8 minute read

Flores na Abissínia

GELADO

FLORES NA ABISSÍNIA

Carla Coelho

FRITO

Diz Borges nas suas Outras Inquirições que quem ordenou a construção da muralha da China foi o mesmo imperador que determinou que todos os livros anteriores a ele fossem queimados. Borges identifica-o, mas eu acho que quem quis condenar tudo o que o antecedeu ao esquecimento não merece que se lhe escreva o nome.

Aos onze anos não sabia quem era Borges, nem quem tinha sido aquele imperador chinês, mas já sentia o fascínio pelas viagens e pelas civilizações longínquas. O meu presente de sonho era uma máquina do tempo que pedi uma e outra vez ao Menino Jesus. Ainda hoje lha peço e reforço com pedido análogo ao Pai Natal. Mantenho a esperança. Quero ir e vir, para cá e para lá, sair de manhã para a Idade das Cavernas, passar no Ágora ateniense para almoçar e ouvir Sócrates e regressar a casa a tempo do jantar e de mais um episódio de A Guerra dos Tronos. *

A humidade e o calor conjugados tornam a presença na Praça Celestial insuportável. Penso de mim para mim que a próxima viagem será para a República Dominicana. Ficarei quinze dias à beira da piscina, a beber margaritas e a pensar nas maravilhas do all included. Sei que não será assim. Morro de tédio se estiver dois dias num resort. Contrario-me. Se escolher bons livros vou conseguir. E poupome a estes momentos penosos em que atravesso a praça sem ver uma nesga de sombra.

Mas agora estou em Pequim. Acordei de madrugada (outra contrariedade) para enfrentar o trânsito da capital chinesa e ir ver a Cidade Proibida. Declino a possibilidade de engrossar a fila dos que vão cumprimentar Mao embalsamado. Dirijo-me, com a leveza possível e sem qualquer frescura, para a porta principal da residência imperial. Agarro a minha garrafa de água morna como se fosse o meu mais precioso bem. E procuro atravessar uma fila de chineses. Consigo-o, porque muitos deles pararam para me fotografar. Sou um demónio branco, afinal. E quando voltarem para a sua aldeia, a minha fotografia, vestida em tons alabrantinos, com os olhos escondidos por uns monumentais óculos de sol e os cabelos soltos à espera de uma clemente brisa que não vem, vai causar sensação.

Passeio pelos jardins e chego aos aposentos do Imperador. São bastante pequenos e, facto curioso, o seu quarto fica paredes meias com o da mãe. Ao meu lado, dois rapazes ingleses olhamse embaraçados com esta peculiar disposição do espaço. Para passar para o quarto do imperador a concubina da noite tem de passar pelos aposentos

da imperatriz-mãe. Os dois rapazes ingleses não parecem entusiasmados com a ideia e duvido que o imperador a acolhesse com maior júbilo. Mas regras são regras, pelo menos na Cidade Proibida. *

Tenho onze anos e vim almoçar com a minha mãe ao restaurante chinês do bairro onde ela trabalha. Há um outro, mas só fomos lá uma vez e os pratos não nos agradaram. Aqui, a estória é diferente. A sala é grande, decorada em tons de castanho escuro e vermelho sangue. Sonho em ter uma sala assim em casa quando for grande. Digo isso à mãe, que se ri e não me contraria. Eu já me vejo grande, com uma árvore plantada no meio da sala e um pequeno lago onde os peixes nadam, alheios à atenção que provocam nas crianças, distraindo-as das refeições e obrigando os pais a chamá-las uma e outra vez para a mesa. A mim, os peixes não me entusiasmavam particularmente. O meu grande fascínio em pequena era observar os carreiros de formigas nas árvores ou no chão da mata de São João da Caparica. Ficava ali imersa a imaginar os mais apaixonados e intrincados enredos, recortados do Dallas e das fotonovelas que via quando ia coma mãe ao cabeleireiro. Mas isso é outra história. Agora, volto ao restaurante chinês, com a sua bonita imagem da Grande Muralha da China cravada na parede. Ainda não o sei, mas um dos mais penosos e gloriosos passeios da minha vida será caminhar por ela, entre octogenários chineses claramente em melhor forma do que eu. Até lá, e nos dias de infância, as minhas incursões em território chinês fazem-se pela mão dos mandarins saídos da imaginação de Júlio Verne Eça de Queirós, a jogar mikado com o primo Nuno e nos dias em que venho aqui almoçar. Conheço a ementa quase de cor e sei como terminar de forma perfeita o almocinho: gelado frito. *

Se o mundo fosse justo, já o sabemos, o chocolate emagrecia e os brócolos causavam cárie. Não é assim. E por isso não deve surpreender que tantos grandes da Humanidade tenham passado esquecidos, sem uma estátua, uma rua, uma avenida, vá!, um

Flores na Abissínia

Gelado Frito

lance de escadas numa qualquer viela para os recordar.

