6 minute read

A máscara e a justiça

Next Article
E o mar logo ali

E o mar logo ali

João Pires da Rosa

“Como podiam os julgadores interpretar o comportamento de todos os intervenientes na audiência, se a “alma” de cada qual estava escondida por trás da máscara negra?”

Às vezes a saudade aperta, e entrei.

Subi a escadaria – tantas vezes pisei estes degraus! – e inquieto, temeroso até, aproximei-me da Sala de Audiências.

E lá estava, ao fundo, a delicada tapeçaria de Portalegre, com a belíssima Sentença de Salomão criada por Almada Negreiros, que tantos e tantos dias me acompanhou, que tantas e tantas estórias, marcantes na minha vida, apadrinhou.

Mas a Sala, … a Sala estava vazia.

Apenas, lá à frente, de costas para a tapeçaria, o Colectivo de Juízes, à sua direita a “Digna Agente do MºPº” e à esquerda duas “Senhoras Advogadas”, na secretariazinha em frente a “Senhora Funcionária”. De pé, atento mas inquieto, o réu (o arguido! digo agora ), e por trás dele, dois guardas prisionais e dois agentes da PSP. Mais ninguém na sala.

Sem máscara, apenas uma pessoa – precisamente o Rei Salomão! Todos os demais, cada um dos demais, com uma sombria máscara preta. Por detrás da máscara, pude descobri os olhos da Meritíssima Juíza Presidente. Pareceu-me até que sorria com a minha presença, ou não fosse ela a acompanhante preferida da sua colega, minha filha, quando, no fim das aulas na escola primária, a minha pequenina me vinha visitar.

Estranha esta audiência!

Senti um abalo, um forte abalo, e perguntei-me, perguntei a mim próprio:

Eu pude adivinhar o estado de alma de quem presidia ao julgamento. Mas o arguido, podia ele aperceber-se da forma como quem o julgava o foi ouvindo, da forma como os Senhores Juízes iam reagindo às suas palavras, até mesmo à sua simples presença perante o poder judiciário? E mais do que isso, podiam os Julgadores “sentir” o arguido, “sentir” a pessoa que tinham ali à sua frente e a quem deviam Justiça, (fosse ou não o resultado dela conforme aos desejos de quem estava a ser julgado)? Como podiam os Julgadores “sentir” e entender todas as mais declarações prestadas por quem tinha vindo

João Pires da Rosa

A Máscara e a Justiça

prestar o seu testemunho em Tribunal? Com podiam os julgadores interpretar o comportamento de todos os intervenientes na audiência, se a “alma” de cada qual estava escondida por trás da máscara negra - e sem o rosto é tantas vezes (senão mesmo sempre) impossível ler a “alma” de alguém?!!

E perguntei-me mais, ainda: como pode o arguido, se acaso lhe não for favorável a decisão deste Colectivo que o julga, aceitar tranquilamente a condenação que sofreu quando não pôde ler a “alma” dos Juízes e sabe que lhes não pôde verdadeiramente transmitir o seu próprio sentir?

Pensei que foi bom que o limite de idade me libertasse do peso de uma profissão a que dediquei toda a minha vida, ao longo de longos de 46 anos, e dirigi a minha atenção, e o meu apreço, para os Colegas que nos dias de hoje, os dias da pandemia, suportam estoicamente o seu dever de prestarem Justiça em nome do povo, muitas e tantas vezes suportando a incompreensão ( para não dizer coisa mais dura ) das vozes que se arvoram como sendo a voz do povo, que tantas e muitas vezes não o são.

Eu não acredito numa Justiça que não seja feita “olhos nos olhos” e por isso anseio porque o drama que os Juízes hoje estão vivendo os não empurre ou os não leve a aceitar caminhos que os afastem das pessoas a quem devem Justiça e desejo que, ao contrário, esse drama os faça acentuar o princípio de independência de que são titulares e do qual, em momento algum, não podem abdicar, sob pena de renegarem a grandeza da sua função.

A luta, a nossa luta, tem que ser não pela criação de mecanismos novos que permitam ir resolvendo processos e mais processos à distância de um clik ( ou mesmo sem a humana necessidade de um homem incumbido da nobre e difícil missão de julgar outros homens! ), mas antes pela criação de condições que permitam ouvir e ouvir e ouvir, e ver e observar, e reflectir, e pensar e repensar, frente a frente com quem enfrenta o poder judicial, e frente a frente connosco próprios, uns com os outros e cada um consigo mesmo, de modo a poder humanamente descobrir os caminhos da vida justa e solidária, que como sociedade queremos ser, no conjunto de valores que, condensados no universo legislativo que temos ao dispor, nos querem garantir e nos apontam esse mesmo caminho.

E parece tão óbvio seguir por aí.

Se, por exemplo, hoje em dia, em plena pandemia, não podemos garantir aos cidadãos sem os quais não podemos construir a decisão judicial a necessária segurança sanitária, diremos isso mesmo e, esgrimindo a nossa independência, diremos que é melhor esperar um pouco mais até que essa segurança possa ser oferecida. E não abdiquemos nunca de assumirmos por nós próprios, sem o recurso a quem quer que seja, esse juízo.

Se somos – e devemos ser – exigentes com a nossa própria segurança, avaliemos pela

mesma medida a segurança daqueles que convocamos para a produção da Justiça e dos que connosco colaboram nessa própria produção.

Se convocamos alguém, asseguremos que damos a esse alguém as condições de tempo e espaço que o não obriguem a suportar uma “coabitação” excessiva ou perniciosa com outros convocados, muito menos por tempo demasiado, quando um pouco mais de atenção permitiria a convocação por horas diversificadas.

Isto, que se pensa para agora, em tempos de pandemia, é o que deve pensar-se para o futuro. Só assim a crise pandémica terá – deve mesmo ter – um efeito criativo, deverá ajudar a criar uma nova abertura de espírito que nos permita criar uma sociedade melhor.

Posso dizer aqui para o sentido de Justiça que guiou toda a minha vida profissional, que guia a vida de todos nós, Juízes, o que eu mesmo “disse” ao poeta Eugénio de Andrade ( a quem perguntei se, em tempo de pandemia, morreu o “sorriso” ):

a resposta é não. Esse sentido de Justiça não morreu

Está mais vivo e forte do que sempre foi

Guardado secretamente na alma e nos sentidos…

E agora, Eugénio?

E agora, Eugénio, Agora, em tempo de pandemia, Com o sorriso escondido nesta máscara estranha ( comunitária ou cirúrgica, quem diria!) A quem abro a porta, Quem me abre a porta? Talvez os olhos. Mas sem a luz de um sorriso Os olhos são apenas uns olhos E o que eu procuro é o olhar Uns olhos sem luz eu não sei ler. Talvez a voz. Mas sem o recorte e o desenho dos lábios Sem a sua emoção, o seu tremer, Que pode a voz dizer?! Quem sabe, as mãos. Mas ficam tão distantes hoje as tuas mãos Que os teus dedos emudecem E não deixam vir à flor da pele os teus segredos. Morreu o poema, Eugénio? Não, não morreu. Está mais vivo e forte do que sempre foi Guardado secretamente na alma e nos sentidos À espera Confiadamente à espera Do mágico momento Em que possa voltar o tempo De correr E, nu, dentro daquele sorriso, Navegar.

This article is from: