42 Edição

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FEVEREIRO 2021

42º Edição

CARNAVAL EM TORRES VEDRAS Fotografia de Fernando Correa

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Indíce FEVEREIRO 2021

04 ....... Alcatifa Nipónica | Nelson Escório

06 ....... Cartas de Amor | Elisabete Ferreira

08 ....... Flores na Abissínia | Carla Coelho

12 ....... Génesis e outros dias | Rui Pinto Gonçalves

14 ....... Boca de Cena !

Maria Antónia Frasquilho

20 ....... Crítica Literária | António Ganhão

22 ....... Cantinho do João ! João Correia

24 ....... Ré em causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

28 ....... E o mar logo ali | Ana Gomes

30 ....... A máscara e a justiça | João Pires da Rosa

34 ....... Pano para mangas | Margarida Vargues

36 ....... Pausa para Café |

Quando as crianças são obrigadas a crescer

38 ....... Você corta a Etiqueta? | Margarida de Mello Moser

40 ....... Um ano de pandemia | António Lopes

44 ....... Da Gratidão da Vida | Poeta dos pés descalços

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

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Editorial

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

O que vos trazemos na primeira Edição de 2021 é algo de novo porque os olhos também comem e, o que vão saborear em texto, merece uma apresentação nova.

ou futuro ou sequer uma hipótese.

É design, é arte, é gosto, é gostar de vocês, chamem-lhe o que quiserem.

JustiçA com A este mês tem sensações muitas, o Toque, o Paladar,... as Cores. Ser livre. O texto do João Impele-nos a ser livre. Leia.

Disseram-me há dias que os muito jovens não nos lêem, .... mas não faz mal... porque há jovens que escrevem connosco para os mais jovens e para os menos jovens e para os sempre jovens.

Num texto mais amargo numa divagação depois de uma leitura de Lobo Antunes, esse homem que já devia ser prémio Nobel,... escrevem-se coisas. Concorda que a sociedade precisa de medíocres?

Comecem pela capa – é um documento histórico do nosso querido colaborador repórter fotográfico mais conhecido de Lisboa O Fernando Correa que tem tido a generosidade de partilhar connosco o seu trabalho. A Capa é o Nosso Carnaval

A Norma..... Lei ou Desafio? Restrição ou Liberdade? Quem é a Norma?

E o índice, já viram como se esquivou à forma do costume? Se a JustiçA com A não fosse por si só apelativa como toda a JustiçA é, só o primeiro texto é uma tentação em Azul e em Tóquio. Viaje. É o nosso desejo E porque Fevereiro também é o mês do dia dos namorados temos cartas de Amor. Escreva ou já o faz e não dá por isso? Gelado frito, já provou? Olhe que tem receita, e tem Pequim e tem literatura e tem recordações. Saboreie. Se o Mundo fosse Justo....... E do Livro do Génesis que é que já ouviu dizer? O que está aqui escrito nunca , por certo. Mas leia, e reveja a Bíblia,... Os juízes e os criados por Deus. Aqueles não tiveram a sorte. Ou será... que foram expulsos do reino dos céus? Temos uma entrevista fantástica com uma Psiquiatra que já escreveu connosco. Perguntas provocadoras. Escolha o seu canto preferido na sala para a ler. Descalce-se e leia. Parta para dentro de si ou para as suas incógnitas. Roube tempo ao tempo,... é estado de necessidade desculpante. Pide. Quem já ouviu falar? E quem sabe o que é? Tantos livros sobre um passado que não queremos seja presente

O rosto da Justiça... Não lhe basta a venda para ser justa? Como sê-lo de máscara? O que se transmite num julgamento? Num frente a frente com o Outro? Eu tiro a máscara. Confesso. À Voz e ao Olhar Há um herói de capa e espada dentro de cada um de nós... se a Marvel sabe!.... Seja Positivo! Não... não seja, não pode... Pode mas não é isso... leia: Seja Resiliente. Experimente (nem que seja escrever sem uma vogal) Pause e beba um café. Pode ser na esplanada. A nossa personagem mistério conta-nos da Vida das crianças que o não foram, num tempo de guerra parecido com o nosso de hoje, que só não tem bombas nem sirenes... mas tem faltas. Voltar ao passado para enfrentar o Presente. A nossa coluna de etiqueta pergunta-nos se sabemos estar presentes numa reunião on line. Sabemos?! Faça o Quizz. E por fim acabamos com dois textos de arte. A Arte do Confinamento e os gráficos do Covid. Parece que estamos a conseguir. Seja resiliente, sonhe viajar, coma gelado,... esteja atento... E a Arte de Agradecer À Vida A Arte de respeitar a Vida Tudo escrito por um jovem Professor. Bem hajam Leiam, escrevam e fiquem connosco. Até Abril

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Nelson Escórcio Juiz de instrução criminal desde 2014; de direito desde 2001. Investiga a interação da Justiça com as mais recentes tecnologias de comunicação, de que resultam cruciais a prova digital, encriptação, privacidade, cibercrime e segurança; e elemento agregador a cooperação internacional. No tempo que consegue furtar a tudo o mais, “Leitura e Escrita. Vinho e Café. Amigos e Família

Alcatifa Nipónica

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Alcatifa azul, tão usada quanto imaculadamente limpa. Sete verões decorridos, mantém-se essa a minha primeira imagem do Japão: um terminal moderadamente pequeno, alcatifado, com singelas brancas paredes e um baixo teto, falso, tão vetusto quanto o piso. A perceção do presente é — em medidas variáveis — um subproduto do passado, uma comparação seletiva, equívoca e destorcida da e pela memória humana. Horas antes, quase um inteiro dia fora consumido num desmedido centro comercial de aço, vidro, colunas douradas e pessoas cinzentas, comummente conhecido por um acrónimo que se pretende associar a uma progressiva incontornabilidade em viagens intercontinentais para os lados do sol nascente: DXB, ou Dubai International. (Adequada a omissão da referência a um aeroporto). É deveras difícil conceber, mesmo com moderada imaginação, uma construção humana em que o arquiteto se encontre mais ausente: não lhe foi apenas retirada a alta temperatura do deserto — extraiu-se-lhe, entre lojas, vãos, escadas e opulência, qualquer calor. Humanidade.

feminino só interage com o outro depois do sol posto — perguntou-me se precisava de ajuda. Não percebi as palavras, mas a pergunta, por detrás de um rosto preocupado, era explícita. Respondi-lhe de igual forma. E aquela alma solidária, munida da folha de check-in com o nome do hotel, encaminhou-me, por entre passadeiras e elevadores, a um comboio — igual, àquela mesma hora, a 16 outros. Despedimo-nos, de modo rápido, sem uma palavra. Quando as portas nos separaram, desatou a correr. Atrasara-se. Mais tarde, na cidade, perdi-me tão competentemente quanto antes; e da mesma forma socorrido. Distintos rostos, semelhante preocupação. No Japão não é possível um olhar prolongado, interrogante, público, a um mapa. Podemos perdermo-nos. Estarmos sozinhos. Mas, na multidão, nunca estamos sós. Na semana que se estendia, incógnita e indolente, programara — sem detalhe ou preocupação — percorrer o país de comboio. Nunca saí de Tóquio.

Em Tóquio, quando se abandona o terminal internacional, entra-se diretamente no Japão, com sinaléticas ilegíveis para um ocidental desprevenido, multidão de gentes paradas, a correr, separadas, juntas. Perdido, com um smartphone sem dados, reduzido à sua condição de telefone, olhei desconcertado para uma, outra — todas — as placas, de onde resultava apenas a absoluta ausência do mais recôndito caracter reconhecível por este ocidental. Alguém — do género masculino, porque o

Recordo-me da rigorosa ausência de buzinas no trânsito intenso, encontrões na multidão ou medo na noite. E um excêntrico sentimento de acolhimento apesar de casa longínqua; no anonimato de uma metrópole, conforto de uma aldeia. Vislumbrei, julgo, a alma de um povo que, entre luzes e edifícios, modernidade e tradição, passado e futuro, se não perdeu. Nem deixa perder. Tenho saudades de Tóquio — como do dia de Natal numa fria, escura, manhã de janeiro.

Um par de chinelos no fim de um dia. O crepitar de uma lareira. Uma alcatifa azul.

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Elisabete Ferreira

Cartas de amo

“Chegam num poema, numa música, ou só em três linhas. Vão num bom dia ou no desejo de uma noite descansada.”

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or São “rídiculas”, sim. Nunca deixarão de ser.

São as mesmas cartas de amor. Sabe quem as lê que são para si, enviadas por desejo, estima, de quem as escreve. Não são mensais ou semanais e não têm selo. Que bom. São diárias. E trazem a certeza de que aqueles seres se pensam, se desejam, se acarinham, mesmo longe.

Numa escrita sofrida pelo desânimo da distância, censura, proibição ou inviabilidade, todas as cartas de amor enviam traços de ternura, desejo e afeição a quem são dirigidas. São cartas repletas também de frases menos ou mais atrevidas, “que merecem uma resposta mais em actos do que em palavras” como sentiu Lorde Byron.

É isso. Lembram-se um do outro. E depois lembram-se outras e outros. E escrevem cartas de amor à desgarrada como no fado, que vão distribuindo, esperando que a ternura e o desejo não sejam levados tão a sério. Talvez só o desejo.

Onde estão as cartas de amor? Estão aqui, por trás destas letras, no espaço que ocupa a rede. E são igualmente lindas, sofridas e ternurentas.

Cartas de amor modernas.

Chegam num poema, numa música, ou só em três linhas. Vão num bom dia ou no desejo de uma noite descansada.

Curtas. Imediatas.

Não diferem das palavras de Vítor Hugo “E tu, como te sentes esta manhã, minha alegria? Passaste bem a noite, ao menos?”

Loucas. Para todas e todos.

Nada.

Não vão ser atadas e guardadas porque estas cartas de amor “ridículas” têm prazo.

E levam os atrevimentos próprios de quem se quer. Obrigam a suspiros inebriantes.