Entre esses heróis e heroínas esquecidos está quem inventou o gelado. Leio que foi algures na Pérsia há mais de dois mil e quinhentos anos. Era então uma água açucarada tornada uma espécie de granizado que depois era completada com frutas. Também há quem diga que foram os chineses quem realmente inventou o gelado que veio depois para a península itálica, então centro do comércio com as terras asiáticas e do Médio Oriente. Dali os gelados seguiram com Catarina de Médici para a corte francesa, na mesma mala onde ela levava utensílios de cozinha e sapatos de salto alto, maravilhas que deu a conhecer ao marido e nobres que o circundavam. Nada que nos deva impressionar demasiado. Afinal, fomos nós, também pela mão de uma Catarina, que demos a conhecer aos ingleses o chá e abrimos a porta a esse grande acontecimento da vida dos súbditos de Sua Majestade que é o five o’clock tea.

Por tudo isto, acho que foi um qualquer do povo quem inventou o gelado. Se fosse um nobre, o seu nome não teria ficado esquecido. Um qualquer cronista haveria de o deixar escrito. Ou então chegar-nos-ia em forma de anedota. Como Lord Sandwich, nobre inglês que para não ter de se afastar da mesa de jogo para se alimentar deu instruções para lhe levarem uma fatia de carne entre duas de pão e assim passou à História como o inventor da sanduíche.

Mas o nome do espírito genial que primeiro pensou na ideia ficou esquecido, não por falta de brilhantismo, mas por ausência de pedrigree ou de quem lhe registasse os factos. Não faz mal, estou eu aqui agora. Imagino-o a chegar a casa, a suar em bica e a pensar “eu agora podia fazer uma beber uma água com saborzinho doce.” A ir ao cântaro colocado na esquina da sala, tirar uma tigela ou uma caneca de água e pôr-lhe um bocadinho de anis, canela, talvez raspas de limão ou um pouco de sumo de laranja … enfim, o que tivesse à mão. E decidir pô-la no frio um bocado. Como ou onde, não me perguntem. Ainda não consegui a tal máquina do tempo para ir testemunhar in loco estes momentos cruciais da história da Humanidade. Regressado um pouco mais tarde, o inventor (oi inventora) para sempre anónimo apercebe-se que a sua bebida solidificou. Parte-a em bocadinhos e começa a sugar os seus pedaços. Sim, é bom, muito bom mesmo, como vai assegurar a vizinhos e familiares que, passados os primeiros momentos de dúvida, vão seguir a ideia e criar as suas próprias versões do gelado. Um deles, num dia de calor e adversidade, pensará que pode ganhar uns cobres vendendo a iguaria nas ruas. E o resto é História … *

Tenho onze anos e estou a terminar o almoço. Já comi o crepe com legumes dividido ao meio e ensopado em soja, a massa de arroz e tenho seguramente barriga para o gelado. Com aquela idade temos apetite para tudo e não há preocupações com calorias, triglicéridos ou colesterol. A empregada do restaurante aproxima-se da nossa mesa. Traz o café da mãe e o meu gelado frito. Sinto uma pontinha de emoção, pois hoje vou experimentar a versão flambée. A empregada coloca o prato com o gelado na mesa e despeja-lhe um pouco de rum. Lança-lhe fogo e como uma malabarista perfeita dá-lhe duas ou três voltas entre os talheres. Com o fogo apagado, deixa-o à minha frente, com um sorriso enigmático. Observo o gelado desconfiada, receosa de que recomece a arder e se autodestrua em cinco segundos, como acontece na Missão Impossível que passa aos sábados à noite. Nada disso acontece. Abro a massa, encontro o gelado e levo-o à boca de olhos fechados. Faço uma pequena oração pelo espírito genial que inventou esta maravilha.

Onde quer que estejas, inventor de gelado obrigada! Do fundinho do meu coração.

Coisas para fazer no confinamento:

1.

Gelado frito - Vegan

1 Caneca de Gelado de Baunilha 1 Caneca de Gelado de Chocolate 1 Pacote de Biscoitos de Baunilha Crocante 1 Pacote de Biscoitos de Chocolate Crocante Duplo Chantilly de Arroz (opcional) Xarope de Chocolate Stevia (opcional)

Instruções Esmagar os biscoitos em sacos de plástico separados. Use um rolo de papel ou o seu punho! Tire cerca de 2 colheres de sopa de gelado de baunilha e enrole nas migalhas de biscoito para revestir. Repita até ter usado todo o gelado. Retire cerca de 2 colheres de sopa de gelado de chocolate e enrole nas migalhas de bolacha de chocolate para revestir. Repita até ter utilizado todo o gelado.

Coloque as bombas de gelado revestidas de bolachas num prato e volte a congelá-las no congelador para (dependendo do tempo que estiveram fora) antes de as saborear!

Cubra com chantilly de arroz e xarope de stevia de chocolate se desejar!

https://strengthandsunshine.com/ vegan-fried-ice-cream-bombsgluten-free/ 2.

Jogar Mikado Ler:

Atribulações de um chines na China, de Júlio Verne

O Mandarim, de Eça de Queirós.

3.

This article is from: