GELADO
FRITO FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
Diz Borges nas suas Outras Inquirições que quem ordenou a construção da muralha da China foi o mesmo imperador que determinou que todos os livros anteriores a ele fossem queimados. Borges identifica-o, mas eu acho que quem quis condenar tudo o que o antecedeu ao esquecimento não merece que se lhe escreva o nome. Aos onze anos não sabia quem era Borges, nem quem tinha sido aquele imperador chinês, mas já sentia o fascínio pelas viagens e pelas civilizações longínquas. O meu presente de sonho era uma máquina do tempo que pedi uma e outra vez ao Menino Jesus. Ainda hoje lha peço e reforço com pedido análogo ao Pai Natal. Mantenho a esperança. Quero ir e vir, para cá e para lá, sair de manhã para a Idade das Cavernas, passar no Ágora ateniense para almoçar e ouvir Sócrates e regressar a casa a tempo do jantar e de mais um episódio de A Guerra dos Tronos. * A humidade e o calor conjugados tornam a presença na Praça Celestial insuportável. Penso de mim para mim que a próxima viagem será para a República Dominicana. Ficarei quinze dias à beira da piscina, a beber margaritas e a pensar nas maravilhas do all included. Sei que não será assim. Morro de tédio se estiver dois dias num resort. Contrario-me. Se escolher
bons livros vou conseguir. E poupome a estes momentos penosos em que atravesso a praça sem ver uma nesga de sombra. Mas agora estou em Pequim. Acordei de madrugada (outra contrariedade) para enfrentar o trânsito da capital chinesa e ir ver a Cidade Proibida. Declino a possibilidade de engrossar a fila dos que vão cumprimentar Mao embalsamado. Dirijo-me, com a leveza possível e sem qualquer frescura, para a porta principal da residência imperial. Agarro a minha garrafa de água morna como se fosse o meu mais precioso bem. E procuro atravessar uma fila de chineses. Consigo-o, porque muitos deles pararam para me fotografar. Sou um demónio branco, afinal. E quando voltarem para a sua aldeia, a minha fotografia, vestida em tons alabrantinos, com os olhos escondidos por uns monumentais óculos de sol e os cabelos soltos à espera de uma clemente brisa que não vem, vai causar sensação. Passeio pelos jardins e chego aos aposentos do Imperador. São bastante pequenos e, facto curioso, o seu quarto fica paredes meias com o da mãe. Ao meu lado, dois rapazes ingleses olhamse embaraçados com esta peculiar disposição do espaço. Para passar para o quarto do imperador a concubina da noite tem de passar pelos aposentos
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