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GELADO

FRITO FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho

Diz Borges nas suas Outras Inquirições que quem ordenou a construção da muralha da China foi o mesmo imperador que determinou que todos os livros anteriores a ele fossem queimados. Borges identifica-o, mas eu acho que quem quis condenar tudo o que o antecedeu ao esquecimento não merece que se lhe escreva o nome. Aos onze anos não sabia quem era Borges, nem quem tinha sido aquele imperador chinês, mas já sentia o fascínio pelas viagens e pelas civilizações longínquas. O meu presente de sonho era uma máquina do tempo que pedi uma e outra vez ao Menino Jesus. Ainda hoje lha peço e reforço com pedido análogo ao Pai Natal. Mantenho a esperança. Quero ir e vir, para cá e para lá, sair de manhã para a Idade das Cavernas, passar no Ágora ateniense para almoçar e ouvir Sócrates e regressar a casa a tempo do jantar e de mais um episódio de A Guerra dos Tronos. * A humidade e o calor conjugados tornam a presença na Praça Celestial insuportável. Penso de mim para mim que a próxima viagem será para a República Dominicana. Ficarei quinze dias à beira da piscina, a beber margaritas e a pensar nas maravilhas do all included. Sei que não será assim. Morro de tédio se estiver dois dias num resort. Contrario-me. Se escolher

bons livros vou conseguir. E poupome a estes momentos penosos em que atravesso a praça sem ver uma nesga de sombra. Mas agora estou em Pequim. Acordei de madrugada (outra contrariedade) para enfrentar o trânsito da capital chinesa e ir ver a Cidade Proibida. Declino a possibilidade de engrossar a fila dos que vão cumprimentar Mao embalsamado. Dirijo-me, com a leveza possível e sem qualquer frescura, para a porta principal da residência imperial. Agarro a minha garrafa de água morna como se fosse o meu mais precioso bem. E procuro atravessar uma fila de chineses. Consigo-o, porque muitos deles pararam para me fotografar. Sou um demónio branco, afinal. E quando voltarem para a sua aldeia, a minha fotografia, vestida em tons alabrantinos, com os olhos escondidos por uns monumentais óculos de sol e os cabelos soltos à espera de uma clemente brisa que não vem, vai causar sensação. Passeio pelos jardins e chego aos aposentos do Imperador. São bastante pequenos e, facto curioso, o seu quarto fica paredes meias com o da mãe. Ao meu lado, dois rapazes ingleses olhamse embaraçados com esta peculiar disposição do espaço. Para passar para o quarto do imperador a concubina da noite tem de passar pelos aposentos

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da imperatriz-mãe. Os dois rapazes ingleses não parecem entusiasmados com a ideia e duvido que o imperador a acolhesse com maior júbilo. Mas regras são regras, pelo menos na Cidade Proibida. * Tenho onze anos e vim almoçar com a minha mãe ao restaurante chinês do bairro onde ela trabalha. Há um outro, mas só fomos lá uma vez e os pratos não nos agradaram. Aqui, a estória é diferente. A sala é grande, decorada em tons de castanho escuro e vermelho sangue. Sonho em ter uma sala assim em casa quando for grande. Digo isso à mãe, que se ri e não me contraria. Eu já me vejo grande, com uma árvore plantada no meio da sala e um pequeno lago onde os peixes nadam, alheios à atenção que provocam nas crianças, distraindo-as das refeições e obrigando os pais a chamá-las uma e outra vez para a mesa. A mim, os peixes não me entusiasmavam particularmente. O meu grande fascínio em pequena era observar os carreiros de formigas nas árvores ou no chão da mata de São João da Caparica. Ficava

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ali imersa a imaginar os mais apaixonados e intrincados enredos, recortados do Dallas e das fotonovelas que via quando ia coma mãe ao cabeleireiro. Mas isso é outra história. Agora, volto ao restaurante chinês, com a sua bonita imagem da Grande Muralha da China cravada na parede. Ainda não o sei, mas um dos mais penosos e gloriosos passeios da minha vida será caminhar por ela, entre octogenários chineses claramente em melhor forma do que eu. Até lá, e nos dias de infância, as minhas incursões em território chinês fazem-se pela mão dos mandarins saídos da imaginação de Júlio Verne Eça de Queirós, a jogar mikado com o primo Nuno e nos dias em que venho aqui almoçar. Conheço a ementa quase de cor e sei como terminar de forma perfeita o almocinho: gelado frito. * Se o mundo fosse justo, já o sabemos, o chocolate emagrecia e os brócolos causavam cárie. Não é assim. E por isso não deve surpreender que tantos grandes da Humanidade tenham passado esquecidos, sem uma estátua, uma rua, uma avenida, vá!, um


Flores na Abissínia

Gelado Frito

lance de escadas numa qualquer viela para os recordar. Entre esses heróis e heroínas esquecidos está quem inventou o gelado. Leio que foi algures na Pérsia há mais de dois mil e quinhentos anos. Era então uma água açucarada tornada uma espécie de granizado que depois era completada com frutas. Também há quem diga que foram os chineses quem realmente inventou o gelado que veio depois para a península itálica, então centro do comércio com as terras asiáticas e do Médio Oriente. Dali os gelados seguiram com Catarina de Médici para a corte francesa, na mesma mala onde ela levava utensílios de cozinha e sapatos de salto alto, maravilhas que deu a conhecer ao marido e nobres que o circundavam. Nada que nos deva impressionar demasiado. Afinal, fomos nós, também pela mão de uma Catarina, que demos a conhecer aos ingleses o chá e abrimos a porta a esse grande acontecimento da vida dos súbditos de Sua Majestade que é o five o’clock tea. Por tudo isto, acho que foi um qualquer do povo quem inventou o gelado. Se fosse um nobre, o seu nome não teria ficado esquecido. Um qualquer cronista haveria de o deixar escrito. Ou então chegar-nos-ia em forma de anedota. Como Lord Sandwich, nobre inglês que para não ter de se afastar da mesa de jogo para se alimentar deu instruções para lhe levarem uma fatia de carne entre duas de pão e assim passou à História como o inventor da sanduíche. Mas o nome do espírito genial que primeiro pensou na ideia ficou esquecido, não por falta de brilhantismo, mas por ausência de pedrigree ou de quem lhe registasse os factos. Não faz mal, estou eu aqui agora. Imagino-o a chegar a casa, a suar em bica e a pensar “eu agora podia fazer uma beber uma água com saborzinho doce.” A ir ao cântaro colocado na esquina da sala, tirar uma tigela ou uma caneca de água e pôr-lhe um bocadinho de anis, canela, talvez raspas de limão ou um pouco de sumo de laranja … enfim,

o que tivesse à mão. E decidir pô-la no frio um bocado. Como ou onde, não me perguntem. Ainda não consegui a tal máquina do tempo para ir testemunhar in loco estes momentos cruciais da história da Humanidade. Regressado um pouco mais tarde, o inventor (oi inventora) para sempre anónimo apercebe-se que a sua bebida solidificou. Parte-a em bocadinhos e começa a sugar os seus pedaços. Sim, é bom, muito bom mesmo, como vai assegurar a vizinhos e familiares que, passados os primeiros momentos de dúvida, vão seguir a ideia e criar as suas próprias versões do gelado. Um deles, num dia de calor e adversidade, pensará que pode ganhar uns cobres vendendo a iguaria nas ruas. E o resto é História … * Tenho onze anos e estou a terminar o almoço. Já comi o crepe com legumes dividido ao meio e ensopado em soja, a massa de arroz e tenho seguramente barriga para o gelado. Com aquela idade temos apetite para tudo e não há preocupações com calorias, triglicéridos ou colesterol. A empregada do restaurante aproxima-se da nossa mesa. Traz o café da mãe e o meu gelado frito. Sinto uma pontinha de emoção, pois hoje vou experimentar a versão flambée. A empregada coloca o prato com o gelado na mesa e despeja-lhe um pouco de rum. Lança-lhe fogo e como uma malabarista perfeita dá-lhe duas ou três voltas entre os talheres. Com o fogo apagado, deixa-o à minha frente, com um sorriso enigmático. Observo o gelado desconfiada, receosa de que recomece a arder e se autodestrua em cinco segundos, como acontece na Missão Impossível que passa aos sábados à noite. Nada disso acontece. Abro a massa, encontro o gelado e levo-o à boca de olhos fechados. Faço uma pequena oração pelo espírito genial que inventou esta maravilha.

Onde quer que estejas, inventor de gelado obrigada! Do fundinho do meu coração.

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Coisas para fazer no confinamento: 1.

Gelado frito - Vegan

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Jogar Mikado

Ler: Atribulações de um chines na China, de Júlio Verne

1 Caneca de Gelado de Baunilha 1 Caneca de Gelado de Chocolate 1 Pacote de Biscoitos de Baunilha Crocante 1 Pacote de Biscoitos de Chocolate Crocante Duplo Chantilly de Arroz (opcional) Xarope de Chocolate Stevia (opcional)

O Mandarim, de Eça de Queirós.

Instruções Esmagar os biscoitos em sacos de plástico separados. Use um rolo de papel ou o seu punho! Tire cerca de 2 colheres de sopa de gelado de baunilha e enrole nas migalhas de biscoito para revestir. Repita até ter usado todo o gelado. Retire cerca de 2 colheres de sopa de gelado de chocolate e enrole nas migalhas de bolacha de chocolate para revestir. Repita até ter utilizado todo o gelado.

Coloque as bombas de gelado revestidas de bolachas num prato e volte a congelá-las no congelador para (dependendo do tempo que estiveram fora) antes de as saborear! Cubra com chantilly de arroz e xarope de stevia de chocolate se desejar! https://strengthandsunshine.com/ vegan-fried-ice-cream-bombsgluten-free/

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RUI PINTO GONÇALVES

Génesis e outros dias

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o livro do Génesis aprendi sobre a criação. Aprendi que Deus criou a luz, a terra, os mares e rios, os animais e os homens. Escrutinei com cuidado e não encontrei o momento em que criou o calceteiro, o carpinteiro, o advogado ou o juiz. Concluí então que, estes últimos, se não foi Deus quem os criou foi o próprio homem que os inventou. A regra é simples, tudo o que não foi criado por Deus, foi produto do homem. Na verdade, nem é preciso ser crente para acreditar que tudo o que não vem elencado no Livro Génesis foi criado pelo homem com recurso ao que o Criador lhe deu. Assim Deus não criou nem formou juízes, neste canteiro à beira mar plantado quem o tem feito tem sido o CEJ. Ora dito isto temos que, sendo os juízes uma criação do homem, são necessariamente imperfeitos e falíveis. Mas isto, que parecia ser uma verdade paliciana tornou-se recentemente uma descoberta ao nível da roda. E então sendo absolutamente certo que os juízes falham há que perceber o que pode ser feito.

Noutro prisma pode-se até dizer que os juízes são homens e mulheres e sendo os homens e as mulheres de criação divina – como me ensinaram – então deveriam ser perfeitos, ou seja, afinal, a culpa pode ser até do próprio Criador. Acontece que o Criador fez os homens e as mulheres de coração bom, mas parece que andou por lá uma serpente a desfazer a coisa e que por isso gerou maldade e discórdia, ou seja falibilidade o que origina só por si a necessidade de gerar a paz, paz essa que é necessariamente artificial já que é produzida pelos homens e daí a necessidade de encontrar mediadores e decisores, os tais juízes. Depois antes dos juízes vieram os fazedores de regras - hoje chamados de legisladores - e os juízes são compelidos a trabalhar com as regras que os outros fizeram (às vezes discordando delas), sob pena de, não o fazendo, violarem as próprias regras. É complicado, mas mesmo complicado. E depois a malta (ora chamada de sociedade civil, antes de povo) gosta de complicar, inventa Leis, mas também Decretos-Lei, Portarias que regulamentam os primeiros e os segundos, depois Regulamentos e depois há os costumes que era o que deveria primariamente

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“SE ELES DIZEM, NÃO VOS ILUDAIS, SE ELES DIZEM QUE É ASSIM É PORQUE É MESMO. SE ELES CONDENAM NÃO TÍNHEIS DÚVIDAS É PORQUE É CULPADO E SE ABSOLVEM É PORQUE É INOCENTE.”

haver e depois (ou antes?) os códigos... Discute-se se a ética pode caber no Código de Procedimento Administrativo (que eu já ouvi dizer que havia mas nunca li) numa lei, numa coisa diferente do coração e da cabeça de cada um. É complicado.... Quer-se no final que todos os juízes pensem da mesma maneira desde que seja à nossa, mesmo que hoje achemos que são em regra severos e amanhã que são afinal brandos, eles que se adaptem que eu cidadão não sou pago para me adaptar. Na prática todos queríamos que a Justiça se adequasse à nossa maneira de ver as coisas, uma Justiça à nossa medida e isso estava muito bem não fosse o facto da Justiça ter que ser pensada e aplicada a todos e todos são muitos, mesmo muitos. Queremos finalmente uma Justiça adaptada aos “tempos modernos”. E o que são os tempos modernos, o que é aquilo que deve ser justo nos tempos que correm? Para responder a essa pergunta entram os verdadeiros juízes, os que de facto fazem tudo: as verdadeiras leis,

decretos-lei, regulamentos, costumes... chamam-se jornalistas transvestidos de opinion makers. Se eles dizem, não vos iludais, se eles dizem que é assim é porque é mesmo. Se eles condenam não tínheis dúvidas é porque é culpado e se absolvem é porque é inocente. Percebe-se isso perfeitamente quando eles condenam (ou, raríssimas vezes, absolvem) um juiz, sendo que as condenações são em regra numa pena mais do que perpétua, eterna. Há uma particularidade que demonstra bem as força dos jornalistas: os mesmos não só condenam, como a decisão não admite recurso, gera a publicidade automática (que os Juízes só excecionalmente determinam, como no caso do artigo 189.º do CP) e são eles próprios os algozes. Estamos assim num Estado não de Direito mas de notícias. Não de juízes, mas de jornalistas. E estes definitivamente não foram criados por Deus, eles são Deus.

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MARIA ANTÓNIA FRASQUILHO Idade de aprendizagem, maior que a do nascimento, seguramente. Ninguém nasce uma folha em branco. O desenvolvimento intra-uterino é para os bebés um estágio, um tirocínio de aprendizagens. E se formos degrau a degrau mais profundamente carregamos, segundo Jung, o inconsciente colectivo, ou seja uma estrutura central que reporta aos arquétipos do aprendizado das gerações que nos antecederam.

profissão:

Vocação: Satisfação da sede de conhecer, compreender, ajudar a que outros apreendam e desenvolvam competências para bem viver. Participar na salvaguarda dos requisitos básicos para o melhor bem estar pessoal e colectivo. Das tantas vias possíveis escolhi a medicina, sempre com uma visão de saúde pública, holística, transracional, e cosmocêntrica. Mas revelo um segredo: hesitei em adolescente entre arqueologia e astronomia. Acredito que lhes dei significância ao fundi-las na dedicação à psiquiatria, saúde mental e medicina legal. E sempre com a disposição criativo/artística e de viajante incansável. Como profissional de saúde, Pandemia, Peste Negra ou Cólera? Porquê? Cólera e Peste Negra são pandemias, tal como a actual de SARS-Cov-2 que criou a doença COVID 19. São enfermidades que atingem a população como um todo, com gravidade a ponto de causar morte e disfuncionalidade importante. Quanto a preferir,

Psiquiatra

escolho não estar a lidar com nenhuma delas. Por curiosidade científica fico deslumbrada com a actual, como em tão pouco tempo tanto se avançou no seu combate. E por vislumbrar uma cooperação e solidariedade que julgávamos perdidas e que só por existirem viabilizaram o acelerar do conhecimento que permite actuar, então esta pandemia será a melhor, pois aí terá sido diferente de todas as outras. Que nos está a fazer este acontecimento que ficará para a História e surgiu em 2020, ou 2019, ... e ainda cá está em 2021? Este acontecimento é uma crise: uma crise pessoal, existencial, familiar, social, de saúde pública, de comunicação, de trabalho, cultural, económica, até ambiental. No âmago uma crise de políticas que veio destacar as lacunas pré existentes. Perante a calamidade não sofremos todos por igual. Caem primeiro e em maior número os mais frágeis, os menos

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E x per iências fa m il ia r es: Filha, mãe, avó, amiga, mulher e múltiplos papéis numa rede de relações interactivas ao longo do ciclo de vida

protegidos, os com menor capital para resistir ás adversidades. A saúde requer equidade, justiça social em todos os domínios que a determinam e quanto a isso temos uma história de cegueira. Esta pandemia também veio pôr à prova o que tínhamos por certo, questionar os estilos de vida até então triviais. E mais, interpelar sobre sinais, signos e significados. Ao pensamento colocou desafios. Porquê? Porquê agora? Porquê connosco? Desencobriu a velhice, a solidão, a dependência, a desumanização. Resgatou a morte para o quotidiano. Uma procura de sentido e valor para a vida. Na aflição da crise almeja-se a pacificação: a espiritualidade anima. Sendo a palavra crise polissémica esclareço que aqui a vejo como algo súbito, uma descontinuidade, uma perturbação dentro da “normalidade dos dias”. Decerto a crise tem carga negativa, qualquer turbulência ameaça, agride os equilíbrios instáveis, gera angustia e dor. Todavia nas rupturas abrem-se novas possibilidades de ser e fazer. Aliás, impõem-se decisões, novos ordenamentos. Daí que o essencial sobrevenha com clareza. É inegável a dimensão de oportunidade presente na crise. Saibamos encontrá-la e não nos falte discernimento, nem esperança, nem coragem para a superar nas suas múltiplas expressões. Este acontecimento, pois, é o complexo

desafio duma vida; um desafio nunca desejado, mas presente. Porque é que Confinar é tão doloroso para uns e aceite facilmente por outros? Depende de perfis, vivências, genética ou carácter? Depende de tudo isso, mas acima de tudo das condições concretas do confinamento. As chamadas desigualdade sociais são aqui uma bitola. Reduzir-se à sua ampla propriedade de vários hectares com todas as mordomias, com meios de comunicação global à disposição poderá ser desconfortável quanto à limitação de liberdade. Será porém incomparável ao peso dum confinamento num espaço exíguo para os ocupantes, sombreado, sem acesso ao que é vital para a segurança, em situação de desemprego ou sem

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possibilidade de auferir rendimentos. E ainda há todos que nem confinar podem, uns por que não têm sequer abrigo, outros por que não se podem abrigar, como os trabalhadores dos sectores essenciais. Quanto à genética poderá afirmar-se uma fraca fronteira, não é a nossa principal pré determinação. Mas sim, haverá pessoas com perfis mais introspectivos, introvertidos, agradados da monotonia, contemplativos a quem será mais fácil “a gaiola”. Há que lembrar que a reclusão adoça-se com a imaginação, ou com outra significância especial pós epifania como no caso dos retiros no deserto, ou na escolha da clausura. O que mais me toca é a dor do confinamento agravado, dos velhos nos lares, dos hospitalizados isolados


profissão:

Psiquiatra

MARIA ANTÓNIA FRASQUILHO numa cama, dos discriminados duplamente vítimas da pandemia e do estigma das representações sociais. Um Psiquiatra, ou uma Psiquiatra, são assim uma espécie de confessor ou uma espécie de mágico ou de cientista da alma? São uma caldeirada que pode ter esses temperos. Mas o tempero não é o conteúdo. A substância da psiquiatria é a medicina, numa rigorosa formação clínica geral, que permite fazer diagnóstico diferencial de tantas patologias que se confundem entre soma e psique, e sendo assim, implementar os planos de tratamento adequados. O psiquiatra tem uma adicional formação no domínio do funcionamento mental/psicológico, das especificidades individuais bem como daquilo que é comum ao ser humano ao logo das diferentes etapas do ciclo de vida. A área emocional, cognitiva e comportamental são as dimensões essenciais de trabalho. O saber distinguir entre o normal e o patológico é outra competência difícil. A ciência é a base do estudo e o método cientifico o esteiro da acção (daí o “cientista da mente”). As técnicas são ferramentas diversas, desde a farmacologia, à neuroquímica que permitem os tratamentos farmacológicos. Da anatomia à neurofisiologia que viabilizam os tratamentos psicofísicos. Da psicologia fundamental, ao diversos modelos que nos permitem

o tratamento por psicoterapia e ainda a promoção da saúde. Do estudo do planeamento, organização e avaliação de serviços que assistem a definição de políticas de saúde mental. Estas são aprendidas pelo desenvolvimento do saber-saber, do saber-fazer e do saber-sentir. E são espelhadas pela escuta competente , daí o atributo confessor mas sem que seja juiz ou sentenciador de pecados. Imbuídos de poder mágico todos podemos ser, e também todos conhecemos os efeitos placebo e as curas miraculosas. Mas algo que aprendemos cedo é o trabalhar da transferência, as projecções e a manter uma ética estrita de não tirar partido dessa crença mágica dos padecentes que há séculos alimenta tantos vigaristas. Contrariamente ao vulgo entendimento, o psiquiatra não é o especialista das doenças comportamentais graves. É o profissional do entendimento do ser humano na complexidade da sua existência tanto na doença como na saúde. E aquele especialista médico que domina a amplitude de tratamentos que são possíveis e são eficientes. Tudo com uma pitada de arte e uma enorme capacidade de empatia. Uns resistem mais que outros. É genética ou hormonas? A medicina não é uma ciência exacta, e nela nunca há uma única causa. Também não há posicionamento dualístico do tipo ou isto ou aquilo. A vulnerabilidade e a resistência são multifactoriais.

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O filósofo espanhol Ortega y Gasset tem uma frase famosa que aqui bem se aplica : “Eu sou eu e minha circunstância, e se a não salvo a ela, não me salvo a mim”. Dito de outra forma, o “eu” é distinto da realidade onde se insere, mas inseparável desta. Haverá um sujeito genético, um sujeito biofisiológico que abre as portas à psiquiatria de precisão que considera a especificidade genética, neuro-endócrina, imunológica, etc. E um “eu” de espécie, colectivo, unitivo, psicossocial, cultural, económico, ambiental, cosmológico, divulgado pela OMS enquanto conceito de “determinantes da saúde”. Já a segunda parte da frase de Ortega y Gasset , concebe que se a pessoa quiser salvar-se (tratar-se, progredir no sentido do bem estar e felicidade), deverá também salvar a sua própria circunstância, isso é, actuar sobre toda a realidade à sua volta. Esta é a visão de psiquiatria social, de saúde pública e que está na base da prevenção, da reabilitação e da promoção da saúde. A boa noticia é que a resistência, mesmo partindo de um fraco percentil tem sempre a possibilidade de ser fortalecida. A capacitação dos indivíduos das comunidades e das organizações é um referente fundamental para construir a resiliência. Os jovens são mais frágeis hoje. Comente esta afirmação. Não creio que os jovens tenham um capital de saúde mental menor do que as gerações anteriores.


Pelo contrário, foram sujeitos a mais estímulos e de tal amplitude, tiveram oportunidades que os mais velhos nem sonharam. Os seus horizontes, hoje em dia, são quase infinitos. O conceito de neuroplasticidade veio demonstrar que quanto mais usamos as nossas mentes mais elas se desenvolvem, sendo nós sujeitos actores do nossa própria “musculatura mental” . Também acredito que as novas gerações foram

A questão é que a velocidade de mudança no mundo é também ela nunca vista. E há uma educação dos jovens para um mundo que não existe, nem mais existirá. Esse confronto com a realidade à saída do ninho parental é que estará a deixar muitos jovens atordoados. Há uma espécie de desilusão, uma ansiedade dificilmente compreendida e como tal não auto-gerível, uma fragilidade no lidar com a frustração, um sentimento de vazio e medo revoltante. Uma responsabilidade pouco compreendida e mal exercida. O mundo não é a história que foi contada e o futuro não será o dos filmes ou dos jogos informáticos que tanto usaram. É outro! E exigente, porque desconhecido. E amanhã outro será. Em vez de sufocar os jovens com multitarefas numa ocupação superior a um CEO empresarial, que tal ajudá-los a pensar com densidade e flexibilidade? A reflexão é uma ferramenta indispensável. Há que sair das “máquinas de lavagem cerebral”. Têm de aprender a aprender. De saber obter a informação, quem a tiver no tempo certo, dominará. De decidir sob circunstâncias nebulosas, de lidar com o imprevisto. A criatividade é uma chave mestra. Há que compreender que o “aqui e agora” é simplesmente distinto do “ali e agora”. As dimensões de civilização e integração, de respeito mas também exigência de responsabilidade ao “outro–diferente” são entendimentos obrigatórios.

investidas (de cuidados, comodidades, brinquedos, liberdades, vias de aceso ao conhecimento e desfrute do mundo, quantidade de atenção especifica e afecto ) superior às anteriores. No geral tenho uma visão esperançosa, positiva.

Devem interiorizar o conceito de compromisso, social e universal, o de coesão e colaboração, deixando de lado a competição bruta que tanto fere. O bem comum continuará a ter de prevalecer. Não se sentirem paralisados com os dilemas globais. Participarem

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na “coisa pública” Discernirem novas noções de justiça neste mundo pósverdade. Ser tacticamente competentes a lidar com o tempo, saber que há espera, que há lentidão e que também há rapidez. Enquanto os algoritmos da inteligência artificial não decidirem por nós, para que se desenvolva resiliência, que é critica, nada como o saber observar-se e deter mestrias nas áreas acima mencionadas. Doenças mentais, tabu, realidade, urgente encarar com normalidade, ou tudo isso? A realidade, é que 1 em cada 4 pessoas terá uma doença mental durante a sua vida. Mais normal que isso não pode ser. Mais comum que epilepsia, mais comum que a diabetes, mais comum que a grande maioria das doenças com que as pessoas se preocupam, que procuram prevenir e tratar, e que não têm repulsa em revelar. Infelizmente, o estigma associado às doenças mentais é um resíduo de ancestrais tabus. Comportamentos inexplicáveis, fora do normal foram durante séculos associados a possessões malignas. Havia que ser duro com os endemoninhados para os purificar ou para os condenar publicamente por algo infame que tivessem praticado... . Hoje em dia, por causa da evolução da ciência e da humanização das dinâmicas sociais, humilhar, gozar, culpar, penalizar a vítima de doença mental é apenas compreensível à luz do desconhecimento fútil, da malfeitoria, ou dum mecanismo defensivo inconsciente de diabolizar “aquilo que eu próprio receio ou sinto que tenho”. Parabéns a todos os que colaboram na valorização da saúde mental, que passa por abater o estigma. Alguns notáveis partilham as suas experiências com esta ou aquela perturbação psiquiátrica, para fazer notar que qualquer pessoa, independentemente da sua idade, condição económico-social,


sucesso laboral, ou qualquer outro discriminador pode ter um episódio ou mesmo uma doença mental estabelecida. Porque temos tanto medo de ter uma doença do foro psiquiátrico e se fala tão pouco disso com normalidade? Além do já abordado, como há ainda resquícios de mitos sobre doença mental a pessoa que dela padece receia vir a ser prejudicada. No mundo do trabalho é bem comum ter a ideia que: os doentes mentais são incompetentes; não são inteligentes; são fonte de surpresas incómodas; não são confiáveis; faltam demais; conflituam, e por aí adiante. Na sociedade os mitos que prevalecem são: uma vez doente mental para sempre doente mental; são perigosos; são coitadinhos; são como crianças; gastam demais ao erário público. Tudo falso! Na família ainda é visto como uma vergonha que alguém sofra de doença psiquiátrica, como se alguém tivesse falhado em algo, seja na transmissão dos genes de qualidade, seja nos cuidados relacionais, afectivos ou educativos. Enfim… O mesmo muito grave é a profunda iniquidade nas politicas de saúde. Todo o investimento feito na doença mental é ridiculamente baixo

por comparação a outras patologias. A iniquidade nas politicas sociais é outro hiato discriminatório pela negativa. A criação de meios para o apoio social e reabilitação destas doenças só tem uma classificação possível: uma vergonha! E reporto, com toda a certeza, que o mesmo se passa quanto ao investimento feito na promoção da saúde mental, que é um fantástico capital social e de progresso das sociedades. Costuma afirmar-se que os países topo do desenvolvimento são os que mais investem na saúde mental das suas populações. Uma depressão é assim uma espécie de falha hormonal ou é muito mais do que isso? Muitíssimo mais, sem dúvida. Aqui o meu gosto pela arqueologia (e antropologia) leva-nos a escavar o passado para descobrir todos os indícios que podem determinar a manifestação da depressão. A medicina como ciência base orienta-nos para a procura das possíveis falhas estruturais ou funcionais (anatomofisiológicas, neuro-hormonais, imunológicas, psicológicas, evolutivas, relacionais) que estão na raiz da depressão. O meu encanto pela astronomia ou cosmologia ajuda-nos a entender a pessoa como sujeito no universo por forma a compreender as origens e os sentidos, possibilitando especulações sobre a importância da mente, da consciência e da espiritualidade nas problemáticas da depressão, fugindo a fabulações e pseudo-ciências. Apenas como exemplo: ter um propósito na vida e um sentido existencial é muito protector quanto à gravidade e duração da depressão. Quem deprime mais?

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O Género feminino ou o masculino? E quem admite mais que deprime? Ai, ai , não há só 2 géneros… os “trans” , que já são dezenas de nomenclaturas ficarão tristes se ignorados. Passando adiante e aceitando a dicotomia para facilitar a resposta: os estudos epidemiológicos constatam que a mulher tem o dobro de diagnóstico de depressão do que o homem. Pode especular-se sobre factores neuro-endócrinos, principalmente durante o puerpério e pós parto tal como na menopausa. Outros falam de maior exposição a factores de risco psicossocial entre os quais as duplas tarefas das mulheres, profissionais, domésticas e de principais cuidadoras familiares, bem como questões de discriminação sócio culturais e financeiras. Por outro lado, há que ter em conta a manifestação da doença. Neste caso mulher deprime mais de maneira directa, a saber: sente tristeza, melancolia, chora e reconhece que está deprimida, tendo maior facilidade de procurar ajuda nos serviços de saúde. O homem tende a manifestar mais “equivalentes depressivos” que muitas vezes não são reconhecidos como depressão. Costuma exteriorizar alterações do comportamento, por exemplo dedicar-se ao jogo, deambular sem propósito, entrar em situações arriscadas, conflituar, usar e abusar de substâncias psicoactivas, entre as quais o álcool. A sua expressão emocional é muitas vezes fora do padrão depressivo: desde a falsa jovialidade à ironia ácida, à impaciência, à irritabilidade e até hostilidade.


profissão:

Psiquiatra

MARIA ANTÓNIA FRASQUILHO “Mais comum que epilepsia, mais comum que a diabetes, mais comum que a grande maioria das doenças com que as pessoas se preocupam, que procuram prevenir e tratar, e que não têm repulsa em revelar.”

Este padrão de “repressão das emoções para não dar parte de fraco” atrasa o verdadeiro diagnóstico do problemas e muitas vezes um acto autolesivo, ou mesmo o suicídio consumado é o sinal inaugural reconhecível de que a depressão já existia. De criança e de louco, de médico e de louco, de padre e de louco... . De Louco todos temos um pouco. É verdade? Esse aforismo é ao mesmo tempo verdadeiro e uma falsidade perigosa. Verdadeiro porque sempre temos a nossa criança interna que carece de atenção, carinho, que brinca, que é impulsiva, curiosa, criadora, sonhadora, que tem este ou aquele trauma mas não deixa de ser transparente e de confiar. De louco (lá está o estigma) porque ousamos ser diferentes, experimentar, procurar adrenalina, pensar fora da caixa. De padre porque demandamos uma explicação fácil para o complicado da vida, porque escutamos, porque guiamos, porque queremos dar e receber bênção, porque temos necessidade de recolhimento, de pacificação, dons que queremos que sejam de correspondência com o oculto. De médico porque todos achamos que sabemos a fala do corpo, que dominamos o laboratório de mezinhas e artifícios de tratamento. Partilhamos um tremendo desejo

de ser os anjos, os mágicos das curas imediatas. Hoje o Dr. Google, ali á disposição dum clique , dá uma excelente confiança aos menos prudentes. As teorias anti medicina científica grassam como fogo. Agora qualquer um é “expert” em medicina alternativa, paramedicina, tradicional, quântica, natural, “sem químicos”, na corrente ou na técnica X, Y ou Z. Não faltam as palavras para aconselhar sobre um diagnóstico que se concebe, fundamentando tão só por crenças. Porém, é falso e é perigoso. Falso por que o facto de quarentões ou septagenários conterem dimensões infantis não faz deles crianças. Falso por que um louco não é assim e até a palavra é pejorativa . Bem poderemos tentar ser padres, mas sempre estaremos longe do que isso significa para além da nossa simples imaginação. E quanto a médico: “ Quem brinca muito de médico acaba doente de verdade” A lonjura entre o desejo e a realidade fará sempre estragos terríveis, por isso este embuste é perigoso. E os juízes? Também todos ajuizamos sem sustentáculo e desferimos penas demais. E nós Mulheres, somos Bruxas? Bruxa significa mulher sábia. Em tempos primitivos foram admiradas como curandeiras, mulheres entendidas na natureza, parteiras, portadoras de mais valias que se agradeciam. Uma

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espécie que mesclava respeito e divindade.

protecção,

Mas noutros tempos em que à mulher era vetado qualquer papel significativo e em que se temia o seu poder, aquelas que se destacavam por terem conhecimentos especiais, ou que fruíam comportamentos não normativos, facilmente caiam neste rótulo proibitivo e arriscado. Daqui para a fogueira era um nada. O imaginário popular também criou certos cultos em que elas são um elo entre mito e razão, ou entre ficção e realidade. No meu caso estou a léguas de ser bruxa, a não ser para os filhos e netos quando digo como já a minha mãe e avó avisavam “temos um dedo que adivinha”. Se escrevesse agora um livro para o comum dos mortais se entender a si mesmo, que tema escolheria? Um livro em branco, para que cada um escreva a própria vida, emoções, pensamentos, desejos, dificuldades e soluções antecipadas. Ao relê-lo garanto que se iria entender melhor. E se o partilhasse com alguém que actuasse como um espelho, melhor ainda. Isso é um pouco como funciona a psicoterapia.

Como se classifica a si mesma numa só palavra? Leoa


ANTÓNIO GANHÃO Critica Literária

Caso Pide Como lidou o país com a PIDE/DGS a seguir à revolução do 25 de Abril?

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O Caso da PIDE/DGS, Irene Flunser Pimentel, Círculo de Leitores, 2017 Muitos historiadores defendem que o 25 de Abril

futuro, constituindo um aviso para que não se repitam os

eclodiu como golpe militar a que o povo nas ruas

mesmos crimes.

transformou em revolução. Ao não ser, originalmente,

Portugal abraçou um processo de concórdia nacional,

um projeto revolucionário a questão da PIDE/DGS não

como bem essencial, expurgando assim a necessidade

fazia parte da prioridade dos militares de Abril que

de apurar a verdade, passando diretamente da punição à

visaram essencialmente a cúpula do poder civil como

reconciliação. Isso sonegou ao país a construção de uma

forma de garantir sucesso ao movimento, promovendo

memória coletiva sobre o que se passou no “ultramar

posteriormente o seu envio para o exílio.

português” onde forças armadas e PIDE partilharam responsabilidades na condução da guerra colonial. Se

Ao não se deter para julgamento os principais mandantes

em Angola, ao processo de independência se seguiu uma

do regime deposto, que espaço havia para julgar os

guerra civil, em Moçambique foram criados «campos de

PIDEs? Em África os seus operacionais foram mantidos

reeducação».

ao serviço, sendo transformada na PIM, Polícia de Informação Militar, apoiando os militares enquanto não

As transições abruptas de regime, tendem a criar

se estabelecia um acordo de paz com os movimentos de

processos punitivos enquanto as transições negociadas

libertação africanos. Os crimes de guerra também ficaram

tendem a ilibar mandantes e torcionários como aconteceu

de fora.

no Brasil, onde existiu uma amnistia para os crimes

Na altura, a Newsweek acusaria os portugueses de

cometidos pela ditadura militar.

revelarem ter sempre “uma maneira muito sua de fazer

Os escassos meios da Comissão de Extinção da

as coisas”.

PIDE/DGS, o enquadramento legal, a disseminação de responsabilidades e o arrastamento do processo,

A autora, ao revisitar os processos de «justiça de transição» desde Nuremberga, passando por Espanha, Chile, Argentina e África do Sul (com o processo de verdade e reconciliação do presidente Mandela), forneceu um amplo enquadramento histórico para o que se passou em Portugal que não surge como uma exceção à regra.

com duzentos mil processos crimes instaurados a elementos da ex-polícia, conduziram a resultados poucos expressivos com penas leves e libertações imediatas. No início da década de 80 do século passado já haviam sido todos libertados. Dos juízes dos tribunais plenários que julgavam sumariamente os processos instruídos pela PIDE, apenas um foi afastado da magistratura. A autora aborda ainda a justiça de reparação que só em1991, com a abertura dos arquivos da PIDE, ainda que fortemente mitigada, passou

Espanha com os seus duzentos mil mortos e um milhão

a permitir elementos documentais de prova aos ex-presos

de detenções políticas durante o Franquismo, optou por

políticos.

não afrontar o passado e seguir em frente sem qualquer

O Estado nunca chegou a promover um estudo sobre as

tipo de julgamento, numa «amnésia coletiva e voluntária».

consequências clínicas resultantes dos interrogatórios

A «accountability» encontra um espaço muito lato na

e métodos de tortura da PIDE, apenas existe um estudo

cultura de negação, variando com a natureza cultural de

feito a nível particular por um psiquiatra.

cada país.

Os brandos costumes que nos levam a olhar o passado com excessiva benevolência, precisam de estudos como

Os fundamentos da justiça transicional centram-se em

este, promovido pela historiadora Irene Flunser Pimentel,

dois objetivos principais, a responsabilização, focada

um remate forte sobre a nossa consciência coletiva

no passado, dando resposta ao sofrimento provocado

do que se passou, o seu contexto e enquadramento

pelos abusos de poder, e o da prevenção, focada no

internacional.

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As Cores

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CANTINHO DO JOÃO João Correia AS CORES BARALHAM-ME, MAS DEIXAM QUALQUER UM A VISUALIZAR TUDO ISTO COMO QUEM RELAXA DEBAIXO DE UM DUCHE REGADO PELO ARCO-ÍRIS.

Aquela sensação de relaxe, de prazer que se sente quando a água cai sobre nós, quente no inverno ou refrescante no verão. Não queremos sair dali, ficamos parados com a água a cair sobre a nossa cabeça, ligeiramente inclinada para baixo enquanto sentimos aquela água a escorrer sobre nós e a lavar-nos a alma. Não faço ideia quem é que pintou este quadro, mas quem o fez tinha talento, uma palete muito diversificada, uma boa coleção de pincéis e tempo. Muito tempo para escolher qual a cor mais rica e surpreendente aos olhos de quem a admira. Ora o verde, ora o amarelo, quiçá o vermelho conjugado com uma luz especial.

em como reter tudo o que via sem se esquecer de nenhum detalhe que fosse capaz de embelezar este mundo como nada ou ninguém o fez em momentos antes. Ficou aflito certamente, e ponderou roubar todas as imagens e cores só para si pois quem muito gosta não quer, de todo, partilhar o que julga ser apenas seu. Como se de um vulgar ladrão de cores se tratasse.

Sortudo.

Fico na dúvida se o devo fazer, se o devo divulgar ou ficar com a imagem só para mim. Mas como creio que nada nos pertence, que tudo é fugaz e temporário, com essa consciência de perenidade, liberto-a com a falsa generosidade daqueles que sabem que não podem prender, muito embora o fizessem se assim o pudessem, as imagens que, de tão bonitas, poderiam decorar a sala de estar do grande criador.

Sortudo esse pintor que viu tudo o que vejo agora, e que o viu pela primeira vez. Ficou perplexo certamente pois sem nada para o retratar pensou

(Escrito algures num intervalo entre confinamentos e, porque não dizê-lo, ainda sobre os efeitos do mesmo).

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Breve explicação da mediocridade

A Sociedade precisa de medíocres “A sociedade necessita de medíocres que não ponham em questão os princípios fundamentais e eles aí estão: dirigem os países, as grandes empresas, os ministérios, etc. Eu oiço-os falar e pasmo não haver praticamente um único líder que não seja pateta, um único discurso que não seja um rol de lugares comuns. Mas os que giram em torno deles não são melhores. (...) Os homens excepcionais servem apenas para situações excepcionais, pois são os únicos capazes de as resolverem. Desaparece a situação excepcional e prescindimos deles. (...) Temos medo do novo, do diferente, do que incomoda o sossego. A criatividade foi sempre uma ameaça tremenda: e então entronizamos meios-artistas, meios-cientistas, meiosescritores. Claro que há aqueles malucos como Picasso

ou Miró e necessitamos de os ter no Zoológico do nosso espírito embora entreguemos o nosso dinheiro a imbecis oportunistas a que chamamos gestores. E, claro, os gestores gastam mais do que gerem, com o seu português horrível e a sua habilidade de vendedores ambulantes: Porquê? Porque nos sossegam. Salazar sossegava. (...) Apontem-me um que o tenha. Um só. Uma criatura sem humor é um ser horrível. (...) Há muitas crianças inteligentes e muitos adultos estúpidos, porque perdemos muitas crianças quando elas começaram a crescer. Por inveja, claro. Mas, sobretudo, por medo.” ANTÓNIO LOBO ANTUNES

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira

Ele já merecia um prémio nobel da literatura.

Acerta-me em cheio quando diz que a sociedade precisa dos medíocres, porque era

E não é tanto pelo como escreve, é pela forma

isso que eu gostava de ter escrito, porque é

como o escreve e, por escrever o que sentimos,

isso que eu penso e não sei escrever.

mas não sabemos escrever como ele escreve.

Eu gostava de ter dito que eles têm todas as

É pela evidência das realidades que coloca na

vantagens sobre os outros, sobre aquilo que me

escrita, pelas verdades que viveu e analisa, e

ensinaram desde a escola primária. Ensinaram-

deita cá para fora como quem viveu todas as

me a estudar os assuntos a fundo, a estar

vidas, como quem passou por todos os perfis e

preparada para todas as perguntas, para todas

também pela falta deles.

as hipóteses, a ter ideias próprias a sobreviver,

É pela forma livre como diz as verdades, pela

a saber e não a debitar, a explicar e não a

forma calma como desmascara os mornos, a

repetir.... a ser franca, direta, honesta, leal..............

forma escrita como derruba os medíocres.

transparente. A ter a minha opinião ainda que errada porque ela é minha e sei defendê-la

É pela forma como se está a borrifar para quem

“com unhas e dentes”. Oh Ingenuidade!!!!

se julga dominante e dominador, como olha à distância para os que se enchem de vento e,

Os medíocres reconhecem-se e organizam-se.

vendo-os de longe, os vê de tão perto e tão a

Num discurso não se

mostram firmes nem

fundo.

nos olham diretamente nos olhos, não mostram

É pela forma com ele sabe que, mesmo que

o que sabem, nem são demasiado seguros de

não o saibam ler, ou não queiram saber do que

si. Não se apaixonam quando explicam algo ou

escreve, não estejam mesmo interessados, ele

querem convencer-nos de algo porque sabem

continuará a dizer o que muito bem entende de

que serão triturados, arremessados para o

forma livre e não calculada, de forma lenta e

lado pelos que terão medo das mudanças que

crua como só ele faz.

podiam fingir propôr.

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA B r e v e e x pl icação da med iocr idade

Fazem reflexões frágeis, ... delicadas, que

ou de pessoas, ou mesmo em termos de

não intimidam, não mostram segurança. Isso

inferioridade, há uma mediocracia que

passou de moda, era aplaudido de pé, não!

grassa e que se vai apoderando de cargos de

Era ovacionado. Agora as palmas, mesmo

poder facilmente. Como são mais, ... é-lhes

elas, são mornas, circunstanciais, socialmente

fácil singrar.

corretas e politicamente dirigidas.

Laurence J. Peter e Raymond Hull foram os

Quem não corresponder ao perfil não

primeiros a testemunhar a proliferação da

pertence ao clã, é apelidado de perturbador

mediocridade.

e perigoso. Não deverá ser levado a sério porque não devolverá favores, simplesmente

Lembram-se do Princípio de Peter? É

porque não os quer. Quer apenas aquilo a

implacável a sua clareza ou a sua crueza.

que por direito, e mérito próprio, é seu.

Os supercompetentes são tão afastados como os incompetentes e os sistemas

Pode ser tolerado. Mas, tem de cair em

encorajam os médios de competência a

si, porque, já ninguém toma a Bastilha, já

ascenderem a cargos de poder. Com o seu

ninguém dá o corpo ao manifesto, já ninguém

ar modesto e humilde conquistam as massas

quer ser herói. Que démodé! Joana D´Arque

e fazem “carreira”.

ardeu na fogueira, Nuno Álvares Pereira teve a sorte de ainda ser canonizado em 2009.

Já a frontalidade e a desenvoltura ou mesmo

Mas, das táticas dele ninguém se lembra,

a competência e o saber fazer, assustam

Egas Moniz ofereceu a sua vida pelo seu Rei

a maioria (dos medíocres ou analfabetos

ao Rei de Castela, mas de mais como esses,

intelectuais).

já não rezará a História. Olhe à sua volta e descubra os medíocres. Se

Enzensberger diz-nos que se consideram

for medíocre são os seus pares. Se pretende

bem informados, gravitam num Mundo

fazer parte não acuse incapacidades, mas

que protege a sua forma de actuar por

não

isso não pensam por si mesmos. Delegam

mostre

competências.

Deixe

que

pensem que todos têm competência por si.

o pensar a uma autoridade superior que ditará suas estratégias, sempre com foco

Saiba só empregar chavões e cumprimentar

em sua evolução profissional. A autocensura

a pessoa certa no momento certo.

é obrigatória (ainda que não seja sincera), e

A media é o seu padrão. Nem abaixo nem

apresentada como uma demonstração de

acima. Deixe de pensar em termos de

astúcia.

superioridade de resultados e de mentes

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Desde a publicação de “The Peter Principle”, a tendência de eliminar os não medíocres tem sido regularmente confirmada e hoje chegamos a um ponto onde a mediocridade é de facto até recomendada, enquanto a propensão para o trabalho bem feito é considerada um foco de problemas, de sobressaltos, de incómodos. Fingir é o melhor remédio! Não conte com propostas gloriosas ou originais. Será excluído Será encorajado a ver o inaceitável como inevitável e o repugnante como necessário. Criativo, nem pense nisso. Sobretudo sorris, ria e siga em frente. Provoque medo, provoque qualquer coisa, mas provoque reações. E volto a ler Lobo Antunes e a última frase das crianças.... Mas nunca se perca de si. Como diz Sílvia Chueire há um espaço de arbítrio - entre acaso, ética, responsabilidade e dever – uma fenda para a coragem. Não abdique.

“Quem não corresponder ao perfil não pertence ao clã, é apelidado de perturbador e perigoso. Não deverá ser levado a sério porque não devolverá favores, simplesmente porque não os quer. Quer apenas aquilo a que por direito, e mérito próprio, é seu.”

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A

NORM A

Saíram os dois, de mãos dadas, o miúdo saltando de contentamento ainda antes de chegarem à porta. «Tio», chamou. «Sim?». «Podemos comer um gelado?» «Não sei se há gelados nesta época do ano. Está demasiado frio.» «Então podemos comer um gelado quente?» João Tordo, O ano sabático, 2018, Companhia das Letras

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Sem pesquisar o que os dicionários de nomes próprios femininos diziam, a mãe deu-lhe o nome de Norma. Achou que não seria diferente da Mel, da Lua, da Maria do Mar ou de outras que assumiam nomes de alimento, de astro ou de elementos ambientais. Para esta mãe, era tão óbvio dar aqueles nomes como o de Norma que, na sua visão de jurista, corresponde a critério, princípio, preceito, determinação do que deve ser. Nos primeiros anos, a mãe via a sua filha Norma realmente como a perfeição. Nada tinha a ver com a criança, que era uma menina como as outras. Tinha a ver com os olhos da mãe, a vontade de ver em algo em si - apesar de fora de si como perfeito. A vida não é perfeita. Diz-se que, por isso, as leis que regulam a vida social também não são perfeitas. São os legisladores a falar, porque é difícil encontrar a palavra adequada para significar isto e não aquilo. Seria preciso estudar técnica legislativa e ler, em português, toda a obra de Sophia para compreender quão difícil é cumprir a simplicidade, mas tentar lá chegar. E uma vez chegando a esse estádio, é um mundo que se abre aos juristas e aos cidadãos em geral, a quem continua a dizer-se que a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.

E O MAR LOGO ALI Ana Gomes

Norma cresceu e ganhou vontade própria, nem sempre coincidente com a da mãe. Desafiou as regras que até aí eram claras, compreendidas e assumidas como as únicas possíveis de vigorar na relação entre quaisquer seres humanos. O desafio foi em crescendo sem que a mãe tivesse tido capacidade para levar Norma a cumprir o destino posto à nascença com aquele nome. Deixaram de partilhar o presente e o futuro. Norma vive algures na Ásia, é tudo o que se sabe. A mãe vive em Portugal. Como sempre, no barlavento algarvio, as amendoeiras começam a dar flor em finais de janeiro. Cumpre-se a lei natural, perfeita. Em fevereiro já floresceram e só isso já faz esquecer que ainda falta mais de um mês para a chegada da nova estação. Bem-vinda, primavera! - espalha ao vento a mãe de Norma, Babel.

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“C co na

A MÁSCARA E A JUSTIÇA

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João Pires da Rosa

Como podiam os julgadores interpretar o omportamento de todos os intervenientes audiência, se a “alma” de cada qual estava escondida por trás da máscara negra?”

Às vezes a saudade aperta, e entrei. Subi a escadaria – tantas vezes pisei estes degraus! – e inquieto, temeroso até, aproximei-me da Sala de Audiências. E lá estava, ao fundo, a delicada tapeçaria de Portalegre, com a belíssima Sentença de Salomão criada por Almada Negreiros, que tantos e tantos dias me acompanhou, que tantas e tantas estórias, marcantes na minha vida, apadrinhou.

descobri os olhos da Meritíssima Juíza Presidente. Pareceu-me até que sorria com a minha presença, ou não fosse ela a acompanhante preferida da sua colega, minha filha, quando, no fim das aulas na escola primária, a minha pequenina me vinha visitar. Estranha esta audiência! Senti um abalo, um forte abalo, e perguntei-me, perguntei a mim próprio:

Mas a Sala, … a Sala estava vazia. Apenas, lá à frente, de costas para a tapeçaria, o Colectivo de Juízes, à sua direita a “Digna Agente do MºPº” e à esquerda duas “Senhoras Advogadas”, na secretariazinha em frente a “Senhora Funcionária”. De pé, atento mas inquieto, o réu (o arguido! digo agora ), e por trás dele, dois guardas prisionais e dois agentes da PSP. Mais ninguém na sala. Sem máscara, apenas uma pessoa – precisamente o Rei Salomão! Todos os demais, cada um dos demais, com uma sombria máscara preta. Por detrás da máscara, pude

Eu pude adivinhar o estado de alma de quem presidia ao julgamento. Mas o arguido, podia ele aperceber-se da forma como quem o julgava o foi ouvindo, da forma como os Senhores Juízes iam reagindo às suas palavras, até mesmo à sua simples presença perante o poder judiciário? E mais do que isso, podiam os Julgadores “sentir” o arguido, “sentir” a pessoa que tinham ali à sua frente e a quem deviam Justiça, (fosse ou não o resultado dela conforme aos desejos de quem estava a ser julgado)? Como podiam os Julgadores “sentir” e entender todas as mais declarações prestadas por quem tinha vindo

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João Pires da Rosa

A Máscara e a Justiça

prestar o seu testemunho em Tribunal? Com podiam os julgadores interpretar o comportamento de todos os intervenientes na audiência, se a “alma” de cada qual estava escondida por trás da máscara negra - e sem o rosto é tantas vezes (senão mesmo sempre) impossível ler a “alma” de alguém?!! E perguntei-me mais, ainda: como pode o arguido, se acaso lhe não for favorável a decisão deste Colectivo que o julga, aceitar tranquilamente a condenação que sofreu quando não pôde ler a “alma” dos Juízes e sabe que lhes não pôde verdadeiramente transmitir o seu próprio sentir? Pensei que foi bom que o limite de idade me libertasse do peso de uma profissão a que dediquei toda a minha vida, ao longo de longos de 46 anos, e dirigi a minha atenção, e o meu apreço, para os Colegas que nos dias de hoje, os dias da pandemia, suportam estoicamente o seu dever de prestarem Justiça em nome do povo, muitas e tantas vezes suportando a incompreensão ( para não dizer coisa mais dura ) das vozes que se arvoram como sendo a voz do povo, que tantas e muitas vezes não o são. Eu não acredito numa Justiça que não seja feita “olhos nos olhos” e por isso anseio porque o drama que os Juízes hoje estão vivendo os não empurre ou os não leve a aceitar caminhos que os afastem das pessoas a quem devem Justiça e desejo que, ao contrário, esse drama os faça acentuar o princípio de independência de que são titulares e do qual, em momento

algum, não podem abdicar, sob pena de renegarem a grandeza da sua função. A luta, a nossa luta, tem que ser não pela criação de mecanismos novos que permitam ir resolvendo processos e mais processos à distância de um clik ( ou mesmo sem a humana necessidade de um homem incumbido da nobre e difícil missão de julgar outros homens! ), mas antes pela criação de condições que permitam ouvir e ouvir e ouvir, e ver e observar, e reflectir, e pensar e repensar, frente a frente com quem enfrenta o poder judicial, e frente a frente connosco próprios, uns com os outros e cada um consigo mesmo, de modo a poder humanamente descobrir os caminhos da vida justa e solidária, que como sociedade queremos ser, no conjunto de valores que, condensados no universo legislativo que temos ao dispor, nos querem garantir e nos apontam esse mesmo caminho. E parece tão óbvio seguir por aí. Se, por exemplo, hoje em dia, em plena pandemia, não podemos garantir aos cidadãos sem os quais não podemos construir a decisão judicial a necessária segurança sanitária, diremos isso mesmo e, esgrimindo a nossa independência, diremos que é melhor esperar um pouco mais até que essa segurança possa ser oferecida. E não abdiquemos nunca de assumirmos por nós próprios, sem o recurso a quem quer que seja, esse juízo. Se somos – e devemos ser – exigentes com a nossa própria segurança, avaliemos pela

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mesma medida a segurança daqueles que convocamos para a produção da Justiça e dos que connosco colaboram nessa própria produção. Se convocamos alguém, asseguremos que damos a esse alguém as condições de tempo e espaço que o não obriguem a suportar uma “coabitação” excessiva ou perniciosa com outros convocados, muito menos por tempo demasiado, quando um pouco mais de atenção permitiria a convocação por horas diversificadas. Isto, que se pensa para agora, em tempos de pandemia, é o que deve pensar-se para o futuro. Só assim a crise pandémica terá – deve mesmo ter – um efeito criativo, deverá ajudar a criar uma nova abertura de espírito que nos permita criar uma sociedade melhor. Posso dizer aqui para o sentido de Justiça que guiou toda a minha vida profissional, que guia a vida de todos nós, Juízes, o que eu mesmo “disse” ao poeta Eugénio de Andrade ( a quem perguntei se, em tempo de pandemia, morreu o “sorriso” ): a resposta é não. Esse sentido de Justiça não morreu Está mais vivo e forte do que sempre foi Guardado secretamente na alma e nos sentidos…

E agora, Eugénio? E agora, Eugénio, Agora, em tempo de pandemia, Com o sorriso escondido nesta máscara estranha ( comunitária ou cirúrgica, quem diria!) A quem abro a porta, Quem me abre a porta? Talvez os olhos. Mas sem a luz de um sorriso Os olhos são apenas uns olhos E o que eu procuro é o olhar Uns olhos sem luz eu não sei ler. Talvez a voz. Mas sem o recorte e o desenho dos lábios Sem a sua emoção, o seu tremer, Que pode a voz dizer?! Quem sabe, as mãos. Mas ficam tão distantes hoje as tuas mãos Que os teus dedos emudecem E não deixam vir à flor da pele os teus segredos. Morreu o poema, Eugénio? Não, não morreu. Está mais vivo e forte do que sempre foi Guardado secretamente na alma e nos sentidos À espera Confiadamente à espera Do mágico momento Em que possa voltar o tempo De correr E, nu, dentro daquele sorriso, Navegar. Maio 2020

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Seja positivo... ou, será melhor, não?

R

ecuemos uns anos. Estamos em 2011 e as sessões de desenvolvimento pessoal ainda são uma espécie de novidade em Portugal. Lá por fora há muito que se ouve falar em Tony Robins e aqui é Daniel Sá Nogueira aquele que parece ser o pioneiro do, chamemos-lhe, movimento ou filosofia de vida, de que todos somos os maiores e de que no positivismo é que está o segredo da felicidade. Há um herói de capa e espada dentro de cada um de nós. Há um ser lendário que não deixa ninguém indiferente. A DC e a Marvel nem sabem o que estão a perder...

PANO PARA MANGAS

Desde então, o milagre da multiplicação aconteceu e qualquer um com um certificado em coaching – whatever that means... - ou que saiba proclamar umas verdades absolutas se tornou num messias cujas palavras são inquestionáveis. Mas quem sou eu para os colocar em causa? Até porque foi graças à participação num destes workshops que ganhei coragem e coloquei um ponto final numa vida que, além de amargura, me assegurou o desenvolvimento de uma doença psicossomática.

Margarida Vargues

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As prateleiras das livrarias, agora encerradas (!!!), exibem títulos chamativos em capas não menos coloridas, onde até o calão passou a ocupar um lugar de destaque. Chega a haver secções dedicadas ao desenvolvimento pessoal – onde também podemos encontrar perdidos livros de culinária, tricot ou anedotas. Se quisermos mais informações, nem que seja para matar a curiosidade, também podemos efectuar uma pesquisa no Google e as frases motivacionais destes novos deuses conseguem ir, pelo menos até à página quatro – se bem que, quem é que se dá ao trabalho de “folhear” o Google até à página quatro? Ao pesquisarmos em Português, responde-nos o Brasil. Ao levarmos a cabo a dita pesquisa em Inglês, somos arrebatados pelos EUA. Enfim...são nações com muita gente!

denominados influenciadores nas redes sociais e levado ao extremo em muitas outras situações. É como se nos enfiassem numa bolha corde-rosa, onde o discernimento deixasse de existir. Perde-se a capacidade de saber lidar com a frustração, com o medo, com a angústia ou com a ansiedade – e sim, estes são tempos de ansiedade. Há uma obrigação social e uma idolatração da felicidade, ou daquilo que se acha ser a felicidade, que tem um lado muito negro nas nossas vidas. Chorar é normal. Ficar ansioso, também. Estar triste, também é normal. Ter medo, é assustador, porém deixa-nos em estado de alerta. Tudo tem um peso. Tudo tem uma medida. Há que saber equilibrar os pratos da balança e aí é que reside a sabedoria da felicidade e do ser-se, estar-se e ficar-se positivo.

Seja positivo! Mantenha-se positivo! Pense positivo! – provavelmente deveria estar a usar a segunda pessoa do singular, já que a terceira é completamente desadequada ao tema e ao contexto, em que todos se tratam por tu ...

Como afirma o ditado “em tempo de guerra não se limpam armas”, como tal Keep Calm and Carry On.

Ora, em tempos de pandemia não deve haver pior conselho a proferir do que este. A palavra “positivo” ganhou uma outra dimensão: negativa, para mal dos nossos pecados. Tudo o que menos queremos, neste preciso momento, é que estejamos ou nos mantenhamos positivos. Negativo é o que mais desejamos ouvir, ou ler, se tivermos de nos sujeitar a um teste.

Nota: acreditem, ou não, escrever este texto foi uma verdadeira aventura e um exercício de Escrita Criativa. Porquê? Porque o teclado do meu computador perdeu a última letra do alfabeto, pelo que tive de o escrever sem a usar. Senti falta dela? Oh, se senti! Experimentem a escrever um texto com mais de 300 palavras onde não possam usar uma letra. Desde já aviso que se escolherem uma vogal serão lendários, uns verdadeiros gurus da escrita!

Confesso que me preocupa esta necessidade, quase obrigatoriedade, de nos mantermos positivos, especialmente se o estivermos. Nenhum de nós é invencível e isso prova-se pelos casos, a cada dia mais próximos de nós: amigos, amigos de amigos, colegas. O círculo fecha-se. Caminhamos entre as gotas da chuva na tentativa e esperança de não nos molharmos. Preocupa-me também o excesso de ser-se positivo – particularmente agora - imposto pelos gurus, a toda a hora relembrado pelos

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FG.

Pausa para café Quando as crianças são obrigadas a crescer Porque o meu Amigo e colega pode ter tido um percurso diferente, e neste domínio cada um tem as suas condicionantes, vou falar sobre o impacto que a 2ª Grande Guerra teve na minha vida e na minha formação mental e espiritual. Essa confrontação demolidora, ocorreu entre 1939 e 1945, ou seja, entre os meus 5 e 11 anos Estávamos “confinados”, a acompanhar o desenrolar dos confrontos ao ritmo do que nos era servido pelos noticiários da rádio e dos jornais, todos eles controlados e filtrados pelo então designado Estado Novo, ou seja, só sabíamos o que convinha ao Regime Vigente. Tive dois tipos de experiências, uma enquanto citadino, outra enquanto rural. Classifico de citadino todo o período que passava em Lisboa, ou seja, todo o período escolar. Não foi desde o início que se começaram a sentir os efeitos das restrições de toda a

ordem, mas à medida que as tropas alemãs iam progredindo e ganhando batalhas, as preocupações foram aumentando. A ânsia do poder cresceu noutros países, e daí que a Itália, pela mão de Mussolini, se tenha tornado num forte aliado de Hitler, da mesma maneira que a França se “fraturou”, com um governo amputado de uma parte do território que ficou sob as ordens do General Petain, posteriormente colaboracionista dos alemães, a que se juntou a Espanha, então já, governada por outro ditador. Portanto, a maior parte da Europa era refém dos alemães e seus apaniguados, e apenas a Inglaterra se mantinha independente, física e politicamente, sendo, portanto, o alvo predileto das forças aéreas do bloco germanófilo. Portugal manteve-se fiel à sua Aliança com a Inglaterra, mas, no contexto em que vivia, com o domínio crescente dos germanófilos das importações vitais e das receitas de exportações, tal de pouco nos servia.

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Começou, entretanto, o racionamento de bens essenciais, principalmente alimentares. Consoante a composição do agregado familiar, eram-nos distribuídas senhas, (julgo que pela Junta de Freguesia, mas já não tenho com quem conferir), sei que eram de cores diferenciadas conforme o produto, e num número variável, dependente da referida composição. Internamente no agregado familiar era definida a distribuição das mesmas, dado ser necessário ir para filas nas lojas correspondentes, e cada um tinha por isso a sua missão. Eu, era o pão. Era a mais fácil, porque não era quotidiana, suponho que eram 3 ou 4 vezes por semana, e porque a padaria Brasileira, a maior de Campo de Ourique, era ao virar da esquina. Outro produto racionado eram os combustíveis, para cozinhar. Meu Pai comprou um fogão grande, de um modelo que tinha uma caldeira com torneira, e uma placa enorme. O combustível era lenha e/ou briquetes. Aqui entrei eu em função!! Na minha turma havia um colega que era filho do carvoeiro da esquina, uma família de origem espanhola (Galiza), e que desde a 1ª classe fazia parte do meu grupo. Ambos eram vendidos na referida carvoaria, o que nos facilitou a vida. Por outro lado o aquecimento da casa era a petróleo, outro bem escasso, mas, a minha “influência” era garantia de abastecimento regular. Outro apoio que tínhamos era oriundo da Amareleja, principalmente em azeite e outros produtos agrícolas. Nos 3 meses de férias, as chamadas “grandes”, vivíamos numa quinta nos arredores de Lisboa, onde havia o recurso aos fornecedores locais em tudo o que “a terra dá”, ficando-se dependente de produtos importados, tal como em Lisboa, com a particularidade de que tínhamos que os adquirir aqui, para posteriormente os transferir para lá. O saldo era positivo, mas trabalhoso.

Para acompanharmos a evolução da guerra, só o rádio, um PHILCO castanho, que tinha “ondas curtas” (ah,ah,ah) e o Diário de Noticias. Na quinta, meu Pai arranjou quem fosse montar no sótão uma GALENA. Galena é um mineral, montado num equipamento cujo esquema anexo, e que alimentado por uma bateria de 12 volts, permitia ao “operador” (eu), sintonizar a EN (Emissora Nacional) e reportar à Família as últimas novidades, obviamente filtradas pelo lápis azul… . Uma aventura… . À medida que a guerra se foi tornando mais demolidora, começaram a surgir cenários de perigo potencial para Portugal, que hoje julgo inconsistentes, mas que criavam dependência psicologia do Governo em funções. Assim, foi lançada uma campanha com vista à proteção em situação de bombardeamento aéreo, principalmente na cidade de Lisboa. Foram então içados alguns balões enormes, com a configuração de dirigíveis, ligados por cabos de aço a “fixes” em betão, em locais estratégicos. O mais saliente era um que estava no alto do Parque Eduardo VII mas, recordo outro algures perto da Praça do Comércio. Uma outra iniciativa, mas com carácter compulsivo, foi a de colocar fitas de um papel específico, nos vidros de todas as janelas e a eles coladas. Essas fitas deveriam formar um X. Foi uma “festa” que me tocou, porque as janelas da marquise tinham vidros que nunca mais acabavam. Ao fim de 4 anos, tudo pesado e somado, considero que foi algo que deixou marcas e um sentimento de dúvidas e revolta contra as instituições que regem os países porque, sobressaiu como nunca, a falta de escrúpulos dos governos, que tudo sacrificam para satisfação pessoal, mesmo que tal tenha como preço a morte e a miséria de outrem. Os PORQUÊ e PARA QUÊ isto, eram perguntas que me assaltavam constantemente a mim e aos meus colegas.

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Se está tudo do avesso, como é que vamos saber? Saber, saber o quê? Saber estar, saber comunicar e, principalmente, manter uma postura digna quando comunicamos. E vem isto a propósito da maneira como aparecemos aos outros, a imagem que passamos aos que estão do outro lado, o respeito que demonstramos pelos nossos interlocutores.

pormenores, a começar pela aspecto e a acabar na moldura que os rodeia. Pois é, o melhor mesmo é fazermos uns ensaios para o que der e vier, e pensarmos, como manda o figurino, nos detalhes, sempre os detalhes ... Você corta a etiqueta?

Hoje comunicamos por skype, por zoom, webinando, por plataformas de streaming, por whatsapp, para falar dos instrumentos modernos. E voltámos às cartas, à conversa à janela, ao postigo, ao portão ... Mas é das modernisses que nos vamos ocupar por agora. Todos os dias lidamos com este fenómeno a trabalhar e a lazeirar. Quem está em tele-trabalho tem situações diversas que vêm da transposição do dia-adia que viveu no passado para este confuso e difícil tempo. Quando o número de contactos é reduzido, embora possa haver alguma preocupações com o aspecto com que nos apresentamos, podemos relaxar um pouco, e aparecer com algum à vontade - nunca à vontadinha. E, claro, nós, e o ambiente que nos rodeia, se é que me faço entender .... O mesmo se aplica, obviamente, a quem está no seu local de trabalho e apenas fala, reune, discute, chefia e sei lá que mais, através do seu computador ou do seu telemóvel. Abandalhar o aspecto e a postura não é nunca uma boa opção, é sempre uma má escolha. Quando vemos comentadores e entrevistados na televisão - para usar um exemplo fácil de analisar aqui convosco - através de skype, a maioria das vezes, ou a partir de outras plataformas, damos connosco a criticar todo o tipo de

Corta de certeza, mas já agora, não exagere e procure não apanhar um valente susto ou morrer de vergonha quando rebobinar. Ficam aqui algumas ideias para navegarem no seu horizonte. Quem sabe, podem fazer a diferença. Pano de fundo: parece que não tem nada a ver com o filme, mas tem. A imagem tem que ter contrastes para ter impacto e ser agradável à vista. Enquadramento: a sua imagem tem que estar enquadrada, centrada e tem que ter uma moldura agradável. Cabelo: pois é, o cabelo é um trauma e por isso faça ensaios para saber em que posição é que não deve ter a sua cabeça. Há umas inclinações completamente proibidas. Olhar: ah, o olhar vai marcar a sua intervenção. Teste, teste até ter a certeza de que do outro lado estão a sentir que os olha de frente. Se quer que as suas palavras cheguem ao receptor, este é um factor decisivo. Não se pense que estas ideias se devem aplicar apenas no âmbito profissional. No actual panorama covidiano em que vivemos, é importante mantermos uma boa postura e uma boa qualidade na comunicação com os outros, mas é tão ou mais importante mantermos uma boa postura, uma boa apresentação, uma boa imagem para nós próprios e para os que connosco vivem e lidam todos os dias.

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MARGARIDA DE MELLO MOSER.

VOCÊ CORTA A ETIQUETA? Do Av es

so ...

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Um ano de Pandemia Um ano de Pandemia, de sofrimentos, mortes, de privação de liberdade, de superações e de aprendizagens.

ANTÓNIO LOPES

A arte do confinamento em Portugal Durante os primeiros meses da pandemia na Europa, quando os portugueses estavam com medo e não saíam para a rua e, por isso mesmo, Portugal passou por “país milagre”, ficávamos angustiados ao ver os contágios e óbitos “lá fora”, com hospitais cheios e caixões empilhados em câmaras frigoríficas improvisadas. Nessa altura agradecíamos não ser esse o panorama nacional e poucos punham em causa as medidas decretadas por sucessivos Estados de Emergência. Mas depois veio o verão e fomos gradualmente relaxando as medidas e o medo. E a privação de liberdade de movimentos passou a ser mais “contestada” e vieram as festas ilegais. Quando as pessoas voltaram de férias, para reatar empregos e aulas, muitos descuraram os cuidados básicos que tinham seguido durante a 1ª vaga, nomeadamente a lavagem de mãos, o distânciamento “sério” e o evitar de aglomerados, p.ex. nas compras. Depois começou a ouvir-se falar que a vacina já vinha a caminho e, ... mais um passo para o aligeirar de medidas. Quando os contágios subiram em novembro, antecipando o previsto contágio da “3ª vaga” (que se esperava para a época das gripes sasonais) muitos não perceberam que

desta vez ia ser mais grave e viram na brecha governamental para o Natal uma oportunidade para andarem “à solta”. As compras, os almoços e jantares de Natal, as muitas festas privadas de fim de Ano, contrariaram TODAS as recomendações das autoridades sanitárias! O resultado foi que se infetaram por negligência, incúria e desrespeito pela lei. Os portugueses tendem a não seguir “recomendações”. Têm “vontade própria”! Só lá vão com proibições, coimas, multas, etc. Apesar das coimas pesadas, muitas pessoas -demasiadas- prevaricaram e foram notificadas por estarem a violar as regras do confinamento, em jantares em restaurantes, a passear infetadas em transportes públicos ou às compras em grandes superfícies!!! Enquanto que em países como a Alemanha ou a França os governantes foram pedir à população para “não haver Natal em família” e eles cumpriram, nós por cá revelámos o pior cenário! A verdade é que os portugueses “perderam o medo”. Perderam-no de tal forma que passámos à situação inversa do início da pandemia, passando de “país milagre” a “situação dramática”. Entupimos os hospitais e ultrapassámos todos as marcas de contágios e de óbitos e, durante 2-3 semanas, liderámos as piores estatísticas a nível mundial.

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Fig. 1

Fig. 2 Situação Epidemiológia em Portugal Entretanto voltámos aos Estados de Emergência (vamos entrar no 12º) e só quem não quer não compreende que, se tivermos cuidado, os valores descem extraordinariamente, tal como sobem extraordinariamente quando se faz o oposto. Em termos de contágios, óbitos e hospitalizações, estamos nesta fase em consolidação da descida, e atingimos esta semana marcas (excepto no nº de “ativos” e de “internados em UCI”) semelhantes às de outubro de 2020. Contudo, apenas nestes 4 meses, registaram-se mais 690 mil contagiados (nos primeiros 10 meses tinham sido apenas 110 mil) e registaram-se mais 13600 óbitos (nos primeiros 10 meses tinham sido apenas 2600). É um preço elevado. Felizmente, o índice de transmissibilidade reduziu extraordinariamente e está no valor mais baixo desde que a pandemia se instalou no nosso país, R(t)=0,67 (é inferior

a 1 em todos os distritos, ilhas incluídas), sendo mesmo o mais baixo da Europa no presente momento. Desta forma, a taxa de incidência de novos casos ao dia, encontra-se nos 320 casos/100 mil hab. (bem longe dos valores acima dos 1300 da segunda quinzena de janeiro) e, segundo estas projeções, poderá estar abaixo dos 120 na primeira semana de março e abaixo dos 60 em meados de março. Contudo, os pacientes em UCI só em meados de março estarão nos 300 e só atingirão os 200 apenas perto do fim de março. De lembrar que o pico de 2020 (ocorrido em abril) foi de 270 camas. O grupo etário +80 voltou a ser o que tem maior incidência (houve alturas no verão em que eram os jovens 20-29, pela sua “despreocupação”), com alguns focos epidémicos. Relativamente à nova variante (“inglesa”), que entretanto já foi detetada em 87 países, em Portugal está disseminada maioritariamente na região costeira e a sua prevalência está nos 50% dos contágios,

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António Lopes

Um ano de pandemia

Fig. 3 sendo maioritária nas camadas abaixo dos 60 anos.

taxas de crescimento na “próxima temporada” sejam bem mais reduzidas.

Por fim, a vacinação arrancou no final de 2020 e, a boa vontade da União Europeia conseguiu negociar a disseminação da vacina por toda a Europa comunitária em simultâneo. O problema reside agora no estrangulamento da sua aplicação por falta de vacinas. Dizem as autoridades que, quando vierem e se dissipar esse estrangulamento (até porque virão de vários laboratórios), atingiremos as 100 mil inoculações diárias. Para já, chegaram 680 mil ao continente e 29 mil às ilhas e, nesta fase, a sua aplicação está a ser implementada nos grupos prioritários -”salvar vidas”, cidadãos com mais de 50 anos com patologias associadas e idosos com mais de 80 anos, e o grupo “ganhar resiliência” dos profissionais de saúde e afins e autoridades. Entretanto, sabemos agora que a taxa de imunidade foi de 3,5% na primeira vaga e os cientistas antevêem uma taxa de 15% nesta 3ª vaga. A somar a esta imunizaçãoadquirida teremos também a imunização por inoculação e, uma vez que a perspetiva (eventualmente um pouco otimista), é chegarmos ao verão com 70% da população vacinada, esperamos assim criar uma barreira epidemiológica -a tal “imunidade de grupo”-, para que as

Relembro que contrariamente ao VHI-SIDA, que já dizimou 25-35 milhões de vidas, passados 40 anos ainda não temos vacina, mas todos sabem de métodos eficazes de reduzir a transmissão da doença. No caso do COVID-19 temos várias vacinas disponíveis e outras tantas aparecerão entretanto, embora ainda não saibamos quase nada sobre a eficácia da vacina em termos de prevenção no futuro. É necessário não esquecer as regras fundamentais entretanto implementadas –uso de máscara e lavagem frequente de mãos.

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Fig.


.4

Epílogo

Fig. 5

Lembro-me, faz agora um ano, quando o mundo parou e a nuvem de poluição sobre as cidades se desvaneceu, ouvir dizer que “era agora”, que íamos “todos aprender”, que “a natureza nos estava a ensinar” que não voltaríamos ao mesmo e que íamos sair disto “todos melhores cidadãos”... Na realidade já muita coisa aconteceu e a maioria das pessoas voltou atrás nalgumas dessas “boas vontades”. Mas entretanto redescobrimos várias coisas:

telemóveis na escola, deviam usar agora o telemóvel como ferramenta de ensino e aprendizagem;

-que a liberdade individual não é o primeiro dos direitos e deve estar subordinada a bens maiores e, desde logo, à salvaguarda da vida humana;

A pandemia COVID-19 terá efeitos estruturais na nossa vida em sociedade. Talvez nos acorde da globalização da indiferença e nos faça humanos melhores! Talvez grande parte das pessoas esqueça em 5-10 anos tudo isto. Sei que a maioria dos jovens vai recordar este período como algo “completamente” inusitado que os fez ficar ansiosos, sem perceber muito bem o que se estava a passar nesta “nova ordem mundial”, a que alguns chamaram de “novo normal”, no qual não podia visitar os avós, tinham de andar de máscara e não podiam abraçar-se nos corredores das escolas nem partilhar o pacote de batatas fritas.

-que os profissionais de saúde existem para tratar dos doentes até ao limite das suas forças e conhecimento, mesmo que com risco das próprias vidas; -que, ainda que não haja promessa de cura, a comunidade científica fez um trabalho hercúleo e conseguiu no espaço de meses, aquilo que habitualmente levava anos; -que grande parte das empresas se adaptou às mudanças, preparando álcool-gel a partir de vinho e aguardente, ou máscaras a partir dos tecidos que normalmente usavam para fazer roupa, ou ventiladores nas linhas de montagem de automóveis ou esquentadores; -que afinal os alunos que tinham sido proibidos de usar

-que as redes sociais afinal podem contribuir para as famílias estarem em contacto numa base regular, quando somos obrigados a ficar “cada um no seu concelho”; -que o primeiro dever de cada um é cuidar do próximo.

Fica muito por dizer, desde a irracionalidade da corrida ao papel higiénico ao “plano de reabertura da Economia”, vulgo “bazuca”, que se seguirá, passando pela falta de espetáculos ou de cabeleireiros. Como sempre, a vida não pára! Seguirá o seu percurso, como o fez em pandemias anteriores.

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Da Gratidão da Vida CUÁN TRISTE ES, HERMANO LA VIDA DE UN JÓVEN QUE AL VER UN ANCIANO Y CON DESPRECIO LO MIRA DE REOJO Hermano!, muito triste é a decadência na relação; oh que muralha lamentável! Oh cruel sina desta geração! Oh!, indo pelas ruas vê um Ancião e ri-se dele. A juventude é folha d´árvore no outono, é só soprar o vento. Hermano!, o que alegra Octhy É ver um Ancião e quando ele te saúda, colhes a sua saudação com ternura e aproxima-se dele e recebe a bendição das suas mãos. A juventude é folha d´árvore no outono, é só soprar o vento. Os cabelos brancos que tem é milagre Ainda que devagar vai caminhando Prudente chega onde quer ir-se. E chegará o teu turno, e a forma com que hoje O olhas assim também te olharão amanhã. A juventude é folha d´árvore no outono, é só soprar o vento.

Preciosa é a vida, querida irmã. Maravilhosa no seu esplendor Alegre doçura da alma de quem reconhece a velhice. Amarga e ignóbil é a vida Sombria e fatídica na extensão por desprezar a erudição do Ancião. Oh! doce bem, o cuidar à um Ancião! A juventude é folha d´árvore no outono, é só soprar o vento. Quando caminhas pelas ruas e ao ver um Ancião, aproxima-se Dele. Pacientemente escuta os seus conselhos Pois que com Ele, dorme a Sabedoria. As suas mãos estão cheias de ternura e em seus pés, largas experiências vividas. Nele encontrarás bálsamo da gratidão. A juventude é folha d´árvore no outono, é só soprar o vento.

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