna* foi interrompida. Ao voltar do trabalho de babá, foi raptada por um homem que a levou a um terreno baldio. Ela foi abusada e agredida, a ponto de ficar inconsciente. Após ser encontrada

coberta por hematomas, foi levada ao hospital onde ficou em recuperação por horas. Na saída, Bruna nem mesmo sabia que carregava consigo muito mais do que marcas físicas de um agressor que nunca fora encontrado. O primeiro enjoo súbito ocorreu na escola. A mãe a levou ao médico, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 60 | DEZEMBRO DE 2015

que, sem demora, constatou uma gravidez de cinco meses. Em pouco tempo, todos já sabiam que Bruna seria mãe, sem saber o verdadeiro motivo da gestação. Ela foi excluída do grupo de amigas da escola porque as mães achavam que ela não era uma “boa influência”. A mãe de Bruna


A cada dois dias uma mulher morre no Brasil em decorrência de aborto inseguro, e a sociedade continua a silenciar o problema Por BETINA ALBÉ VEPPO Fotos BRUNA ARNDT

acreditava que a filha era muito jovem para encarar a maternidade, mas todos os chás que preparou à ela, na tentativa de interromper a gravidez, foram ineficazes. “Tudo o que ela me dava era muito ruim, mas eu tomava, porque não queria ser excluída do grupo”, conta.

Por desconhecer a lei que poderia protegê-la e interromper sua gravidez, Bruna nunca procurou os seus direitos. Com o tempo, foi se acostumando com a ideia de ser mãe. Deixou a escola. O bebê nasceu e Bruna passou a trabalhar integralmente para cuidar do filho. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 61 | DEZEMBRO DE 2015

Aos 14 anos, decorrente da falta de prevenção, ficou grávida novamente. Na época, por escassez de recursos e apoio do pai do bebê, foi obrigada a deixar a criança para adoção logo após o parto. Dois anos mais tarde, durante um relacionamento com um homem agressivo, foi mãe novamente.


Com um histórico de três gestações, aos 20 anos, sentiu, enfim, que a vida poderia ter também um gosto doce. Ela se apaixonou. Ele era um homem romântico, carinhoso e a surpreendia com presentes inusitados. Até que a jovem descobriu, por um amigo, que ele era casado. Mesmo assim, decidiu continuar. Eles se encontravam esporadicamente. Ele dizia que a amava e que iria separar-se. Passaram alguns meses nessa situação, até que Bruna descobrisse outra gravidez. Sem saber o que fazer, tampouco a reação que receberia pela novidade, optou por não contar ao pai da criança. Mas a cada dia ficava mais difícil omitir a verdade. Aos seis meses de gestação, decidiu falar. Esperou uma resposta de alegria que nunca chegou. O homem que amava impôs-lhe um aborto. Sem saber como proceder e certa de que não teria condições de cuidar de outro filho sozinha, cedeu à pressão. “Pela primeira vez, cogitei o aborto”, confessa. O amante indicou um médico conhecido e disse que não hesitaria em ajudar. Comprou Cytotec - medicamento mais utilizado para abortos caseiros. A mulher tomou dois comprimidos e outros dois inseriu na vagina para dilatação. “Fiquei esperando. Uma hora e nada... eu disse para ele ir embora, me deixar em paz, eu já estava impaciente e a ponto de desistir”, conta. Logo que ele se foi, o remédio começou a fazer efeito. “Eu sangrava, sangrava, sangrava. Eu achei que fosse morrer”, relembra. A jovem pegou uma toalha, colocou-a entre as pernas e saiu à procura do telefone público mais próximo para ligar à SAMU. O socorro demorou a chegar. O aborto tardio fez com que a jovem permanecesse internada durante três dias, devido à perda excessiva de sangue. “Se fosse para fazer novamente, eu não faria. Eu fiz achando que seria melhor. Eu me culpo, me

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arrependi muito. Arrisquei a minha vida”, lamenta. A história de Bruna é apenas mais uma entre 1 milhão de mulheres que se submetem a abortos clandestinos anualmente no Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O Código Penal, no artigo 128, prevê punição de um a três anos de detenção a gestantes que realizarem o procedimento. Para a legislação brasileira, só tem direito a aborto mulheres que engravidaram por estupro, gestantes em risco de morte ou mulheres cujo feto é comprovadamente anencéfalo. Mesmo com todas as medidas de criminalização da prática, os números não reduzem. O aborto inseguro representa 13% de mortes de mulheres pelo mundo, sendo, mundialmente, uma das cinco principais causas de mortalidade materna. O médico legista e membro da Comissão de Ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre Francisco Benfica explica que as taxas são ainda mais altas em algumas regiões, como na América Latina. “No Brasil, a questão da ilegalidade e as dificuldades de obtenção de dados consistentes fazem com que a maioria dos casos não apareça nas estatísticas. Entre todas as causas da mortalidade materna, o aborto inseguro é a única que pode ser evitada. A legalização reduziria de forma significativa tanto a mortalidade quando as complicações decorrentes deste tipo de procedimento”, observa. Benfica salienta que o abortamento realizado até a 12ª semana provoca menos riscos à mulher, podendo ser clinicamente considerado até em gestações de 20 semanas. O advogado penal Francis Beck ressalta que estatísticas criminais no Brasil ainda são muito recentes, incompletas e pouco confiáveis, além de, usualmente, apenas englobarem crimes mais diretamente vinculados à segurança pública. “Não existe qualquer número oficial de mulheres presas, no Rio Grande do Sul ou no Brasil, pelo crime de aborto”, afir-

ma. No Pequim+20, evento realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o governo brasileiro afirmou, em relatório, que as mortes decorrentes de abortos clandestinos mal realizados configuram um problema de saúde pública no país. FALTA DE PLANEJAMENTO O aborto provocado, na maioria dos casos, está associado à falta de planejamento dos futuros pais. De acordo com a psicóloga Tagma Donelli, há casos em que a mulher planeja a maternidade, mas, ao vivenciar a gravidez, não consegue encarar a ideia. “Até o terceiro mês de gestação, a mulher passa por um momento chamado ambivalência do primeiro trimestre, que é um período que causa dúvidas em relação à gravidez. É comum que mulheres, logo no início da gestação, pensem em interromper, mesmo as que planejaram, pois é um impacto psíquico grande”, explica. A descriminalização do aborto é uma luta antiga do movimento feminista, uma batalha não vencida e que ainda suscita opiniões divergentes. Apesar de ter-se tornado uma pauta do Congresso Nacional, não há indícios de que a situação mude nos próximos anos, segundo Beck. “Existem diversos projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, desde os que visam descriminalizar para todo e qualquer caso, até os que revogam as hipóteses hoje autorizadas. E não há qualquer indício concreto de que, em curto prazo, algo seja modificado”, destaca. Bruna é uma das vítimas da omissão do governo brasileiro em temas como a descriminalização do aborto e a violação dos direitos reprodutivos da mulher. Desde os momentos difíceis por que passou, Bruna acredita que o Estado deve regulamentar a prática. “Deveria analisar caso a caso, prover assistência psicológica, ginecológica e social para as mulheres que estão em dúvida”, afirma. Contudo, defende que se a mulher não quiser prosseguir

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com a gravidez, deve receber suporte para isso. Hoje, Bruna conversa sobre tudo com a filha, fruto da gravidez que ocorreu sete anos após o abortamento. Depois de vivenciar as amarguras de um aborto mal realizado, acredita que o diálogo é o que pode salvar a filha de sentir na pele o que viveu. O aborto permanece com índices elevados de práticas ilegais. A criminalização mostra-se falha no combate aos procedimentos clandestinos, o que evidencia uma questão remanescente: não considerar os direitos da mulher e sua liberdade sexual e reprodutiva é negligenciar o problema. * O nome da entrevistada foi alterado para proteger a sua identidade

IMPRESSÕES DE REPÓRTER O aborto é um tema extremamente polêmico, seja no âmbito social, econômico ou político, porque divide-se em dois lados: o direito da mulher, de querer ser mãe ou não e o direito do feto de se desenvolver e nascer. O assunto ainda é cercado de tabus e de opiniões divergentes, que impedem o avanço do debate no sentido de solucionar o problema de saúde pública configurado. Conhecer Bruna foi crucial para o desenvolvimento da pauta, não só pela questão do aborto, mas porque evidencia a luta de uma mulher vítima de uma sociedade enraizada em princípios machistas. Ela sofreu abuso, foi agredida, foi mãe solteira de três filhos e, no final, culpada por decidir não prosseguir com a quarta gravidez, a qual não teria apoio algum novamente. Depois de tudo o que viveu, sei que a decisão do aborto foi sua última escolha. Foi um grande desafio falar sobre um assunto tão complexo. Mas creio que o jornalismo deve exercer esse papel, dar voz às pessoas que são, de alguma forma, silenciadas.


Márcio e Ellen observam o tratamento dado à carne que, para eles, tem o mesmo valor que a vida de um ser humano

NÃO exploro

O que há além da carne PRIMEIRA IMPRESSÃO | 64 | DEZEMBRO DE 2015


Cinco histórias de lutas diárias em defesa da vida dos animais Texto e Fotos de: DAVID FARIAS

N

a Índia, a vaca é vista como um animal sagrado, que não pode ser morto para a alimentação humana. Lá, acredita-se que as vacas são reencarnações de pessoas da família que já morreram. Na China, existe um festival chamado Yulin, onde se come mais de 10 mil cachorros. No Brasil, não se pode comer carne de cachorro, mas, por outro lado, a carne de gado é permitida. Mas o que há além da carne? O veganismo, filosofia de vida que PRIMEIRA IMPRESSÃO | 65 | DEZEMBRO DE 2015

é contra a exploração animal, é defendido por pessoas que consideram os animais como semelhantes. Elas são contra a morte de todo tipo de vida animal. Taís Duranti Pereira, 42 anos, jornalista, tornou-se vegana em 2006, mas desde os 18 anos era vegetariana. “ Na época, meu pai sofreu um infarto. Os médicos disseram que ele tinha que passar a ter uma alimentação mais saudável. Então ele parou de comer alguns produtos, como embutidos. Mas ele sempre teve o desejo de ser vegetariano. Demorou um


pouco, mas, quando ele teve coragem de e alimentos veganos, desde imitações mudar, toda família virou vegetariana. de carne como o Tender, importado dos Eu não vi problema naquilo, não comia Estados Unidos, até pastas de dentes e muita carne”, relembra. xampus. Quando tinha 29 anos, Taís e o naAlém da defesa dos animais, Taís morado - que também era vegetariano defende o feminismo e é contra a homofo-, foram ao show de uma banda vegana bia. Também não quer ter filhos, porque onde assistiram um documentário sobre acredita que assim estará contribuindo exploração animal. Então pararam de para o não aumento da exploração anicomer ovos e consumir produtos que mal, pois seu filho poderia optar por não eram testados em animais. Em 2009, ser vegano. Taís se tornou totalmente vegana e defende o veganismo como uma filosofia de LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA vida. Diz que não se trata apenas de não comer carne, mas de não incentivar toda Rosanne Pizzato Matte, de 53 anos, uma indústria que explora os animais. é vegana há cinco anos, mas há mais de Taís criou a Feira Vegana de Porto 20 não come carne. Era uma ovolactoAlegre, é vice-diretora da ONG Movivegetariana, pois apenas mantinha em mento de Defesa Animal do RS e, junto sua alimentação derivados, como ovos. com o marido, Marcio Brufatto, 33 anos, Não acreditava na exploração animal fundou o Delivery Veg. A ideia surgiu do até começar a buscar informações sobre desejo que ambos tinham de abrir um o veganismo. “Eu nunca achei normal supermercado vegano. Como a questão comer carne. Eu tenho isso nas minhas financeira os impedia de abrir em local fílembranças de criança. Minha mãe tinha sico, criaram um delivery. que fazer um bife que paHoje, trabalham com mais recia uma sola de sapato, Anna e Rosanne de 200 tipos de produtos não podia ter sangue sesão veganas e costumam resgatar animais abandonados

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não eu já gritava”, conta. O pai de Rosanne caçava perdiz, era acostumado a comer carne e nunca aceitou a escolha da filha. “Eu tinha uma sensação de amor e ódio com o meu pai, porque eu não conseguia entender por que a gente fazia uma confraternização com morte. Quando eu fiz 30 anos, em 1992, acabei pensando até onde ia levar aquilo, então decidi parar de comer carne”, conta. O pai de Rosanne, hoje com 80 anos, dizia que os animais estavam aí para isso. Ele trabalhava com criação de rãs para a venda. Rosanne tem uma filha, Anna Pizzato Matte, de 24 anos, estudante de Produção Multimídia, que também escolheu ser vegana a partir da disseminação nas redes sociais de informações sobre a exploração animal, como fotos de animais que sofrem testes de produtos cosméticos. Em 2014, elas iniciaram a venda de tortas e salgados veganos sob encomenda. Com o nome de Ogras Veganas, elas trabalham em casa e participam das feiras veganas, onde Rosanne atua também na


organização, realizando a entrevista dos expositores. Rosanne e Anna, após a mudança para o veganismo, tiveram que enfrentar conflitos e resistência na própria casa. O marido de Rosanne, pai de Anna, não acreditava na exploração animal, sempre comeu carne, mesmo com a mulher não comendo mais. Nos almoços de família, quando há carne, elas não participam. Não se sentem bem em estar num ambiente onde as pessoas estejam comendo e oferecendo carne para elas sob forma de piada. A mãe de Rosanne aprendeu sozinha a realizar algumas receitas veganas para que a filha e a neta pudessem confraternizar com ela e o marido. Hoje, no Dias das Mães e dos Pais, Anna e Rosanne vão para a cozinha e fazem todos os tipos de pratos totalmente veganos para o marido e o avô, que foram muito resistentes às escolhas delas, mas que hoje respeitam. O marido de Rosanne inclusive já conhece os produtos que pode comprar no supermercado, como detergentes e xampus que não utilizam derivados nem realizam testes em animais. Foi a partir de pesquisas que elas descobriram a existência de dois selos mundialmente difundidos: o de livre de crueldade animal e o certificado vegano, que inclusive já se encontra em alguns estabelecimentos de Porto Alegre. “O veganismo é praticar a libertação humana junto com os animais. Nós dizemos vários nãos: não à xenofobia, não à homofobia, não ao racismo, não à miséria. Todos somos iguais”, diz Rosanne. Anna e a mãe hoje cuidam de cinco cachorros e duas tartarugas que foram resgatadas por elas, além de participarem de ações de divulgação dos conhecimentos sobre o veganismo e a exploração animal. VANGUARDA ABOLICIONISTA Configurado como um coletivo, o Vanguarda Abolicionista é dirigido por Marcio de Almeida Bueno, 41 anos e Ellen Augusta Valer de Freitas, 36 anos. O coletivo trabalha com iniciativas como a distribuição de alimentos veganos a

moradores de rua, protestos pelos direitos dos animais e várias formas de conscientização para a libertação animal. Bueno conta que se tornou vegano porque sentia remorso por comer a carne de animais e passou a sentir também nojo. Foi durante 21 anos vegetariano e, depois de ver o documentário Meet your Meat, não conseguiu mais comer nenhum alimento e produto que explorasse animais. A mãe de Marcio, uma protetora dos animais, não é vegana, nem vegetariana. Foi sempre contrária à escolha do filho, chegando ao ponto de colocar propositalmente leite em um purê de batata para que o filho comesse, alegando que ele ficaria doente sem tomar leite. Marcio sempre foi acima do peso e diz que por anos fez dietas e nunca foi tão saudável quanto é agora, vegano. Ellen passou a ser vegetariana por não gostar de ver o sofrimento dos animais. Lembra que seu pai matava porcos durante a sua infância para comer. Até hoje ela não consegue esquecer os gritos dos animais na hora da morte. A mãe de Ellen não tomava leite e não foi contrária a escolha da filha. Procurou aprender a realizar pratos para que a filha e o marido pudessem confraternizar com a família. O casal é contra ter filhos. Acreditam que a adoção é um caminho melhor e não gostam de misturar questões de defesa de outras causas com as do veganismo. Marcio relembra que em um jantar durante as festas de fim de ano, um de seus tios que trabalhava em uma empresa de aves levou uma que ainda não tinha nome, havia sido recém-criada. Ele conta que aves como o Chester e o Bruster são animais que não existiam na natureza, são derivados do cruzamento visando a venda dos animais para alimentação. O veganismo cresceu no Rio Grande do Sul nos últimos anos, uma contradição para o estado conhecido pela sua tradição em comer churrasco. No Brasil inteiro, na última pesquisa divulgada pelo Ibope, cerca de 15,2 milhões de brasileiros se declaram vegetarianos. Porto Alegre aparece como uma das cidades do país com mais adeptos da dieta.

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IMPRESSÕES DE REPÓRTER Iniciei a minha pesquisa de pauta sem entender o que realmente é o veganismo. Eu não conhecia pessoas que realmente pudessem me contar como é viver em defesa dos animais. Eu, particularmente, sou a favor da defesa dos animais, mas não sou vegano, nem vegetariano. Ser vegano não é ser adepto de uma dieta sem carne e derivados de animais, viver privado de comer e beber coisas que se gosta, ter um estilo de vida definido pelos entrevistados como “hippie” ou até mesmo uma religião. Mas, sim, defender a vida dos animais de toda forma. Defender a vida dos animais não se alimentando ou utilizando produtos e marcas que usam a vida animal como fonte de produção ou para testes. Todas as pessoas que entrevistei me deixaram algum ensinamento. O principal deles foi ver a humanidade transmitida por elas, que realmente se preocupam tanto com os animais como com outras pessoas em situações de rua, por exemplo. Nenhuma das pessoas que conheci estava de braços cruzados com a situação atual em relação aos animais. Todas participavam de ações, buscavam obter mais conhecimento e passar adiante também por meio de leituras de textos, pesquisas cientificas, filmes e documentários. Nenhuma delas em momento algum se mostrou contra a escolha de outras pessoas de comer carne, apenas demonstraram o desejo por mais respeito em relação às suas próprias escolhas.


Para Júlio, o cabelo comprido faz parte da identidade que ele construiu como músico ao longo dos últimos dez anos

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NÃO corto

O

Cabelo, cabeleira

cabelo sempre foi uma das formas para o homem expressar personalidade e estilo. Nos tempos antigos, cabelo comprido era símbolo de força, virilidade e respeito, como no caso de Sansão, cujo segredo da força estava em não cortar o cabelo. Ele revelou o segredo para Dalila, que cortou seu cabelo enquanto ele dormia, eliminando a sua força. Existem homens e mulheres do tipo Sansão, cuja força e poder estão relacionados a longos cabelos e, quando cortam, sentem-se fragilizados. Até rituais de magia negra já foram realizados com madeixas, que tinham uma enorme importância para diversas culturas. Com o tempo, o estilo, comprimento e a forma de usar foram revelando qual a personalidade e até mesmo o status do sexo masculino. Quando se fala de cabelos compridos para homens, a primeira referência que se tem é dos roqueiros e suas longas madeixas rebeldes. Essa é também a inspiração para Júlio César Schuster, 22 anos, não cortar o cabelo há uma década. Foi aos 12 que ele resolveu adotar o estilo, quando montou sua primeira banda, a República Rock. “A intenção era ficar igual aos roqueiros e poder fazer aquele lance de jogar o cabelo (risos). Mas o que

Muito além de estética, cabelo comprido revela muito sobre a identidade de seu dono Texto e foto de ANNE CAROLINE KUNZLER eu queria também era causar impacto na minha cidade, que é muito pequena”, explica Júlio. Ele mora em Harmonia, cidade do Vale do Caí, no Rio Grande do Sul, que tem pouco mais de quatro mil habitantes. O impacto foi causado mais perto do que ele imaginava, pois seu pai, na época, era totalmente contra. “Eu tinha muito preconceito, achava que isso não era coisa de Deus. Disse para o Júlio cortar, caso contrário eu mesmo cortaria. Mas ele foi me enrolando, deixando o tempo passar e, com a ajuda da mãe dele, que sempre intervinha, eu acabei entendendo e respeitando que ele deveria fazer o que lhe fizesse bem. Mas no início não foi fácil de aceitar”, explica Inácio Laerte Schuster, pai de Júlio. Músico, ator e professor de música e teatro, Júlio cresceu ouvindo PRIMEIRA IMPRESSÃO | 69 | DEZEMBRO DE 2015

clássicos do rock, como Raul Seixas, Renato Russo, Rita Lee e Cachorro Grande, além dos internacionais Guns N’ Roses, System of a Down e Ramstein, que o guiaram em sua jornada no mundo da música. Foi, inclusive, no vocalista Slash, da Guns, que ele se inspirou para criar esse estilo que mantém até hoje, oito anos depois. De lá para cá, todas as vezes que cortou o cabelo foi somente para tirar as pontas ou raspar as laterais. A mudança que começou motivada pela música se tornou uma marca. Como sempre trabalhou com arte, Júlio não passou por nenhuma situação de preconceito, mas está ciente de que isso acontece o tempo todo, em diversas circunstâncias. “Preconceito existe em tudo que é lugar, porque as pessoas não aceitam o diferente, o desconhecido”, acrescenta. É do Hard Rock, do Metal, Rock N’ Roll, Blues e Country Rock que ele e seus companheiros de banda, hoje Hatfield, montam o repertório com o qual se apresentam pela região. Para a palestrante, instrutora e personal stylist especializada em elegância e comportamento Ana Schmitz, a imagem de alguém do meio artístico e musical depende do estilo de música, do público-alvo e de outros fatores. “Certamente para um trabalho formal não seria adequado,


ARQUIVO PESSOAL

mas para uma área criativa, como a musical, pode ser interessante”, ressalta Ana. “Do meu ponto de vista, o Júlio conseguiu construir uma imagem forte, marcante e totalmente alinhada com as atividades que realiza. Ele usou referências como inspiração e acabou por criar um estilo próprio e consistente. O cabelo comprido acaba sendo uma marca registrada pela qual é reconhecido. É com esse estilo que ele demonstra ousadia e personalidade, bem como visão comercial”, acrescenta a personal. QUEM DISSE QUE CABELO NÃO SENTE? Para quem resolver deixar o

cabelo crescer, os especialistas advertem que os cuidados devem ser diários, já que aquele corte descuidado não é mais tendência. O ponto de partida é ver se o tipo de cabelo tem caimento para deixar crescer, afinal, não é todo cabelo que fica legal comprido. Segundo a cabeleireira Denise Gräff, se a ondulação não for bem definida ou se o cabelo for muito grosso e as entradas largas demais, é melhor deixar curto mesmo. Ela pontua que não há regras quanto ao comprimento: “Cada um deve escolher o que mais lhe agrada, mas deve-se levar em conta que o estilo longo é muito ligado ao rock”. Portanto, para não passar uma imagem de re-

laxado, é preciso seguir alguns passos: lavar os fios dia sim, dia não, cortar as pontas periodicamente, não abafar a cabeça com bonés e chapéus e evitar dormir com o cabelo molhado são os principais cuidados a serem tomados pelos homens. O problema é que muitos consideram esses cuidados algo metrossexual e adotam o estilo “largadão”. Para esses, o conselho é manter pelo menos a higiene mínima. Nos relacionamentos, o músico nunca teve problemas em relação ao cabelo. “Eu conheci o Júlio assim, já cabeludo, e nunca reclamei. Se reclamasse acho que nem adiantaria muito (risos), já que ele adora o cabelo. O meu cabelo é bem mais curto que o dele, o que já rendeu muitas brincadeiras entre a gente, mas eu nunca pediria para ele cortar e ele sabe disso”, conta a namorada dele, Bárbara Spohr, que também é atriz. Júlio comenta que nos últimos tempos tem pensado em abandonar a cabeleira e mudar o corte, mas ainda fica muito indeciso porque, afinal, não é apenas um visual, mas todo um estilo que ele construiu ao longo dos anos. Mas uma coisa é certa, ao contrário de Sansão, a personalidade, o charme e o “poder” de Júlio não vão se perder se ele cortar o cabelo.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Confesso que quando foi escolhido o tema da Primeira Impressão fiquei um tanto apreensiva, pois pensava ser difícil elaborar uma revista com mais de 40 reportagens em que todas abordassem o “não”. A reportagem em si já é um grande desafio, e ajudar na construção da PI uma enorme responsabilidade. Mas então vieram os temas e as pautas foram se encaixando na ideia. Entrevistar o Júlio foi muito bom, pois, além de conhecê-lo, também admiro muito o trabalho, a música e a personalidade dele. Ele é do tipo que leva tudo numa boa, um dia após o outro, mas

que corre muito atrás do que quer, sem se deixar levar pela opinião dos outros. O que em Harmonia é bem complicado, já que as pessoas sabem da vida de todo mundo (risos). Se bem me lembro, o conheci exatamente na época em que deixou o cabelo crescer, com 13 anos. Estudamos na mesma escola e fizemos até um período do curso de teatro juntos, o qual abandonei e ele seguiu adiante. A música e a arte são elementos que me atraem muito, apesar de não fazer parte desse meio. Portanto, foi gratificante escrever sobre o tema e sobre uma pessoa tão talentosa.

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NÃO me importo

Uma vida cheia de regras Camylla e João Pedro são fisiculturistas que abdicam dos prazeres da alimentação para terem um corpo perfeito Por MARCELLA LORANDI Fotos ARQUIVO PESSOAL

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traçado que esculpe uma estátua ou as linhas que contornam um monumento, e que se assemelham a uma pintura, foram minunciosamente pensadas e modeladas. E, com dois ou três traços, já vimos Michelângelo recriar Adão e logo em seguida Davi. Já vimos a Cópia de Míron. E, desde sempre, comparamos corpos cheios de músculos a deuses da mitologia grega. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 71 | DEZEMBRO DE 2015

O casal de namorados Camylla Masson e João Pedro Reichert sabe muito bem como é conquistar cada nova linha no corpo. Eles acreditam que não há como não amar um esporte em que você é a escultura e ao mesmo tempo o escultor. Ela é campeã gaúcha da categoria Wellness, o que no mundo fitness é chamado de biquíni. A mulher desenvolve mais músculos no quadríceps, ou seja, pernas e glúteo. E João Pedro está entre


os cinco melhores do país, sua categoria é a Men’s Physique, nova no fisiculturismo, contudo já formando grandes atletas. Este padrão não visa a hipertrofia muscular, e sim o conjunto do corpo com massa muscular na medida certa. O casal não liga para boa parte das coisas que a maioia das pessoas costuma se importar. Ambos estão em preparação para competir e seus corpos são levados aos extremos diariamente. ETAPAS DA COMPETIÇÃO O período que eles se encontram é o pré contest, os meses que antecedem a competição. “Nessa fase a prioridade das nossas vidas realmente são os treinos, a dieta e o descanso, que feitos de uma forma correta são os fatores que nos levarão ao resultado que desejamos,” explica Camylla. Eles compreendem que a vida social “normal” envolve, por vezes, muitas comidas gordurosas, festas e bebidas e disso tudo eles abdicam na maior parte do tempo. “É possível levar uma vida social, como por exemplo, ir ao cinema sem pedir pipoca, enfim, viver dentro da nossa realidade de dieta,” conta João Pedro. E as etapas de uma competição são exaustivas e mexem muito com o humor e o sistema nervoso dos atletas. “Zerar o carbo”, “hiper-hidratação”, “desidratação”, tudo isso não parece próximo da realidade de muita gente, para eles são palavras normais do dia-a-dia. A nutricionista Aline de Andrade, formada pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e mestranda em Ciências da Saúde na mesma universidade explica que “zerar carbo” é tirar todos os alimentos ricos em carboidratos da rotina alimentar (pães, massas, açúcar, arroz, entre outros). Já na desidratação, o fisiculturista deseja eliminar água subcutânea e drená-la para dentro da célula muscular para fazer com que esta se pareça mais cheia. E na hiper-hidratação aumentar os depósitos líquidos corporais, sem acelerar a filtração renal (colocando o líquido fora). Abel Colognese é Educador Físico,

formado pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e cursa Pós Graduação em Especialização em Treinamento Neuromuscular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E ele conta que a divisão de períodos, ou etapas, de cada atleta depende das competições alvo e do treinador. Contudo, o mais comum é seguir as seguintes fases: off season, momento fora de competição, quando há um aumento da ingestão calórica, da mesmo forma que há aumento na intensidade dos treinos “visando o aumento da massa muscular e o mínimo possível de acumulo de gordura.”. Pré contest é o período competitivo, momento em que o atleta deve reduzir o peso e a gordura corporal. “Depende também da individualidade do atleta e de sua condição PRIMEIRA IMPRESSÃO | 72 | DEZEMBRO DE 2015

quando iniciar esta etapa.”. E, por fim, Abel conta sobre o período de transição ou férias, algo pouco utilizado nos últimos tempos. Porém, consiste em treinar raramente e quase não fazer dieta. Camylla e João ainda não adquiriram maturidade muscular suficiente. Abel explica maturidade muscular, “consiste, basicamente, na qualidade que o músculo tem aos olhos de quem vê. A diferença pode ser explicada com exemplo de proporção: uma pessoa com uma maturidade muscular desenvolvida que pesa 90 kg é maior do que uma pessoa com o mesmo peso, que treina e faz dieta há menos tempo. A qualidade da fibra muscular em tamanhos e cortes é o que diferencia”. Aline e Abel concordam quando o assunto é suplementação, para Abel


“um atleta que não suplementa dificilmente consegue inferir tudo o que necessita para o desenvolvimento do seu corpo”. Aline vê da mesma forma “a suplementação pode auxiliar e otimizar os ganhos de massa muscular”, e deixa o recado “mas sempre com acompanhamento”. Contudo, quem é do meio sabe que a opção fisiculturismo pode não ser a mais saudável. Camylla e João estão cientes que o esporte em alto nível pode trazer riscos à saúde e sabem da quantidade de vitaminas e minerais que deixam de ingerir. A nutricionista ressalta que “uma dieta restritiva por um período muito longo pode provocar deficiência nutricionais, podendo prejudicar a saúde, como causar baixa imunidade”. E o educador físico confirma “o atleta que deseja começar a treinar e viver nesse meio, deve saber que a qualidade de vida fica prejudicada uma vez que os treinos se tornam cada vez mais intensos e mais pesados na rotina”. A jovem de 19 anos é estudante de Nutrição e alia os estudos à sua rotina. João Pedro, 21 anos é estudante de Engenharia de Produção e para ele a combinação é bem menos exata que os cálculos do seu curso. Mas não há empecilhos. O casal que se conheceu no meio fitness costuma se ajudar muito. “Um cobra o outro, seja em treino, dieta, descanso, rotina de poses. É muito mais fácil ter alguém que tenha o mesmo estilo de vida, pois muitas vezes quem não vive essa experiência não compreende da mesma forma.” Há quase um ano juntos, um já é a inspiração do outro, com os mesmos objetivos e vontade de vencer eles sonham o mesmo sonho.

Era julho de 2014. No Campeonato Gaúcho, um avistou o outro no backstage. Na semana seguinte, já eram amigos no Facebook e seguiam-se no Instagram. Viraram amigos, se ajudavam e se incentivavam desde lá, conversavam muito. O assunto, claro, era esporte. Em fevereiro de 2015, decidiram se encontrar. Foi num domingo à noite, eles concordaram no dia, não se recordam se o céu estava estrelado ou não, mas jantaram e foram ao cinema. João foi até Camylla. Ele saiu de Campo Bom e viajou até Farroupilha. “Ele já tinha iniciado a preparação para o Arnold Classic Brasil e não podia sair da dieta, jantamos sashimi e salada”, conta Camylla. “E nossa sessão era tarde, eu não tinha levado comida para a última refeição.” João ri ao lembrar o que Camylla fez. “Eu liguei para o meu pai e pedi para que ele colocasse uma dúzia de ovos para cozinhar e descascar, insisti para que ele subisse no meu apartamento e comesse algo.” Camylla e João se recordam que o pai dela ainda se lembra de quando teve descascar ovos para o “cara” que estava saindo com a sua filha.

A HISTÓRIA O casal chama atenção por onde passa, afinal são belos e desfilam músculos. A história deles iniciou em meio a pesos e halteres. Eles contam que um completava a fala do outro, e, por vezes, se corrigiram nos detalhes menores, mas não menos românticos. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 73 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Ao escolher a pauta Não me Importo, acreditei que seria interessante entender um pouco mais destes atletas que dedicam toda rotina e disciplina ao esporte. Como é abdicar por vezes da vida social e dos prazeres que a comida proporciona. Escolhi o casal de atletas Camylla Masson e Joao Pedro Reichert como case. Desde o início eles foram solícitos, colaboraram em todas minhas dúvidas e, por vezes, me fizeram compreender o mundo deles. A busca pelos especialistas foi mais difícil, a nutricionista que eu havia recebido indicações não se interessou muito em contribuir com a reportagem. Contudo, a dificuldade me fez encontrar alguém mais preparada. Aline de Andrade é nutricionistas esportiva referência em Porto Alegre. E esclareceu dúvidas de forma clara e objetiva. O profissional de Educação Física é Abel Colognese, recém formado na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Também foi de grande valia para a reportagem, que soube esclarecer de maneira compreensível as questões levantadas.


O jornalista Pedro diz que a grande vantagem de ter um celular antigo – carinhosamente apelidado de tijolinho – é que a bateria dura quatro dias

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NÃO uso

Uma vida desconectada Algumas pessoas utilizam o mínimo possível as formas de comunicação que o mundo tecnológico oferece Por JULIETE ROSY Fotos BRUNO LOIS

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star conectado com o mundo é uma prática diária de muitas pessoas. Acordar pela manhã e visualizar as mensagens recebidas através do Facebook ou acessar o Whatsapp pelo celular para confirmar a festa com os amigos à noite virou rotina. A sociedade, hoje, está conectada 24 horas por dia. São aproximadamente 3,2 bilhões de pessoas ligadas umas às outras através da internet, segundo dados da União Internacional de Telecomunicações (UIT). Sabe-se que para toda regra há exceções e, nesse caso, a dona de casa Nair Rejane de Souza, 54 anos, é parte dos 0,03% que dizem não à internet e, também, à tecnologia. Nair, moradora

da cidade de Gravataí, região Metropolitana de Porto Alegre, afirma não fazer parte da sociedade tecnológica de hoje. “Não sei usar internet, não uso Whatsapp e outros aplicativos. Apenas uso celular para fazer ligações”, afirma. Assim como ela, existem pessoas que não se interessam por páginas sociais, como Twitter e Instagram, e só apreciam a verdadeira receptividade, as conversas cara a cara, como dizem. “Na minha família, somos seis irmãos, somente eu e uma irmã não temos esses hábitos, como acordar e conferir e-mails, enviar mensagens via SMS para amigos e passar o dia com fones nos ouvidos”, continua. O mundo está vivendo uma revolução tecnológica em que a conexão faz parte do cronograma diário de cada um. As empresas buscam candidatos com conhecimento em informática e áreas afins. Com isso, parte da população não tecnológica é deixada de lado, pois a interação através das redes é fundamental. “Vejo minhas filhas conversando através do Whatsapp e me pergunto se não seria mais acolhedor se fossem fazer visitas às amigas. A televisão é outro meio tecnológico que acredito que vicia as pessoas. O hábito de chegar em casa e ligar a TV para assistir ao jogo de futebol ou à novela se transformou em dependência”, enfatiza Nair. Atualmente, as crianças deixam as brincadeiras de corre-corre e escondeesconde de lado para assistir aos desenhos de seus personagens favoritos na telePRIMEIRA IMPRESSÃO | 75 | DEZEMBRO DE 2015

visão ou acessar o computador. Hoje, elas veem pais e familiares próximos usando frequentemente computador, celular, televisão e buscando cada vez mais objetos tecnológicos para casa. Para Nair, a vantagem de usar o computador é somente para aproximar as pessoas que ama ainda mais. A desvantagem é a importância que as pessoas dão aos aparelhos. “Muitas vezes, elas ficam na companhia do celular e do computador mais do que com a família, porque há casos em que o corpo está ali, mas a mente está conectada com aplicativos em incansáveis bate-papos”, fala Nair. Algumas pessoas sofrem por não sentir vontade de participar desse novo mundo, pois os amigos e familiares a toda hora fazem menção aos meios comunicativos para convencê-los a usar. “Isso acontece comigo, mas eu consigo resistir ao apelo dos outros”, conclui. Atualmente, calcula-se que a população mundial é de 7,2 bilhões de pessoas. A tecnologia criada para facilitar o acesso à informação e o convívio social manteve as pessoas ligadas muitas vezes apenas por páginas sociais. Elas usam a tecnologia para marcar momentos em família, fazem fotografias com amigos em datas especiais acompanhadas da trilha sonora perfeita, sendo tudo registrado em perfis e comentado por todos. Porém, existem pessoas que preferem o anonimato. Enquadra-se nesse caso Ivo Stigger, 68 anos, jornalista e gerente de comunicação da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Para


ele, a tecnologia não passa de um mundo à parte, onde ele prefere não se envolver, mesmo sendo da área da comunicação e gerente de um hospital. “Acredito que o uso de aparelhos eletrônicos nem sempre é necessário, pois sou um comunicador e não faço questão de me aventurar no uso do celular”, afirma Ivo. O aparelho, para ele, é um objeto, apenas isso. “O celular tornou-se a vida da sociedade, mas o meu fica guardado na mesa de trabalho e não procuro por ele. Já mudei o aparelho três vezes e sempre uso com a mesma frequência, ou seja, somente em casos de extrema importância”, conclui. Quando o assunto são as urgências no local de trabalho, Stigger avisa a todos que, se necessário, contatem o responsável nos meus dias”, afirma. que está de sobreaviso no Nair não sabe Rodeado de pessoas com hospital naquele momennavegar na internet celulares de alta tecnoloto, ou seja, um dos três e não se interessa gia e com aplicativos que jornalistas pertencentes por redes sociais os mantêm informados à equipe dele. Em casos 24 horas por dia, o jornade extrema importância, lista se diz feliz com um celular modelo para contatá-lo, é necessário ligar para convencional. Suas funções são apenas o telefone residencial. “Sou caseiro, não ligar e enviar SMS. “Muitos dos meus costumo ficar muito tempo fora de casa. amigos apelidaram meu celular de tiSó saio para jogar tênis e ir ao cinema. jolinho, porque ele é grande e antigo”, Quando não atendo, o telefone regisconta Pedro. No mundo tecnológico, tra quem ligou e eu sempre retorno”, onde muitas pessoas não conseguem enfatiza. Para Stigger, o afeto entre as se afastar da conexão por algumas pessoas, atualmente, não é verdadeiro, horas, o jornalista diz sofrer pressão pois a troca de fotos e mensagens, seja dos colegas de trabalho que pedem de voz ou de texto, através do celular, para que ele tenha um celular melhor, é fácil e rápida demais. Mesmo sendo com Instagram, Whatsapp e acesso às um jornalista, vivendo no meio das redes sociais. Porém, Pedro não aceita informações e da tecnologia, ele não e prefere ter um aparelho apenas para quer perder seus momentos felizes em questões de trabalho. “O diferencial frente a uma tela, mas, sim, quer endo meu celular é a bateria durar mais contros reais. de quatro dias, isso é ótimo. Hoje os celulares devem ser recarregados diaRESISTINDO À riamente e, para mim, o tijolinho, como PRESSÃO DOS COLEGAS chamado, é excelente”, conclui Pedro. Tentar entender os motivos peEntre os jovens é ainda mais dilos quais algumas pessoas não usam fícil encontrar alguém que não esteja a tecnologia é algo complicado. Não constantemente conectado. Pedro Alenhá uma resposta real para essa quescastro, 32 anos, jornalista, garante não tão. “As gerações denominadas de x, sentir falta da tecnologia. “Definitivay e z são aquelas que nasceram sob a mente, não preciso de muita tecnologia PRIMEIRA IMPRESSÃO | 76 | DEZEMBRO DE 2015

influência da tecnologia e, consequentemente, adquiriram o hábito de ter conexão 24 horas por dia”, afirma a psicóloga Aline Barth. Para ela, o respeito deve estar sempre em primeiro lugar, e não se deve dividir as pessoas que gostam e não gostam de tecnologia. “Muitas pessoas não usam o computador porque querem ser diferentes do restante da sociedade que, como dizem, é viciada em internet. Outras, mesmo sob a pressão de familiares e amigos, preferem o contato real”, conclui. A tecnologia pode divertir, aproximar e informar a sociedade, mas um abraço apertado e palavras de afeto ditas pessoalmente são fundamentais para qualquer pessoa.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Encontrar pessoas que não gostam de tecnologia no ano de 2015 foi um desafio. São pessoas de diferentes idades que perceberam que a troca de carinho e afeto fora das telas do computador é muito melhor. Com as entrevistas, pude ver as expressões das pessoas quando falam do assunto e, como elas, passei a dar mais valor às ações fora das telas. Pensar em uma pauta com o tema “Não” e encontrar fatos interessantes para chamar a atenção do leitor e fazê-lo refletir sobre o tema é algo de muita responsabilidade. A partir dessa reportagem, consegui encontrar o motivo de muitas pessoas abdicarem da tecnologia. Decidi aceitar a ideia proposta pelos entrevistados e encarar novos desafios, mesmo estando rodeada de tecnologia. Para um jornalista, desafios fazem parte da rotina diária, e buscar histórias emocionantes em meio a um tema convencional é surpreendente. Entre pessoas de idades avançadas, ou jovens querendo interação com a sociedade, não importa, o calor de um abraço é melhor do que qualquer curtida no Instagram.


NÃO desanimo

Amor que reúne Pâmela ganhou uma nova família aos 12 anos, quando Joaquim e Janete a adotaram Por PRISCILA TONIETTO Fotos BRUNA ARNDT

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ra uma quarta-feira típica de verão naquele 10 de dezembro de 2014. Os funcionários do administrativo da Prefeitura de Alto Feliz, na encosta da Serra, confraternizavam com um almoço, na casa do vice-prefeito, após término do expediente, às

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13h. A tarde preguiçosa só não era sentida da mesma forma por Joaquim Rafael Schneider, 42 anos, responsável pelo setor de arquitetura do órgão. Um dos churrasqueiros oficiais, ele dividia a atenção do almoço com a expectativa pelas horas seguintes. A data marca oficialmente a chegada de Pâme-


la Eduarda, 12 anos, à cirurgias. “Sempre que Pâmela chegou sem malas e preencheu família Schneider. Aos saía do bloco cirúrgico, a vida de Janete colegas, o arquiteto ela estava feliz. Dava ainda resumiu: “Como um sorriso para nós”, é a vida, não é? Há dois lembra o pai. “Ela não anos eu estava perdendo uma filha. veio por acaso. Foi um ser enviado Hoje estou levando outra para casa”. especialmente”, completa. O sorriso Pâmela chegou para ganhar o de Melissa ainda está presente na carinho que Joaquim e a esposa, a memória dos familiares e nos deprofessora Janete Maria, 39 anos, talhes da casa, como na fotografia guardavam desde a perda da pequena sobre a lareira. Melissa Betina, um ano e dez meses Pâmela, hoje ouve essas hisantes. A filha biológica do casal nastórias interagindo com elas de diceu prematuramente, aos seis meses versas formas. “Onde está o álbum de gestação, em 2007, juntamente rosa da Melissa?”, questiona Janete. com a gêmea, Milena Letícia. “Faz tempo que guardei”, revela a A maior dos bebês, Milena, pemenina, confessando que nos oito sou 1.200 gramas, mas não resistiu meses que mora na casa, já olhou a uma insuficiência respiratória e as fotografias uma porção de vezes. faleceu 30 dias após o nascimento. As gêmeas Melissa e Milena são A menor, Melissa, que nasceu com parte importante da narrativa. É um 820 gramas, enfrentou uma luta dulado da luta contra o desânimo que rante os cinco anos em que viveu. A a família travou. No outro lado, há menina sofria de hidrocefalia e paraPâmela, que aos 12 anos, decidiu lisia mental e precisou passar por 11 que queria incorporar Eduarda ao PRIMEIRA IMPRESSÃO | 78 | DEZEMBRO DE 2015

nome. “Era um final de semana, estávamos no processo de aproximação para a adoção. A Pâmela desceu as escadas, vindo do quarto e disse: eu já escolhi meu nome. Quero que seja Pâmela Eduarda Schneider”, lembra Joaquim. Quando ocorre uma adoção, uma nova certidão é emitida, constando a filiação com o nome dos novos pais. “É uma história que começa. Esse papel marca o nosso início”, resume Joaquim, com os olhos brilhando ao receber a certidão de nascimento oficial da filha adotiva, em agosto de 2015. É uma nova história, que não apaga o que já foi vivido, mas que permite pensar em futuro. Um passado, nem tão distante, narra a trajetória da menina. Pâmela, hoje com 13 anos, é irmã mais velha de outras três crianças, de 12, seis e cinco anos, que desde pequena sentia-se responsável pelos menores, auxiliando-os na rotina diária, enquanto a mãe biológica permanecia ausente por longos períodos. Com a intervenção do juizado de menores, as crianças foram recolhidas ao abrigo Casa Lar Padre Oscar Bertoldo, em Farroupilha, cidade onde residiam. De acordo com o juiz de Direito da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Farroupilha, Mário Romano Maggioni, o processo de acolhimento das crianças em vulnerabilidade familiar ocorre nos casos em que o contato com aquele que deveria ser responsável por elas, apresenta um risco. “A Casa Lar possui uma equipe técnica muito completa. Há psicóloga, assistente social e coordenadora pedagógica que fazem o acompanhamento do menor”, destaca. Em um período de aproximadamente 30 dias, a equipe técnica faz a avaliação, juntamente com o Ministério Público, que decide se o menor retorna à família, que deverá ser acompanhada, ou será destituída a guarda. O Cadastro Nacional de Adoção apresenta um registro de mais de 6 mil crianças aptas a serem adotadas.


Apesar de ser a fonte oficial para esses dados, o sistema ainda é falho e pode não representar a situação real, uma vez que ele não permite a atualização das informações. Com a guarda destituída, as crianças ficaram aptas à adoção. Para os menores, a busca por um lar tende a ser mais fácil. Para Pâmela, entrando na adolescência, a probabilidade de encontrar uma família diminuía consideravelmente. Das 34.203 pessoas no cadastro, apenas 0,33% estariam dispostos a receber uma criança de 12 anos. A definição do perfil do adotado é parte do procedimento pelo qual os pretendentes passam. Joaquim e Janete iniciaram o processo de habilitação para adoção em 2012, indicando a preferência para crianças de zero a dois anos. “Nessa época, nós queríamos um bebê, para que crescesse conhecendo a realidade da Melissa. Tínhamos medo que alguém maior não compreendesse, mas por outro lado, gostaríamos que ela tivesse tido um irmão”, lembra Joaquim. Segundo o juiz, a média de tempo para alguém se tornar apto à adoção varia da disponibilidade da pessoa em realizar as etapas necessárias, mas fica entorno de um ano. Mesmo habilitados, o casal não encontrou uma criança nesse perfil. Em dezembro de 2012, Melissa faleceu, vítima de uma meningite bacteriana. ESTAR ABERTO ÀS POSSIBILIDADES Cerca de 38% das crianças na lista de espera para adoção têm irmãos e mantê-los juntos é um desafio. Para Maggioni, a adoção de grupos de irmãos tem crescido nos últimos tempos, porém, nem sempre é possível, como no caso de Pâmela: ela chegou a morar algum tempo com a nova família de um dos irmãos, mas acabou retornando à Casa Lar. “A Pâmela carregava o sonho de juntar todos os irmãos”, recorda o

magistrado. Mas foi em uma palestra promovida pelo grupo DNA da Alma, que é responsável pela preparação dos futuros pais, em Farroupilha, que a menina repensou a possibilidade de ter um novo lar. O convidado da ocasião era um amigo que foi adotado aos 15 anos, por uma família catarinense, e contou o quanto estava feliz na nova situação. “Esse dia me marcou. Chamei a Pâmela e perguntei se depois do que ela tinha ouvido, não queria repensar a decisão. Ela me disse: quero ser adotada”, recorda Maggioni. Janete e Joaquim já haviam alterado o perfil do futuro filho, para crianças de até cinco anos, mas ainda não haviam pensado em ser pais de uma adolescente. “Foi uma quinta-feira de manhã, em outubro do ano passado. O juiz me ligou dizendo que tinha uma menina de 12 anos. Não era do nosso perfil, mas era a única criança que ainda estava na Casa Lar e esperava um presente no dia das crianças”, lembra Joaquim. O primeiro encontro aconteceu no sábado seguinte. O percurso de cerca de 30 minutos que separa Farroupilha de Alto Feliz foi realizado no silêncio que perdurou por quase todo o final de semana. “Ela não falava nada. Só respondia com a cabeça, quando perguntávamos alguma coisa. Achamos que não tinha gostado de nós”, recorda Janete. Mas estavam enganados. Ao retornar ao abrigo, a menina estava cheia de descobertas a contar: “Ela me deu chimarrão e ele tocou violão para mim”, foi o resumo feito à assistente social. A partir daí, os encontros começaram a ocorrer todo o final de semana, enquanto o ano letivo não encerrava. Em dezembro, a guarda provisória foi dada, e a família ganhou nova integrante. Ela chegou assim: sem malas, para preencher um espaço que é todo dela. Assim como o grande cartaz que a esperava no novo quarto: “Seja bem-vinda, filha!”. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 79 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Conheci a Pâmela alguns dias após ter se mudado para a nova casa. Ela acompanhava Janete, que trabalhava nos preparativos para a formatura da escola em que é vice-diretora. Com olhar tímido, aos poucos, descobriu na minha câmera um bom passatempo. Brinquei que ela seria fotógrafa ou jornalista, mas, na verdade, queria ter dito que ela poderia ser o que quisesse, pois a vida estava apenas começando naquele momento. Cada trecho na história de Pâmela, Joaquim e Janete foi mais do que apenas uma narração. É a tradução dos olhos brilhando de emoção com que o novo pai chegava até a minha sala de trabalho – vizinha a dele – após cada momento marcante. Desde a primeira ligação, os fins de semana juntos, até a nova certidão de nascimento que mostrou orgulhosamente. Há muito tempo queria contar essa história. Felizmente, agora tive a oportunidade. Nas mais de cinco horas em que passamos na companhia da família para a entrevista, minha admiração pela força, garra e persistência de cada um deles só cresceu, aumentando meu aprendizado como repórter e também enquanto pessoa.


NÃO jogo

No Inter, não

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Por que Yura, ídolo gremista, se recusou a jogar no Internacional Por WILLIAM MANSQUE Fotos JONARA CORDOVA

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m, dois, três, quatro, cinco mil... Yura, vai pra p*** que pariu!”, cantava a torcida do Inter assim que avistava o meiocampo do Grêmio na década de 1970. Ironicamente, anos mais tarde, o ídolo gremista se destinava a vestir a camisa colorada. Enquanto encerrava sua carreira no Criciúma, Yura foi contratado pelo Inter no final de

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1980. Naquele tempo, o passe de qualquer jogador de futebol pertencia ao clube, que o negociava para onde bem entendesse. Só com a Lei Pelé, que entraria em vigor em 1998, os atletas passaram a poder decidir os seus destinos. Portanto, Yura estava fadado a atuar no Beira-Rio. Mas essa seria a segunda vez que o meio-campo poderia vestir a camiseta colorada. Quando ainda não havia defendido as cores do Grêmio


como jogador, Yura foi convidado para jogar no Inter. COMEÇO Nascido em 1952, em Porto Alegre, Júlio Titow é filho de imigrantes russos que vieram para o Brasil refugiados da Segunda Guerra Mundial. Ainda cedo, passou a ser chamado pelos seus pais pela alcunha de Yura, como deveria ter sido originalmente registrado. Segundo o ex-jogador, desde pequeno era um gremista fanático. “Narrava as partidas do Grêmio na patente de casa, sempre pensando em jogadores como João Severiano, Alcindo e Airton. Nas narrações, eu jogava com eles”, conta. Já com oito anos, Yura começou a assistir escondido aos jogos do tricolor no Estádio Olímpico. Pegava bonde e não pagava. Era uma aventura. “Meus pais não sabiam disso. Tinha que estar em casa às oito da noite, senão apanhava. Algumas vezes apanhei, porque os jogos terminaram mais tarde. Ia a pé do Jardim Floresta até a Assis Brasil, pegava o bonde até o Centro, e lá pegava outro bonde até a Azenha. Nunca pagava. Quando o cobrador ia até mim, eu pulava fora pelo outro lado”, relata. Durante a adolescência, Yura se destacou jogando na várzea, principalmente no Itapeva. Suas atuações chamaram a atenção de um conselheiro colorado, que o convidou para fazer um teste no Inter. A princípio, o meio-campo resistiu, mas acatou a ideia e foi até a sede colorada, no estádio dos Eucaliptos. Foi barrado. “59 kg? o que é isso? Os caras vão te partir ao meio. Sai fora!”, disparou um treinador da base. Enquanto atuava na várzea, Yura costumava ser sondado por vários clubes, mas a negociação nunca ia pra frente. Até que Abílio Reis, treinador das categorias de base gremista, o convidou para jogar no tricolor. O meio-campo aceitou a oferta. Adoles-

cente, largou a várzea e seu trabalho com próteses odontológicas, área que ele retomaria após se aposentar dos gramados. Hoje ele é representante de vendas da Iodontec – fabricante de produtos odontológicos. ANOS TRICOLORES Após passar cerca de quatro meses nas categorias de base do Grêmio, Yura subiu para o profissional, no qual ficaria de 1972 a 1980. Por causa de seu corpo franzino, ganhou do radialista Milton Jung o apelido de “Passarinho”. Na adolescência, era chamado de “Caroço”. “Porque só tinha osso”, justifica. Por se movimentar bastante em campo, Yura chegava a perder cinco quilos por jogo. Segundo o jornalista Léo Gerchmann, autor dos livros Coligay – Tricolor de Todas as Cores e Somos Azuis, Pretos e Brancos, o meiocampo era um jogador moderníssimo para os anos 1970. “Além da boa técnica, era o que se convencionou chamar de ‘pulmão’ do time. A intensidade da sua forma de jogar contaminava os demais”, explica Léo. Para o jornalista esportivo Mário Marcos, Yura tinha uma disposição incomum para a competição: “Não parava nunca. Lutava até o fim. Talvez sua limitação fosse o chute. Ele era mais de completar jogadas já na área”. Entre os dirigentes do Grêmio, Yura tinha o apelido de “Bocão”, por falar demais. Sempre genioso e com uma personalidade forte, por vezes temperamental, o meio-campo era um adepto do sincericídio. “Uma vez me perguntaram, às vésperas de um Gre-Nal, quem ganharia o jogo, e respondi que seria o Inter, porque eles tinham um time melhor. Por causa disso, descontaram da minha folha de pagamento”, lembra. O colorado venceu a partida, mas Yura foi escolhido o melhor jogador em campo. Aliás, o clássico era seu jogo preferido. “Por se declarar torcedor do Grêmio, tinha o Inter como seu principal PRIMEIRA IMPRESSÃO | 82 | DEZEMBRO DE 2015

adversário. Yura crescia muito, lutava, brigava, fazia faltas que não estavam dentro de sua característica (técnico e magro)”, analisa Mário Marcos. Yura confessa que havia jogos em que ele perdia e chorava depois da partida, principalmente em derrotas nos clássicos. O meio-campo sofria duas vezes com o Grêmio: como jogador e torcedor. “De cada dez bolas que eu pegava, errava sete ou oito. Em compensação, deixava duas na cara do gol, ou eu ficava na frente do goleiro. Como tinha mais facilidade de errar, a torcida não aceitava isso”, lamenta. Yura era vaiado pelos torcedores adversários e pela própria torcida gremista. Sua redenção veio em 1977, com a conquista do Gauchão sob o comando de Telê Santana, após oito anos de hegemonia colorada. A arrancada para o título começou com uma vitória do Grêmio sobre o Inter na primeira fase, com um gol de Yura aos 14 segundos de jogo, o mais rápido da história do Gre-Nal. “Foi um gol por tudo o que sofri. Tirei um peso violento das minhas costas. Na comemoração, abri bem os braços porque eu queria abraçar toda a torcida gremista”, recorda. Ainda pelo Grêmio, Yura conquistaria o Gauchão de 1979. Depois disso, ele deixaria o clube para jogar no Criciúma, quando já pensava em abandonar o futebol por causa de uma calcificação óssea na perna direita. PROPOSTA COLORADA No Criciúma, Yura pretendia disputar o campeonato catarinense e encerrar a carreira. Já estava próximo do fim: a cada três partidas, jogava uma e parava duas. Calhou de atuar bem sempre que podia entrar em campo, o que foi o suficiente para despertar a atenção de dirigentes do Internacional. Eles fizeram uma boa proposta ao Criciúma. Em 1980, não havia a Lei Pelé, e o atleta era uma mercadoria do clube. O presidente do Criciúma, Antenor Angeloni, chamou Yura para comunicá-lo


da negociação. Por mais que o meia protestasse, a decisão era irreversível. Aquilo deixou Yura em pânico. Ele não queria jogar no Inter. Tentou se imaginar com a camisa vermelha e concluiu: “Não dá não!” Ansioso pela conclusão do negócio, Angeloni ofereceu seu jato particular para o meio-campo ir até Porto Alegre acertar o contrato. Yura recusou e preferiu ir com seu carro. Ao chegar ao Beira-Rio, Yura se deparou com dirigentes colorados confiantes com a possível arrecadação pomposa de ingressos no primeiro Gre-Nal que ele participasse. Diante desse cenário, o meia pôs em prática seu plano para não jogar no maior rival do Grêmio: pedir um salário astronômico. “Com esse dinheiro eu contrato três grandes jogadores!”, espantou-se José Asmuz, então presidente do Inter ao receber a contraproposta. Era cerca de US$ 15 mil, muito dinheiro para a época. “Então pegue esse dinheiro e contrate três grandes jogadores”, retrucou Yura.

O negócio fracassou naquela reunião. Satisfeito, Yura saiu da sala do presidente. O que ele não esperava era o soco que receberia assim que atravessasse a porta. “Vagabundo! Eu vou te arrebentar!”, esbravejou Yura para Gilberto Tim, preparador físico do Inter, que tinha o controverso hábito de desferir socos no peito para animar os jogadores. Com o golpe, o meio-campo caiu no chão. Temperamental, ele não aceitou o “estímulo”. Quis revidar. “É o meu jeito... Queria que tu ficasses aqui”, tentou consertar Tim. Dirigentes e comissão técnica do Inter seguraram Yura. As desculpas não convenceram o jogador, que voltou para Criciúma em seu carro. Após cerca de quatro horas de viagem, no mesmo dia em que compareceu ao Beira-Rio, ele disputou uma partida pelo Campeonato Catarinense – uma das últimas de sua carreira, que seria encerrada precocemente com 27 anos. “Eu já era protético dentário na época. Minha perna direita não aguentava mais. Parei na hora certa”, reflete.

PRIMEIRA IMPRESSÃO | 83 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER “Não faço nada”, pensei ao analisar o tema desta edição da revista. Concluí que queria fazer uma pauta sobre o nadismo, movimento no qual se defende que não se faça nada por alguns instantes. Refleti que isso seria a minha cara. Ansiava por acompanhar uma reunião de nadistas e não fazer nada. Seria perfeito. No entanto, a pauta já tinha sido feita na PI, e convenhamos que esse assunto é muito 2009. Já saturou. Mas isso não significava que eu não estivesse com vontade de revirar uma história velha, recontá-la com mais detalhes. Vislumbrei uma boa oportunidade em relatar o episódio da recusa de Yura (grafia que ele opta por escrever seu nome), genioso ídolo gremista, em jogar no Inter. Essa história já virou até lenda urbana: em uma versão, o meio-campo teria vestido a camisa colorada, se arrependido na mesma hora e gritado que “não consegue”. Não foi bem assim. De qualquer maneira, a narrativa que tentei apresentar nesta reportagem é cheia de peculiaridades tão pitorescas quanto uma lenda.


NÃO me acovardo

Coragem à prova de balas PRIMEIRA IMPRESSÃO | 84 | DEZEMBRO DE 2015


Em uma guerra, o pior inimigo não está do outro lado. Está dentro dos combatentes: o medo. Mas Benno Schirmer fez questão de enfrentar a morte nos campos de batalha da II Guerra Mundial Por THOMAS BAUER Fotos LUCAS MOLLER

À

direita, um daqueles casarões com arquitetura germânica. À esquerda, ruínas de um prédio abandonado. Entre eles, uma ruazinha estreita, cercada de trepadeiras. O pequeno caminho de pedras leva até um reduto seguro onde estão guardadas, na cidade gaúcha de Novo Hamburgo, memórias preciosas da II Guerra Mundial. Pela janela de uma das casas, o guardião dessas lembranças observa a chegada dos visitantes por trás dos óculos, atento como um sentinela. Sentado na cadeira de rodas que o tempo lhe deu de presente, Benno Armindo Schirmer conta sua história. Muitas das imagens são pesadas demais para ele

trazer à tona depois de tanto tempo. “É muita coisa para a cuca de um velho com 92 anos”, diz enquanto bate com os dedos na têmpora. Entretanto, o zumbido em seu ouvido direito nunca vai deixá-lo esquecer do que viu na Itália. “Lembro bem de cada tiro que passou zunindo pela minha cabeça. Muitas bombas explodiram ao meu lado. Agradeço todos os dias por estar vivo”, conta o veterano, fechando os olhos como se lembrasse dos momentos da batalha. A expressão dele é de quem viu a morte de perto e a mandou se danar. Tanta coragem só se explica na ausência de um dos sentimentos mais comuns ao ser humano. “A gente não conhecia o medo. Isso não se PRIMEIRA IMPRESSÃO | 85 | DEZEMBRO DE 2015

conhecia de fato. Ele faria com que corrêssemos para retaguarda e nos mostraríamos covardes”. A COBRA VAI FUMAR Submarinos alemães afundaram navios brasileiros no Caribe e próximo ao litoral de Salvador em 1942. Tal golpe não poderia ser ignorado pelo Governo brasileiro. Getúlio Vargas então declarou guerra a Hitler e seus aliados. O líder nazista afirmou: “É mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil mandar tropas até a Europa”. Porém, Hitler se arrependeria de suas declarações. Não à toa o símbolo das tropas áereas se tornaria uma cobra fumando.


Os 25.433 pracinhas, como ficaram conhecidos, receberam a missão de ajudar os Aliados a derrubar a linha gótica, uma cadeia de montanhas protegida pelos alemães. Muitos soldados sentiram medo e muito provavelmente não tiveram escolha ao serem enviados para lutar na Itália. Schirmer, então com 21 anos, não era um deles. Contrariando seu comado, conseguiu ingressar na Força Expedicionária Brasileira que estava treinando para a luta na Academia Superior de Guerra do Rio de Janeiro. FALO ALEMÃO SIM, SENHOR! 11 de Janeiro de 1945. A Itália estava tomada por um frio infernal, que chegava aos 20 graus negativos. Havia dois meses que os soldados brasileiros tentavam tomar Monte Castello, sofrendo quatro reveses até

aquele momento. O general Fernando Belfort Bethiem caminhava de um lado para o outro, tentando formular um novo ataque à montanha que parecia intransponível. Era quase meio dia quando um homem adentrou em sua sala: – Sargento Benno Armindo Schirmer, da Artilharia, se apresentando, senhor! – Exclamou o jovem, com voz firme. Olhando nos olhos do jovem, o oficial lhe questionou: – Você fala alemão, sargento? De pronto ele recebeu a reposta: – Falo sim, senhor! Desconfiado, o General interpelou: – Você seria capaz de se entender com aqueles safados lá no front? – Senhor, eu falo o alemão clássico. Não entendo os dialetos. Era a resposta que Bethiem esperava.

– Apresente-se daqui a duas horas na sala do comandante do depósito. Schirmer, que só falava o dialeto que aprendeu na fronteira, teve de simular um interrogatório de um inimigo alemão em frente a um major. Ao final da prova, o oficial bateu em seu ombro e lhe disse: – Se apronte, às 16h, você deverá ir para o front juntar-se ao 11º Regimento de Infantaria. Para o jovem, que fazia parte da artilharia, não bastava focar na retaguarda, atirando de longe. Na primeira batalha de sua vida queria sentir o inimigo de perto no front de batalha. Ele não imaginava que conseguir ingressar no 11º RI significaria participar de alguns dos episódios mais sangrentos da história da Segunda Guerra. Mas, bem lá no fundo, não havia nada que ele quisesse mais do que isso.

Mesmo que o corpo do Major Benno Schirmer esteja debilitado aos 92 anos, seu olhar e disposição ainda parecem estar prontos para a guerra PRIMEIRA IMPRESSÃO | 86 | DEZEMBRO DE 2015


O CLARÃO DA VITÓRIA A tomada de Monte Castello havia sido uma vitória e tanto para os Pracinhas. Com a ajuda de uma tropa de alpinismo americana, a montanha finalmente foi tomada. Apesar de custar um número considerável de homens, os brasileiros fizeram o que outras tropas mais preparadas não haviam conseguido. A próxima parada seria Montese, onde os soldados travariam uma batalha sangrenta em meios às ruas e casas de pedra. Era fim de tarde quando o major de operações do 11º Regimento se dirigiu aos soldados e pediu: – Preciso de um sargento voluntário para uma operação perigosa. Como um aluno dedicado, Schirmer levantou a mão e se ofereceu de imediato. Ele entrou na barraca do comandante, onde recebeu as instruções: – Sua missão é ocupar uma casa amarela neste ponto, próximo à entrada da cidade – disse colocando o dedo no mapa – e chamar uma companhia que está a uns 800 metros atrás para ocupar a posição de ataque, que ocorrerá amanhã – completou o oficial. Schirmer iria como interino da missão, já que o sargento responsável ainda não havia retornado de uma patrulha. Apesar de já ter comandado outras missões, ele estava tenso. Na última hora, o sargento titular chegou para comandar os trabalhos. Schirmer já se retirava para sua barraca quando ouviu um grito do major: – Você vai junto de qualquer forma, Schirmer, eles vão precisar de um intérprete. Na subida do monte, ele sentia que algo não estava certo. Seu pressentimento se concretizou a 60 metros da casa. Uma rajada de metralhadoras brilhou de uma das janelas escuras, liquidando o sargento comandante da patrulha, que estaria vivo se tivesse se atrasado. O cheiro de sangue e pólvora entrava pelas narinas dos homens, que ficaram em pânico. Porém, Schirmer não deixou que eles se dispersassem.

– Nós vamos cumprir a missão! – exclamou em meio ao som das balas que passavam zunindo nos seus ouvidos. Duas granadas explodiram em sequência, próximas a tropa. Mesmo zonzo, ele conseguiu pôr os homens em posição e ordenou que um deles preparasse sinalizadores: – Ao primeiro very light vocês miram, ao segundo, atirem! – gritou com toda força que lhe restava nos pulmões. O plano deu mais do que certo. Após o segundo clarão dos sinalizadores, os dois alemães ocupantes da casa caíram aniquilados. SCHIRMER X SCHIRMER Era uma casa completamente marcada pela guerra. As paredes já não eram salpicadas com cimento, mas com tiros. A rotina de interrogatórios em locais assim era constante. Soldados inimigos eram trazidos a todo o momento pela Polícia do Exército. Naquele dia, entraram na sala com um homem que tinha patente de coronel. Como de praxe, Schirmer pediu o nome do prisioneiro que lhe respondeu tristonho: – Me chamo Rudolf Von Schirmer. Ele olhou para o coronel e perguntou: – Sabe qual é meu nome? Benno Armindo Schirmer. O soldado inimigo que era enorme o fechou em um abraço enquanto grossas lágrimas escorriam por suas faces: – Por que temos que lutar um contra o outro? Pouco depois, Schirmer iria para Nápoles e de lá voltaria ao Brasil, são e salvo. Porém, 471 companheiros não viveram para contar suas histórias. Outros 12 mil foram feridos nos combates e mais de 2.000 morreriam em decorrência das complicações. Esses homens talvez não tenham tido o reconhecimento devido. Schirmer se tornou major e passou décadas lutando pelos direitos dos veteranos de guerra. Muitos já morreram sem receber a compensação por sua bravura. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 87 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Nem sempre realizar uma pauta é o mais difícil para um repórter. Às vezes, os reflexos que ela provoca são muito mais complicados de se lidar. Contar a história de um homem sem medo me fez pensar sobre meus sentimentos e receios. Ao escrever essas linhas, tenho os mesmos 21 anos que Benno Schirmer tinha quando foi para guerra. Espero que tenha conseguido escrever esse texto com a mesma confiança com a qual o soldado marchou contra o inimigo e interrogou prisioneiros, sem olhar para trás em nenhum momento. Que nesses minutos de leitura você seja transportado para 1945, sinta o frio do campo de batalha, o calor das explosões e possa visualizar cada bala que cruzou próximo a cabeça dos soldados. E se em algum momento depois disso você sentir medo, lembre-se de Benno e crie coragem de avançar. Cada um tem sua guerra, mas o importante é nunca parar de lutar.


NÃO admito

Uma dor silenciosa

C

omo qualquer reportagem literária, esta história poderia começar com uma descrição do local onde se situa. Poderia listar detalhes de uma casa simples, ou até mesmo mostrar pessoas sorrindo. Poderia começar pela personagem. Ela é branca ou negra? Possui olhos claros, amendoados ou cor de jabuticaba? Poderia dizer que ela tem o olhar distante, que afaga as mãos enquanto fala, ou até mesmo que sua voz treme quando inicia o assunto. Mas esta não é uma história de uma personagem só. Diferente de muitas reportagens, esta história sequer tem um único ambiente. Nossas personagens são múltiplas. Brancas, negras, altas, magras, jornalistas, assistentes sociais,

Segundo crime mais cruel na percepção dos brasileiros, o estupro é também o mais relativizado pela sociedade Por VIRGINIA MACHADO Fotos GABRIELA WENZEL publicitárias, professoras e donas de casa. Caminham pelas ruas engolindo suas dores a seco. Apenas no olhar triste, em acessos de fúrias aparentemente inexplicáveis, ou em sorrisos amarelos podemos captar o resquício de sua angustia, do trauma e das cicatrizes que ficaram de uma violência que, muitas vezes, não deixa marcas físicas.

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Apesar de silencioso, o crime de estupro fica em segundo nas pesquisas de percepção de crueldade, só perdendo para assassinatos. No Brasil, o fato é curioso, pois registra quase 50 mil estupros por ano, segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2014. Estima-se que o número seja maior, visto que somente 10% dos casos são registrados e que muitas vítimas não denunciam por medo, insegurança ou desconfiança nas instituições. Rafaela* tinha apenas sete anos quando começou a entender que o carinho excessivo do padrasto não era zelo. Apesar do desconforto, nem ela tinha discernimento do que sofria, até ter idade suficiente para caracterizar como estupro. “Ele me tratava com


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aquela noite, uma das que jamais sairá da cabeça é o sentimento de impotência por não decidir sobre o que estava sendo feito com seu corpo. “Fiquei semanas me culpando, pensando que não deveria ter bebido e me sentindo suja pelo que ele fez comigo”, conta. Assim como ela, muitas jovens saem para se divertir sem a certeza de estarem seguras, até mesmo na companhia de conhecidos. Comumente o depoimento das vítimas é relativizado por perguntas do tipo “que roupa você vestia? Estava bêbada? Você tem certeza que não queria? Mas vocês não estavam namorando?”. Situações como essa são rotineiras e fazem parte de uma cultura que joga a sujeira para baixo do tapete. No Brasil, até 2002 a Lei nº 12.305, chamada Lei do Estupro, permitia que o estuprador casasse com sua vítima para não ter que cumprir a pena estabelecida. QUESTÃO CULTURAL

afeto, me ensinava a jogar bola e dirigir, e só muito tempo depois fui entender o porquê. Eu gostava dele, mas não entendia o que era aquilo. Quando comecei a ficar agressiva, ele passou a me ameaçar.” O caso de Rafaela não é único. Segundo dados do Ministério da Saúde, cerca de 70% dos estupros no Brasil acontecem com crianças e adolescentes de até 17 anos, somando um número de 350 mil pessoas, equivalente à população inteira de Canoas, no Rio Grande do Sul. Destes casos, 70% deles são cometidos por parentes, namorados, amigos ou conhecidos. Apenas com 15 anos Rafaela teve coragem de contar para a mãe os casos de abuso que sofria por parte do padrasto e que fez com que passasse boa parte da adolescência afastada da família. “Ele bebia constantemente e naquela noite não foi diferente. Como fazia muitas vezes, chegou querendo agredir minha mãe. Como eu já

era grande, fui pra cima dele é só parei de bater quando vi que estava inconsciente. Eu queria matá-lo”, relata em um dos momentos que mais expôs sua dor. VIOLÊNCIA OCULTA Apesar de ser considerada uma atrocidade, o crime de estupro é um ato silencioso. A maioria dos casos ocorrem dentro de grandes instituições, como igrejas, universidades, escolas e famílias. Universidades do país inteiro têm recebido denúncias de alunas que alegam terem sido abusadas por professores, colegas e até mesmo desconhecidos em eventos dos cursos, sem que isso viesse às vias de fato com a Justiça. Mariana*, 21 anos, estava em um bar próximo à faculdade e após beber algumas cervejas a mais, um colega ofereceu uma carona. De poucas coisas que lembra sobre PRIMEIRA IMPRESSÃO | 90 | DEZEMBRO DE 2015

Apesar de estarmos no século XXI, a cultura do estupro ainda é evidente. Com o slogan “Esqueci o NÃO em casa”, a marca Skol reforçou o caráter dúbio do Carnaval de 2015, onde a comemoração é caracterizada por embriaguez excessiva e casos de abuso sexual relativizado. E não é só a publicidade que comete deslizes. As leis brasileiras somente tiveram considerável avanço a partir de 2009, quando o Decreto-lei nº 2.848 do Código Penal sofreu diversas alterações, como incluir homens como vítimas de estupro, e também tornando crime hediondo o ato sexual sem consentimento com menores de 14 anos, com pena de reclusão de até 30 anos. Ainda houve mudança na nomenclatura de “crimes contra os costumes” para “crimes contra a dignidade sexual”. Para agravar a situação, recentemente foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça a PEC nº 6059/2013, proposta pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB), que torna crime o ato de prestar informações para vítimas de violência sexual e, ainda, indicar métodos contraceptivos. Ou seja, além de terem sido estupradas, as mulheres correm o risco de engravidarem de seus agressores e não poderem fazer nada para impedir.


PEDIDO DE SOCORRO A psicóloga da área clínica do Hospital São Camilo, de Esteio, explica que a violência contra a mulher é tratada com descaso, pois está enraizada na sociedade. “Elas estão tão acostumadas a passar por isso que não entendem que se trata de algo errado. Crescem vendo a mãe apanhar do pai, apanham na infância, crescem e apanham do marido. Por conhecer apenas aquela realidade, não entendem que existe um mundo fora da violência doméstica”. Luciana*, 18 anos, namorava havia seis meses quando o namorado começou a se comportar de maneira estranha. Um dia, após beber com amigos, ele a estuprou. “Ele estava agitado, fechou a porta do quarto e disse que íamos brincar de um jeito diferente”, explica. Após um ano, Luciana ainda sofre com os traumas daquela noite, que, segundo ela, foi a pior de sua vida. “Nunca me senti tão suja e culpada por não ter conseguido me soltar e sair correndo”, desabafa. Após a agressão, ela só conseguiu ir até a casa de uma amiga, onde chegou com as roupas rasgadas e sangrando. As marcas físicas já perderam o tom, mas no psicológico ainda estão fortes. O caso ficou por isso mesmo, pois para denunciar seu agressor, ela precisaria ir até a cidade vizinha

e realizar o exame de corpo de delito, isso em até 24 horas do ocorrido. Sangrando e com esperma em seu corpo, tudo que Luciana queria era se livrar das marcas deixadas pelo ex-namorado. Em casos como esse, Clóris Bierhals, Coordenadora de Políticas Públicas para Mulheres de Esteio, reforça que a vítima deve contatar o 180, número da Patrulha Maria da Penha, onde serão encaminhadas à Sala Lilás, situada no Hospital da Ulbra, em Canoas, para exame de corpo de delito e acompanhamento psicológico. “A cultura patriarcal e fundamentalista dificulta que discussões sobre o estupro cheguem até as famílias. Emponderar mulheres também é debater recursos públicos e criar espaços de diálogo”, reforça Clóris. Para a coordenadora, a construção diária do papel da mulher na sociedade como dona de si mesma é uma das formas de combater a violência. Movimentos como: Vamos Juntas?, Se Essa Rua Fosse Nossa e Marcha das Vadias, conhecido como um dos maiores movimentos feministas dos últimos anos, reforça a urgência das políticas para as mulheres e têm registrado cada vez mais adeptas. *Todos os nomes das entrevistadas desta reportagem foram alterados para proteger as suas identidades

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Não. Imperativo de negação capaz de desfazer tratos, romper relações e impedir conflitos. Mas por que uma palavra tão pequena e tão poderosa vira algo tão frágil quando sai da boca de uma mulher? Quando decidimos o Não como tema, logo pensei no estupro, afinal, não são poucos relatos de mulheres que foram abusadas apenas porque seus agressores não respeitaram um “não”. Mas como contar histórias tão sensíveis e passíveis de questionamento por parte de uma sociedade que só consegue enxergar o estupro em sua forma mais monstruosa? Meu desafio era mostrar que o estupro está presente em diversos âmbitos sociais e é mascarado por uma ideia de “noite de ressaca moral” ou até mesmo respeito às decisões do namorado. Eu queria dar voz à dores silenciadas. Queria que toda mulher que sofreu um trauma parecido encontrasse nesta reportagem um apoio para sua dor, uma fresta de luz a um problema escondido. Não esperava tantas histórias semelhantes sem solução. E ainda fui surpreendida por uma força feminina unida, capaz de vencer os desafios de viver em um mundo que até a cor do batom é desculpa para agressões. Nesta matéria, depois de muitas histórias tristes e de reavivar uma dor latente, eu pude enxergar no rosto de cada uma delas uma esperança de um mundo mais humano, onde a rua possa ser nossa e a liberdade seja a única premissa capaz de delimitar as escolhas de uma mulher.

O ensaio fotográfico desta reportagem foi realizado com integrantes do Coletivo Manas Esteio

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NÃO saio

É a minha casa A história de um apenado que quer continuar morando na Penitenciária Estadual de Arroio dos Ratos Texto e fotos de RODRIGO RAMAZZINI

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E

sta é uma história controversa. Com uma pessoa controversa. Com uma decisão controversa. Em um lugar controverso. Por isso, é de difícil assimilação em um primeiro momento. Isso porque em tempos em que há uma maior reivindicação por liberdade, ele decidiu justamente o contrário quando teve a oportunidade. Ele se chama Roberto – prefere não dizer o sobrenome – e escolheu permanecer “morando em uma casa” de tom amarelo, dividida em vários módulos, com segurança 24 horas, cercas altas, equipada com sistema de monitoramento por câmeras e portaria com guarda da Brigada Militar. A morada escolhida fica isolada às margens da rodovia BR-290, construída em meio a uma plantação de árvores de eucalipto, no município de Arroio dos Ratos, a 62 km de Porto Alegre. Estamos falando da Penitenciária Estadual de Arroio dos Ratos (PEAR). Roberto é natural de Porto Alegre. Cresceu no bairro Azenha, no entorno do Estádio Olímpico. É um senhor com a pele parda, cabelos pretos escassos na parte de cima da cabeça e longos dos lados. Caminha arrastando levemente os gastos chinelos no chão e com o corpo curvado para frente. É fumante. É analfabeto e possui um déficit cognitivo, que o faz, por vezes, perder a lógica de raciocínio e a memória. “Nasci no dia 26 de abril... Não lembro o ano!”. Roberto nasceu em 1961. Diz que já trabalhou “fazendo de tudo um pouco” e morou, além de Porto Alegre, em Viamão, na Serra Gaúcha, em São Jerônimo, em Arroio dos Ratos e no distrito de Santo Amaro, que pertence a General Câmara. Foi nesse último município, onde a mãe reside, que a sua vida mudou em 2011. Nesse ano, ele acabou preso por um delito sexual em uma criança. “Não gosto de falar disso! Não gosto!”, desconversa. Julgado e condenado a seis anos de reclusão, passou a cumprir pena no Presídio Estadual de São Jerônimo, sendo transferido para a PEAR no ano seguinte. Ele não tinha antecedentes criminais. A Penitenciária Estadual de Arroio dos Ratos foi inaugurada no ano de 2012, depois de muita discussão sobre o seu projeto em razão da segurança e das condições para os presos. A área em que foi instalada é

oriunda de doação de uma empresa privada. A casa prisional tem quatro módulos. Em cada módulo, a Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe), órgão que dirige o local, coloca um perfil de preso. A penitenciária tem capacidade de abrigar 672 presos e não se encontra superlotada. ROBERTO E A PENITENCIÁRIA A relação entre Roberto e a PEAR iniciou em 2012, logo depois da inauguração da penitenciária. Ele foi um dos primeiros presos a chegar à casa prisional. A transferência ocorreu porque na unidade de São Jerônimo passaram a ficar somente presos provisórios, ou que estão no regime semiaberto. “Aqui, ele considera a segunda casa dele. A primeira é a da mãe. A segunda é aqui”, explica a psicóloga Tatiana de Paula Firckel, que acompanha Roberto. Ele confirma que está em um local confortável para si. “Está tudo bem! Tudo bem! Me dou bem com todo mundo aqui”, afirma. O dia começa cedo para Roberto na Penitenciária Estadual de Arroio dos Ratos. Às 7h, já está acordado, tomando café. Depois passa o dia inteiro envolvido com o trabalho até o retorno à cela, no início da noite. Por ser um dos trabalhadores da casa, ele a ocupa sozinho. Lá, vive praticamente isolado, com apenas a companhia de uma televisão e um rádio. “Fico assistindo televisão. As novelas das sete e das nove... Ou ouvindo rádio!”, conta. Roberto é uma espécie de formiguinha na casa prisional. Tem o perfil considerado muito tranquilo e é homem de confiança dos agentes penitenciários. “Os outros presos já apertaram ele para levar faca ou celular para as celas. Ele não leva. É um perfil de confiança que a gente admira”, diz o Diretor da PEAR, Cristian Colovini. Ele tem trânsito livre pelos corredores da penitenciária. Não usa qualquer tipo de algema ou sistema de monitoramento. Não para nunca de trabalhar. Internamente é chamado de Tarzan, ou de Seu Roberto. Sua principal tarefa é a limpeza de vários pontos da casa prisional. “É o melhor faxineiro que tem aqui!”, destaca a psicóloga. No entanto, o rótulo de bom de faxina não tem o mesmo peso quando o assunto é a própria higiene e aparência pessoal, o PRIMEIRA IMPRESSÃO | 94 | DEZEMBRO DE 2015

que gera comentários nos corredores da casa prisional. Além da limpeza, Roberto ajuda no descarregamento de mercadorias, na cozinha e cuida dos canteiros de flores. O DIA DE FÚRIA Nem todos os dias foram ou são de flores na rotina de Roberto na penitenciária. Já houve um dia de fúria. Um dia que deveria ser, em tese, de comemoração. Mas, não. Foi em maio de 2014, quando foi expedida a decisão judicial que autorizava a progressão de pena de Roberto do regime fechado para o regime semiaberto, chamado de alvará. “Tiveram que me chamar quando soube do alvará. Ele se alterou e disse que não ia sair daqui. Ficou agressivo na fala. Dizia que não ia. Que não ia sair daqui!”, relembra a psicóloga.

A limpeza faz parte da rotina de Roberto na PEAR, que também tem tarefas na cozinha e na jardinagem


O alvará determinava que Roberto cumprisse o restante da pena em regime semiaberto no Presídio de São Jerônimo, o que lhe permitiria, entre outras benesses, a possibilidade de sair e trabalhar fora durante o dia e voltar somente à noite para dormir na casa prisional. Ou seja, ele seria transferido da PEAR para São Jerônimo e esse era o seu temor. “Me avisaram que os caras queriam me pegar lá. Que eles queriam me matar! Daí, eu não quis. Fiquei aqui que era melhor”, justifica a decisão. Com a surpreendente reação e a posição irredutível de Roberto, a direção da PEAR solicitou junto a defensoria pública e a esfera judicial que ele permanecesse no local. A área de psicologia da penitenciária não conseguiu determinar se, realmente,

houve alguma ameaça por parte de presos de São Jerônimo ou se isso foi invenção de Roberto para justificar a sua permanência na PEAR, tendo em vista que ele já esteve na casa prisional de São Jerônimo e nenhuma ocorrência foi registrada naquele período. As psicólogas atribuem o desejo de ficar ao fato de ele se sentir em casa, conhecer todo mundo e estar em uma relativa “zona de conforto” no seu dia a dia. Dentro deste quadro e atrelado ao bom comportamento, a Justiça permitiu que Roberto permanecesse na penitenciária até sair em liberdade definitiva. DECISÃO INCOMUM De acordo com o juiz Sidinei Br-

zuska, da Vara Criminal de Porto Alegre, a decisão de Roberto não é rotina no sistema prisional. “Não é normal e nem comum. Mas volta e meia surgem casos assim. Normalmente, quando não falta muita coisa para a condicional. Daí, o preso opta por ficar no regime fechado, para evitar o semiaberto”, explica.Apesar de tudo, a relação entre Roberto e a PEAR está perto do fim. Até o final do ano, a Justiça deve decretar a sua liberdade condicional. Desta vez, ele diz que quer sair e voltar a morar com a mãe, em General Câmara, para ajudá-la em casa. Curiosamente, fala em retornar sem qualquer temor ao município em que praticou o crime. Isso, claro, se não chegar no dia de sair em liberdade e ele declarar novamente “Não saio!”.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Foi em meio às discussões sobre as pautas da revista que a ideia surgiu: contar a história de um preso que poderia sair em liberdade e não quis por opção. Então lasquei a sugestão, que foi aceita. Logo entrei em contato com a Susepe, que me respondeu que não havia ninguém no sistema prisional com este perfil. Insisti. Novo não. Então, desisti. Já estava até trabalhando em outra pauta quando a Susepe me acionou novamente informando: “Achamos”. Eu já havia entrado em uma casa prisional como jornalista e esperava um ambiente tenso. No entanto, a recepção atenciosa da direção da PEAR facilitou muito o meu trabalho. Durante a entrevista, em razão do déficit cognitivo do preso, adotei a estratégia de questioná-lo da infância até os dias de hoje, para criar uma linha lógica em seus pensamentos. Fiz questão de narrar um pouco dos bastidores dessa reportagem para mostrar como se chega muitas vezes a uma história. E como foi contá-la? Histórias tem que ser a paixão de um jornalista. E eu sou um jornalista!

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NÃO volto

O desafio da liberdade

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Apesar das dificuldades, muitas pessoas escolhem a rua como lar Por MARIA ROSELI DA SILVA Fotos DANIELA FLORES

João deixou a casa dos pais, em Porto Alegre, para viver um relacionamento com Linda e morar nas ruas da cidade

E

mbaixo dos trilhos do trem vive um homem feliz. Fabiano da Silva, 34 anos, reuniu papelão, madeiras velhas, palets, lonas e o que mais fosse capaz para servir de casa para um desabrigado. Há pouco mais de um ano vive embaixo dos trilhos da Avenida Mauá, em São Leopoldo. Alegre, ele vê a sua própria história como “uma situação engraçada”. “Nunca quis viver nas ruas, mas foi acontecendo e, quando vi, já chamava esse lugar de lar”, explica Silva. Mecânico industrial, casado e pai de duas crianças, Silva conta que sair de casa foi a melhor e, ao mesmo tempo, a pior escolha de sua vida. Ele vivia com a mulher e dois filhos, na zona norte de Estância Velha. Bebia, era alcóolatra e chegava em casa todos os dias embriagado. Discutia com a mulher, que não entendia seus problemas e preocupações e o ofendia chamando de vagabundo, além de insistir que ele tinha outra mulher. As crianças, com quatro e oito anos, choravam em cada discussão. “Eu não sabia mais o que fazer. Não amava aquela mulher e amava demais os meus filhos para vê-los sofrendo. Uma noite brigamos, e ela gritou para que eu fosse para ‘o inferno’. Eu fui.” Bem humorado, ele relata que saiu de casa porque não aguentava mais aquela situação. “Estava um pouco bêbado, caminhei por duas horas. Tinha R$ 50 no bolso. Estava transtornado, triste, morto por dentro. Resolvi entrar em um bar e beber até esquecer tudo. Bebi. Acordei durante a madrugada na beira da estrada que liga Novo Hamburgo a São Leopoldo. Não tinha dinheiro, não sabia para quem ligar... resolvi caminhar até amanhecer.” Silva aproveitou o tempo para pensar em tudo que havia acontecido. Chegou à conclusão que voltar para casa era o mesmo que aceitar aquela rotina, conviver com uma PRIMEIRA IMPRESSÃO | 97 | DEZEMBRO DE 2015

estranha que brigava o tempo todo e ver os filhos aos prantos todos os dias. A melhor opção era sair, deixar a casa para a mulher e os dois filhos e tomar um rumo diferente. “Abandonei tudo. Deixei aquela vida pra trás. Aqui eu sou livre, faço o que eu quero, sem ninguém brigando comigo. Não tenho nada, mas sou mais feliz.” Na rua, ele conheceu pessoas que hoje chama de família. Gente que divide o pouco que tem em troca de um sorriso, que diariamente leva um prato de comida e não pede nada em troca. Que se preocupa quando ele passa a noite fora da “baiúca”, como chama o barraco onde vive. “Aqui os cachorros dos vizinhos cuidam do meu sono. Todos os dias o Marcelo (morador do bairro) me traz comida. De vez em quando eu arrumo uma coisinha ou outra pra fazer, o que me rende uns trocados. Não tenho luxo, sou simples, mas não voltaria para a casa que vivia antes.” Marcelo Rodrigues é morador do bairro Santos Dumont e “vizinho” de Fabiano. Todos os dias, depois que chega em casa, arruma um pote com comida e leva para o Biano, como é conhecido por todos. “Eu lembro até hoje a primeira vez que cheguei com comida. Biano abriu um sorriso e foi logo agradecendo. Agradecia sem parar”, conta Marcelo. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento de São Leopoldo, nos últimos quatro anos, houve um aumento de 8% da população que vive nas ruas, constando em torno de 250 moradores. Na capital gaúcha, o número salta para quase 3 mil. O presidente da Fundação de Assistência Social e Cidadania de Porto Alegre, Rafael May Chula explica que os investimentos em ações junto à população em situação de rua dobraram entre 2010 e 2014. Ele reconhece que, ainda assim, o número de pessoas que vive nas ruas é bastante crescente. “Criamos um grupo de trabalho para estudar como fazer para remover essas pessoas


da rua”, explica Chula, que afirma realizar somente na região central da cidade mais de 1,7 mil abordagens por mês. AMOR QUE VENCE LIMITES Há dois meses, todos os sábados na metade da manhã, uma fila se forma embaixo do viaduto da Conceição, em Porto Alegre. Muitos que esperam pelo ônibus ou lotação não entendem a aglomeração, mas as mais de 500 pessoas que se organizam sozinhas em fila única sabem

que em aproximadamente duas horas receberão o que provavelmente será a única refeição do dia. Do outro lado do viaduto, pouco interessados na fila, acomodados em um colchão e algumas cobertas, Linda, 27 anos, e João, 24 anos, dividem espaço com Bethoven, um filhote de vira-lata de apenas quatro meses. Linda vivia perambulando pelas ruas atrás de comida ou algumas moedas capazes de matar a fome. Ainda criança, foi abandonada pela mãe em um orfanato na cidade de Santa Rosa. Sempre que era ado-

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tada por alguma família, Linda sofria maus tratos, era agredida verbalmente, humilhada e sempre retornava ao orfanato. Certa vez, cansada de passar por tantas casas diferentes, resolveu fugir. Tinha 16 anos e, com o pouco dinheiro que tinha no bolso, chegou à Capital gaúcha com um único desejo: não retornar jamais para aquela vida de recusas. Ao caminhar pelas ruas, ela nunca tinha destino certo, dormia onde conseguia um teto e comia sempre que alguém lhe oferecia comida. Uma noite, enquanto passava em frente a


um bar, avistou João e “foi amor à primeira vista”. Ele trabalhava como segurança e morava com os pais em uma casa no bairro Moinhos de Vento. Todos os dias via Linda passar e não conseguia resistir aos olhares dela. Até que recebeu um convite para dar uma volta depois do expediente. “Eu era apaixonada por ele. Um dia, tomei coragem e convidei para conversar, crente que levaria um fora, mas ele aceitou”, conta Linda, deixando João envergonhado. Uma lancheria foi o ponto de encontro dos dois, que se encontra-

ram mais três vezes até o primeiro beijo. João era tímido, e a iniciativa novamente precisou partir de Linda. Viam-se todos os dias. Quando a família de João descobriu o relacionamento, todos foram contra. A mãe de João não aceitava a relação do filho com uma moradora de rua. Aos 19 anos, João decidiu sair de casa e viver com Linda pelas ruas de Porto Alegre. “Não tinha o que fazer. Eu a amava e minha família não aceitava. Ou saia de casa ou abria mão dela. Queria viver em qualquer lugar, desde que fosse com ela”, revela João, que ganhou em seguida um beijo de Linda. Desde 2010, João e Linda vivem nas ruas da Capital. Não têm lugar específico para dormir e sempre estão mudando. “Já fomos agredidos enquanto dormíamos. Ficávamos em baixo de uma ponte, mas os moradores por perto não gostavam. Um dia acordamos com chutes e pauladas”. Foi então que decidiram adotar Bethoven, um cãozinho preto que, apesar da pouca idade, se mostra forte para defender os donos. João conta que apesar de Bethoven ainda ser filhote, ele serve de alarme quando há algum perigo por perto. “Três vezes por semana eu ajudo a descarregar os caminhões no Mercado Público, a Linda fica sozinha e precisa de alguma segurança”, preocupa-se ele que já teve alguns pertences e todos os documentos roubados. Linda conta que o trabalho de João é importante para o futuro deles. O casal usa aliança há três anos, frequenta a igreja todos os domingos e sonha em casar. “Ele trabalha no Mercado, eu junto material (reciclável) nas ruas porque queremos comprar uma casa, uma dessas casinhas que tenha um quintal para o Bethoven”, emociona-se Linda, queapesar de todas as dificuldadesnão desiste de acordar todos os dias, pegar o carrinho de supermercado e percorrer quilômetros atrás do seu sonho. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 99 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Assim que recebi a missão de encontrar uma história para a pauta da PI, pensei em todas as maneiras que poderia ser recebida, mas confesso que sorrisos não estavam na minha ideia de recepção. Foram três idas atrás de histórias. No primeiro dia, a fotógrafa Daniela Flores e eu não encontramos ninguém que se encaixasse no perfil que precisávamos, mas pegamos uma chuva, que logo me rendeu um resfriado. Em São Leopoldo, fomos recebidas com sorrisos e uma história bastante peculiar. Durante a manhã de um sábado, embaixo do viaduto da Conceição, em Porto Alegre, onde acontecia um gesto de caridade e muitos de gratidão, descobrimos que o amor está presente em todos os lugares. Ali, em meio a tantos rostos sofridos, encontrávamos sorrisos e gente que queria apenas um pouquinho de atenção. Foram muitas as vezes que sentei no chão para ouvi-los. Cada um com uma história diferente, mas todos com o desejo de ser cada dia melhor, ainda que houvessem dificuldades, os sorrisos permaneciam largos.


Por não sentirem necessidade de fazer sexo, os assexuais, como Andrey, encontram plenitude na comida, em exercícios físicos e no trabalho

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NÃO curto sexo

Prefiro bolo, obrigado!

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mão segura firme o bolo de chocolate recém saído do forno. Os dedos compridos empurram um pequeno pedaço à boca, enquanto a outra mão, por sua vez, forma uma concha, a fim de aparar as migalhas resultantes das bocadas. De um canto ao outro dos lábios, nos intervalos de mordidas, um sorriso de satisfação surge entre as feições tímidas. Os olhos castanhos acesos não o deixam mentir: Andrey Trarbach Fraga, 25 anos, provou um de seus prazeres. Uma fatia de torta é muito mais interessante para o jovem porto-alegrense do que sexo. Assim como ele, 1% da população mundial não tem interesse em manter relações sexuais ou não sente atração sexual, conforme aponta a pesquisa realizada pela Universidade de Brock, no Canadá. Na pesquisa, foram ouvidos mais de 18 mil moradores do Reino Unido. Em termos mundiais, isso representaria cerca de 70 milhões de pessoas. A rotina de Andrey se divide entre academia, faculdade e bolsa de iniciação científica voluntária. Aluno aplicado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o jovem cursa Matemática. Entre anilhas e barras de peso, ele gasta a energia dos 88 quilos distribuídos no 1,86 metro de altura fazendo exercícios aeróbicos e musculação durante a semana. Também

Mal compreendidos, assexuais representam 1% da população mundial e driblam o preconceito para construir suas vidas Por CRISTIANO VARGAS Foto CLÁUDIA PAES dedica o tempo à pesquisa e algumas outras atividades. Andrey se reconhece como homorromântico, ou seja, sente interesse afetivo por homens. As classificações dentro da assexualidade são variadas. A maioria dos assexuais se identifica como românticos – heterorromânticos, birromânticos, homorromânticos. Também há os panromânticos, que sentem atração romântica independente de gênero ou identidade sexual. Assexuais cinza ou Gray-A têm, raramente, vontade sexual, assim como os demissexuais, atraídos apenas quando envolvidos em relacionamentos consolidados. Existem aqueles sem interesse por sexo e nem por relacionamentos amorosos, chamados de arromânticos. As únicas duas experiências sexuais de Andrey foram frustradas. A última, em 2012, foi a mais decepcionante. “Não senti nada e queria sair o mais PRIMEIRA IMPRESSÃO | 101 | DEZEMBRO DE 2015

rápido possível”, conta, afirmando que não voltaria a transar por nenhum motivo. As tentativas ocorreram para que se sentisse igual aos amigos da época, que viviam a fase de namoricos e experiências. Nada deu certo. O rapaz foi chamado de frígido. Atualmente, o universitário garante viver um momento de plenitude. “A vida é normal, como de qualquer outro ser humano, apenas nosso corpo não sente a necessidade do sexo”, pontua. SÍMBOLOS DA ASSEXUALIDADE Um pedaço de bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro é irrecusável para Andrey. O doce é um dos símbolos da assexualidade. A bandeira com listras uniformes em preto, cinza, branco e roxo também representa esta sexualidade. As cores, respectivamente, designam os assexuais, Gray-A e demissexuais, parceiros não-assexuais e aliados e também a comunidade. O anel negro também é um dos representativos da assexualidade. NÃO É UMA DOENÇA, É UMA ORIENTAÇÃO SEXUAL Alguns acreditam que seja desculpa de gente feia que não pega ninguém. Outros culpam a timidez excessiva. Há aqueles que argumentam ser necessário encontrar a pessoa


certa. Entre um julgamento e outro, o preconceito impera. Desde um comentário tido como inocente até um insulto verbal e público, os assexuais convivem diariamente com a falta de sensibilidade de todos os lados. O resultado anula a orientação sexual a que pertencem. Algo faltava durante as relações do cearense Danilo Alves de Oliveira, 20 anos. Os estímulos do parceiro não surtiam efeito, apesar de o namoro ser estável e de boa convivência. O jovem praticava sexo na busca da sensação de prazer que todos pregavam. “Na época, eu ainda não sabia da minha orientação e não entendia por que eu não conseguia ter o mesmo prazer que meu parceiro tinha”, relembra ele, que hoje se classifica como panromântico. Dan, como costuma ser tratado por amigos, conta que, devido à incapacidade de desfrutar de momentos a dois, tinha a sensação de que servia apenas como objeto de prazer. “Mas era no sexo casual onde eu me sentia realmente mal e isso me causava depressão”, conta ele, defendendo que não sentir atração sexual por outros não impede a busca pelo prazer de outras formas. O preconceito e a falta de tolerância foram sentidos na pele pela paranaense Luciana do Rocio Mallon, 41 anos. O sexo nunca despertou curiosidade nela, que se reconhece heterorromântica. Quando adolescente, por não sentir necessidade de se relacionar com garotos, foi tachada de lésbica. O ápice do bullying aconteceu durante um amigo secreto. Enrolado em um pacote, ganhou uma cueca com a palavra “sapatão” escrita com esmalte. O constrangimento maior aconteceu na fase adulta. Em 2007, aos 33 anos, em uma consulta ginecológica, a profissional da saúde indagou Luciana sobre a vida sexual. A médica, ríspida, não quis acreditar que a paciente nunca havia mantido relações físicas com homens. Totalmente consternada pelas indagações, Luciana prometeu nunca mais retornar àquele local.

Passados alguns meses, em outubro daquele mesmo ano, outro momento fez com que o desapontamento se superasse. Ao consultar outra ginecologista, Luciana teve que suportar expressões e frases de espanto por parte da médica. “Saí do consultório me sentindo um extraterrestre. A partir daquele dia, decidi que durante toda a minha vida de solteira nunca mais iria a uma ginecologista”, desabafa. A pesquisadora educacional com foco em sexualidade, relações de gênero e diversidade sexual pela Universidade São Paulo (USP) Elisabete Regina Baptista de Oliveira lembra que viver em um país como o Brasil, em que impera o pensamento de uma sociedade sexo-normativa, é um desafio para quem não sente necessidade de relações sexuais. Ela interagiu com 40 assexuais para a realização do doutorado em Educação. Sobre os homens, a pesquisadora reforça que existem cobranças para irem à busca de satisfação sexual. “Quase todos os meus entrevistados me contaram que eram ou são percebidos pela família e pelos amigos como homossexuais enrustidos.” A cobrança às mulheres recai sobre a consolidação de famílias e a maternidade. A literatura sobre assexualidade está em progressão. Ainda assim, falase pouco ou quase nada sobre esta orientação sexual, principalmente pelos meios de comunicação. A falta de informações, como lembra a pesquisadora, força para que o imaginário popular reconheça os assexuais como pessoas doentes, apáticas, depressivas, solitárias, incompletas e insatisfeitas. “A única fonte de infelicidade para essas pessoas é a incompreensão da família, dos amigos e dos parceiros amorosos em relação a sua forma de ser”, pontua. Os assexuais têm possibilidade de relacionamentos afetivos, vida social, trabalho, assim como todo cidadão. “A socialização em nada fica prejudicada por conta de serem assexuais”, explica o psicólogo, professor e escritor Breno Rosostolato. O prazer, como lembra, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 102 | DEZEMBRO DE 2015

é uma satisfação conseguida de outras maneiras que não apenas relacionadas à vida sexual ativa. Pode estar localizado no trabalho, estudos, família. O importante, para o especialista, é que todos consigam reconhecer a própria identidade e se aceitar diante disto. A escrita é amiga inseparável de Luciana. Em 2013, lançou um livro sobre lendas curitibanas. Pelas mãos dela também já foram escritas algumas crônicas sobre assexualidade. “Procuro passar a mensagem de que precisamos aceitar as diversidades”, destaca, ao lembrar que a vida sem praticar sexo é normal.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Um degrau a mais. Talvez este seja o sentimento – de forma literária – sobre o que sinto ao concluir a reportagem. O conhecimento adquirido acerca da assexualidade me fez crescer pessoalmente e confirmar que o humano é um ser complexo e diversificado. Somos células vivas completamente distintas. Por alguns dias, imergi em busca de informações, depoimentos, detalhes que me fornecessem visão fidedigna sobre a vida de assexuais. Claro que este movimento foi pretensioso. Criar um conceito engessado sobre a assexualidade seria equivocado. Não há como definir algo tão particular. O que fiz, então, foi contar histórias de pessoas que se reconhecem assexuais e as unir com visões de pesquisadores da área. Acredito que alguns possam não se identificar com o texto, não se reconhecer nas narrativas ou discordar dos especialistas, por questões subjetivas. No entanto, a reportagem vai ao encontro do que observei, analisei, recortei e construí. Espero que tantos outros se sintam representados em cada linha escrita. A estes, o meu sincero abraço.


NÃO tinjo

Eleda, 64 anos, sempre achou bonito ter cabelos brancos

Tons da experiência Os mesmos cabelos brancos que denunciam o envelhecimento são a marca de personalidades únicas Por CAMILA HUGENTHOBLER Fotos RAFAELA AMARAL

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a estante, as fotos revelam o orgulho da família que construiu. Na fisionomia, os fios grisalhos são o sinal dessa experiência. Se existem duas coisas que Maria Celita Schapuis da Luz – ou simplesmente Celita, como é chamada por familiares e amigos – não esconde de ninguém é o orgulho de sua família e os seus fios brancos na cabeça. Aos 74 anos, Celita nunca pintou os cabelos e nem pretende fazer isso.

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“Me sinto bem desse jeito”, afirma. Mãe de quatro filhos, dois homens e duas mulheres, ela conta que os primeiros fios brancos apareceram aos 50 anos, quando um dos filhos decidiu sair da cidade onde moravam, São Luiz Gonzaga, e construir a vida em Sapiranga, a mais de 600 quilômetros de distância. Depois da ida do primeiro, mais dois filhos também migraram, e Celita ficou com o marido e a filha mais nova na cidade natal. “Quando meus filhos vieram embora, eu fiquei triste.


Aos 74 anos, Celita Acho que o cabelo branfazerem esse negócio de tem orgulho de co veio do emocional”, chapinha. É muita quínunca ter pintado acredita. Cerca de cinco mica. Esses tratamentos o cabelo, que por anos após a mudança dos queimam o cabelo e ele muito tempo recebeu sabão de soja e óleo três filhos, ela e o resto não fica mais a mesma de brilhantina para da família decidiram se coisa”, salienta. Inclusive parecer mais saudável mudar para Sapiranga foi para agradar uma das para se juntar a eles. netas que ela se dispôs a Mesmo sem nunca ter pintado os fazer uma escova no salão de beleza. cabelos, Celita sempre foi vaidosa. Na “Fiz escova uma vez, para ir à formajuventude ela tinha mechas compritura da neta. Geralmente vou ao salão das, lisas e castanhas. Para sair, fazia só cortar o cabelo, nem deixo lavarem penteados com rolos e usava gosma de ele. Eu lavo em casa e vou lá apenas tuna ou babosa como fixador. O brilho cortar. Não gosto que mexam no meu do cabelo era resultado das lavagens cabelo”, justifica Celita. com sabão de soja e das aplicações de Esse sentimento também é comóleo brilhantina e de azeite de mocotó. partilhado por Eleda Marta de Oli“Hoje em dia tem muita coisa, mas veira, 64 anos. Se tem uma coisa nem tudo é saudável”, comenta Celita. que ela não suporta é que mexam Avó de sete netos, sendo quatro denas madeixas, nem as filhas e a neta les meninas, Celita tem algumas brigas têm essa liberdade. “Não gosto que com as netas quando o assunto envoltoquem no meu cabelo. Deixo que o ve os cabelos. “Eu digo para elas não cortem porque sou obrigada, senão PRIMEIRA IMPRESSÃO | 104 | DEZEMBRO DE 2015

eu não deixava”, frisa Eleda. Ao contrário de Celita, que nunca pintou o cabelo, Eleda já teve essa experiência. Ela trocou o castanho natural por um tom avermelhado. Porém não aprovou o resultado. “Eu nunca tinha pintado o meu cabelo. Depois que as meninas cresceram, decidi pintar, mas não gostei. Deixei um ano e tirei porque dava muito trabalho. Fui cortando as pontas e deixando a cor voltar naturalmente, sem usar mais química”. Desde o episódio já se passou uma década e Eleda resolveu assumir os fios grisalhos que começaram a aparecer aos 30 anos. “Ele começou a clarear bem na frente, no topete”, brinca. O RETRATO DE UMA PERSONALIDADE “Vó tem que ter cabelo branco”. Essa é uma das afirmações de Celita


que não cedeu às pressões das filhas quando os fios grisalhos insistiram em tomar conta de sua aparência. “Eu disse para elas me pedirem tudo, menos para pintar os cabelos. Sempre quis ter netos e acho que vó tem que ter cabelos brancos”. Na casa de Eleda não foi diferente, as filhas sugeriram que ela voltasse a pintar os cabelos, porém a resposta sempre foi a mesma: “Não”. Para ela existe apenas uma preocupação: “Meu único medo é de ficar careca”. Da mesma maneira que Celita e Eleda assumiram os fios brancos, muitas mulheres têm dificuldades para aceitar esse processo natural do corpo humano. De acordo com a psicóloga Michele Scheffel Schneider, é muito difícil definir um tipo padrão de reação psicológica para esses casos. “O cabelo branco é um dos sinais de que a pessoa está envelhecendo e ele é percebido e sentido diferentemente por cada sujeito”, analisa Michele. Para Eleda, os fios brancos nunca foram motivo de desespero. “Eu sempre achei bonito”. Ela afirma nunca ter sido vítima de preconceito por conta do cabelo grisalho e muito menos se sentiu menos vaidosa. “Eu acho feio o cabelo amarelado, ele fica com aspecto de encardido, por isso uma vez por mês uso um xampu especial que deixa meu cabelo mais brilhoso, mas química nem pensar”. Quando o assunto é pintar o cabelo, Eleda já tem uma opinião formada: “Tem gente que pinta tanto o cabelo que nem se parece mais consigo mesma, perde a identidade”. Sobre a beleza dos fios grisalhos, ela é modesta. “Não que eu me ache mais bonita, mas eu me prefiro de cabelos brancos”. As filhas há tempos não insistem mais para que ela pinte os fios. “Hoje tu tens que ter muita personalidade para ter cabelos brancos”, aponta a filha mais velha, Joseane Fontoura dos Santos. A psicóloga Michele Scheffel Schneider ressalta que o envelhecimento é uma etapa do desenvolvimento e do ciclo vital de cada pessoa. Por esse motivo, a maneira como cada sujeito reage

ao aparecimento dos fios brancos e a outros sinais da idade está relacionado ao modo de vida. “Se foi uma pessoa sempre muito vaidosa, provavelmente encontrará uma maneira de seguir com esta vaidade mesmo na velhice e isso pode ser pintar os cabelos ou assumi-los brancos”, sublinha. DE GERAÇÃO PARA GERAÇÃO Entre as fotos de família, Celita guarda com carinho a de sua mãe, que também nunca pintou os cabelos. “Minha mãe faleceu com 90 anos e tinha o cabelo mais escuro que o meu”. Já Eleda guarda na lembrança a imagem dos pais que mantiveram a cor natural dos cabelos durante toda a vida. “Minha mãe tinha o cabelo bem pretinho”, relembra. A cor do cabelo é determinada pela genética, assim como todas as outras características do DNA humano. A intensidade do tom dos fios se altera várias vezes durante a vida. O que determina a pigmentação é a presença ou a falta de melanina, um hormônio produzido por células da pele. Quanto menor for a produção desse hormônio, mais rápido a pessoa tende a ter fios grisalhos. Com o avanço da idade, o corpo diminui a produção de melanina, e os cabelos brancos aparecem. Além da idade e de fatores genéticos, passar por momentos de alto estresse, irritação e outros descontroles hormonais também contribui para a despigmentação do cabelo. Segundo Michele, os fios brancos também podem servir como um botão de alerta. “A chegada dos fios brancos denunciam que o tempo está passando e pode servir como um dispositivo para que o sujeito pense sobre a sua história de vida. Alguns podem se desorganizar mais que outros, mas não temos uma regra. O importante é que, diante do envelhecimento, tanto homens como mulheres possam pensar o que estão fazendo com a sua vida e como gostariam de seguir em frente”. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 105 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Sempre gostei de pautas que envolvessem pessoas idosas ou crianças. A primeira, pela carga de histórias e vivências, a segunda, pela leveza e inocência dos relatos. Falar sobre cabelos brancos, em um primeiro momento, me pareceu fácil, mas confesso que transcrever esse processo biológico em 7 mil caracteres foi uma tarefa mais complicada do que o esperado. Complicado, pois essa etapa natural da vida pode vir acompanhada de cargas psicológicas fortes e de diferentes significados. Prova disso foi Celita, que carrega nos fios grisalhos a preocupação com os filhos e o orgulho de ser avó. A senhora risonha e conversadeira me mostrou que o cabelo branco pode ser a personificação do seio de uma família, do amor e do zelo. Eleda, por outro lado, trouxe a afirmação de uma personalidade, da vontade de se permitir ser, sem preocupações com a opinião alheia. Comprovou que é possível ceder às pressões estéticas pré-estabelecidas pela sociedade, simplesmente rejeitá-las e assumir o tom de sua experiência.


NÃO me medico

O homem que bebe xixi Jorge utiliza da urinoterapia para aumentar a imunidade Por FRANCISCA DA ROSA Fotos DYESSICA ABADI

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vendedor autônomo de pneus Jorge Schneider, 48 anos, sempre teve problemas de saúde com a troca de estações e imunidade baixa. Para se curar, o morador de Ivoti procurava a solução em consultórios médicos. A medida adiantava apenas durante o período de uso dos medicamentos. Para tentar aliviar o incômodo, ele aposta em métodos naturais de cura. Em pesquisas na internet, descobriu a terapia alternativa, que para ele é a forma mais saudável de obter bons resultados. Esse tipo de tratamento consiste em utilizar, por meio de meios naturais, a recuperação de pessoas que apresentam algum problema de saúde. Embora medicamentos façam parte do processo de cura, muitas vezes, a medicação comprada em farmácias acaba não fazendo efeito após o período

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de uso do remédio. Há quem diga que o melhor método é utilizar terapias alternativas. Jorge prefere utilizar esse termo do que “remédios naturais”, já que a palavra está relacionada àquilo que se compra em farmácias e não em casas naturais. Uma das estratégias adotadas por ele para se curar é a ingestão diária de urina. A ousada técnica começou a ser adotada pelo vendedor na tentativa de curar uma herpes. Quando ainda não havia descoberto a terapia alternativa, já sabia o remédio e a pomada certa para acabar com a herpes da boca. Mas, em seguida, descobriu que a solução estava no próprio xixi. Prometendo autoimunidade do corpo, a urinoterapia implica em molhar um algodão com a própria urina e passar ao redor da boca. Por volta de uns três ou quatro anos, o sintoma não apareceu mais na vida do homem. Como a urina é autoimune, Jorge também a ingere durante o dia, se livrando principalmente de algumas doenças, e, assim, tendo mais disposição corporal. “A primeira urina do dia eu não deixo faltar. É a mais rica em nutrientes”, explica ele sobre as formas naturais de ajudar o próprio corpo no aumento da imunidade. Para reforçar o tratamento, a alimentação dele consiste em quatro ovos cozidos e algumas frutas pela manhã. No almoço, é salada, arroz, feijão e carne de gado. Não ingere carne de frango, pois ela passa por um processo muito industrializado. Eventualmente, quando vai à casa de amigos e eles oferecem comida, come pão ou massa. Regula a alimentação para que a terapia alternativa tenha efeito. Atualmente, quando sente alguma dor ou sintoma, Jorge procura na internet uma terapia alternativa que possa ajudá-lo na recuperação. Compra o produto e o acrescenta em sua caixa de terapias alternativas. Além disso, deixa claro o uso das ervas medicinais: “Este é um processo que requer paciência, como é a natureza. Não adianta ter pressa e querer melhorar com rapidez. Precisa ter calma”.

INSPIRAÇÃO VEM DE LIVROS Parte da motivação do vendedor para acreditar nas receitas alternativas tem como principal referência os estudos do especialista Lair Ribeiro, que trabalha muito na área motivacional e principalmente com a medicina tradicional. Partindo dos conhecimentos do especialista, ele segue orientações também de alimentação e considera o alimento o nosso primeiro remédio. Se a alimentação é adequada, a saúde sempre estará em bom estado. Assim como muitos especialistas explicam, Jorge também diz que há uma enorme diferença entre alimentar-se e nutrir-se. Quando se está com fome, normalmente cada um come aquilo que preferir, apenas se saciando. Porém, quando se busca a nutrição, cada um come aquilo que é bom para o corpo e para o organismo. De acordo com o vendedor, um exemplo de diferença entre alimentar-se e nutrir-se está entre comer banana e bolacha recheada. Quando se ingere uma banana, o cérebro reconhece cada nutriente que a compõe, destinando nutrientes para cada necessidade do corpo, colocando cada um em suas devidas “caixinhas”. A bolacha recheada não. Como é um produto industrializado, o cérebro não a reconhece como nutriente e não sabe para onde destinar aquilo que oferece. Portanto, por falta de reconhecimento, o organismo faz com que todas as informações vindas da bolacha recheada virem uma reserva de açúcar, gerando a engorda da pessoa. Ao ingerir alimentos industrializados, o organismo precisa se alimentar de outros alimentos naturais, que normalizem o Ph do corpo. ARGILA VERDE, ÁGUA, SAL, VINAGRE E SANGUE No total, Jorge faz terapia alternativa há oito anos, sendo cinco de forma efetiva. Além da urinoterapia, ele garante que obtém resultados positivos com a bioenergética e a auto-hemoterapia. Em todos os casos ele descobriu maneiras mais eficazes de combater problemas de saúde e aumentar a imunidade. Outro incômodo na vida de Jorge PRIMEIRA IMPRESSÃO | 107 | DEZEMBRO DE 2015

era a insônia, que ele nunca sabia qual era a causa. Ele acordava por volta das 3h e não conseguia mais dormir. Não sabendo mais onde procurar ajuda, resolveu conversar com um grupo de bioenergéticos. O vendedor descobriu que o seu problema, na verdade, estava nas glândulas suprarrenais. O homem tem consciência que o processo de tratamento nas terapias alternativas é demorado. Mas isso ocorre porque o corpo reage conforme a natureza. A cura para rinite foi descoberta através desse grupo, que indicou que ele fizesse compressas durante a noite misturando argila verde, água, sal e vinagre, colocando na região perto dos olhos. O tratamento era feito sempre que tinha crises de rinite. Segundo Jorge, há três anos que os sintomas não são mais sentidos. Outra técnica que encantou o vendedor foi a hemoterapia, que apareceu na vida dele por acaso. Um dia, ele bateu no carro da esposa de um oficial do Exército. Após resolver a situação de cada um e lidar com os danos, a batida, que poderia ter sido trágica, deu início a uma amizade e a mais um tratamento alternativo. Em uma das visitas ao casal, Jorge observou que o oficial estava saindo de casa com uma caixa repleta de seringas. A atitude foi um tanto estranha para ele, que logo questionou para que elas serviriam. Como resposta, descobriu que aquele era um trabalho voluntário realizado em uma vila carente e que era utilizado para aumentar a imunidade dos habitantes do lugar. Por ter um histórico de baixa imunidade, Jorge resolveu fazer a então auto-hemoterapia, com a ajuda inicial do casal. A auto-hemoterapia serve para aumentar a imunidade da pessoa. É um processo que implica tirar o próprio sangue da veia e injetá-lo em outra parte do corpo, em algum músculo, como é o caso do braço ou da nádega. A medicina não aceita o método para aumentar a imunidade, no qual durante sete dias poderia elevar a imunidade da pessoa, chegando a subir de 5% para 22%. O vendedor fez auto-hemoterapia durante cinco anos. “Duas horas depois de injetar o próprio sangue em um músculo,


já começo a sentir a diferença. Melhora a disposição”, garante. De acordo com o naturólogo Gabriel Hoffmann, para seguir os modelos alternativos de cura acreditados por Jorge, é fundamental a orientação de um profissional da área. Entretanto, as pessoas, conforme vão aprendendo o que precisam para se recuperar, deixam de procurar o profissional. A orientação é importante, pois conforme cada organismo reage, há contraindicações. Para Jorge, beber xixi, injetar o próprio sangue no corpo e fazer compressas com ingredientes estranhos tem aumentado a convicção de que tomar remédios tracionais não é necessário.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Sou do tipo de pessoa que, com a saúde afetada, dificilmente procura um especialista para fazer tratamento, pois sei que ele me dará medicamentos. Não sou de tomar remédios. Só em último caso. Em um primeiro momento, busco por chás oferecidos na horta da casa da minha mãe, o que me ajuda. Ao sugerirem o tema “Não” para a PI 44, logo pensei sobre isso: buscar pessoas que não tomam remédios, que apenas fazem tratamentos por meios naturais. Mas sabendo que medicamentos oferecidos pela medicina agilizam o processo de cura, tive a minha primeira preocupação: quem, em um mundo em que tudo gira em torno da rapidez, costuma utilizar de meios naturais para melhorar a própria saúde? Os desafios estavam lançados. A vida de jornalista é assim mesmo: ter o tema e ir em busca da pauta. Foi o que fiz. Para a minha tranquilidade, encontrei alguém que me mostrou alguns meios diferentes do que já conhecia. Gostei da pauta, pois teve aprendizado de outros pontos de vista.

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NÃO me mudo

Depois da tempestade

T

oda vez que chove, Giorgina Casali fica preocupada. Se a chuva é fraca, ela consegue se acalmar e dormir mais tranquila, mas quando é muito forte, começa a erguer os móveis e se prepara para o pior. Por sorte, nenhuma das chuvas recentes foi tão ruim quanto a de 23 de abril de 2011, que causou uma das piores enchentes da história de Sapiranga. A vendedora de 45 anos nasceu em Palmares do Sul. Seu pai faleceu quando ela tinha oito anos, e as dificuldades financeiras motivaram a família a sair daquela região rural para procurar emprego

em outros lugares. A cidade escolhida foi Sapiranga, cuja indústria estava aquecida na época e tinha oferta de empregos, principalmente nas fábricas. Desde então, Giorgina nunca morou em outro lugar. “Hoje lembro muito pouco de minha cidade natal”, conta. O primeiro a ir para a cidade foi o irmão mais velho, Jorge, que arranjou um emprego e depois trouxe a mãe, o outro irmão e as duas irmãs para morar lá. Da família, só a irmã de Giorgina decidiu não continuar em Sapiranga. Ela se casou e foi morar em Sapucaia da Sul com o marido. Aos 12 anos, Giorgina começou a tra-

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Mesmo com o temor de que novas enchentes ocorram, Giorgina insiste em viver na sua casa em Sapiranga Por GABRIEL PUREZA Fotos DENISE MORATO


balhar em uma das fábricas de sapato da cidade. Aos 20, casou com Dílson, hoje com 48 anos, com quem tem duas filhas: Tainara, 19, e Larissa, 14. O marido, que era pedreiro na época, atualmente é caminhoneiro. Ele saiu de Palmitinho em busca de trabalho. O casal se conheceu porque ambos moravam na mesma rua, onde estão até hoje. A família de Giorgina morava de um lado – onde atualmente habitam seus dois irmãos e Antônia Jenessi Fel, esposa do irmão mais velho – e a família de Dílson, do outro. O casal está junto há 25 anos. Eles decidiram construir a casa ao lado de onde moram dos pais de Dílson. A escolha se deu pela proximidade com as famílias. Morando no local, eles poderiam ficar próximos da família e todos que conheciam nas redondezas. Os irmãos Jorge e Manuel atualmente moram do outro lado da rua, onde vivia a mãe deles. Jorge se casou com Antônia, que saiu da colônia alemã em Santo Antônio da Patrulha com toda a família, há 35 anos, para morar em Sapiranga. Os dois se conheceram em um baile na cidade e, depois de algum tempo, se casaran. Eles tiveram uma filha, Grislaine, que trabalha como vendedora em uma loja no Centro da cidade e também é casada. Jorge trabalha em uma fábrica na

cidade e Antônia é dona de casa. Ela não pode trabalhar, pois cuida de Manuel, seu cunhado. Ele era um rapaz saudável, mas desenvolveu um problema mental que o incapacitou de arrumar emprego e que fez com que precisasse de cuidados diários. Os médicos, diz Antônia, acreditam que o problema tenha relação com a bebida. “Manuel bebia muito antes de começar a apresentar problemas. Hoje tem dias que ele é igual uma criança, precisa tratar, cuidar, dar banho”. Além disso, tem pressão alta, diabetes, colesterol elevado e glaucoma, o que fez com que ele perdesse um olho. As famílias sempre gostaram de Sapiranga. “O Centenário é um bairro tranquilo, me sinto em casa aqui. Conheço todos os vizinhos”, conta Giorgina. A tranquilidade, porém, foi interrompida de surpresa na noite do dia 22 para 23 de abril de 2011. A ENCHENTE Era véspera de Sexta-Feira Santa. Jorge e Antônia acordaram com os gritos de Manuel: “Tem água entrando na casa!”. Não demorou para que a residência começasse a ser inundada pela água vinda do arroio próximo. Ele estava em pânico e Jorge o puxou para dentro, para que ele se acalmasse e ficasse com eles. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 110 | DEZEMBRO DE 2015

Todos dormiam na casa do outro lado da rua quando Jorge ligou. Dílson estava fazendo entregas em outro estado e Giorgina estava só com as duas filhas. A luz havia caído por causa da chuva forte, e elas estavam envoltas em escuridão. Pelo telefone, o irmão pedia ajuda. A água entrava na casa e ele temia que os móveis estragassem. Enquanto Giorgina ajudava o irmão, a água invadiu a residência dela também. Em momentos de desespero, as famílias tentaram salvar os pertences. As duas filhas foram acordadas e mandadas para a casa dos avós. Tainara já era maior e conseguiu ir sozinha, mas Larissa lembra até hoje de acordar assustada em meio à escuridão e ser carregada no colo em meio à enchente. A noite terminou, e a manhã não foi muito melhor. Era hora de contar os danos e tentar consertar e salvar o que pudesse. Além disso, outros problemas atrapalhavam. “Não tinha água, então nem podíamos limpar o chão e os móveis, que estavam cheia de lama”, conta Antônia. A enchente deixou marcas. Os danos na casa de Giorgina foram menores, mas duram até hoje. Quem olha o local, organizado e com os móveis novos, não imagina o tamanho do estrago. Os tapetes da cozinha, cheios de lama, precisaram ser jogados fora, o sofá e a forração do chão


precisaram ser trocados. O guarda roupa precisou ter a parte de baixo retirada, pois estava apodrecendo. As portas, que nunca chegaram a ser trocadas, ainda têm as marcas da água. Antônia e Jorge, por outro lado, tiveram o lar praticamente destruído pela enchente. O assoalho apodreceu e vários móveis, como roupeiro, cama, cadeiras e colchão foram perdidos. A família só conseguiu salvar fogão, geladeira e alguns eletrodomésticos porque os colocaram em lugares altos. A água chegou a entrar mais de um metro dentro de casa. Cerca de um ano depois, com a ajuda de um programa social do governo, a família conseguiu os recursos para reconstruir o lar. Assim como na casa de Giorgina, os danos ainda não foram esquecidos. “Ontem eu paguei a última prestação da pia”, conta Antônia, que foi comprando as coisas de volta aos poucos. Muitos dos moradores da região co-

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Durante a reportagem e o processo de pauta, ficou evidente para mim o quanto o jornalismo é cheio de momentos imprevisíveis e viradas em nossas expectativas, o que nos leva, consequentemente, a adaptações. A reportagem que eu terminei produzindo foi a terceira pauta que eu pensei dentro do tema da revista. Minhas ideias acabaram sendo derrubadas várias vezes por questões de organização (como ideias similares às de outras pessoas) ou por não fecharem completamente com a proposta. Quando a pauta finalmente se engatou, foi hora de procurar as fontes. Inicialmente, recebi algumas recusas, mas não foi difícil achar a história que eu precisava. Ainda assim, as informações que me levaram até as pessoas escolhidas não eram necessariamente as mais precisas e tive de me adaptar novamente a minha ideia de como fazer a reportagem. Enfim, foi um bom aprendizado, principalmente em como lidar com situações em que nossas expectativas são contrariadas.

locaram as propriedades à venda depois de, maior é o dano psicológico. “Aquela do incidente. Entretanto, a maioria não angústia, aquele medo, toda vez que vai conseguiu vendê-las, principalmente por chover você tem impressão de que vai causa da localização. Antônia e Giorgina, entrar água de novo”, teme Giorgina. por outro lado, nunca pensaram em venEla ergue os móveis sempre que a chuder seus terrenos. A primeira, teve a sua va fica forte. Até hoje, quando chove casa arruinada e não tinha condições de muito, nenhuma das duas consegue achar outro lugar para morar, a segunda, dormir à noite. por se recusar a sair do local. A casa faz Com o passar do tempo, o medo tem parte da vida de Giorgina e, além de gosficado mais brando. Após muitas reclamatar da localização e conhecer os vizinhos ções da comunidade, a prefeitura tomou desde que se mudou, aquele foi o seu atitudes para abrir um pouco o arroio, verdadeiro lar, que lhe traz familiaridao que fez com que ele demorasse para de e sentimento de pertencimento que transbordar. Porém, algumas enchentes outros lugares não a trariam. Decidida menores ainda são recorrentes, princia ficar, Giorgina quis fazer um seguro palmente nas casas que ficam do lado residencial, visando ter mais segurança e do arroio. As famílias, por um motivo ou menos medo de que algo outro, decidiram não se ruim voltasse a acontemudar. O que lhes resta é As residências de cer. Porém, o preço era viver esperando que outro Antônia (ao lado) e alto demais e ela desistiu. incidente não aconteça. Giorgina (abaixo) ainda Ainda que o dano Ainda assim, cada vez que têm danos causados pela enchente material tenha sido granchove forte, o medo volta.


Marcado para ser implodido em 2013, o Estádio Olímpico, em Porto Alegre, resiste em meio a polêmicas e indefinições Por MATHEUS D’AVILA Fotos DANIEL ROHR

A

ntes movimentado e sempre preservado. Hoje, abandonado e em ruínas. Assim está o Estádio Olímpico Monumental, o antigo endereço do Grêmio Foot-Ball Portoalegrense. Localizado na Avenida Dr. Carlos Barbosa, nº 1, no bairro Azenha, em Porto Alegre, o local nem de longe lembra aquilo que já foi. Pelo contrário, exibe em seus escombros a melancolia de algo que já não deveria mais fazer parte da paisagem. Entretanto, o Olímpico está lá e, em meio a tantas discussões sobre a sua implosão, ele não cai. No ano de 2012, o Grêmio inaugurou um novo estádio no bairro Humaitá graças a uma parceria de 20 anos, estabelecida em contrato com a construtora baiana OAS, que concordava com a liberação do terreno do Estádio Olímpico para a exploração imobiliária. A “Arena”, como ficou conhecida, foi fruto de um conceito de modernização das estruturas do clube e a mudança física ocorreu de forma gradual para o local a partir de então. Pouco a pouco, o Olímpico foi perdendo a vida diária de eventos, e as previsões de demolição se aproximavam. A primeira data de implosão agendada foi março de 2013. Contudo, com a troca da gestão do Grêmio e a consequente posse de um novo presidente, as relações com a OAS foram alteradas e pontos do acordo vigente

NÃO me entrego

Ruínas naquele momento foram colocados em discussão. A partir daí, a instituição negou-se a cumprir o determinado e não oficializou a troca de chaves. Ou seja: Olímpico por Arena. Graças a isso, a queda do velho estádio não ocorreu pela primeira vez. De lá para cá, outras três datas PRIMEIRA IMPRESSÃO | 112 | DEZEMBRO DE 2015

foram lançadas para a implosão: outubro de 2013, agosto de 2014 e janeiro de 2015. Em todas elas o resultado foi o mesmo – o Estádio Olímpico não caiu. Apesar disso, um processo de demolição foi estabelecido para adiantar o trabalho e preparar o terreno para o ato final do antigo palco


monumentais de jogos do Grêmio. Arquibancadas, gramado e setores internos foram desmanchados para acelerar o processo de queda. Segundo confirma a administração gremista, 40% do estádio foi demolido, o que explica a aparência atual do local para quem circula pelo entorno. Os 60% que

ainda estão de pé correspondem à estrutura externa e cairão apenas com a utilização de bombas para a implosão. A paisagem do bairro mudou junto com as estruturas de concreto do estádio. Fábio Azevedo, 21 anos, torcedor do clube e vizinho do Olímpico, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 113 | DEZEMBRO DE 2015

destaca o significado das transformações. “O bairro perdeu o maior ponto de referência e a agitação. O estádio era uma marca da Azenha, um lugar que significa algo para muitos”. Sócio do clube, Fábio é taxativo quanto ao futuro. “O Olímpico não vai cair! Podem até implodir e desmanchar


tudo, mas ele sempre vai estar aqui na lembrança daqueles que pisaram no chão do velho casarão”. O debate sobre as condições de contrato perduram até os dias atuais e esse segue sendo o impeditivo para a implosão. Para o presidente do Grêmio, Romildo Bolzan Júnior, a resolução do entrave está muito próximo de ser anunciado. “Não posso confirmar quando isso vai ser concretizado. Precisa a consumação de todos os fatos e atos. Não está tudo resolvido, mas temos muitos avanços. É questão de tempo anunciar a aquisição da operação da Arena pelo Grêmio.” A construtora OAS, quando procurada pela reportagem, preferiu não se manifestar sobre o caso. A licença para a implosão foi liberada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre em 2014. Até agora, nada aconteceu. O Grêmio segue administrando o local. Mesmo depois de um acordo com o corpo diretivo da OAS, os novos moldes do contrato passarão pelo Conselho Deliberativo para a apreciação dos conselheiros.

Após isso, o processo para ginal está mantida, exalAguardando implosão, estádio a implosão do Olímpico tando o azul, o preto e o apresenta será reiniciado. branco. A capela segue em realidade que Mas o cotidiano no pé, porém, sempre com em nada lembra o passado no entorno do estádio tamas portas fechadas, assim coração do bém sente os reflexos como o espaço físico da bairro Azenha desse novo momento. Em antiga loja do clube, que ruínas, o Olímpico Monunão funciona mais no lomental exibe em suas estruturas o cal, e a recepção, que hoje abriga a abandono da nova fase. Atualmente, equipe de segurança. apenas os seguranças, na busca de O segundo estágio se desenha evitar visitantes indesejados, dão vida nos setores voltados para os bairros ao pátio do estádio. Apesar disso, Azenha e Medianeira. Sob os escommarcas de invasores noturnos são bros, vigas de aço retorcidas compõe percebidas em grades retorcidas e com o cenário da destruição. Números sinais de atividades recentes. “Antes pintados em preto nas paredes sem havia a empresa que estava fazendo cor, demarcando os pilares para a o desmanche do estádio, com funimplosão, antecedem o que está sendo cionários trabalhando diariamente, guardado para o futuro do Olímpico. mas agora não há mais. Só restam os As antigas bilheterias estão abanfuncionários do clube momentaneadonadas e cercadas por placas de mente”, afirma Luiz Moreira, diretor metal para que não sejam acessadas. de Administração do Grêmio. As que não foram bloqueadas exibem Apesar da demolição parcial, a que não há mais movimentação por lá antiga casa dos gremistas apresenta há um bom tempo. Cadeiras quebradois estágios. O lado voltado para o das, armários vazios e um livro com bairro Menino Deus exibe um estado jogo de palavras estão à mostra na de conservação parcial. A pintura oribilheteria da Avenida Érico Veríssimo. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 114 | DEZEMBRO DE 2015


Nem mesmo o campo suplementar, utilizado para treinamentos, sobreviveu. Hoje, o gramado do campo anexo ao Olímpico foi tomado pela vegetação alta e serve de moradia para aves da região. O Olímpico Monumental está fechado para visitantes. Inclusive a imprensa tem limitações. Segundo Luiz Moreira, o clube proíbe o acesso de veículos de comunicação na parte interna do Estádio. O máximo permitido é a aproximação ao “Pórtico dos Campeões”, construído em 1971 e que segue preservado. Os vizinhos do Monumental lamentam o estado atual do antigo complexo desportivo. Júlio da Rosa, 43 anos, morador do bairro Menino Deus, explica que as lembranças da presença do estádio não desaparecerão mesmo depois da implosão. “Quem viveu vendo a movimentação nos finais de semana nunca esquecerá da história desse endereço. Independente de ser gremista ou colorado, o Olímpico é uma referência. Foi o

primeiro grande estádio de Porto Alegre. Como torcedor do Grêmio, senti muito a mudança e lamento ver o que está acontecendo por aqui”, comentou. Em 2012, o vereador da capital gaúcha Pedro Ruas (PSOL) entrou com um projeto de Lei na Câmara de Porto Alegre para transformar o estádio Olímpico em patrimônio histórico. Caso fosse aprovado, a implosão planejada não poderia acontecer. O projeto causou um grande impacto junto dos gremistas, porém, não foi aprovado. Para a implosão, cerca de mil e oitocentos moradores deixarão suas casas temporariamente, segundo a Prefeitura. Quatrocentos quilos de dinamite serão empregadas. Dezessete segundos para a queda total. A data ainda não está definida, mas esse é o cenário traçado para a implosão. O dia em que o “não” do Olímpico não resistirá e, finalmente, o estádio de seis décadas irá cair e deixar de existir.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Um estádio. Um objeto inanimado com muita vida nas paredes de concreto. Histórias foram escritas dentro daquele campo de jogo, agora virado em ruínas. A paisagem mudou drasticamente e o sentimento dos moradores da região é de saudosismo. A sensação ao conversar com todos os envolvidos nessa história é de que o antigo palco dos jogos do Grêmio é algo que não será superado por essa geração. Apesar da nova casa, a Arena não conseguiu apagar da lembrança dos gremistas os resquícios do Olímpico, que hoje é cercado de polêmicas e dúvidas. Divide opiniões tanto dentro do clube como entre os torcedores. O estádio na Azenha passou e não faz mais parte do dia a dia do Grêmio. Porém, ainda se faz presente no cotidiano de todos que o cercam. Pichações e mensagens são pintadas nas paredes, manifestações pedem uma intervenção para a não queda e são constantemente feitas nas redes sociais. O estádio Olímpico será implodindo, mas o processo para que isso ocorra promete levar mais alguns meses, mantendo a esperança que ele não cairá.

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NÃO me limito

Canções de um pequeno gigante “O que falta muitas vezes para a sociedade é consciência”, afirma o músico Naddo Pontes, portador de nanismo Por LEONARDO VIECELI Fotos DANIEL ROHR

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A

camiseta branca de mangas longas que Leonardo Coelho Pontes, 48 anos, veste em um sábado chuvoso de fim de inverno diz muito sobre a vida dele. Prontamente, mesmo sem ser questionado, o cantor e compositor, mais conhecido como Naddo Pontes, faz questão de explicar a origem da ilustração colorida que estampa o centro da peça de roupa. A imagem, lembra o músico, é a capa do primeiro álbum da banda da qual é líder: a Naddo Entre Gigantes. “A ilustração e a direção de arte do disco foram feitas por Leo Lage. São inspiradas no trabalho do artista plástico Lucio Piantino, que tem síndrome de Down e mostra que a arte não tem cota. A arte, por exemplo, não tem nada a ver com limitação física”, define. No caso do compositor, a música é a forma artística que ele encontrou para contar histórias. Já a Naddo Entre Gigantes, um mecanismo para que essas narrativas sejam cantadas aos quatro ventos. E o nome do grupo, por sua vez, guarda relação com uma característica presente na vida do próprio Naddo: ele é portador de nanismo. “Até 2013, o grupo se chamava Melomaníacos. Mas muitas pessoas tinham dificuldade para compreender o nome. Então,

resolvemos mudar e focar na minha figura”, recorda. COM POESIA

sensível e generosa de dividir aquilo que é seu, e é íntimo, com o público”, avalia a jornalista. Ao contrário de Marina, o baterista Marcelo Masina, 49 anos, conhece Naddo há mais tempo. Convive com o compositor desde o período em que os dois, ainda adolescentes, eram vizinhos em São Leopoldo. Em razão da amizade de longa data, lembrar-se com precisão dos primeiros projetos com Naddo requer um pouco de esforço. “Se eu não me engano, tocamos juntos pela primeira vez em um festival em 1991”, aponta. Antes dos concursos musicais, Naddo já participava de shows em bares. E, em meio ao ambiente boêmio, o músico conheceria a sua companheira mais tarde, em 2004. À época, Cíntia Rodrigues, hoje com 35 anos, estava acompanhada de uma amiga, que a apresentou a Naddo. Depois do primeiro encontro, o vínculo entre os dois se fortaleceu. Atualmente, além de companheira do músico, ela é a voz feminina da Naddo Entre Gigantes. “A relação entre amor e música se misturou”, define Cíntia, que não é portadora de nanismo.

Para Naddo, poesia tem tudo a ver com música. E isso está presente no trabalho de sua banda

No grupo, o músico é livre para incorporar elementos poéticos às composições, já que, de acordo com ele, a poesia por si só já é ritmada. “A composição do Naddo leva o público a visualizar cenas. O grande diferencial da nossa banda é o acréscimo da poesia ao rock”, enaltece Marcelo Marinoni, 35 anos, guitarrista do grupo. A jornalista Marina Mentz, 24 anos, acompanha a atuação de Marinoni e do baixista da Naddo Entre Gigantes, Rodrigo Ruivo, 40 anos, em outros projetos musicais desde 2008. Entretanto, conheceu o trabalho de Naddo Pontes apenas no início de 2015. Ao avaliar o perfil do compositor, Marina elogia a inteligência no tratamento de assuntos diversos, que vão desde amor e relacionamentos até cotidiano e morte. “A capacidade de colocar em forma de composição os sentimentos e acontecimentos chama muita atenção. A música chega até o público, ela se torna acessível. Um tipo de empatia, uma capacidade incrivelmente

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SEM POESIA A convivência construída pelo casal ao longo de mais de uma década faz com que a mulher destaque algumas das características pessoais de Naddo em poucos segundos. Na visão dela, o companheiro é uma pessoa que faz da intensidade um recurso para viver as atividades diárias. Muitas delas requerem uma dose extra de esforço, já que, longe dos microfones, a música não é tão leve e poética. Diariamente, o cantor e compositor precisa enfrentar situações que são reflexo de uma sociedade que ainda não é totalmente aberta à diferença. Naddo revela nunca ter sido vítima direta de discriminação pelo fato de conviver com o nanismo. Entretanto, percebe a existência de atitudes preconceituosas no dia a dia, ainda que veladas. “Não é nada escancarado. Uma vez, pediram um monte de documentos para mim quando eu fui fazer uma carteirinha para não pagar pelo transporte público. Por isso, não fiz o cadastro. Para que tantos documentos? Eu não uso disfarce. Ainda bem que a maioria dos cobradores tem bom senso e não me pede identificação de deficiente físico”, pondera. Além da burocracia, o músico alerta para a infraestrutura deficitária na área de transportes públicos, o que causa transtornos a portadores de nanismo. Conforme Naddo, encarar os degraus para entrar em um ônibus é uma das ações que geram desgaste. Contudo, a falta de preparo na prestação de serviços a deficientes físicos não é exclusividade do setor e também está relacionada a outras áreas. Ir a uma agência bancária, por exemplo, pode representar um exercício de paciência para o músico. Ser atendido, um desafio. Muitas vezes, no momento de realizar pagamentos, Naddo precisa encarar de baixo para cima a altura de caixas que não são pensados para acolhê-lo com facilidade. A falta de um levantamento atual que esclareça o número exato de portadores de nanismo no Brasil dificulta a realização de uma estimativa sobre quantas pessoas encaram as mesmas situações com as quais o músico se depara. No entanto, se há dúvidas em relação às estatísticas, sobram

informações médicas que esmiúçam como a deficiência se manifesta clinicamente. Conforme o endocrinologista Luis Henrique Canani, o nanismo é um termo geral que pode estar relacionado a diferentes causas. Dentre elas, as mais frequentes são as disfunções da hipófise, a glândula do crescimento, e doenças ósseas e cartilaginosas chamadas de discondroplasias ou acondroplasias. “O nanismo hipofisário leva a um crescimento proporcional do tronco, membros e cabeça. A pessoa fica ‘toda pequena’, muitas vezes com aspecto infantil”, explica. Por outro lado, a acondroplasia, também chamada de nanismo acondroplásico, faz com que o portador da deficiência apresente desproporção na formação corporal. “Alguns pacientes podem ter importante alteração na estrutura óssea e das cartilagens, o que pode levar a desgaste prematuro”, observa Canani. De acordo com Naddo, apesar de existirem avanços, há muito o que melhorar no país na compreensão do que realmente é o nanismo. “O que falta muitas vezes para a sociedade é consciência”, salienta. COM RESPEITO Diante desse quadro, Cíntia considera que o companheiro vê na música uma forma de extravasar sentimentos. “É uma maneira de se distrair desse mundo tão fechado para as diferenças”, sublinha. Em relação à banda, o baixista Rodrigo Ruivo ressalta que a pluralidade dos integrantes é uma das forças do grupo. Na visão dele, as características distintas fazem com que a Naddo Entre Gigantes atue como uma equipe para alcançar os objetivos traçados. “A gente sabe como cada um trabalha. Todos nós somos muito diferentes. E isso é muito legal. Diferenças são superadas quando entramos em acordos”, pontua Ruivo. Essa postura não faz parte apenas do discurso dos integrantes. Também está presente nas canções da banda, como na faixa Trilho sem Saída, cantada a plenos pulmões por Naddo e Cíntia logo nos primeiros momentos do ensaio do grupo: “O problema só é não gostar do resultado. Tudo o que se enxerga tem o outro lado”. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 119 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Era apenas uma conversa de bar após a aula. O papo girava em torno do trio faculdade-trabalho-futebol até que o amigo Caubi Scarpato, que também integra a equipe da Primeira Impressão, resolveu me perguntar como andava a minha reportagem. Eu ainda estava em busca de um entrevistado com uma história interessante. Foi então que Caubi – um cara louco por música – me apresentou o nome de Naddo Pontes. Graças à entrevista com o personagem principal do texto, realizada em uma tarde de sábado meio cinza, pude conhecer e absorver um pouco das ideias de um homem baixinho e com um talento imenso. Naddo mostra que a diferença física, quando respeitada, é um mero detalhe. Penso que são histórias assim, como as de outros tantos Naddos mundo afora, que tornam o jornalismo tão apaixonante. No momento em que o repórter tem a chance de tentar entendê-las, as narrativas fluem com mais naturalidade. Tentei ressaltar esse aspecto no texto. Por isso, posso dizer que a Primeira Impressão foi um aprendizado. E a impressão que fica do projeto é a de que uma conversa de bar nunca foi tão produtiva.


Aline é psicopedagoga e mãe de primeira viagem

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NÃO bato

A escolha pelo diálogo

P

ara muitas crianças, a hora de receber o boletim escolar é um momento de grande tensão. Principalmente para alunos que tiraram notas vermelhas. Alguns pais podem variar nas punições pelo baixo rendimento escolar do filho. Nesta situação, de um lado, temos a criança, que talvez por dificuldade de aprendizado não obteve o resultado desejado pelos pais. Do outro, temos os pais que trabalham duro para pagar uma educação de qualidade em um país como o Brasil. No caso de Elso Garcia não foi diferente. Pai de três filhos, sendo um adolescente, ele já teve de passar por essa situação. Ao ver as notas de filho do meio, Vinícius, 14 anos, decidiu que iria puni-lo para que nunca mais tivesse notas abaixo da média. O pai mandou o filho para o quarto, para que se acertassem sobre o assunto. O castigo pelas notas baixas era iminente e só restava para Vinicius esperar pela punição. Enquanto esperava pelo pai no quarto, Vinícius imaginava que o castigo pelas notas baixas chegaria e o atingiria. O pai sabe que agredir não é uma solução eficaz para o aprendizado do filho, e optou por deixá-lo sem jogar

Por que pais escolheram criar os filhos sem agressões físicas Texto e Fotos RHIAN BERGHETTI futebol e sem videogame como punição para que ele se concentre mais nos estudos. Para Elso, agredir os filhos nunca é o caminho, e mesmo que as gerações passadas tenham deixado esses tipos de punição como herança para alguns adultos hoje em dia, ele crê que o diálogo e os castigos “mais inteligentes” surtem mais efeito no comportamento da criança. É como se machucar a criança o fizesse sentir a dor momentaneamente mas logo em seguida seu efeito seja esquecido. Se o castigo for algo mais abrangente e que atinja as escolhas e divertimentos do seu filho, como punição surtirá mais efeito e o estimulará muito mais a tirar notas melhores. Para ele, a dor de um tapa pode passar rápido, e a única lição que a agressão física pode deixar em seu filho é a de que o mundo pode ser resolvido com violência e não PRIMEIRA IMPRESSÃO | 121 | DEZEMBRO DE 2015

com o uso da consciência. “Eu nunca fui a favor de bater. Acho que a relação de pai para filho não pode dar espaço para agressões”. completa Elso. O QUE AS MÃES ACHAM Geralmente as crianças são curiosas por natureza, e é nessa natureza de sempre tentar questionar e entender os porquês da vida que muitas vezes algumas passam dos limites impostos pelos pais nas brincadeiras e se dispersam nos pensamentos. Consequentemente, não conseguem cumprir algumas obrigações. Em outros casos, seja por causa de uma nota baixa na escola ou qualquer outra coisa que fosse contra a vontade dos adultos, os castigos podem ser severos. Tempos atrás, dar uma famosa palmadinha ou até mesmo chegar ao ponto de deixar aquela marca de chinelo com a sola dura, estampada na pele da criança como forma de castigo para ela aprender o que é certo ou errado, era uma alternativa totalmente aceitável e muito praticada por pais e mães. Hoje em dia, vemos que o cenário não é bem assim. Agredir fisicamente as crianças mostrou-se muito mais danoso do que benéfico para a criação


das futuras gerações. Em junho de 2014, entrou em vigor uma lei que proíbe pais e educadores de utilizarem métodos agressivos – como castigo físico ou humilhante – na hora de ensinar o que é certo ou errado para as crianças. A lei N°13.010, chamada informalmente de “Lei da Palmada” ou “Lei Menino Bernardo”, define que pais que se excederem na forma de punir os filhos deverão receber apoio psicológico, orientação e, além disso, uma advertência. A proposta visa proteger as crianças e até mesmo prevenir que gerações futuras sejam criadas com uma tendência a agressividade. É o que explica a psicopedagoga Aline Simoni, que também é mãe. Para ela, qualquer tipo de agressão sofrida ficará registrada, mesmo que inconscientemente na criança. Por isso, ela optou em criar a sua filha, Maria Clara, de três anos, de uma maneira

Maêve conta que pacífica e sem bater. Ela tendem a serem mais conversa com a cita o exemplo não só pacíficas. filha Martina desde de agressão contra as Maêve Rodrigues é que ela nasceu para já acostumá-la com próprias crianças, mas outra mãe que acha que o diálogo pais que se agridem. a palmadinha incentiva Mesmo não “batendo” a violência e deixa as no filho, também estacrianças mais agressirão contribuindo para que a criança vas. Ela é mãe da Martina, que tem possa agredir no futuro, pois são os cinco anos. exemplos dos filhos e os modelos que, “Quando a Martina teima, o prinormalmente, seguem. No dia a dia com meiro passo é repreendê-la e explicar a filha, ela prefere passar a educação o porque tal atitude foi errada. Depencom o diálogo “olho no olho” e com dendo da reação, coloco ela para pensar a conversa entre pais e filha em nível no máximo 5 minutos, que para eles máximo de importância. já é uma eternidade”. Tendo em vista que hoje em dia Normalmente funciona, mas caso as crianças já nascem mais ligadas em a filha volte a repetir, Maêve tira algo tudo e percebem com mais facilidade que Martina gosta muito, como um o que está a sua volta, sentar e conbrinquedo ou um desenho. “Atualversar mostrando as diferenças entre mente o que mais funciona é dizer que comportamentos é essencial. Segundo ela não vai assistir Peppa ou Frozen”. Aline, crianças que interagem em conUma das coisas que Maêve acha mais texto com esse tipo de comportamento importante na criação é o diálogo entre PRIMEIRA IMPRESSÃO | 122 | DEZEMBRO DE 2015


pais e filhos, tanto que conversa com a Martina desde quando ela tinha meses. “Mesmo sabendo que ela não entendia nada, sempre mantive o costume de exlicar todos os porquês”. O REFLEXO NAS ESCOLAS

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Ao escolher esta pauta, além de informações sobre o tema do abuso excessivo entre pais e filhos, quis que a reportagem colocasse este debate em foco, pois é um assunto ainda muito discutido e que diverge opiniões. Ao realizar a matéria, percebi o choque de gerações e como esse hábito era muito mais constante e severo no passado, como em épocas de meus avós ou de meus pais. Saio com outra visão sobre

Convivendo no ambiente escolar há 12 anos, Ana do Valle é diretora desde 2013 da Escola Municipal Guanabara, em Canoas, diz que sempre procurou manter um relacionamento baseado no respeito e cordialidade, porém sem intimidades e brincadeiras com seus alunos. Mesmo assim ela utiliza de sua experiência para analisar o cenário educacional dos seus alunos na escola e também fora dela. Ana crê que a base de tudo é a família e Diretora de uma a forma como conescola, Ana defende duzir a educação dos sempre o diálogo ao filhos pode mudar o invés da violência na educação das comportamento da crianças criança para um perfil mais agressivo. Segundo ela, os maiores problemas de agressividade vinham de alunos com sérios problemas familiares que convivima em um ambiente onde exista violência doméstica. Segundo a diretora, isso pode afetar as crianças de diversas maneiras. Ana explica que, além de agressividade, a personalidade das crianças pode ser afetada de outras formas, inclusive refletindo no próprio rendimento escolar. “Crianças com problemas em casa têm dificuldades em interagir e para aprender, além de cometerem muitas faltas”, comenta a diretora. Para ela, não se pode ser tão pessimista e falar que a punição com agressão nas crianças ou até mesmo o convívio em um ambiente violento comprometa as futuras gerações de uma maneira geral. “Nesses muitos anos de magistério, aprendi que não podemos prever qual será o aluno que será melhor sucedido, pois muitos com sérios problemas na vida conseguiram mais sucesso que outros que na escola não apresentaram nenhum problema”, completa.

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a maneira de educar uma criança nos dias de hoje, sem esquecer o que as gerações passadas deixaram de bom e com a certeza de que o diálogo pode prevalecer sobre a violência em qualquer situação, não só em casa, mas na rua também. Pois uma coisa leva a outra, e o reflexo de nossa sociedade violenta pode ser comparado ao reflexo de nossa cultura de criação por meio da violência.


Campanha orienta jovens cristãos, como Alan e Milena, a optarem por esperar para ter relações sexuais Por MARCELLI PEDROSO Fotos LUAN PAZZINI

NÃO me apresso

Eu escolhi esperar PRIMEIRA IMPRESSÃO | 124 | DEZEMBRO DE 2015


C

ada vez mais as pessoas têm sentido vontade de se expressar. Falar sobre suas vontades e crenças têm se tornado hábito comum para os jovens da realidade cibernética. Foi pensando nisso que Nelson Neto Júnior, hoje casado e com duas filhas, lançou nas redes sociais, em 2011, a campanha Eu Escolhi Esperar (EEE). O projeto é um movimento cristão que encoraja e orienta jovens a esperar pela vontade de Deus para que tenham uma vida

amorosa e sexual “pura”. Hoje, a campanha tem repercussão nacional e é divulgada em diversas redes sociais. Em sua página no Facebook, o movimento conta com mais de 2,7 milhões de curtidas, no Twitter, mais de 500 mil seguidores e no Instagram, mais de 900. As postagens pregam mensagens de esperança, expressam fé e textos de encorajamento. As páginas também atraem os jovens para dar testemunhos sobre a escolha, como é o caso do atleta paralímpico Daniel Dias, da cantora Lu Alone e PRIMEIRA IMPRESSÃO | 125 | DEZEMBRO DE 2015

do casal Brinco e Nana Shara, que têm depoimentos publicados no site do EEE. Além destas plataformas, o movimento também tem canal no YouTube. A página é dividida com vídeos nos tópicos: Escolhi esperar responde, Virou notícia, Mensagens, entre outros. Daiene Silveira, 24 anos, pesquisou sobre o assunto e escreveu um trabalho de conclusão baseado no discurso do movimento no Instagram. A jovem segue a ideia de esperar desde antes do surgimento do EEE. “Eu


Alan e Milena se conheceram em um retiro

decidi começar a esperar quando eu tinha 13 anos, que foi quando eu tive uma experiência de fé muito forte e significativa para mim”. A publicitária afirma que o movimento foi tirado da Bíblia e veio para fortalecer a um princípio cristão: a espera. “Eu entendi que Deus tinha alguém especial pra mim e eu não precisava estar experimentando um ou outro rapaz para achar a pessoa certa”. Entre os seguidores do movimento também está Milena Silveira, 19 anos, e Alan Silveira, 29 anos, que também escolheram esperar. O casal se conheceu na igreja e a sua história não é como um romance hollywoodiano ou daqueles que se assiste em novelas. A história do casal é bem diferente das vistas hoje em dia e começou em um retiro. A jovem entrou na vida cristã quando o rapaz já estava havia cinco anos seguindo a ideia de esperar um compromisso com a “santidade no coração, com pureza”. Ele já estava há cinco anos sem tocar uma mulher. Milena tinha 16 anos quando participou do retiro “Vivendo em Santidade Por Amor” junto com Alan. Naquele lugar teria ouvido Deus dizer

que aquele rapaz seria seu esposo. A jovem conta que ficou apavorada, sem saber o que fazer. “Mesmo assim, eu tinha convicção de que ele era o príncipe de Deus na minha vida”, conta com voz emocionada. O casal não conversava, mal se olhava, na verdade. Segundo conta a jovem, nenhum conquistou o outro. “Fomos quem éramos e quem conquistou um para o outro foi Deus”. A aproximação aconteceu por meio de orações. Milena orava por Alan ao mesmo tempo que Alan orava por Milena. A certeza de que deveria seguir e que aquele era o rapaz certo para compromisso vinha das orações com respostas na Bíblia e em pequenos sinais que se tornavam grandiosos. Entre os sinais estavam folhas que caiam de uma árvore em certo momento, versículos que lia em momentos específicos, ou até mesmo em cores de roupa! A confirmação veio no dia em que o pastor chamou os dois em uma sala e falou: “Milena, o Alan está orando por ti. Alan, a Milena está orando por ti”. Ele também falou o dia em que Deus falou com ambos: era 10 de novembro de 2012. Depois de ficarem PRIMEIRA IMPRESSÃO | 126 | DEZEMBRO DE 2015

sabendo, o casal ficou um ano se conhecendo. Eles não se tocavam. “Nos falávamos por telefone, não saíamos sozinhos e eu vi que nunca conheci alguém tão idêntico a mim”, confessa a moça. Como o casal já havia optado por casar em santidade, o primeiro beijo foi dado no dia do casamento, em cima do altar. Hoje em dia, Alan se denomina como “o abençoado que casou com Milena”. Ele conta já ter vivido em um mundo fora da igreja, no qual frequentava casas noturnas e era conhecido pelos amigos como “o louco que fazia coisas impulsivas”. Ele via que essa maneira de viver não o fazia bem, e percebeu que vivia uma ilusão, na qual todos à sua volta acreditavam e sustentavam essa ilusão. Até que um dia no Snk, casa de festas de Gravataí, começou a notar que essa vida não estava lhe fazendo bem. “O plano que eu tinha era constituir uma família, e esse é o plano de Deus para todo mundo”, confessa. Hoje, casados, o casal se diz satisfeito pela escolha que fez. Eles guardam consigo um fichário que funciona como diário. Nele está toda a história dos dois escrita por Milena desde o


início. No arquivo também estão as confirmações pedidas a Deus pela jovem e os sonhos que tinha. “Nos sonhos era onde eu tocava nele”, conta. Quando vê o fichário, o casal lê, ri e se emociona relembrando as memórias. Atualmente, os dois ministram alguns encontros de jovens cristãos e espalham o amor que recebem e a sua história de espera por aí. A mudança do modo de viver que está acontecendo altera a realidade de todos. Estamos vivendo em um tempo no qual tudo chega preparado. As coisas giram muito rápido e têm que ser resolvidas com a mesma velocidade. Quantas coisas, até mesmo relacionamentos, têm histórias a passos lentos atualmente? Tudo tem que acontecer muito rápido, caso contrário, que graça tem esperar? Afinal, por que ficar esperando, programando e lutando por algo quando as coisas costumam vir com facilidade? É mais fácil fazer uma comida no micro-ondas do que cozinhar tudo. É mais fácil mandar uma mensagem de Whatsapp ao invés de fazer uma visita a alguém. É mais fácil acreditar que aquela pessoa que conheceu em

uma festa é o amor de sua vida do que esperar até ter certeza. Porém, os jovens que têm optado pelo compromisso estão mudando a realidade. O Eu Escolhi Esperar trabalha um grupo que acredita que uma força maior pode mostrar quem será a pessoa certa na hora certa. Aquele que escolheu esperar afirma deixar Deus tomar uma decisão de vida e mostre o que vale ou não a pena. Não apenas em sua vida sexual, mas em todos os aspectos. Escolher esperar pode gerar críticas pelas pessoas ao seu redor, como no caso de Daiene. Porém, o movimento ajuda a fortalecer os jovens que o seguem. Pois ele mostra que existem muitas pessoas envolvidas nisso e que ninguém está sozinho nessa. “Jovens como eu que escolheram esperar se sentem mais fortalecidos a enfrentar as ‘zoações’ aí fora”, afirma. A jovem admira quem adere, pois acredita que “vivemos em uma sociedade onde o amor foi banalizado, o sexo foi banalizado, o beijo, tudo virou uma anarquia. As pessoas só querem isso e não enxergam a riqueza que é o verdadeiro amor”, desabafa.

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IMPRESSÕES DE REPÓRTER Desde a sugestão de ter como foco da Primeira Impressão pessoas que optaram por um “não” em algum momento importante de suas vidas, achei que poderiam surgir pautas muito interessantes. Afinal, nem sempre é fácil dizer não! Ouvi como sugestão de assunto o movimento “Eu Escolhi Esperar”- grupo de jovens que optaram por esperar a pessoa certa para ter relação sexual e amorosa, conforme é explicado no texto - e me interessei pela pauta. Desde então, comecei a pesquisar a história do projeto e o que se pensava sobre o assunto. Então percebi o quão interessante estava sendo conhecer pessoas com realidades diferentes da minha (como a dos jovens cristãos que acreditam que Deus reserva alguém especial para a hora certa). Conhecendo a história da Milena e do Alan me fascinei por este universo e pelo o que me o casal me contou sobre como se conheceram e se tornaram o que são hoje. Finalizei esta reportagem conhecendo um novo e lindo mundo e um encantador casal.


O fusca azul faz com que a memória do avô continue presente na família de Juliano

NÃO vendo

Sentimento sobre quatro rodas A história das famílias Lenhard e Romagna, ou melhor, do Fusca e do Santana que são muito mais do que meios de transporte Por MARIANA NUNES Fotos SABRINA MARTINS PRIMEIRA IMPRESSÃO | 128 |

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O

que um objeto pode representar em nossas vidas? Muito se diz que não devemos depositar valor sentimental neles. Entretanto, existem alguns que realmente são especiais para nós a ponto de nem cogitarmos a possibilidade de deixar de tê-los por perto. Vender? Nem pensar. Não há preço que possa simbolizar o que eles representam em nossas vidas. São muitas histórias e momentos especiais ao lado desses objetos, o que faz com que eles façam parte da nossa trajetória. E quando esse objeto especial é também o nosso meio de transporte? O aumento no número de frotas a cada ano mostra que automóveis são cada vez mais indispensáveis na vida dos brasileiros. Porém, para algumas pessoas, a relação com o veículo vai além da questão automobilística e de locomoção. Os carros se tornam uma espécie de membros da família, tamanho é o afeto que os donos sentem por eles. E quem pensa que esse carinho nasce somente dentro das concessionárias, quando um modelo novo é adquirido, está enganado.

é a maior lembrança que os familiares têm dele. Depois de ficar cerca de três anos parado na garagem, foi repassado para a irmã de Juliano. E, finalmente em 2007, passou a pertencer a ele. “O carro para mim e para todos da família representa a memória de uma pessoa especial que nos deixou, mas com certeza estará sempre presente”, declara Juliano. Mas o fusca não faz sucesso só na família Lenhard. O atual dono garante já ter recebido inúmeras propostas de

compra pelo carro. “Já recebi propostas tanto no trânsito, quanto na rua, parado em estacionamentos e até mesmo na frente de casa”, conta. Porém, vender não é uma opção. “Por toda a questão que envolve o meu avô, acho que seria impossível vendê-lo. Talvez no futuro ele poderá ser repassado para outro ente da família”, afirma Juliano. É possível ver o fusca azul em ação nas ruas de Esteio. “Ele é meu meio de locomoção, utilizo quase diariamente. E nunca me deixa na mão”, ressalta Lenhard. “Só quem tem carro antigo vai entender”, garante. O SANTANA QUE FOI E VOLTOU Foi o destino que decidiu que o Santana pertenceria a Carlos Renato Romagna. Quando o adquiriu, em 1986, e o vendeu em 1992 para adquirir um modelo mais novo, não imaginava que o carro entraria para a história da família. Mas Luiz Felipe, seu filho, mesmo não conhecendo o veículo (pois nasceu em 1994), já percebia que era um item especial. “Durante minha vida meu pai sempre me mostrava fotos de carros que ele teve, e nestas fotos havia diversas deste Santana”, conta. Carlos e Luiz Felipe pensavam que a história do Santana com a família Romagna tinha terminado em 1992. Porém, o acaso quis diferente. Vinte e um anos depois, em 2013, Luiz Felipe andava pelas ruas de Farroupilha em um dia comum. Quando, de repente, viu algo que lhe chamou atenção: um Santana branco, muito parecido com o que o seu pai lhe mostrava por fotografias. Resolveu então olhar com mais atenção. E, percebendo características como rodas, cor externa e cor do interior, teve a certeza: era o automóvel que um dia foi de Carlos. Ele não teve dúvidas: precisava entrar em contato com o atual dono. “Fiquei esperando em torno

O FUSCA AZUL E A MEMÓRIA DE ARISTIDES Há 36 anos na família, o fusca azul virou patrimônio dos Lenhard. Adquirido pelo patriarca Aristides Vicente em 1979, o carro hoje pertence a Juliano. Ele conta que a dedicação e o zelo do avô pelo veículo fizeram com ele se tornasse mais do que um meio de locomoção. “Como o meu avô era muito cuidadoso com o carro, ficamos apegados a ele”, diz. Todavia, a importância do fusca vai além. Após a morte de seu Aristides, em 2001, o carro PRIMEIRA IMPRESSÃO | 130 | DEZEMBRO DE 2015


A QUESTÃO PSICOLÓGICA DO APEGO A psicóloga Jamille Novaes classifica o fenômeno do apego aos objetos como “relação objetal”. “Referem-se às relações emocionais entre sujeito e objeto amado que, através de um processo de identificação comum, contribuem para o desenvolvimento do ego. Entende-se por objeto uma pessoa, ou a sua representação com a qual o sujeito forma uma relação emocional intensa, que lhe possibilita a tal identificação com o outro”, explica Jamille. Segundo a psicóloga, esse comportamento pode surgir nos indivíduos ainda na infância, quando a criança vê a figura dos pais em certos objetos.

ARQUIVO PESSOAL

de uma hora o então dono voltar para o carro, para falar com ele e tentar a compra. Ele disse que não tinha intenção de vender por enquanto, então deixei meu contato pra ele caso um dia ele mudasse de ideia”, relata. E o dia chegou. Foi ano passado. Luiz Felipe foi até o dono que estava disposto a vender o velho Santana e o trouxe de volta para a família. Porém, o carro precisava de ajustes. E ele tratou de fazê-los sem que o pai soubesse de nada. Foram meses de trabalho e pesquisas, até que o carro ficou em perfeito estado. Então, chegou o dia de contar a Carlos tudo o que havia acontecido. “No início, a ficha não caiu, mas depois expliquei a história e ele ficou muito faceiro. Ele me disse que fui louco, pois com esse dinheiro poderia ter comprado algum outro carro melhor que eu quisesse. Mas ele entendeu e gostou muito de toda a situação”, conta Luiz. Ele garante que poder utilizar o carro hoje é muito especial. “Andar com o carro hoje significa voltar ao passado e estar vivendo tudo o que meu pai viveu. Amigos dele que o viam andando com o carro nos anos 80, hoje me veem andando no mesmo carro. Era apenas um carro velho que pertenceu ao meu pai, mas agora é um tesouro que está de volta à nossa família”, relata.

“A criança projeta na fralda, no urso ou no bico, por exemplo, a presença materna e cria um grande apego que lhe permite sobreviver à angústia da separação. Assim, as relações objetais seriam as ligações que a criança estabelece com as figuras parentais”, esclarece a profissional. Já na vida adulta, este objeto estará vinculado à sua história de vida. É bastante comum o apego a objetos de pessoas queridas, pois a projeção da presença do outro em algum objeto permite a fantasia e ilusão da presença deste ser. “Tal qual ocorre na infância, muitas vezes a relação objetal é necessária e saudável para dar conta da angústia da perda”, completa. Jamille também comenta que há alguns casos em que esta relação pode deixar de ser saudável e se tornar doentia. “O apego se torna um transtorno quando afeta a vida da pessoa, interfere diretamente na sua rotina e faz com que sejam tomadas decisões incoerentes. Nestes casos há um comportamento visivelmente inadequado quando o indivíduo percebe a possibilidade de perda ou enfraquecimento desta relação objetal”, informa a psicóloga. Para estas situações, ela indica a psicoterapia e o tratamento psiquiátrico. “O paciente aprende então a repensar sua forma de lidar com a perda e com as mudanças iminentes ao longo da vida”, finaliza. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 131 | DEZEMBRO DE 2015

Para Luiz Felipe e Carlos, andar com o santana significa retomar um passado que foi especial

IMPRESSÕES DE REPÓRTER O tema “Não” me agradou desde o primeiro momento que foi escolhido pela variedade de histórias que poderiam ser contadas. Tanto mais “sérias”, quanto mais descontraídas. A minha entra na segunda opção. Tive a oportunidade de conhecer duas pessoas que consideram seus meios de transporte como parte da família e de entender a importância desses objetos na vida delas. Foi muito interessante ouvir essas histórias. O Juliano vê no seu fusca a memória do avô Aristides. O Luiz Felipe nos trouxe a emoção de 21 anos atrás ao seu pai, através do Santana. Além deles, também pude entender a questão psicológica desse fenômeno, que foi trazida pela Jamille.


NÃO concordo

Os homens do Presidente

E

le sabia que o golpe viria. “Eu, como milico, mantinha minhas ligações dentro dos quarteis. A gente vinha se preparando. Levávamos as informações para o Jango, para o Brizola e o Assis Brasil, e eles só diziam que estava tudo sob controle”, conta José Wilson da Rosa. Em 1964, ele era vereador em Porto Alegre e 2º tenente do quadro de oficiais. O Assis Brasil a que Wilson se refere era o então ministro chefe da Casa Militar, general Argemiro de Assis Brasil. E Brizola, em 64, era deputado federal. O movimento para derrubar João Goulart começou na madrugada do dia 31 de abril, com a marcha das tropas do general Mourão Filho, em Minas Gerais, rumo ao Rio de Janeiro. Contudo, militares legalistas organizaram-se e, ao lado de Jango, tentaram evitar o pior. Eles não concordavam com o golpe. Em Porto Alegre, Wilson e Brizola conversavam desde o verão de 63 sobre isto. Hoje o tenente avalia que a organização acabou se revelando lenta, com muitas reuniões improdutivas. Naquela época, porém, Wilson era bem informado e sabia com quantos homens podia contar caso precisasse agir. “Naquele tempo, eu era importante pelo o que eu sabia. Tinha militância política”, afirma.

Em um dos períodos mais críticos da história do Brasil, muitos militares opuseramse ao golpe que derrubou João Goulart em 1964. Alguns deles pagaram com a própria vida Por LUIZ PAULO TELÓ Fotos BRUNA MATTANA

Assim que Ladário Telles assumiu o comando do 3° Exército em Porto Alegre, em uma das últimas ordens de Jango no poder, Brizola levou o “Tenente Vermelho” - como Wilson era conhecido desde o episódio da Legalidade - até o Quartel General, na Rua dos Andradas, no centro da capital, para apresentá-lo ao novo comandante. Do 4° andar do prédio, começaram a confabular sobre mudanças de comando que precisavam ser feitas imediatamente para manter uma base legalista forte. Wilson foi enfático com Ladário. “Às vezes a gente tem que ser meio duro. E eu, PRIMEIRA IMPRESSÃO | 132 | DEZEMBRO DE 2015

apenas um ‘tenentinho’, disse pra ele: você tem que dar as ordens agora e substituir os comandos”, relembra. Jango chegaria a Porto Alegre em poucas horas. Foi Wilson quem indicou para o general Ladário quais tropas eram de confiança e poderiam fazer a segurança do presidente, que desembarcou no início da madrugada de 2 de abril, acompanhado de mais cinco ministros. Em Brasília, naquela mesma madrugada, Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, declarou vaga a Presidência da República. No Sul, seguiram todos para a casa do comandante do 3° Exército, na avenida Cristovão Colombo. A madrugada serviu para estabelecer planos que nunca foram executados. Em um quarto, junto com Jango, além de Brizola e Ladário, estavam os generais Assis Brasil e Crisanto Figueiredo e os ministros Oswaldo Lima Filho, da Agricultura, Wilson Fadul, da Saúde, e Amaury Silva, do Trabalho. Em uma última tentativa de reestabelecer o controle, Jango nomeou o general Ladário como Ministro da Guerra e Brizola como Ministro da Justiça. Assis Brasil assumiria o comando do 3° Exercito. Mas a notícia de que tropas de Curitiba marchavam em direção a Porto Alegre e que o presidente tinha duas horas para deixar o país, caso contrário seria preso,


O tenente Wilson preserva na memória os momentos finais de João Goulart como Presidente da República. Ele esteve ao lado de Jango e Brizola na tentativa de barrar o golpe de 1964

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Wilson (centro) guarda com carinho as fotos de quando iniciava sua trajetória nas Forças Armadas. Alguns anos após o golpe, seria expurgado da corporação

caiu como um balde de água fria nos ânimos de quem pretendia resistir. Neusa Brizola, mulher de Brizola e irmã de Jango, ainda tentou persuadir o presidente: “Vamos ficar todos e resistir, para o que der e vier”. Era um momento tenso. Jango segurou o impulsivo Wilson pelo braço e, taxativo, concluiu: “Vai haver derramamento de sangue e eu não quero isso. A situação é ruim”. Em um dos banheiros da casa, Brizola e o tenente Pedro Alvarez reuniram-se com Wilson para tomar uma decisão: iriam em busca dos cerca de 100 homens que estavam no Q.G., armados, apenas esperando um sim. Em seguida, tomariam o Palácio Piratini com o apoio da Brigada Militar, já que o governador Ildo Meneghhetti, adepto ao golpe, havia fugido para Passo Fundo. Porém, ao saírem do banheiro, já encontraram Jango deixando as dependências da casa. “Tivemos aí a impressão de que havíamos sido desmantelados por dentro, com a colaboração das lideranças maiores, conscientes ou não. Por isso tinha sido agressivo com Jango e outros auxiliares, pois sabiam desde cedo que não iriam resistir e deixaram que

nos aprofundássemos num trabalho que só nos trouxe sérios comprometimentos”, relata Wilson, em seu livro O Tenente Vermelho. João Goulart chegou ao Uruguai, como exilado, no dia 4 de abril de 1964. No dia 9 foi decretado o Ato Institucional n° 1, suspendendo por 10 anos os direitos políticos de civis e militares que se colocaram contra o regime. No dia 11, o general Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exército nomeado um ano antes por Jango, tomou posse como presidente. O tenente Wilson permaneceu clandestino em Porto Alegre até o dia 20 de abril, também buscando exílio no Uruguai. A PERSEGUIÇÃO Encerram-se no ano passado as atividades da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2012 para investigar crimes de violação aos direitos humanos no período entre 1946 e 1988. Com mais de 4 mil páginas, o documento final garante que, pelo menos, 6.591 militares foram perseguidos durante o regime militar. Entre os 191 assassinatos de civis e militares cometidos pela repressão, um PRIMEIRA IMPRESSÃO | 134 | DEZEMBRO DE 2015

dos primeiros ocorreu no Rio Grande do Sul, na cidade de Canoas. Para Jair Krischke, que coordena o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul desde 1979, a tradição trabalhista, reforçada nas figuras de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, atraía para o estado movimentos opositores. “Também pela facilidade de ir até a fronteira com o Uruguai para conversar com Jango e Brizola. Então aqui se montaram setores de resistência”, explica o ativista de 77 anos. O tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro foi um dos responsáveis por impedir que os caças da Base Aérea de Canoas decolassem para bombardear o Palácio Piratini, sede da resistência legalista, em 1961. Anos mais tarde, nos primeiros movimentos do regime militar, o comandante recém-designado da 5ª Zona Aérea, brigadeiro Nélson Freire Lavanére-Wanderley determinou a prisão de todos que se colocaram contra o novo governo. Alfeu se apresentou no dia 4 de abril e foi morto. No inquérito policial-militar, diz que o coronel, ao receber voz de prisão, sacou um revolver calibre 32 e disparou contra o brigadeiro. Em defesa, o coronel Roberto Hipólito


da Costa atirou contra Alfeu, que não resistiu. “Ora, um sujeito que toma o cuidado de fardar-se para ir, vai levar um revolver 32? Nunca. Ele vai com a arma do regulamento, uma pistola 45, porque era assim que, ao tempo, se usava. Tenho aqui o inquérito, é uma farsa. Ele foi assassinado pelas costas”, afirma Krischke, que mantém no centro de Porto Alegre uma sala repleta de documentos históricos referentes ao período militar no Brasil. O Grupo de Trabalho dos Militares Perseguidos que atuou na CNV estima que a categoria tenha sido a mais atingida pela repressão política. “Nós fazemos parte de um gueto. A hierarquia militar não admite divergência, o militar tem que ser burro: ele recebe ordem e não discute. Uma vez tido como comunista, você é inimigo”, lamenta o tenente Wilson. “Alguns militares fugiram e se esconderam, outros foram presos. Vários partiram para o exílio. Jovens oficiais legalistas, muitos deles em início de carreira, ao se apresentarem em suas unidades, foram presos, processados e expulsos”, relata o documento final da CNV. O tenente Wilson regressou ao Brasil em 16 de maio de 1971, após sete anos de exílio no Uruguai. Voluntariamente, ele se apresentou ao DOPS, que teria que repassá-lo ao Exército. A partir daí, sendo julgado em várias instâncias, o tenente passou um ano e dois meses preso. Nunca foi torturado fisicamente, mas ouviu infinitas provocações vindas de colegas militares. Mais tarde, já em liberdade, foi enquadrado no artigo 6° do AI-5, e expurgado. Devido ao artigo 48 do Decreto-lei n.º 314, editado por Castello Branco, não conseguia emprego em órgãos públicos, tampouco na inciativa privada. Engajado, Wilson ajudou a fundar a Associação de Defesa e Pró-Anistia dos Atingidos pelos Atos Institucionais (AMPLA), que até hoje atua e trabalha pela ampliação dos direitos dos anistiados no Brasil.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Sempre me surpreende o quanto ainda não sabemos sobre nossa história, sobretudo quanto ao período obscuro da ditadura militar, entre 1964 e 1985. Para o jornalismo, estes 21 anos ainda rendem inúmeras pautas, essenciais para buscarmos esclarecimento sobre estas páginas de nossa história.Adentrar nesse universo é sempre muito interessante e dolorido, pois nos deparamos com relatos pesados, de gente que perdeu amigos, familiares, companheiros e, se não perdeu a vida de fato, perdeu parte dela, tendo seus direitos extorquidos, tendo que morar durante anos em outros países ou então por aqui, se escondendo pelo simples fato de não concordar. Tantas histórias não cabem em uma reportagem apenas. Coube a do tenente Wilson, um bravo sujeito, ainda disposto a contar tudo o que viu e que passou. Mas poderia ser a história do sargento Manuel Raimundo Soares, do coronel Jefferson Cardim, do capitão Carlos Lamarca e tantos outros. Calados, torturados e mortos.

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NÃO faço

O

Imagens que marcam

lhe para o seu corpo e busque um espaço livre. Nessa tentativa, muitas pessoas vão encontrar respostas totalmente diferentes. Algumas já não veem mais a cor da pele, já outras tratam como repulsiva a possibilidade de se tatuar. Arte, gosto ou uma forma de comunicação, a tatuagem não surgiu nesse ou no último século. Ela já passou por momentos de alta proibição, até o ponto de representar a marginalização. Segundo o professor de história da Unisinos Jairo Rogge, a tatuagem foi por muito tempo tratada como inadequada, sendo negada não só na Europa, mas também na América. “Ainda assim, mesmo que isso tenha mudado bastante ao longo dos anos, em algumas situações ela ainda é difícil de ser aceita, especialmente por gerações mais velhas”, ressalta. Não há como especificar a data do surgimento da tatuagem. Contudo, para Rogge, é possível que tenha surgido no Oriente. “Aos poucos levada por grupos pré-históricos, ela se consolidou por onde, hoje, é a Alemanha, França, Áustria”, destaca o professor ao lembrar que o nome da arte é de origem taitiana. É certo que corpos com mais de 5 mil anos de existência já possuíam marcas como as que conhecemos. Mesmo sendo uma prática tão antiga, ainda é perceptível o preconceito, mas especialmente o medo de sofrê-lo, o que, nesse caso, faz com que muitos sejam julgados e percam oportunidades, princi-

De tamanhos e formatos diferentes, as tatuagens já foram símbolos de marginalização, mas ainda hoje causam transtorno para algumas pessoas Por JOELLEN SOARES Foto JEAN PEIXOTO palmente no mercado de trabalho. Apesar de muitas vezes os próprios empregadores terem de esconder suas próprias opiniões, ou até suas tatuagens debaixo de longas camisas ou casacos fechados. UM SÍMBOLO QUE PODE TRAZER PROBLEMAS Há quem tenha medo de fazer uma tatuagem e se arrepender, mas, principalmente, há quem tenha medo de perder uma vaga de emprego por causa dela. Para a estudante de Ciências Contábeis Júlia Matts, a tatuagem é algo bonito, mas não faria por motivos profissionais e por se tratar de algo muito difícil de ser removido. “Acredito que em muitos lugares ainda prevalece uma visão mais antiquada, especialmente em ramos de negócios conceituados, sérios”, destaca. E ela não está enganada. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 137 | DEZEMBRO DE 2015

Na Escócia, o PhD em sociologia Andrew Timming, na Universidade de St Andrews, dedicou uma de suas pesquisas a isso, ou seja, tentou entender se tatuagens fariam ou não diferença na hora de escolher um funcionário. Timming descobriu que, na Escócia, 40% das pessoas entre 18 e 29 anos possuem tatuagens e que 40% dessas são aparentes. São elas que especialmente atrapalham os candidatos. Em contato com os empregadores, ele descobriu que o medo dos contratantes em incluir pessoas tatuadas em suas equipes está ligado a terceiros: os clientes. Porém, você acha que isso só acontece longe daqui? Lila Lucho, empresária do setor alimentício relembra dos tempos em que foi gerente de grandes redes de fastfood e teve que barrar candidatos a vagas de emprego porque eram tatuados. Lila enfrentou muitas vezes regras bastante específicas para contratar funcionários. “São muitos critérios de avaliação. Os candidatos que possuíam tatuagens que ficavam aparentes não deveriam ser contratados, era um desafio”, relembra. Em raras exceções, ela teve que pedir liberação aos superiores para que bons funcionários, mesmo que tatuados, ganhassem espaço. “A justificativa era de que alguns exageros nas tatuagens não combinavam com o ambiente da empresa. Quando eu solicitava, minha justificativa era de que alguns tatuados eram mais qualificados do que candidatos sem tatuagem”, ressalta. Hoje ela é dona


de seu próprio negócio e não barra mais funcionários por este motivo. UMA ARTE PARA SEMPRE? Há pessoas que se arrependem de ter se tatuado. É o caso da funcionária pública Natália Barcelos Palmeira, 26 anos, que, aos 16, tatuou-se junto com amigas e, hoje, tenta retirar a lembrança. As iniciais dos nomes dela e das amigas tatuadas na nuca nunca causaram problemas, segundo Natália, mas ela se preocupa com o futuro. Como se inscreveu no concurso de especialista em saúde militar, a lembrança das amigas teve que começar aos poucos a desaparecer. “No edital havia informações do impedimento do ingresso de pessoas com tatuagens aparentes com uso da farda e que ofendessem as forças armadas”, destaca a funcionária. Mesmo não sendo uma imagem ofensiva e que facilmente poderia ser escondida com o cabelo, Natália ficou com receio e buscou a remoção. “Eu faço laser, gasto R$ 400,00 por sessão que precisa ser realizada sempre com intervalo de 40 dias entre uma e outra. Já foram quatro e ainda não sumiu por completo”, admite, lembrando que seu dermatologista ainda acredita que outras três sessões sejam necessárias para remoção total da tatuagem, gerando para ela um custo de pelo menos R$ 2.800,00. Natália fez a sua escolha, para não correr um risco. Contudo, um candidato a um cargo público em São Paulo não conseguiu ultrapassar essa barreira. O concurseiro que não teve seu nome divulgado na imprensa, acabou eliminado do processo seletivo após passar na prova e ter no exame médico constatado na sua perna direita a presença de uma tatuagem. O caso ainda está em julgamento, mas o ministro Luiz Fux salientou em nota à imprensa que a restrição se encontra no edital, porém, admitiu que no momento em que a restrição a determinados tipos de tatuagens obsta o direito de um candidato de concorrer a um cargo, emprego ou função pública, é imprescindível a intervenção do Supremo Tribunal Federal para apurar se a discriminação encontra amparo constitucional.

Giane Guerra, repórter da Rádio Gaúcha, também passou por um processo bastante parecido. Apesar de não estar relacionado a motivos profissionais, Giane resolveu, aos 24 anos, retirar a imagem de uma grande pantera nas costas que carregava consigo desde os 15 anos e lembra que na memória ficou apenas o custo e a dor. “Lembro que gastei para tirar o mesmo que para fazer. A dor parecia de laçadas como as de atilho de borracha, sabe?”, compara Giane que ainda mantém em seu corpo a imagem de um outro animal, um puma, em tamanho bastante reduzido. Todavia, esses casos não são raros. De acordo com Danuza Dias Alves, da Clínica Leger, por semana 10 pacientes procuram o centro afim de remover suas tatuagens por diversos motivos. “A maioria dos pacientes dizem que eram muito jovens quando realizaram a tatuagem, então acho que a imaturidade é um dos grandes motivos para a remoção”, salienta a médica. Sendo assim, é muito importante que a pessoa esteja decidida a se tatuar, pois, nem sempre existirão formas de solucionar possíveis erros. Mesmo que em algum momento tenhamos vontade de fazer uso dessa arte, amadurecer a ideia é importante, pois nem sempre o processo de remoção dá resultado e o paciente corre o risco de conviver com uma cicatriz no local, salienta Danuza. TENTANDO QUEBRAR BARREIRAS Profissional da área há mais de 15 anos, o tatuador Guillermo Sebastian Suarez, 33 anos, começou a profissão ainda no país vizinho, Uruguai. Desenhista, ele imaginava seu trabalho na pele das pessoas. Hoje em Porto Alegre, ele acredita que as tatuagens expressam a liberdade e a individualidade de cada um. Mesmo com tanta admiração pela profissão, Sebastian admite que ainda existam pessoas contrárias. No seu estúdio, muitos pais têm uma visão crítica que acaba se modificando com o tempo. “Alguns pais não gostam que os filhos se tatuem, mas a grande maioria muda de opinião e até resolve se tatuar também”, destaca o tatuador que acredita PRIMEIRA IMPRESSÃO | 138 | DEZEMBRO DE 2015

ser nesse momento que alguns tabus são desfeitos, especialmente os relacionados à marginalização. O tatuador destaca que, apesar de alguns pais aceitarem, ainda existem outros que não são favoráveis e acabam apenas assimilando a ideia. “Existem alguns que não aceitam, mas liberam”, admite Sebastian ao lembrar que a arte não pode se tornar uma rusga futura, mas que principalmente deve ser uma experiência compartilhada. Desta forma, não é difícil perceber que, apesar de tantas condições favoráveis para a arte, ainda o preconceito atrapalha e possivelmente seguirá impedindo pessoas de seguirem em frente.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A escolha da pauta da Primeira Impressão com a turma toda reunida causou diversas opiniões. A decisão foi pelo não. Surgiu, diante de várias ideias, a vontade de realizar uma matéria falando sobre as tatuagens. Ainda existem pessoas que não gostam de se tatuar, outras que decidiram remover a tatuagem e até mesmo pessoas que recebem um não em entrevista de emprego por possuir a arte exposta no corpo. Além disso, também decidi explicar um pouco como e onde ela surgiu e por que as pessoas procuram tatuadores para marcar na sua pele algo importante. Ao realizar a matéria, encontrei algumas dificuldades. Já sabia que não seria tão fácil encontrar fontes que não gostam de jeito nenhum das tatuagens. Mas posso dizer que, ao longo da matéria, consegui expressar as opiniões de algumas pessoas sobre a arte no corpo. Queria agradecer as fontes pelas explicações dos motivos de não gostarem de tatuagens. Acredito que essa forma de marcar o corpo já não causa tanta repulsa, e podemos notar que o setor está em crescimento e a arte de marcar algo na pele está cada vez mais desenvolvida.


NÃO dirijo

Longe do volante Dirigir é uma ação comum, mas algumas pessoas decidem não seguir esse padrão e apontam aspectos positivos no transporte público Por JAYME DIAS Fotos PÂMELA OLIVEIRA

T

odos os anos a indústria automobilística se desdobra para criar veículos mais rápidos, mais modernos e mais bonitos. Para algumas pessoas isso não tem importância. Elas não se importam de pegar ônibus ou caminhar, o que elas querem é aproveitar o tempo longe do trânsito caótico das grandes cidades e estradas esburacadas e sem estrutura. No mundo cada vez mais corrido em que vivemos, cresce significativa-

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mente o número de motoristas que saem de trás do volante e migram para outros meios de transporte. São pessoas que abrem mão do conforto e da comodidade que um carro oferece para ganhar tempo e economizar um bom dinheiro. Para eles, não importa o modelo, a cor, a potência do motor, o que importa é chegar no horário ou até mesmo ajudar na preservação do planeta. Também existem algumas pessoas que nem chegaram a dirigir um veículo motorizado em toda a vida.


Leticia Rodrigues, 21 anos, é uma anos. Ele é cego e, por isso, também delas. Ela conta que quando estava não dirige. Algumas pessoas podechegando aos 18 anos até pensou riam pensar que essa seria uma boa em fazer a carteira de motorista, motivação para que ela passasse a mas não a fez. “Na verdade, não usar o carro. No entanto, Anderson senti necessidade naquele momento, explica que foi uma escolha do casal. o tempo foi passando e ainda não “Não nos importamos em andar de dirijo”, explica. ônibus. Como ela não quer dirigir, A jovem mora em Dois Irmãos, eu não forço, já que seria uma coisa no Vale dos Sinos, e trabalha na que ela teria que fazer, deixo que cidade vizinha, Morro Reuter. Todos ela decida”, completa. os dias encara uma hora de ônibus Quando pode, Leticia acompanha na ida e mais uma hora na volta. “Às Anderson onde ele vai. Se o percurvezes é cansativo, mas eu gosto. No so não é muito longo, dispensam o ônibus posso conhecer muita gente transporte público e vão caminhane escuto muitas histórias interessando. Durante os trajetos aproveitam tes”, conta ela quase rindo, como para colocar a conversa em dia. se estivesse lembrando “Por causa dos nosde algo engraçado que sos horários de trabaAnderson não ouviu em uma de suas lho e das aulas do Andirige por ser cego viagens. derson na faculdade, e sua esposa, Letícia, também optou pelo Leticia é casada não sobra muito temtransporte público com Anderson, 23 po para conversarmos.

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Então aproveitamos esses momentos que eu considero serem especiais”, relata emocionada, enquanto abraça o marido. Anderson completa lembrando que logo que se conheceram ela o acompanhava do local onde ele trabalhava até em casa. “Foi muito bom ter esses momentos logo no início da relação, assim pude conhecê-la melhor, e perceber que era a pessoa certa pra mim”, relata. Existem pessoas que cultuam o prazer de guiar um veículo nas ruas e estradas, fazer grandes viagens. Os dois também gostam de viajar, mas fazem isso de outra maneira, sempre de ônibus, é claro. “Nós moramos em Dois Irmãos, mas às vezes passamos os finais de semana na casa dos pais do Anderson, em Santa Maria do Herval, ou com os meus pais, em Gramado. São algumas


horas dentro do ônibus também no final de semana”, brinca. Por meio do transporte público eles já foram para praia, para a Serra e planejam fazer outras viagens. “Queremos ir mais longe, não sabemos onde ainda, e nem quando, mas uma coisa é certa, não iremos de carro”, planeja. Para o momento, a ideia é mais simples: “sempre ouvimos pessoas falando que vão para Porto Alegre de trem, que nós nunca andamos. É uma coisa que queremos fazer assim que pudermos”, afirma. Eles destacam o aspecto econômico da decisão. “Como não gastamos com combustível, nem com a manutenção do carro, podemos economizar um dinheirinho para comprarmos nossa casa”, destaca Leticia. Eles calculam que deixam de gastar cerca de R$ 300 por mês, e ainda contam com o passe livre que Anderson possui por não enxergar. “Eu não pago nada, isso ajuda bastante no final do mês”, salienta. Um dos principais fatores que fazem as pessoas migrarem para outros tipos de transporte é a preocupação com o meio ambiente, e esse também é um motivo decisivo para Leticia. “Eu penso no futuro também. Se tivermos filhos, quero que eles vivam em um lugar melhor do que esse em que estamos agora, e acho que carros não são a solução,” avalia com um ar pensativo. O casal vive esse cenário aparentemente perfeito. Mas, ao se deparar com a realidade do transporte público, acontecem as críticas. Leticia brinca que, no verão, andar de ônibus também ajuda na manutenção da forma física. “Quando volto do trabalho, às 17h, aproveito e faço sauna ali no coletivo mesmo”, ironiza. Para Anderson, a situação é mais séria. Como ele não consegue atravessar a rua que fica em frente ao local onde trabalha em Novo Hamburgo, ele tem que pegar a linha que vai até São Leopoldo, fazer o trajeto até o final e aí então voltar

para Dois Irmãos. Por causa disso, leva quase o dobro do tempo para voltar para casa. Para o casal, não dirigir não é uma decisão definitiva. “Enquanto puder, não vou dirigir, mas como não sei da nossa situação no futuro, posso pensar nisso com mais cuidado, até para ajudar o Anderson”, pontua. Anderson não pensa muito diferente: “é obvio que se ela quiser fazer a habilitação, eu vou apoia-la, temos medo de assaltos e de acidentes, que são coisas que sempre podem acontecer quando se usa um o transporte público”, conclui. Diferente de Leticia, outras pessoas não têm a mesma oportunidade de escolher se querem dirigir ou não. Elas simplesmente não conseguem por causa do medo ou da falta de prática. O instrutor Diogo Duarte, da escola Pratikar, conta como surgiu o trabalho, “após uma longa pesquisa e estudos feitos apontaram que existe um grande numero de pessoas que após conseguirem se habilitar, permanecem sem dirigir por estas questões”, explica. Ele descreve também a metodologia utilizada para retomar a confiança desses motoristas. “Nossa forma de ensino é bastante simples, pois sabemos o quanto já é difícil para o aluno estar sem sua independência na direção, portanto simplificamos tudo. Com a sequência de aulas práticas e as dicas que passamos no decorrer do curso, o organismo cria o hábito de dirigir. Nossa equipe se qualifica a cada dia, mantendo o aluno sempre bem informado sobre dicas de segurança e leis atualizadas”, comenta. Diogo explica como são as aulas para os motoristas, “O primeiro passo é agendar uma avaliação, onde o aluno anda com o instrutor para que ele possa conhecer nosso trabalho, e nós podermos montar o plano de aula. Cada aula tem a duração de 50min, o treinamento ocorre dentro e fora do município alcançando vias de maior velocidade”, completa. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 141 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER A história que contei na reportagem é bem rara de se encontrar. Alguém que simplesmente não vê a necessidade de conduzir um veículo por conta própria e ainda por cima consegue ver pontos positivos no transporte público lotado e sem a estrutura que temos hoje. O cuidado com que a Leticia ajuda o marido durante as viagens de ônibus. E a forma que eles encontraram para transformar essa situação tão corriqueira para alguns em momentos especiais para o casal é bem interessante. O trabalho que a escola Pratikar faz com os condutores que tem medo de dirigir também é muito legal, porque eles possibilitam uma recuperação completa da autoestima dessas pessoas, proporcionando a elas uma nova vida. O tema não dirijo também é bastante pessoal para mim, pois sou deficiente visual e não posso dirigir. Me identifico com algumas coisas que retratei, principalmente com a situação das pessoas que são ajudadas, já que elas também não escolhem essa privação.


NÃO me identifico

Da avalanche Priscila nasceu menino, mas enfrentou a família e o preconceito para poder assumir a própria identidade Por RITA GARRIDO Fotos GABRIELA WENZEL

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à coroa

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É

menino ou menina? A pergunta, comum para os que aguardam a chegada de uma nova vida, carrega consigo um significado tão importante quanto as mudanças que um bebê traz para um casal. Não cabe aos pais dar tal resposta, independente do desejo que os motivou e da preferência por um filho ou filha. Uma vez que a nova vida inicia sua jornada pelo mundo, cabe somente a ela descobrir gostos, desejos, atrações e a resposta para o questionamento que encabeça a identidade de gênero. Afinal, é menino ou menina? Aos quatro anos, são vagas as lembranças da infância, a não ser que sejam marcantes. Antes disso, sabemos somente o que nos contam. E foi assim, relatado pelos pais, que Priscila Fróes descobriu, aos dois anos, que, por brincar muito com as primas, ganhou a primeira boneca. Mais tarde, aos quatro, durante um banho na casa da madrinha com uma das primas, se questionou: “Como assim, eu não tenho a mesma coisa que ela tem?” Longe de ser convencida pelas tantas histórias que os adultos contam às crianças sobre diferenças entre meninos e meninas, hoje, Priscila, que ao nascer foi designada menino, afirma: “Eu sempre me senti menina, mas ao mesmo tempo eu sabia que era algo errado”. A identidade de gênero, diferente da orientação sexual, pode ser definida como a maneira com a qual a própria pessoa se identifica, independente do sexo do nascimento. Assim, família, amigos e a convivência social podem se tornar grandes obstáculos que impedem a aceitação. O processo de culpar esse círculo, principalmente familiares, não é o melhor caminho, segundo a psicóloga e professora universitária Fernanda Hampe Picon. “Não dá pra fazer um movimento de culpabilizar a família. Ela não é uma instituição que cai de paraquedas na cultura. Ela é subjetivada pelas mesmas regras do jogo. É muito difícil de entender um filho ou uma filha que rompe com o projeto idealizado”, diz. No ambiente familiar, os pais já demonstravam relutância diante da iden-


tidade distinta da filha. A experiência de deixar o cabelo crescer só era permitida ao irmão, três anos mais novo. Saídas e visitas a familiares sempre vinham acompanhadas do pedido para se comportar que, na verdade, não se referia à educação, mas ao portar-se como um menino. “Nunca me soltei com os meus pais, porque eu sempre sentia que eles me recriminavam”, lembra Priscila, e brinca com o fato de ter um primo e uma prima homossexuais – “é de família isso”, diz. A transexualidade independe de intervenções cirúrgicas, por mais que o pouco conhecimento leve a crer que isto é uma condição. A troca se sexo – expressão incorreta e já substituída por adequação de sexo – se dá após acompanhamento e diagnóstico feitos por um psicólogo. Conflitante, a identidade de gênero é considerada um transtorno, o que divide o campo da psicologia. Para a psicóloga, os estudos e a atuação deveriam trabalhar com a desconstrução das práticas culturais que seguem entendendo gênero com a perspectiva do corpo biológico. “O mais triste é quando a psicologia acaba entendendo que existe um desvio a ser corrigido e não que existe ali uma vida a ser cuidada”, lamenta.

Transtorno de Identidade de Gênero (Protig), localizando no Hospital de Clínica de Porto Alegre, em 2006, terminou de forma frustrante. Com apenas 16 anos, vestida de menino, mas com a certeza da identidade contrária, a orientação recebida foi para se encontrar. “Foi aí que eu cortei o meu cabelo pela primeira vez, me olhando no espelho e me perguntei - se eu não sou mulher, o que é que eu sou? Foi a única coisa que eu pensei e comecei a cortar os cabelos”. Após uma briga com os pais, a tesoura novamente se faria presente. “Depois disso, prometi que nunca mais iria me agredir de novo por causa dos outros”. A falta de um diagnóstico só reforçou a ideia de que não passava de uma fase. “Eu tinha baixa autoestima e o Protig disse que eu não era mulher”, lamenta, ao lembrar que foram sete anos enfrentando os problemas da falta do preparo clínico e utilizando, por conta própria, de métodos para adequação. “Com 19 para 20 comecei a tomar hormônio por conta própria”, diz Priscila, revelando ter sido esta uma das épocas mais intensas. O medicamento trouxe mudanças de humor, acompanhadas de depressão, ansiedade

SE EU NÃO SOU MULHER, O QUE É QUE EU SOU? Na busca por explicações para entender as atitudes da filha, os pais chegaram a rastrear os acessos dela à internet. “A descoberta para os meus pais foi chocante. Lembro que o meu pai sentou comigo e perguntou desde quando eu me sentia menina. A princípio, foi uma sensação boa, e daí eu expliquei. Então começou uma avalanche e eles pensavam que era uma fase. Só que nunca passou. Acredito que até hoje eles pensam que é uma fase”, conta Priscila. Quando tinha 10 anos, a rotina nos consultórios psicológicos se tornou constante. “A primeira psicóloga disse que não podia diagnosticar, porque era muito cedo. Mas eu sentia que não podia contar pra ela, porque ela ia contar pros meus pais”. Na companhia do pai, a primeira consulta junto ao grupo do Programa de PRIMEIRA IMPRESSÃO | 144 | DEZEMBRO DE 2015

e dos conflitos em família. Quando a falta de aceitação e o preconceito caminham lado a lado, os dias para se comemorar são raros e as conquistas marcam. Sorrindo, com uma lembrança precisa da data – 15 de julho de 2010 – ela fala do primeiro dia do emprego de carteira assinada. “O Call Center me aceitava como Priscila”. Nos anos de atuação, juntou dinheiro para dar continuidade à adequação, que seguiu com a colocação de próteses mamárias, com uma correção na testa e com a retirada do gogó. “Não consigo mais dar agudos, nem fazer falsete. Esteticamente estou satisfeita, mas foi traumático e horrível”, lembra. FORÇA PARA ENFRENTAR AS MUDANÇAS Formada em Artes Visuais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), com pós-graduação em Educação de Jovens e Adultos na Diversidade, pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), ela lembra dos absurdos enfrentados próximo à conclusão do curso. “A gestão da Ulbra não queria me chamar de Priscila pelo


Após um ano militando como miss diversidade de Canoas, Priscila passou a coroa para Desire na última edição do concurso

nome social, sendo que o Estado e o Governo Federal reconhecem esta identidade.” Junto à Coordenadoria das Políticas das Diversidades e Comunidades Tradicionais de Canoas, uma ação contra a Universidade foi montada. Contudo, a entidade reconheceu o nome social antes que a ação fosse movida. “Eu senti o preconceito duas vezes. Uma na Ulbra e outra em uma entrevista de emprego onde não fui selecionada por ser trans. Não queriam respeitar meu nome”. A psicóloga Fernanda aponta que a questão do nome está dentre as maiores dificuldades relatas por pessoas que estão no processo de adequação da identidade. “A nossa cultura funciona assim, nomeando. E essa é uma das grandes violências cotidianas”. A falta de respeito também está presente quando o assunto é relacionamento e, neste caso, o machismo atinge níveis muito mais elevados. “Algumas mulheres tentam justificar que todas passam pelos mesmos problemas, mas o homem vai levar você pra jantar ou pro cinema. Já com

uma trans, isso não acontece”. Ela explica que devido à falta de oportunidades de trabalho e a dificuldade em completar os estudos, muitas optam pela prostituição. “Nós somos muito carentes e as trans se tornam reféns de qualquer um”. A QUESTÃO É ESSA, SE EMPODERAR! Coroada Miss Diversidade de Canoas em 2014, Priscila avalia a importância do ativismo na causa trans. “Dificilmente as trans falam por elas na academia, porque são poucas. Então a questão é essa, se empoderar e não deixar os outros falarem por ti”. E quanto maior a independência, mais cresce a força para enfrentar os fantasmas do passado. De volta ao Protig desde 2014, a atitude da Priscila provavelmente representa a obviedade cega que atinge a sociedade. “Eu tinha que mostrar pra eles que estavam errados. Não é equivocados, mas sim errados”. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 145 | DEZEMBRO DE 2015

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Durante toda a conversa, não há espaço para incertezas. Ainda que muito jovem, Priscila, que aceitou despir trechos da sua trajetória, carrega junto uma convicção sem igual diante de um dos maiores desafios da identidade de gênero: se assumir. Inicialmente, o que menos importava entrou como tema central da matéria. A adequação de sexo, ainda citada incorretamente como mudança de sexo, mostrou ser a questão menos relevante quando se quer tratar de identidade de gênero. Abordar questões psicológicas e sociais foram fundamentais para entender os desafios enfrentados por quem busca se adequar, seja com procedimentos cirúrgicos ou apenas na aceitação de uma identidade distinta do sexo designado ao nascer.


Daniele participou do projeto fotogrรกfico em junho e viu sua autoestima renovada

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NÃO trato

O despertar da beleza

“E

u sou muito baixinha, tenho 1,52m, não gosto de usar salto, estou acima do peso. Engordei 15kg em dois anos, tenho seios grandes e, quando adolescente, sofri muito bullying por isso. Uso óculos, tenho dentes tortinhos e realmente não estava muito bem com meu corpo, pois as roupas estavam ficando apertadas e muita gente andava dizendo que eu precisava emagrecer.” O relato é de uma menina que, até então, não conseguia aceitar o próprio corpo, o tipo físico, a estrutura óssea. Daniele Endler Sobieszczanski é uma entre tantas mulheres que passam por problemas de autoestima porque em seus corpos não enxergam os padrões de beleza estabelecidos pela sociedade e pela indústria da moda. Apesar de se achar acima do peso, a jovem de 26 anos nunca foi o tipo de menina que passa horas na academia ou que deixa de comer o que gostava por não estar vestindo tamanho 36. Não se importava, mas não era totalmente feliz. Algo a incomodava. Um dia, entretanto, enquanto usava a internet, viu uma postagem falando sobre O Bendito Fruto, projeto criado pelo fotógrafo Maiquel Borges e, apesar de não saber, a partir dali, teria a autoestima reestruturada. Borges sempre teve um lado metido a artista. Gostava de criar, tinha ideias de ensaios e retratos, coisas que queria produzir, mas não tinha muita base técnica e acabou ficando pela área de fotografia de

Contra a padronização do corpo, projeto fotográfico não usa Photoshop e estimula mulheres a se despirem de preconceitos para serem fotografadas Por JÚLIA FLORES Fotos LUAN PAZZINI casamentos, formaturas e aniversários. Mas ele ainda procurava algo a mais na vida. Quis o destino que ele encontrasse a Daniele, a mocinha do relato anterior, que não gostava tanto assim do próprio corpo. Certa vez, o fotógrafo se pegou pensando na Color Wheel, uma roda de cores que explica a harmonização cromática, muito usada no cinema. Lá encontrou o azul contrastando com o laranja e o amarelo, e pensou “vou convidar uma amiga para fotografar, ela é loira de olhos azuis” e pensou em como poderia colocar na prática a ideia. Antes disso, voltou para a roda de cores e se deparou com o verde e o vermelho, contrastando. Pensou em coisas que traziam na sua essência estas cores, até lembrar de uma fatia de melancia. “Nessa hora eu visualizei a ideia de pessoas comendo frutas. Era para PRIMEIRA IMPRESSÃO | 147 | DEZEMBRO DE 2015

ser apenas uma série pequena de retratos. Uma parede branca, uma mulher sentada comendo uma fruta e eu fazendo um jogo de cores com as frutas e as modelos,” explica. A série curta, aos poucos, foi ganhando espaço. Ganhou um nome, O Bendito Fruto, uma página no Facebook, um site e muitos adeptos, admiradores, incentivadores. A escolha pelo nome do projeto, segundo Maiquel Borges, foi pura sorte. “Quando pensei nas frutas, o nome veio meio automático, por associação mesmo.” Mas o que teria de diferente uma menina segurando uma fruta? Qual era a diferença desse projeto? Por que ele mudou a vida da Daniele e das muitas outras mulheres que passaram por ele? Borges, o fotógrafo, já investiu muito em cursos de tratamento editorial. Passou um bom tempo querendo aprender a fazer aqueles milagres que só o photoshop é capaz de fazer, sabe? E, mesmo sabendo como modificar qualquer corpo, ele preferiu não o fazer. Para o criador, o uso do recurso do photoshop descaracteriza o que a fotografia representa. “Eu sempre preferi ajudar as pessoas a identificarem peculiaridades na própria beleza e aprender a gostar até de características que elas consideravam defeitos. Na maioria das vezes é algo que elas não gostam porque alguém ensinou que não era bonito.” As fotos, voltadas para o lado mais sensível e sensual de cada mulher, ilustram as diferentes belezas femininas. Aquela celulite ou as sardas que você não vê na capa


da revista estão no trabalho do O Bendito Fruto. Antes das fotos há uma conversa com as meninas. Eles sentam para um café, falam sobre histórias de vida, medos, aflições, motivos por estarem procurando nas fotos um encontro íntimo e pessoal. Em cada imagem publicada na página do projeto, um pouco da história de cada menina é contada. O próprio fotógrafo já passou por problemas de autoestima e não faz muito tempo que se aceitou. Para ele, ter a voz muito grave, ser magrelo, ter um jeito de andar desengonçado e ser um pouco calvo, eram motivos para duvidar da sua beleza, mas lidando com as inseguranças de muitas modelos, se viu nelas e conseguiu encontrar também os seus reais atributos. “Eu tento deixar as pessoas falarem e se abrirem o máximo. É uma conversa para desabafar mesmo. Dali saem coisas incríveis, tristes, alegres. O milagre de estar vivo. Já chorei várias vezes durante essas conversas. Escuto coisas que não

posso dizer e várias vezes tomei choques de realidade. É engraçado como a gente vê alguém e pensa: Ih, esse aí não deve ter problemas, não deve sofrer, é bonita, é magra, e por dentro essa pessoa pode estar destruída, se odiando.” E foi mais ou menos assim que o fotógrafo encontrou a Daniele. Linda e com a autoestima abalada. Insegura. Descrente. Ela sempre se imaginou fazendo um ensaio sensual, mas como ter coragem, se ela cresceu ouvindo que as mulheres precisam se cuidar para não engordar, que celulite é feio, peito pequeno é sem graça, que dobrinhas não devem ser mostradas e que a maquiagem é o que faz alguém ser bonita? Mesmo assim, com um pouco de medo, ela precisava fazer isso. Para se descobrir, se reencontrar. No dia das fotos, ela recorda, passou só uma base leve, lápis e rímel no rosto. Vestiu uma lingerie preta, short jeans, camiseta do banda Ramones e ficou com os pés descalços. “Eu estava tirando a roupa, olhando

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para um cara que eu não conhecia e que ficava tentando me fazer rir. Fiquei muito à vontade em poucos minutos e tudo saiu melhor que o esperado.” E há quem pense que as fotos, por serem tratadas de maneira mais sensual, são vulgares. No início, o fotógrafo teve medo de ser mal interpretado, do projeto perder o significado, mas percebeu que todo mundo que se envolve com arte corre esse risco, mas que o verdadeiro problema não é o que se cria, e sim a forma como as pessoas veem. “ Eu cuido muito o que crio, mas não deixo isso me limitar. Meu foco hoje é em ajudar a quem me procura,” revela. E ele ajudou. Ao final do ensaio, cada modelo escolhe suas fotos. No caso da Daniele, foram muitas. “Eu me amei em quase 100 fotos. Saí do apartamento dele realmente me sentindo a mulher mais bonita do mundo. Foi uma experiência incrível. É bom demais se sentir bonita, é bom demais se aceitar do jeito que você é!” Com o projeto ganhando cada vez mais


visibilidade, o fotógrafo auxilia e contribui na descoberta da verdadeira beleza. Para algumas meninas, o projeto é o primeiro passo para a descoberta da sexualidade, do corpo. “Algumas ficam maravilhadas, se percebem sexy, gostam mais de si, se veem de forma fiel, sem modificações. Ela vê que o nariz que ela achava grande tem charme. Que o sorriso que ela preferia esconder, brilha muito.” Futuramente O Bendito Fruto deve ser apenas 20 ou 30% do que o fotógrafo Maiquel Borges planeja. “Ele foi minha escola. Aprendi e tenho aprendido muito com ele. Mas agora o criei e estou me dedicando a algo muito maior, mais inclusivo, mais bonito, igualitário e abrangente.” Para 2016 o projeto deverá contar também com a participação de homens. E continuará mostrando para a sociedade que aceitar-se e acomodar-se são coisas diferentes e que gostar de si próprio, independe da aparência, é o melhor remédio para a reconstrução da autoestima.

IMPRESSÕES DE REPÓRTER Jornalismo sempre foi algo no qual eu acreditei, porque tem o poder de mostrar aos outros aquilo que talvez eles já saibam, porém, com mais clareza, mais tato, mais coração. Quando conheci O Bendito Fruto, por meio do Facebook, achei o projeto incrível e quando tive a oportunidade de conhecê-lo melhor, de falar com o Maiquel, com a Daniele e com outros envolvidos, tive a certeza de que a sensibilidade é essencial no jornalismo e também passava pelas lentes desse trabalho. Quando conversei com as meninas, me deparei com mulheres lindas e histórias incríveis. Chá e bolo me esperavam durante o encontro. Foi uma recepção regada de carinho. A maior dificuldade que encontrei foi justamente sintetizar tantas histórias e fazer jus ao significado e a importância que O Bendito Fruto merece. Só espero ter mostrado aquilo que as pessoas já sabem, mas, às vezes, esquecem: que cada pessoa é linda na sua essência e isso só diz respeito a nós mesmos.

O criador do projeto O Bendito Fruto, Maiquel Borges, já passou por problemas de autoestima

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NÃO me enxergo

O

É difícil se ver doente

s ossos estão aparentes e é possível inclusive contar os da costela, mas o reflexo no espelho não é o mesmo processado pelo cérebro. Nele, a imagem mostra uma pessoa gorda, obesa, que precisa urgentemente perder peso. Não é filme de ficção, nem sonho. É assim que milhares de pessoas doentes se veem. Elas sofrem de distúrbios alimentares, como anorexia e bulimia. No Brasil não há dados precisos sobre a abrangência dessas doenças, mas estimativas dão conta de que 1 a cada 250 adolescentes sofre com anorexia. De acordo com o Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas de São Paulo, em 2012, cerca de 3 mil pessoas estavam em tratamento no Brasil. A maioria dos casos, cerca de 90%, são de mulheres. As diferenças entre bulimia e anorexia estão no método utilizado para buscar a perda de peso. Na anorexia, a dieta fica extremamente restrita, além de ser acompanhada de períodos de jejuns, exercícios físicos desgastantes, vômitos, laxantes e moderadores de apetite. A bulimia se caracteriza pela compulsão alimentar, seguida da culpa e ingestão de laxantes e vômitos forçados. Algumas pessoas, às vezes,

Distúrbios alimentares podem causar graves problemas de saúde, mas dificilmente são percebidos pelas famílias e têm pouco atendimento especializado no SUS

vezes, é uma forma apresentam os dois de chamar a atendistúrbios. Isabelle ção também. Por Aguiar, 22 anos, é isso, o tratamento uma delas. envolve diversos Curada da anoprofissionais, com rexia, ela ainda luta diferentes especiapara parar de vomilidades e a família tar após exagerar também participa, na comida. Isabelle pois é parte imconta que o incôportante do tramodo com o peso tamento”, explica começou ainda na Ieda, que trabalha infância, quando Por GREYCE MALTA como psicóloga e colegas e até a próFotos PÂMELA OLIVEIRA terapeuta do Propria família faziam grama de Transtorbrincadeiras a resnos Alimentares do peito do seu peso. CAPSi do Hospital de Clínicas de Mas foi no início da adolescência Porto Alegre (HCPA) e da Atendique começaram os períodos sem mento Multidisciplinar de Anorecomer, os vômitos e os desmaios. xia, Bulimia e outros transtornos “Não me lembro de escutar críalimentares (AMAB). ticas da minha mãe. A implicância Para Isabelle, o distúrbio ficou com meu estereótipo vinha sempre mais aparente na puberdade. “Foi da minha irmã, dos meninos da esquando eu me vi realmente gorda, cola e até da minha família, mas eu me senti frustrada por isso e percebi não os culpo por terem agido assim. que poderia mudar esta situação De fato, todos nós estamos sendo comendo menos, cada vez menos, sistematizados por um modelo e a evacuando mais, vomitando diariagente acaba inferiorizando aqueles mente e suando excessivamente”, que não se enquadram neste estilo lembra. magro ou atlético”, reflete. Carolina, 27 anos, conta que o A psicóloga Ieda Zamel Dorfman distúrbio iniciou após a segunda grasalienta que há diversos fatores que videz. “A mudança foi perceptível, levam aos transtornos. “Chamamos falavam que estava muito magra, de biopsicosocial. Pois são diversos mas não percebiam que estava doenfatores que podem causar o transtorte. Até que me vi cada vez querendo no, desde a família até a mídia. Às PRIMEIRA IMPRESSÃO | 151 | DEZEMBRO DE 2015


menos dois quilos, menos dois. Tenho 1m59cm de altura e estava com 44kg e me achava gorda ainda, não tinha forças nem vontade de sair, coisa que eu mais gostava. Quando um dia minha filha pediu colo e eu mal conseguia pegá-la, decidi que precisava de ajuda. O psiquiatra me deu o diagnóstico de distúrbio alimentar, depressão e bipolaridade. Iniciei o tratamento com remédios, mas é uma luta diária. Ainda tem dias que vomito”, relata. Ambas citam que a opinião dos outros influencia no que pensam sobre si mesmas. “Todos estão sendo sistematizados por um modelo estereótipo e acabamos inferiorizando aqueles que não se enquadram no modelo magro ou atlético”, diz Isabelle. Caroline critica os padrões de beleza estabelecidos. “Sempre fui gordinha e nunca liguei, mas cada vez mais os padrões de beleza sugerem mulheres magras, sem barriga, e logo após ter bebê comecei a ficar sem comer e quando comia eu vomitava, porque comia muito”. Além da magreza excessiva, a bulimia e a anorexia, se não tratadas, podem levar à morte. Elas afetam várias partes do corpo, deterioram o sistema imunológico, causam perda de cabelo, desregulam a menstruação, trazem infertilidade, osteoporose, entre outros problemas. Isabelle adquiriu hipertireodismo e Carolina perdeu uma prima em decorrência de complicações causadas pela bulimia. “Ela morreu com 21 anos por abuso de diuréticos e laxantes. Chegou no hospital com um rim paralisado e foi entubada. Quando os órgãos voltaram, ela não voltou. A desnutrição causou outros problemas, como um coágulo no cérebro. Depois de um mês em coma, ela veio a óbito”. Caroline chegou a 42kg, e ainda se achava gorda. Hoje, após tratamento, está com 49kg, mas ainda não consegue se enxergar. “Nós vemos o que os outros não vêem, é uma distorção, não dá pra se curar

sozinha. Hoje vou ao psiquiatra e tomo medicamentos. É um vício, perturbador e mortal. Eu não quero mais isso. Vejo meninas de 12 anos começando a vomitar para se manter magra. É bom ser magra, mas não assim”. Ieda avalia que é necessário a família ficar atenta aos sinais das doenças, para que o tratamento não inicie tarde, quando a magreza já é crítica e muito perceptível. “Os primeiros sinais apresentados são o afastamento social. Quando estudam, as notas costumam baixar. Surge a irritabilidade, idas ao banheiro logo após as refeições são frequenPRIMEIRA IMPRESSÃO | 152 | DEZEMBRO DE 2015

tes. Se esses sinais forem notados, é preciso ficar atento, conversar e procurar tratamento, pois como não admitem a doença, não conseguirão parar sozinhos”, explica. O TRATAMENTO NO BRASIL Membro de duas equipes, uma particular e outra pública, Ieda conhece realidades diferentes no tratamento dos distúrbios alimentares no Brasil. O Hospital Clínicas do Porto Alegre é o único no Brasil a oferecer tratamento multidisciplinar pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para esses transtornos. “Nós somos


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referência no Brasil. Temos uma equipe composta de terapeutas, psiquiatra e nutricionistas. Por isso, mesmo pessoas que teriam condições de pagar um tratamento particular preferem aguardar vaga no CAPSi. Particularmente, não concordo, pois tira o lugar de pessoas que não têm condições de pagar, mas não podemos negar atendimento”, destaca a psicóloga. Ieda ressalta também que o grupo é destinado apenas para adolescentes jovens de Porto Alegre. “É muito complicado, pois é uma doença grave, negligenciada pelo SUS. No Rio Grande do Sul, adultos e não moradores da Capital não recebem tratamento.

Nos outros estados também não há atendimento específico. O máximo possível é, se em estado de extrema magreza ou de doenças consequentes do distúrbio, conseguir internação, que leva em torno de dois anos, podendo continuar por mais tempo com acompanhamento psicológico ou outro, dependendo do caso”. O atendimento particular é caro. De acordo com Ieda, na AMAB, cada consulta custa mais R$ 100,00, inviabilizando o tratamento para muitos. “Não há classe social. No HCPA temos de classe A a E, todos com os mesmos problemas, sofrimentos e dificuldades”, enfatiza. PRIMEIRA IMPRESSÃO | 153 | DEZEMBRO DE 2015

Quando escolhi meu tema, sabia que não seria fácil conseguir fontes. Pessoas que passam ou já passaram por transtornos alimentares não costumam falar muito a respeito, não gostariam de aparecer em uma revista. Consegui, mas ambas histórias vieram de fora do Rio Grande do Sul. As fontes foram solícitas, responderam a várias perguntas, me tiraram dúvidas, abriram o coração e dividiram as dificuldades de vencer tanto a bulimia quanto a anorexia. Depois, ao procurar um profissional, encontrei alguém que conhece a realidade do SUS e dos atendimentos particulares. Isso foi ótimo, pois me abriu os olhos para a dificuldade que é ser tratada. E sem um acompanhamento, fica muito mais difícil se curar, já que os pacientes não se enxergam e não percebem que estão doentes. Conversando com as fontes, percebi como sabemos pouco a respeitos dos distúrbios alimentares e como eles são perigosos para a saúde e negligenciados pelo sistema de saúde pública, assim como tantas outras doenças e pessoas.


Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Endereço: avenida Unisinos, 950. São Leopoldo, RS. Cep: 93022-000. Telefone: (51) 3591.1122. Internet: www.unisinos.br. ADMINISTRAÇÃO REITOR: Marcelo Fernandes de Aquino VICE-REITOR: José Ivo Follmann PRÓ-REITOR ACADÊMICO: Pedro Gilberto Gomes PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO: João Zani DIRETOR DA UNIDADE DE GRADUAÇÃO: Gustavo Borba GERENTE DE BACHARELADOS: Vinicius Souza COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Edelberto Behs

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Atividades Acadêmicas: Redação Experimental em Revista / Narrativas Jornalísticas e Planejamento Editorial Adriana Corrêa, Amanda Moura, Amanda Oliveira, Ana Fukui, Anne Caroline Kunzler, Betina Albé Veppo, Camila Hugenthobler, Caroline Garske, Caubi Scarpato, Cristiano Vargas, Daniel Grudzinski, David Farias, Diovana Dorneles, Dominique Nunes, Franciele Costa, Francisca da Rosa, Gabriel Pureza, Gabriela Clemente, Greyce Malta, Jayme Dias, Joellen Soares, Júlia Flores, Júlia Soares, Juliete Rosy, Leonardo Vieceli, Luiz Paulo Teló, Marcella Lorandi, Marcelli Pedroso, Marco Pecker, Maria Roseli da Silva, Mariana Nunes, Matheus D’Avila, Nicole Cavallin, Priscila Tonietto, Renata Cardoso, Rhian Berghetti, Rita Garrido, Rodrigo Ramazzini, Thomas Bauer, Virginia Machado e William Mansque MONITORA: Cristiane Abreu EDITORES DA VERSÃO ONLINE: Cristiane Abreu, Daniel Rohr, Júlia Flores, Leonardo Vieceli e Thomas Bauer REVISORES: Ana Fukui, Cristiane Abreu, Júlia Soares e William Mansque. Colaboração: Fernanda Salla e Karine Dalla Valle (Agexcom)

Fotografia

Atividades Acadêmicas: Projeto Experimental em Fotografia Audrey Barbosa, Aline Casiraghi, Bruna Arndt, Bruna Mattana, Bruno Lois, Cláudia Paes, Daniel Rohr, Daniela Flores, Denise Morato, Dyessica Abadi, Elizangela Meert Basile, Emilene Lopes, Fernanda Forner, Gabriela Wenzel, Jean Peixoto, Jonara Cordova, Joyce Heurich, Júlia Bondan, Luan Pazzini, Lucas Moller, Mel Fassini, Pâmela Oliveira, Priscilla Mella, Rafaela Amaral, Rhian Berghetti, Roberto Caloni, Rodrigo Ramazzini e Sabrina Martins MONITOR: Roberto Caloni FOTO DE CAPA: Gabriela Wenzel

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Editoração

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ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA: Vanessa Cardoso SUPERVISÃO TÉCNICA: Robert Thieme ATENDIMENTO: Djover Bock REDAÇÃO: Cibele Gomes (contracapa), Fernando Fries (página 155) e Guilherme Stacke (página 2) DIREÇÃO DE ARTE E ARTE-FINALIZAÇÃO: Caique Agulla (página 2), Gabriel Luís Frantz (página 155) e Thiago Jardim (contracapa) FOTOGRAFIA: Márcia Molina (página 155)

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